22 de fevereiro de 2012

A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada.

Entrevista especial com Luiz Gonzaga de Souza Lima divulgada pelo site IHU

O cientista político fala sobre sua mais recente obra, que é uma nova interpretação de um país integrado ao sistema mundial, globalizado, desde o seu nascimento, da formação do nosso povo – um povo novo – e da cultura exuberante que conseguiu criar.

Recém lançada pela Editora Rima, de São Paulo, a obra A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada, discute o país. A IHU On-Line entrevistou por e-mail o autor do livro, Luiz Gonzaga de Souza Lima, que esmiúça as teses defendidas, dentre as quais, o conceito de “formação social empresarial” no Brasil, instituído na época da colonização. Para o cientista político, o Brasil foi o primeiro elo articulador da economia global. “Aqui não existiu uma sociedade humana que tenha dado vida, na sua trajetória histórica, como produto do seu próprio existir, a um tipo novo de economia. No caso brasileiro ocorreu o contrário. Foi um tipo novo de economia, internacionalizada, que criou uma nova organização social dos humanos. Nasceu aqui, formada pela empresa, o que se pode se chamar de Formação Social Empresarial”. Ele explica: “no mundo daquela época, os sistemas sociais serviam para integrar os humanos, reconhecê-los como membros do sistema – mesmo em forma desigual. Aqui não. Aqui o sistema social criou a exclusão”. E Luiz Gonzaga traz uma ideia inovadora em sua obra. Segundo ele, “olhando o mundo a partir do que ocorreu aqui em 1532 e nos anos que se seguiram, pode-se constatar que, enquanto sistema social humano, a modernidade nasce primeiro aqui na periferia e depois se realizará nos centros decisórios da nova dinâmica social mundial, a Europa. É o contrário do que sempre nos ensinaram. A modernidade tropical antecede a modernidade europeia e antecipa, em mais de um século, as formulações teóricas sobre o que é um ser social moderno”. E sobre a formação cultural de nosso povo, ele constata: “o Brasil já nasceu construindo a síntese, os referenciais comuns. Diante da crise civilizatória contemporânea, marcada por confrontos e conflitos entre civilizações, entre culturas e etnias, ser naturalmente multiétnico, aberto à cultura e às características do outro, conviver com elas, vivê-las na intimidade, possui um valor imenso. É um dos mais importantes recursos que o Brasil possui. O Brasil é o futuro. Se um dia a humanidade for um só povo, ele será parecido com o povo brasileiro”.

Luiz Gonzaga de Souza Lima é cientista político mineiro e professor universitário. Estudou psicologia na PUC-Minas e é doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Milão. Lecionou Sociologia do Desenvolvimento e Política Internacional na mesma instituição, de 1974 a 1979. Foi professor de Ciências Políticas e Política Internacional na PUC-Rio. A partir de 1992 foi professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, ensinando Teoria Política e Política Internacional, aposentando-se da universidade em 2008. Atualmente vive entre a Fazenda Inglesa, em Petrópolis, e Cumuruxatiba na Bahia, dedica-se a compartilhar suas reflexões e a escrever ensaios sobre a crise contemporânea. O blog pessoal do autor é www.reflexoes-brasileiras.blogspot.com.

IHU On-Line – Qual é a tese central defendida no livro A refundação do Brasil. Rumo a uma sociedade biocentrada?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – O livro não possui uma tese central. Apresenta muitas teses. Tenho observado que vários leitores valorizam teses diferentes. A obra é uma nova interpretação de um país integrado ao sistema mundial, globalizado, desde o seu nascimento, da formação do nosso povo – um povo novo – e da cultura exuberante que conseguiu criar. Na realidade, o livro é um novo olhar sobre o que o Brasil é na sua essência. O primeiro capítulo apresenta este novo olhar. Em toda a nossa existência nos escapou a compreensão de nós mesmos. Isso porque tentamos sempre nos compreender com o olhar de fora, antes europeu, hoje americano. Até aprendemos com muita competência construir o olhar deles sobre nós, e os ensinamos a respeito. O livro é um outro olhar sobre nós. Um olhar nosso, do nosso ponto de vista. É um olhar brasileiro sobre o Brasil. Alguns leitores consideram a Empresa Brasil como a questão central, outros consideram como fundamental a construção do povo planetário que aqui nasceu e outros ainda a natureza mundial da nossa cultura. Muitos também consideram a necessidade e as possibilidades de uma refundação como a tese principal. Essa terminou por dar título ao livro.

IHU On-Line – Quais os argumentos que justificam a afirmação de que o Brasil teria sido fundado como uma empresa?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Não existem argumentos para demonstrar a necessidade de compreender o nosso país como sendo uma empresa, a Empresa Brasil. Existem os fatos. E eles são abundantemente suficientes para fundamentar a formulação e estimular uma reflexão no âmbito da teoria social. O nosso território foi privatizado em 1532, dividido em fatias e entregues a consórcios empresariais internacionais, capitaneado por portugueses, mas reunindo capitais de várias proveniências na Europa, em especial dos países baixos – onde mais tarde nasceria a Holanda –, da Itália e de outros centros. Tal processo se deu dentro dos marcos regulatórios da privatização definidos pela corte portuguesa, que se considerava – com autorização do papa – proprietária deste pedaço do mundo. A privatização foi para sempre, pois era hereditária, conforme o próprio nome indica: capitanias hereditárias.

O que foi realizado nestes imensos pedaços de terra concedidos hereditariamente aos novos proprietários? Empresas! Os engenhos eram empresas agro-industriais avançadas, que passaram a produzir para a Europa e para todo o mundo milhares de toneladas de um bem até então raro, o açúcar. Eram empresas do sistema produtivo europeu, como nos mostra o professor Celso Furtado. Eram internacionais em sua composição, importavam de muitos lugares do mundo e exportavam para o mundo inteiro. O Brasil foi o primeiro elo articulador da economia global. Aqui não existiu uma sociedade humana que tenha dado vida, na sua trajetória histórica, como produto do seu próprio existir, a um tipo novo de economia. No caso brasileiro ocorreu o contrário. Foi um tipo novo de economia, internacionalizada, que criou uma nova organização social dos humanos. Nasceu aqui, formada pela empresa, o que se pode se chamar de Formação Social Empresarial. Essa formação social, própria nossa e que, depois, se espalhará pelo mundo, não deve ser considerada uma sociedade nos termos que se pode compreender os outros sistemas sociais existentes no mundo na mesma época. As outras sociedades se caracterizavam por uma relação entre território, etnias e culturas que não existia aqui. Eram locais, possuíam grande autonomia, produziam para elas mesmas e apresentavam muitas outras características. A empresa, ao contrário, dissolveu sociedades para se estabelecer. Dissolveu as sociedades indígenas que viviam em nosso território e submeteu os remanescentes à servidão e à escravidão. Em seguida, dissolveria muitas sociedades africanas para raptar, sequestrar e transportar milhões de africanos que se transformariam em escravos nessa nova organização produtiva que nasceu.

IHU On-Line – Como desconstruir a “formação social empresarial” nascida aqui na época da colonização? E como a própria cultura brasileira pode contribuir nesse processo, no sentido de vislumbrar um futuro diferente para nosso país?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – A Formação Social Empresarial criou um outro modo de “ser sociedade humana”, fundada sobre a economia e a razão instrumental. Esse sistema social se sustentava pela escravidão, pela servidão e pelo domínio de poucos e possuía seus centros de poder fora dele. Sustentava-se sobre relações sociais novas, que devem ser denominadas de incorporação excludente. A maioria dos humanos organizados por esta empresa estava incorporada ao trabalho e excluída até do reconhecimento como ser humano, constituindo-se em propriedade privada. Peças, como eram chamados os escravos. Eram mercadorias, como outra qualquer. Os escravos eram contabilizados como bens, eram comprados e vendidos e sua presença aqui não era fruto de imigração, mas considerada importação. Esses humanos de tipo novo eram incorporados ao trabalho e excluídos de toda a vida social, reservada para uma minoria que se autodenominava de sociedade. Outros milhões de humanos passaram simplesmente a viver uma nova situação desconhecida: a exclusão. Seus territórios foram invadidos e apropriados pela Empresa Brasil, o tal processo de colonização. Foram excluídos dentro de seu próprio país, cuja propriedade lhes foi arrancada. No mundo daquela época, os sistemas sociais serviam para integrar os humanos, reconhecê-los como membros do sistema – mesmo em forma desigual. Aqui não. Aqui o sistema social criou a exclusão.

A modernidade tropical antecede a modernidade europeia
A Formação Social Empresarial, se considerada nos seus principais eixos valorativos, não pertence à sua época, ao feudalismo que começava a viver a sua lenta agonia. Tal formação social só pode ser compreendida como uma organização social moderna. É surpreendente a congruência entre os eixos valorativos da nossa formação social originária e os conteúdos da modernidade. Tudo foi transformado em mercadoria, até os humanos. A natureza foi dominada, a razão instrumental orientou os planos e suas execuções, tudo em função de projetos individuais. A Terra deixou de ser o centro do universo, mas o homem, entendido como indivíduo, passou a ser o centro do mundo e a razão o centro do homem. Olhando o mundo a partir do que ocorreu aqui em 1532 e nos anos que se seguiram, pode-se constatar que, enquanto sistema social humano, a modernidade nasce primeiro aqui na periferia e depois se realizará nos centros decisórios da nova dinâmica social mundial, a Europa. É o contrário do que sempre nos ensinaram. A modernidade tropical antecede a modernidade europeia e antecipa, em mais de um século, as formulações teóricas sobre o que é um ser social moderno. Essa formação social desequilibrada, moderna e, sobretudo, injusta criou o que se pode chamar de desequilíbrio estável. Do ponto de vista formal, durará mais de 350 anos. Suas características estruturais chegam até nossos dias.

IHU On-Line – E como se caracterizava a administração desta empresa-nação?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Para o funcionamento da empresa foi organizada a administração colonial. Sua função era assegurar, por todos os meios, que a empresa fosse lucrativa. Essa sua função principal acabou por transformar-se em sua única função. Era necessário combater e expulsar os habitantes da terra, garantir a ordem em um sistema social em que a maioria dos humanos era excluída ou escravos, garantir a produção e a exportação, e cobrar as taxas que eram transferidas para a metrópole portuguesa. Todos os seus recursos, humanos, técnicos, financeiros, etc., eram empregados para garantir o sucesso das empresas aqui instaladas. Esse sucesso era o que se entendia por desenvolvimento. O Brasil colônia não possuía nem transportes, nem escolas, nem estrutura de saúde; não existia organização urbana (as empresas eram rurais...), mas suas empresas estavam entre os mais lucrativos negócios do mundo. Essa administração colonial, com estas mesmas finalidades, transformou-se em Estado. Não um estado nacional, como sempre se falou por aqui, pois ainda não existia uma nação e a maioria da população era excluída ou escrava. Não era uma representação política da população que aqui vivia. Foi imposto de cima e de fora, e sua finalidade era manter a ordem social absurda da Formação Social Empresarial. Ao transformar-se em estado independente, a administração colonial deu vida a um novo tipo de organização estatal: o Estado Econômico Internacionalizado. Seus lineamentos fundamentais permanecem até hoje. Somente essa abordagem é capaz de explicar como um país, cuja economia é a sexta economia do mundo capitalista, possui uma das maiores cargas fiscais do planeta – aproximando-se a 39% do PIB – e não possua escolas, nem estrutura de saúde, nem saneamento básico, nem organização urbana, transportes para humanos, etc. para a maioria de sua população, produtora de tamanha riqueza. O Estado Econômico Internacionalizado é aquele cuja finalidade é garantir que as empresas aqui instaladas sejam as mais lucrativas possíveis e manter uma ordem social baseada na pobreza e exclusão da maioria dos habitantes do país.

IHU On-Line – Como entender o processo de formação da nação-Brasil, dentro do conceito de “formação social empresarial”?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Observada a quinhentos anos de distância pode-se dizer que a Empresa Brasil, a criação da Formação Social Empresarial e do Estado Econômico Internacionalizado foi como um tsunami permanente, uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Foi uma gigantesca e profunda intervenção sobre a humanidade, modificando-a profundamente. Milhões de habitantes foram dizimados, e outros milhões transportados para continentes diferentes daqueles em que nasceram. Dissolveram-se culturas e etnias. E tudo somente para ganhar dinheiro e para produzir um mundo articulado economicamente para benefício de alguns poucos. Entretanto, esta intervenção gigantesca sobre a trajetória histórica da humanidade gerará outros frutos além da Empresa Brasil e de seus derivados institucionais. Trata-se do povo novo que aqui nasceu e da cultura que este povo criou.
Depois de milhões e milhões de anos separada em vários continentes, divididos por oceanos inexpugnáveis, a humanidade se reuniu aqui no Brasil. Gentes de todas as Áfricas, de todas as Europas se juntaram com a população brasileira originária. Mas aqui foi diferente. Aqui se misturaram. E assim se criou um povo novo, uma nova etnia, como tão bem nos mostrou o mestre Darcy Ribeiro.

O primeiro povo planetário
Aqui surgiu o primeiro povo planetário, a mistura de todos, pois mais tarde chegariam também os europeus orientais e os povos do extremo oriente. Os brasileiros originários foram como a placa mãe de um povo novo, de um novo jeito se ser humano. O povo brasileiro é o primeiro povo planetário, que uniu a humanidade novamente, após a separação imposta pela história geológica do planeta terra. Esse fato já possui em si mesmo uma importância imensa, e esta importância cresce a cada dia. Embora reunidos aqui, amontoados, pode-se dizer, nos limites estruturais estreitos e perversos da Empresa Brasil e da Formação Social Empresarial, os diversos povos terminaram por se misturar, ao contrário de outras regiões da terra onde também se encontraram. Dessa mistura surge um povo que é a reunião de muitas humanidades. A circunstância deste re-encontro e desta fusão de humanidades ter ocorrido em modo tão desigual e perverso não lhe retira o seu conteúdo principal, que é o re-encontro, a nova re-união dos humanos em uma inédita fusão étnica. O Brasil já nasceu construindo a síntese, os referenciais comuns. Diante da crise civilizatória contemporânea, marcada por confronto e conflitos entre civilizações, entre culturas e etnias, ser naturalmente multiétnico, aberto à cultura e às características do outro, conviver com elas, vivê-las na intimidade, possui um valor imenso. É um dos mais importantes recursos que o Brasil possui. O Brasil é o futuro. Se um dia a humanidade for um só povo, ele será parecido com o povo brasileiro.

IHU On-Line – Em que sentido a obra nos ajuda a entender o Brasil (bem como seu papel) no atual processo mundial de globalização?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – A perversidade estrutural do encontro que nos gerou está marcada para sempre, mas a trajetória brasileira mostra que se impõe a busca de um outro modo de convívio, impõe-se a criação de uma outra forma de organização social para abrigar este encontro tão importante, impõe-se a construção de um outro modo social de ser, que acabe com a exclusão e a desigualdade. Certamente saberemos construir este novo sistema social fundado na igualdade entre os povos que aqui vivem, descendentes daqueles que cinco séculos atrás aqui se reuniram, no respeito às populações originárias, aos que chegaram e a seus descendentes. Um sistema social em que todos manterão suas dignidades, sua autonomia cidadã, onde o encontro e a fusão ocorrerão somente pelo prazer e pelo amor. E ocorrerá. Isso porque ser mestiço é ser esta síntese humana que os brasileiros exprimem. Um povo bonito e alegre, cheio de originalidades e belezas. A construção deste novo sistema social é a Refundação do Brasil.
IHU On-Line – O que deveria fazer parte do processo de refundação do Brasil?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Os conteúdos da refundação não precisam ser construídos nem buscados fora. Encontram-se já na nossa cultura, na intimidade da nossa alma mundial. São a essência dela e, ao mesmo tempo, seus motores criativos mais poderosos. Construir um sistema social coerente com os valores centrais da cultura brasileira é a refundação do Brasil. Essa não é uma ideia externa que pode ser praticada aqui no Brasil. Já existiram projetos utópicos externos ao sistema social, que não brotavam dele, e que tentaram se aplicar ao Brasil. A refundação brota da intimidade da Formação Social Empresarial. Como fomos fundados como empresa, toca-nos construir pela primeira vez em nosso território uma sociedade humana de verdade. Sociedade não se faz com economia. A que se faz com economia é esta que aí está. Sociedade se faz com reconhecimento, afeto, perdão. Sociedade é a organização social que permite e ajuda seus membros a serem felizes. É fundamental o reconhecimento de todos que estão vivos como humanos iguais. Somos sobreviventes de uma tragédia social de cinco séculos e diante de nós está a tarefa de construir uma sociedade com os destroços da nossa absurda formação social originária. A refundação é a transformação definitiva das estruturas sociais da Empresa Brasil. O Brasil é hoje o campeão mundial das desigualdades. Sempre foi assim. Chegou o momento histórico desse modo de ser ser superado.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – O modo como os humanos são organizados e vivem constituem uma espécie de software social, conceito que apresento e desenvolvo em meu livro. Naquele 22 de abril, naquela praia da Barra do Cahy, ficaram cara a cara, frente a frente, dois sofwares sociais. Aquele centrado na vida e na harmonia com a natureza, o software social da vida, das nossas tribos, e aquele dos que chegavam, no qual a vida era uma energia instrumental para ser manipulada com fins de êxitos individuais, da dissolução de povos, culturas e natureza. Era o sofware social da morte que constitui a essência do projeto civilizatório moderno. Prevaleceu o segundo. Muitas humanidades foram destruídas para assegurar a sua afirmação e, junto com essa tragédia humana, foi também destruída e degradada parte significativa da herança cósmica de todas as espécies vivas do planeta terra. O software social moderno terminou por conduzir todas as sociedades a um impasse novo para os humanos. Agora está ameaçada a própria sobrevivência da espécie humana e do planeta terra. E uma questão de vida ou de morte.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/a-refundacao-do-brasil-um-olhar-brasileiro-sobre-o-pais-entrevista-especial-com-luiz-gonzaga-de-souza-lima-/506677-a-refundacao-do-brasil-um-olhar-brasileiro-sobre-o-pais-entrevista-especial-com-luiz-gonzaga-de-souza-lima-

15 de fevereiro de 2012

Religião ópio do povo?

Será que isto é verdade que a religião é ópio do povo? Então o cristianismo é ópio do povo? Qual o papel da religião? Que papel a religião tem exercido na história da humanidade?

No princípio a religião era a maneira de se explicar a vida e o inexplicável, como as forças da natureza, a vida e a morte.
Quando a sociedade se estruturou em classes sociais e por isso surge o Estado, que tem a função de garantir os interesses da classe economicamente dominante, e então a religião passa a ser controlada pelo Estado, como aparelho ideológico para controlar as massas. O Estado se apropria da religião para através dela dominar melhor o povo. O Estado surge com a formação da sociedade em classes sociais, após o Modo de Produção Tribal, que era uma sociedade sem classes sociais e sem Estado, por isso mesmo. Após o Tribalismo surge o Modo de Produção Tributário, ou Asiático, composto por duas classes: a classe camponesa e o Estado, que era o rei, sua corte e funcionários, juntamente com os sacerdotes e o exército (dois mecanismos de controle: se os sacerdotes falham no controle do povo entra em cena o exército). Em Gn 47.13-26 a Bíblia fala disto, em que os sacerdotes não precisaram entregar as suas terras ao Faraó (v. 26) porque faziam parte da classe do Estado. Quando o povo de Israel se organizou e organizou a questão da fé decidiu que os seus sacerdotes, os levitas, não teriam terra. Por que? Para garantir a igualdade. Quem controla o sagrado já tem muito poder (de conceder a bênção e a maldição), imagine adicionar o latifúndio ao controle do sagrado. A história do Brasil conta bem esta experiência do sagrado aliado ao latifúndio, como segue o relato abaixo:

Por volta de 1880, a viajante francesa, Adèle Toussaint-Samson, visitando uma fazenda escravista no Rio de Janeiro, presenciou o seguinte diálogo entre o proprietário e seu feitor:
“- O que se plantou esta semana?
-Arroz, senhor
- Começaram a cortar a cana?
- Sim, senhor; mas o rio inundou e nós devemos consertar os canais.
- Mande vinte negros para lá amanhã de manhã. O que mais?
- Henrique escapou.
- Cachorro! Ele já foi pego?
- Sim senhor, ele está no tronco.
- Dê-lhe vinte golpes com o chicote e coloque a argola de ferro no seu pescoço (...) Isso é tudo?
- Sim, senhor
- Muito bem. Chame os negros agora para rezar
O senhor tocou um pesado sino, então bradou numa voz descomunal:
- Salta para a reza!”
No século XIX, numa conversa com outro viajante, Thomas Ewbank, um escravo reclamava de um duplo cativeiro. A senhora tinha por hábito acordá-los (ele e a seus companheiros) de madrugada para as orações: “Trabalhar, trabalhar e trabalhar o dia todo, rezar, rezar e rezar a noite inteira. Nenhum negro deveria agüentar isso”.
Os escravos da Fazenda São José, visitada por Toussaint-Samson, também não escaparam do dever católico das orações. Estavam obrigados a isso, assim como estavam obrigados diariamente ao trabalho. Era o repicar dos sinos, pelo feitor ou pelo fazendeiro, que exigia a presença e o cumprimento de ambos os deveres. (Tempo e Presença, nº 310, abril de 2000)

No Modo de Produção Tribal, como no exemplo de Abraão, a religião era exercida pelo patriarca numa montanha, debaixo de uma árvore frondosa (Gn 18.1: "Apareceu o Senhor a Abraão nos carvalhais de Manre"; Gn 13.18: "E Abrão, mudando as suas tendas, foi habitar nos carvalhais de Manre, que estão junto a Hebrom; e levantou ali um altar ao Senhor".); já há altares, mas não há templos. Javé fala com Moisés no monte Horebe no Sinai.
O povo de Israel não tinha templos no período anterior à monarquia. A religião era exercida diante da Tenda da Congregação que era móvel. Êx 29.11: "Imolarás o novilho perante o Senhor, à porta da tenda da congregação". Diante da Tenda da Congregação acontece o culto e a Assembléia Popular onde todos têm direito de falar e exigir seus direitos, até as mulheres:

Nm 27.1-4: "Então, vieram as filhas de Zelofeade, filho de Héfer, filho de Gileade, filho de Maquir, filho de Manassés, entre as famílias de Manassés, filho de José. São estes os nomes de suas filhas: Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza. Apresentaram-se diante de Moisés, e diante de Eleazar, o sacerdote, e diante dos príncipes, e diante de todo o povo, à porta da tenda da congregação, dizendo: Nosso pai morreu no deserto e não estava entre os que se ajuntaram contra o Senhor no grupo de Corá; mas morreu no seu próprio pecado e não teve filhos. Por que se tiraria o nome de nosso pai do meio da sua família, porquanto não teve filhos? Dá-nos possessão entre os irmãos de nosso pai".

Aqui a religião não está separada da vida cotidiana e os mais fracos podem exigir igualdade e terra, apelando para a fé fiel à Javé. No Modo de Produção Tribal a religião quer garantir a igualdade:
Dt 15.1-4: "Ao fim de cada sete anos, farás remissão. Este, pois, é o modo da remissão: todo credor que emprestou ao seu próximo alguma coisa remitirá o que havia emprestado; não o exigirá do seu próximo ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é proclamada. Do estranho podes exigi-lo, mas o que tiveres em poder de teu irmão, quitá-lo-ás; para que entre ti não haja pobre; pois o Senhor".

O Dízimo é para os levitas, que não receberam terra, e para os pobres:
Dt 14.22 "Certamente, darás os dízimos de todo o fruto das tuas sementes, que ano após ano se recolher do campo. ... 29 Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem".
O Dízimo é para o levita porque não recebeu terra (para não juntar dois poderes: o sagrado com a terra) e para os pobres porque o sistema os gerou. O Dízimo para o Templo é coisa da monarquia no Modo de Produção Tributário onde o rei controlava o Templo e a sua teologia (Am 7.12-13: "Então, Amazias disse a Amós: Vai-te, ó vidente, foge para a terra de Judá, e ali come o teu pão, e ali profetiza; mas em Betel, daqui por diante, já não profetizarás, porque é o santuário do rei e o templo do reino".).

É o Estado que constrói o Templo como lemos em 1 Rs 5.3-5: "Bem sabes que Davi, meu pai, não pôde edificar uma casa ao nome do Senhor, seu Deus, por causa das guerras com que o envolveram os seus inimigos, até que o Senhor lhos pôs debaixo dos pés. Porém a mim o Senhor, meu Deus, me tem dado descanso de todos os lados; não há nem inimigo, nem adversidade alguma. Pelo que intento edificar uma casa ao nome do Senhor, meu Deus".

Por que constrói o Templo? Porque agora há paz. Soa bonito, mas na verdade a paz era um problema para a perpetuação do Estado. Como? Quando havia guerra as famílias camponesas forneciam soldados para combater e defender as suas terras e colheitas e assim o Estado e seu exército se justificam. Agora não tem mais guerra e por isso não se precisa mais de exército e nem do Estado. Aí Salomão saca a idéia do Templo para continuar a cobrar os impostos em mercadoria e trabalho forçado que se justificava nos tempos de guerra, mas não mais agora. Este texto explica como era cobrado o tributo em mercadoria e trabalho forçado:

1 Rs 5.11 Salomão deu a Hirão vinte mil coros de trigo, para sustento da sua casa, e vinte coros de azeite batido; e o fazia de ano em ano. ... 13 Formou o rei Salomão uma leva de trabalhadores dentre todo o Israel, e se compunha de trinta mil homens. 14 E os enviava ao Líbano alternadamente, dez mil por mês; um mês estavam no Líbano, e dois meses, cada um em sua casa; e Adonirão dirigia a leva.

Os camponeses pagavam tributos com gosto para a manutenção do exército em tempos de guerra, mas não queriam mais pagar em tempos de paz e com a construção do Templo Salomão justifica a cobrança do tributo, que depois do Templo pronto foi incorporado à este, como lemos em Dt 26:

1 Ao entrares na terra que o Senhor, teu Deus, te dá por herança, ao possuí-la e nela habitares, 2 tomarás das primícias de todos os frutos do solo que recolheres da terra que te dá o Senhor, teu Deus, e as porás num cesto, e irás ao lugar que o Senhor, teu Deus, escolher para ali fazer habitar o seu nome. 3 Virás ao que, naqueles dias, for sacerdote e lhe dirás: Hoje, declaro ao Senhor, teu Deus, que entrei na terra que o Senhor, sob juramento, prometeu dar a nossos pais. 4 O sacerdote tomará o cesto da tua mão e o porá diante do altar do Senhor, teu Deus. 5 Então, testificarás perante o Senhor, teu Deus, e dirás: Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. 6 Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. 7 Clamamos ao Senhor, Deus de nossos pais; e o Senhor ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; 8 e o Senhor nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; 9 e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. 10 Eis que, agora, trago as primícias dos frutos da terra que tu, ó Senhor, me deste. Então, as porás perante o Senhor, teu Deus, e te prostrarás perante ele. 11 Alegrar-te-ás por todo o bem que o Senhor, teu Deus, te tem dado a ti e a tua casa, tu, e o levita, e o estrangeiro que está no meio de ti.

Na festa da colheita o camponês entrega a cesta das primícias ao sacerdote que o coloca no altar. Note que esta confissão de fé "esqueceu" de dizer o que diz em Dt 6.22 "Aos nossos olhos fez o Senhor sinais e maravilhas, grandes e terríveis, contra o Egito e contra Faraó e toda a sua casa". Por que "se esqueceu" de dizer que Javé luta contra o Faraó e o Estado egípcio? Porque agora Israel vive numa sociedade com Estado, então Javé não pode ser contra o Estado. O Templo começa a mudar a teologia a respeito de Javé. Antes Javé era um Deus de camponeses que lutava contra o Estado e pela terra e agora Javé apenas abençoa a colheita e garante o sol e a chuva para que haja boa colheita e se multipliquem os rebanhos como era a teologia dos deuses cananeus. Um novo modo de produção precisa de uma nova teologia. É o modo de produção que determina a teologia conforme os seus interesses, significa: conforme os interesses da classe que controla este modo de produção. Agora Javé abençoa com riquezas. Quem é rico é porque foi abençoado por Deus, esta é a nova teologia (implícito está: quem é pobre é porque está longe de Deus e foi amaldiçoado por ele; tudo a ver com a atual teologia da prosperidade):

1 Rs 10.9 "Bendito seja o Senhor, teu Deus, que se agradou de ti para te colocar no trono de Israel; é porque o Senhor ama a Israel para sempre, que te constituiu rei, para executares juízo e justiça. 10 Deu ela ao rei cento e vinte talentos de ouro, e muitíssimas especiarias, e pedras preciosas; nunca mais veio especiaria em tanta abundância, como a que a rainha de Sabá ofereceu ao rei Salomão. ... 23 Assim, o rei Salomão excedeu a todos os reis do mundo, tanto em riqueza como em sabedoria. 24 Todo o mundo procurava ir ter com ele para ouvir a sabedoria que Deus lhe pusera no coração".

Agora riqueza é bênção de Deus e não origem da desigualdade social. Agora o objetivo desta sociedade não é que não haja pobres não meio de ti, mas é dizer que a riqueza é bênção de Deus. O Javé Zebaoth que lutava com o exército de camponeses por terra e contra o Estado desapareceu e sobrou apenas o Deus que abençoa os ricos e que cobra os impostos via Templo. O Estado manipula a teologia em seu próprio benefício, para legitimar a opressão de classe. O Estado constrói o Templo, com o dinheiro e o trabalho do povo, para regular as forças da natureza e garantir boas colheitas e aumentar o gado.

O rei Davi trouxe primeiro a Arca da Aliança para perto do palácio (para aliar o Estado ao sagrado) e depois tentou construir o Templo, mas não havia conjuntura favorável para isto, as tribos resistiram; não teve força política para tal. Somente o rei Salomão consegue construir o Templo que substitui a Tenda da Congregação e coloca o conteúdo sagrado da Tenda, a Arca da Aliança, no fundo do Templo que depois disto não é mais lembrada em nenhum relato. A Arca da Aliança que era o símbolo da presença de Javé no meio dos camponeses na luta contra o Estado e a favor da conquista da terra precisa desaparecer, pois a teologia sobre Javé tem que mudar com o Estado. Agora Javé tem que legitimar o Estado que tem a função de legitimar a sociedade de classes. A teologia encarnada na Arca da Aliança e na Tenda da Congregação tem que desaparecer, pois é subversiva e desestabilizadora numa sociedade de classes, injusta por princípio e contra a vontade de Javé. Isto retorna com Jesus no relato do evangelista João 1.14: "E o Verbo se fez carne e armou tenda entre nós". Aqui retorna a Tenda da Congregação que é móvel e não afixada ao lado do palácio real com o seu significado original de luta por uma nova sociedade sem classes e igualitária, onde os meios de produção estão sob o controle dos trabalhadores, que Jesus chama de Reino de Deus.

Em Gn 4 a Bíblia já aponta para a negação da religião ligada ao Estado quando Javé não aceita a oferta de Caim, pois ele era lavrador e o Abel pastor sem terra. Caim, o construtor de cidade (Gn 4.17: Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho.). O que era uma cidade naquele tempo? Naquele tempo cidade significava: Estado. Gn 11 fala disto, dizendo que Deus impediu a construção da cidade, quer dizer do Estado, e propõe uma sociedade descentralizada e multicultural. A cidade era a cidade-estado onde morava o rei e seu exército que espoliava os camponeses através dos tributos. A cidade (o Estado que legitima o modo de produção tributário baseado em classes sociais antagônicas em permanente luta) encarna o mal no exemplo de Sodoma e Gomorra, que por isso tem que ser destruída. O profeta Ezequiel lembra isso em 16.49-50: "Eis que esta foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranqüilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado. Foram arrogantes e fizeram abominações diante de mim; pelo que, em vendo isto, as removi dali". Qual o problema da cidade (do Estado): nunca amparou o pobre e o necessitado e foram arrogantes e fizeram abominações (culto a falsos deuses que legitimam o sistema opressor) diante de mim. A elite citadina era: soberba, tinha fartura de pão e era próspera à custa dos camponeses espoliados pelo tributo. Javé não aceita a religião do Estado. O sacrifício do representante do Estado feito por Caim Javé não aceita, ele apenas aceita o sacrifício (a religião) do oprimido, do camponês sem terra Abel. A dica para entender este capítulo está no v. 2: "Abel foi pastor de ovelhas, e Caim, lavrador". Abel não foi pastor porque achava bonito, mas porque não tinha terra e por isso não tinha opção. A terra estava concentrada nas mãos da classe que controlava o Estado. É o 'com terra' matando o 'sem terra'. Coisas de ontem e de hoje.

O modo de produção tributário necessita de outro deus, à semelhança dos deuses cananeus. Como isto não é possível, pois historicamente Javé é o Deus do povo de Israel, então o que precisa ser feito é falar deste Deus de uma forma diferente conforme as necessidades da atual conjuntura: muda-se a teologia a respeito deste Deus. Quando não se pode mudar de Deus então muda-se a teologia a respeito dele, pois agora há o Estado que garante os interesses da classe economicamente dominante. Agora o Estado controla a religião, o Templo, e não mais os patriarcas tribais. A fé em Javé escapou do controle dos camponeses e foi aprisionada pela classe do Estado, com o objetivo de controlar os camponeses. Um Modo de Produção que é economicamente concentrador necessita de uma religião que concentra poder nas mãos da classe que controla este modo de produção. É a classe economicamente dominante que diz como se deve crer em Deus e como é este Deus, ontem como hoje. Deus é forjado conforme os interesses da classe economicamente dominante. Deus foi aprisionado e por isso na Sexta-feira Santa rompe o véu do Templo: Deus não se deixa aprisionar e conduzir conforme os interesses dos dominadores.

O que aconteceu? Aconteceu que sob o ponto de vista do Novo Testamento, o Evangelho virou Religião. A Páscoa rompe com isto e recomeça a vivência do Evangelho a partir da classe oprimida. No NT o Evangelho luta contra a Religião romana, portanto contra o modo de produção que a sustém.
Gn 32 já mostra esta prática de se adotar a dinâmica da religião cananéia de adorar o ouro e o touro (a riqueza e a tecnologia mais eficiente de produção). Riqueza e tecnologia andam juntas e precisam da legitimidade divina. Hoje a tecnologia também é adorada como deus e tida como infalível. O Pentateuco sempre de novo alerta para não adotar a religião cananéia. Por que? Porque a religião cananéia tinha a função de legitimar a existência do Estado e este surgiu por causa do surgimento de classes sociais. O estado cananeu (as cidades-estado) invadia militarmente a Israel para saquear e escravizar. As cidades-estado cananéias eram legitimadas pela religião. Por isso Javé avisa o povo de Israel para não seguir os deuses cananeus, pois através deles vinha o Estado e este vinha da desigualdade social que gera as classes sociais. Na sociedade cananéia o rei tinha a função de garantir que as forças da natureza fossem sujeitas, pela religião comandada por ele, para que houvesse bem estar: boa colheita e multiplicação de gado. Em troca desta proteção real e divina o povo pagava tributos ao rei via templos, pois o rei era deus ou filho de deus. O Estado foi divinizado. É disto que Gn 11 fala onde a torre sobre até o céu. Torre era o quartel onde morava o rei e seu exército. Javé em Gn 11 desmonta o aparelho do Estado junto com a religião que lhe dá sustentação e propõe uma nova sociedade multicultural e sem Estado.

A partir do Estado, que surge da sociedade de classes, a religião vira ópio do povo.
Javé que é o Deus da classe camponesa combate a religião do Estado e propõe uma nova sociedade num novo modo de produção. Esta nova sociedade num novo modo de produção Jesus Cristo chama de Reino de Deus. No NT se dá também a luta entre Religião e Evangelho, como no AT.

A Religião é ópio para o povo, o Evangelho é subversão que liberta da opressão da Religião. A Religião é controlada pela classe economicamente dominante segundo o modo de produção. O Evangelho rompe com o modo de produção opressor e sua religião e propõe uma nova concepção de fé num Deus que liberta da opressão a classe oprimida pelo modo de produção vigente. Não só isso, mas liberta também da maior opressão de todas: a morte, pela ressurreição do corpo.

E o cristianismo nessa história, é ópio? A igreja cristã: é ópio?
No grosso é ópio puro, mas dentro dela sobra um pedaço que continua sendo Evangelho. O modo de produção capitalista usa a igreja como instrumento de dominação dizendo como se deve crer em Deus e como se deve viver a fé em Deus. A grosso modo quem define a teologia na igreja é o capitalismo que lê a Bíblia segundo a sua interpretação que beneficia seus interesses opressores.

Como diz o povo: o diabo faz a panela, mas esquece de fazer a tampa; por isso há na igreja cristã ainda espaço para o Evangelho. Sempre há um grupo não contaminado (ou pouco contaminado que resiste, mas que é mal visto), pequeno, mas existe.

Na verdade todo sistema econômico classista precisa da religião como instrumento ideológico de dominação; precisa de uma cachacinha para dopar a classe oprimida e a religião faz este papel. No entanto, quando Javé se faz pessoa no camponês sem terra palestino Jesus de Nazaré que começa a pregar o Evangelho do Reino de Deus começa o processo subversivo para vencer a religião como instrumento de dominação ideológica que favorece o modo de produção vigente. Com Jesus Cristo se rompe o processo iniciado no AT que usou o Templo para dominar o povo pela Lei e sua interpretação opressora. Em Jesus Cristo Javé desponta para continuar o seu projeto de construção de uma nova sociedade sem classes onde os meios de produção estão sob o controle de quem trabalha. Isso foi iniciado nas montanhas da Palestina no ano 1250 e se retraiu com a monarquia e é retomado por Jesus Cristo no NT, como nos mostra o livro de Atos 2 e 4. O Evangelho de Jesus Cristo é essencialmente subversão (Lc 4.18-19; Lc 23.1-5) e não se deixa usar como instrumento religioso para legitimar o modo de produção classista vigente. O Evangelho sempre de novo desponta dentre e fora da igreja para denunciar quando a Religião quer absorver o Evangelho como instrumento ideológico que legitime a sociedade de classes.

O Evangelho é tão forte que vence a morte na Páscoa para implementar o seu projeto de vida digna e plena aqui e agora e sempre. O Evangelho sempre será o espinho na carne de todo e qualquer sistema opressor. Por outro lado a religião sempre vai tentar usar o Evangelho para limitá-lo dentro dos conceitos impostos pelo modo de produção classista vigente. A Religião sempre vai tentar usar e transformar o Evangelho como Religião para legitimar o modo de produção classista opressor, sendo classista sempre será opressor. Vimos isto no processo da Conquista nas Américas e no colonialismo na África, Ásia e Oceania. Vemos isto nas igrejas hoje onde a classe capitalista e seus testas de ferro administram as igrejas e impõe a sua teologia transformando o Evangelho em Religião, legitimando assim todo o processo capitalista que vai levar a humanidade à extinção pelo aquecimento global junto com a perda da biodiversidade e pela exaustão dos recursos naturais e pela agricultura química que gerarão a fome a nível planetário.

O capitalismo agora fala na "economia verde" como a salvação, mas sabemos que o mesmo sistema que gerou o desastre não vai tirar o Planeta deste desastre porque ele não vai mudar a sua dinâmica, para isso teria que se autodestruir. Ou mudamos este sistema econômico ou nos auto-extinguimos como humanidade.

Só o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo poderá nos salvar como humanidade e salvar a biodiversidade no Planeta Terra. Fora disto: a extinção. Este Reino de Deus, que começa já aqui e agora e se completará no dia do juízo final, é a proposta de uma nova sociedade não classista onde os meios de produção estão sob o controle dos trabalhadores organizados e politizados numa democracia popular exercida pelo Poder Popular. Ou isto (com as suas devidas variações) ou a extinção! Não é mais: socialismo ou barbárie, é socialismo (ou outro nome que se dê para esta nova sociedade não classista e não capitalista) ou extinção. O resto é ilusão que nos levará à extinção. Não há mais meio termo social-democrata.

A igreja precisa de um profundo processo de reforma para deixar de ser Religião e se deixar fazer Evangelho pelo próprio Deus. Isto ocorrerá dentro do processo da luta de classes havida na sociedade como um todo. A mesma luta de classes que há na sociedade acontece na igreja porque ela não está fora do mundo numa redoma de cristal, mas dentro dele e de sua dinâmica. No processo de participação da construção do Reino de Deus lutaremos contra a sociedade classista dentro da igreja e dentro da sociedade, os inimigos são os mesmo. Os empobrecidos pelo capitalismo que trabalham com suas próprias mãos deverão tomar o poder na igreja e na sociedade para mudar a teologia na e da igreja e mudar a ideologia na sociedade. Quem participará deste processo revolucionário divino? Os que sempre foram os escolhidos de Deus: os empobrecidos e oprimidos que trabalham com suas próprias mãos, como diz Paulo em 1 Co 4.11-13: "Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos". Será o processo do poder da fraqueza que vencerá (2 Co 12.9-10), por isso temos como símbolo o crucifixo. Quando Jesus em Lc 4.43 diz que ele foi envidado para anunciar o Evangelho do Reino de Deus ele está dizendo que ali começa (Lc 16.16) a luta contra o reino do mundo, hoje o capitalismo, obra e instrumento que o diabo usa para tentar impedir a construção do Reino de Deus. Lembrando ainda 1 Co 1.27-28: "Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são".

1 Co 15.24-26 lembra: "E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte".

7 de fevereiro de 2012

O Cristão

Lendo a trilogia de Eduardo Galeano: Memória do Fogo composta por: 'Os Nascimentos', 'As Caras e as Máscaras' e 'O Século do Vento', (você pode encontrar estes livros a bons preços na página do http://www.estantevirtual.com.br/ que reúne 3000 sebos de todo Brasil) que conta a história latina americana de uma forma esplêndida, encontrei esta história no segundo volume. Ela conta, sem rodeios, mas de forma artisticamente bela (que não expressa beleza alguma, mas a realidade terrível e cruel), como é o cristão dentro do sistema capitalista, ontem e hoje. Sugiro ler também do mesmo autor: "Espelhos", que no mesmo estilo fala da história universal.

"1753
Rio Serra Leoa
CANTEMOS LOUVORES AO SENHOR
A revelação de Deus aconteceu à luz dos relâmpagos. O capitão John Newton converteu-se ao cristianismo numa noite de blasfêmias e bebedeira, quando uma súbita tempestade esteve a ponto de jogar seu barco nas profundezas do oceano. Desde então, é um eleito do Senhor. A cada entardecer, prega um sermão. Reza antes de cada refeição e começa cada jornada cantando salmos que a marujada repete roucamente em coro. No fim de cada viagem, paga em Liverpool uma cerimônia especial de ação de graças ao Altíssimo.
Enquanto espera a chegada de um carregamento na foz do rio Serra Leoa, o capitão Newton espanta medos e mosquitos e roga a Deus que proteja a nave African e todos os seus tripulantes, e que chegue intacta à Jamaica a mercadoria que se dispõe a embarcar.
O capitão Newton e seus numerosos colegas praticam o comércio triangular entre a Inglaterra, a África e as Antilhas. De Liverpool embarcam tecidos, aguardentes, fuzis e facas que são trocados por homens, mulheres e crianças na costa africana. Os barcos apontam a proa em direção às ilhas do Caribe, e lá trocam os escravos por açúcar, melado, algodão e fumo que levam para Liverpool, a fim de reiniciar o ciclo.
Em suas horas de ócio, o capitão contribui para a sagrada liturgia compondo hinos. Essa noite, trancado em seu camarote, começa a escrever um novo hino, enquanto espera uma caravana de escravos que está atrasada, porque alguns deles quiseram se matar comendo barro, pelo caminho. Já tem título. O hino vai se chamar: Como soa doce o nome de Jesus. Os primeiros versos nascem, e o capitão cantarola possíveis melodias embaixo do lampião cúmplice que balança."

Ouvi falar que nos anos 60-70 havia uma empresa de um alemão luterano ou de um descendente de alemães exportadora de jacarandá em Vitória, no Espírito Santo, que começava a semana com um culto em sua empresa em semelhança ao nosso capitão inglês. Esta empresa junto com outras (entre as quais a empresa do Rainor Grecco, que é o mais famoso) acabou com o jacarandá no Espírito Santo e na Bahia.

Quando li este relato do Eduardo Galeano me lembrei da história do V. S., que era de Cunha Porã e agora mora em Brusque e trabalha na fábrica de fogões Fischer. Os donos devem ser luteranos; suponho, pelo nome. Ele me contou a sua história no ARJ - Acampamento Repartir Juntos que aconteceu em Palmitos no final de janeiro de 2012.

Ele trabalha há cinco anos nesta indústria fazendo uma peça. Para fazer esta peça ele tem que ficar numa posição imprópria para a saúde de sua coluna. Ele pediu já há um ano para fazer outro trabalho na fábrica por causa de dores nas costas, mas o supervisor não o deslocou para outra função. Hoje ele está enconstado pelo INSS com um deslocamento numa vértebra da coluna, por causa da má postura no trabalho. Terá de fazer nova perícia médica no INSS e não sabe o que será, pois não consegue mais trabalhar no fabrico daquela peça e provavelmente em outras que exigem posição de pé. Ficou permanentemente lesado física e emocionalmente. Aos 42 anos inválido para um trabalho saudável. Vai ter que mudar de profissão (se conseguir) ou de emprego e arcar até o final de sua vida com as dores na coluna. Quem paga este sofrimento? Este sofrimento tem preço? A saúde tem preço?

Como esta produção está sendo feita, não interessa. Os capitalistas querem apenas saber de produção, pois é no processo da produção da mercadoria que se constrói o lucro pelo tempo de trabalho não pago. O capitalista paga apenas o Trabalho Necessário, que é o salário, valor mínimo para o peão poder comer, se vestir e morar. O capitalista não paga o Trabalho Excedente, que é o tempo de trabalho realizado acima do valor do seu salário que fica com o capitalista. Este é o lucro do capitalista. Portanto a origem do lucro, do capital, está no roubo. O salário esconde este processo de produção do capital. O peão ao ser empregado pensa apenas no salário e não faz o cálculo de quanto ele produz por mês e de quanto tempo necessita para produzir o seu próprio salário, pois não é o patrão que paga o seu salário. O próprio peão com o seu trabalho paga o seu salário e os devidos encargos sociais. O tempo que o peão trabalha acima destes valores (salário e encargos sociais) é o lucro do patrão; que outra coisa não é do que roubar este valor do peão. Não pagar por todo o trabalho feito é o mesmo que roubar o valor deste trabalho. O salário que o peão recebe não corresponde a tudo o que ele produziu. O salário é apenas parte do valor que produziu. O peão trabalha para produzir o seu salário e encargos sociais de uma a duas semanas e o resto do mês ele trabalha de graça. Este tempo em que trabalha de graça forma o lucro do patrão.

Quem nos lembra disso é o Vinícius de Morais em seu poema 'O Operário em Construção':
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

Voltando à questão do V.S. que certamente vai ter que procurar outro emprego, lembro que isto de mudar de emprego e de profissão, no dizer do senador vitalício italiano e primeiro-ministro cristão, Mario Monti, que o emprego fixo acabou e que os jovens têm que se habituar a trocar de emprego ou até mesmo de país, se for o caso, para exercer um trabalho novo e diferente. "E ademais, que monotonia! - exclamou Mario Monti. "É muito mais bonito, mudar e aceitar novos desafios". Que o diga o V.S. de Brusque com a coluna rebentada, que é o custo do capital do seu patrão. Que monotonia, estar com o emprego de senador garantido até o fim da vida com alto salário e suas devidas mordomias senatoriais! Que monotonia! Parasita hipócrita! Pimenta nos olhos dos outros é colírio.

Este é o mesmo papo furado, que escutei muitas vezes, de muitos empresários cristãos convertidos falando da vida boa de seus peões, dizendo:
"Estes é que tem uma vida boa. Não precisam se preocupar depois de sair do serviço, tem um fim de semana de folga, além das férias. Os empresários, por sua vez, têm vida atribulada e sofrida e por isso não conseguem dormir descansados à noite pensando de como irão arranjar dinheiro para pagar os peões no fim do mês".

Lembrando novamente, não é o patrão que paga o salário, é o próprio peão que com o seu trabalho produz o seu salário e os encargos sociais.
Ouvi esta conversa de empresário muitas vezes e por fim comecei a lhes sugerir que trocassem de papéis e de funções: que entregassem toda a empresa para os peões administrar e eles, os empresários, virariam tranqüilos, afortunados e descansados peões, com os salários e o ritmo de trabalho correspondentes à estes, é claro. Adivinhe a resposta! Bando de hipócritas! A hipocrisia é um lado forte dos cristãos convertidos, além do farisaismo.

Este papo é semelhante àquele em que os empresários dizem que tem que pagar muitos impostos a cada mês. Um dia destes ouvi a resposta para esta conversa fiada de, nada menos e nada mais, do que do assessor informal e especial do governo Lula, o Antônio Delfim Netto (que cá entre nós: entende do assunto), que disse com todas as letras que empresário não paga impostos, apenas os recolhe, que é bem outra coisa. Quem paga impostos neste país são somente os consumidores, quer dizer o povão. Ponto final. Quando digo isto para os empresários eles silenciam e alguns ainda tentam gaguejar algo inteligível, pois sabem muito bem como esta história dos impostos funciona. É pura choradeira sem vergonha. Pura sem-vergonhice hipócrita! É que eles gostariam de ficar com esta parcela que cabe aos impostos recolhidos (que felizmente não podem ser sonegados) para aumentar o seu lucro. Por isso as lágrimas de crocodilo!

Junto tudo isto aos relatos da imprensa sobre os trabalhadores nos frigoríficos de aves e bovinos pelo Brasil afora. Sempre lembro do relato de Vilma Fátima Favero, “encostada” aos 42 anos, trabalhava na Seara de Sidrolândia, no interior do Mato Grosso do Sul, como “ajudante agropecuária”.
“A gente separa os pintos, põe na caixa, vacina, forma o lote e põe no caminhão. Cada trabalhador coloca milhares de pintos por hora nas caixas. Cada caixa tem cem aves. Tinha gente que não agüentava e desmaiava, pois muitas vezes se varava a noite. Começava às duas da tarde e largava por volta da meia noite. Muitas vezes passava do horário, pois eram 130 mil pintos e apenas quatro pessoas para sexar. Se alguém faltava era pior, o trabalho acumulava para ser dividido entre quem se encontrava. O ritmo aumentava ainda mais, insuportável”.
Hoje ela tem tendinite e cinco hérnias de disco por causa do trabalho repetitivo e extenuante. Está permanentemente inválida para qualquer trabalho e está permanentemente com dores até o final de sua vida. Este é o preço do progresso capitalista pago somente pelos peões.

Técnica coordenadora de Saúde do Trabalho da Fundacentro em São Paulo, Thais Helena Carvalho Barreira lembra que o trabalho nos frigoríficos avícolas contém praticamente tudo o que os compêndios médicos colocam como caldo de cultura para o aparecimento das LER/DORT: “repetitividade, força, postura inadequada, frio, umidade, pressão, atrito, problemas no mobiliário”. Thaís lembra que, além do imenso custo humano e social que representa a continuidade da atual situação, há também um enorme custo econômico para a sociedade e para o Estado, que acaba pagando, através da Previdência, por males causados pelas práticas daninhas destas empresas.

“Para se tornarem competitivas internacionalmente, e exportarem quatro milhões de toneladas, as empresas estão provocando enfermidades em larga escala devido à altíssima repetitividade e freqüência dos movimentos ao longo da jornada. Assim é que após 1995 começou a aparecer o adoecimento em larga escala de punhos, braços, cotovelos e ombros. Sem descanso, pelo ritmo intenso a que estão sendo submetidas, as articulações são danificadas” diz Paulo Serro, auditor fiscal de Santa Catarina.

"Temos de mostrar à sociedade o que está ocorrendo com os trabalhadores nos frigoríficos, os crimes sem castigo que estão sendo cometidos de forma indiscriminada. Quando se fala em aquisição de empresas, fusão, se pega dinheiro público, recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, do BNDES, sem que o governo garanta nenhuma contrapartida social. Assim, enquanto enriquecem, estas empresas espalham a dor, com lesões muitas vezes irreversíveis, mutilações, e mandam o trabalhador para a Previdência. Isso precisa acabar", diz o Presidente da Contac/CUT, Siderlei de Oliveira.

Os donos e acionistas destas empresas também, em sua maioria, são cristãos 'convertidos' como o nosso capitão inglês mercador de escravos. Assim vivem os cristãos capitalistas 'convertidos'. Convertidos ao capitalismo e não à fé cristã baseada na prática proposta pelo Evangelho do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus Cristo. A ética cristã não se mistura com a ética capitalista, que é: não ter ética, mas ao que parece os cristãos conseguem misturar o imisturável.

Isto tudo nos remete aos cristãos capitalistas e escravocratas latifundiários do agronegócio, que de acordo com dados do Ministério do Trabalho, entre 2005 e 2011, foram libertados cerca de 30 mil trabalhadores em condições de escravidão no país. Boa parte do agronegócio, além de escravocrata, é assassino de índios, ambientalistas, sem terra e quilombolas Em 2011 (até o dia 29 de dezembro de 2011), foram libertadas 2.271 pessoas, em 158 operações em 320 estabelecimentos. 294 empresas estão na lista suja do trabalho escravo que a CNA, da senadora cristã Cátia Abreu, quer extinguir a sua publicação. Imaginem, cristãos convertidos estarem publicamente na lista suja dos que mantém trabalho escravo em suas fazendas. Publicamente ninguém é escravocrata neste país, como também publicamente ninguém é contra a Reforma Agrária. O PEC n° 438 do trabalho escravo está desde 2001 no Congresso Nacional e não é votado. Por que será que ele não é votado? Nós sabemos por que. Porque muitos deputados e senadores tiveram sua campanha financiada por empresas do agronegócio escravocrata e quase todo o resto apóia esta prática, não publicamente, é claro.

No entanto, na esfera do privado a coisa é bem outra. Aposto que a esmagadora maioria dos donos destas empresas do agronegócio escravocrata no ramo da cana, da agropecuária e da madeira é cristã, do tipo ''convertido". Convertidos do tipo que a Rede Record mostra em suas propagandas 'cristãs': "Estive mal porque estive longe de Deus, me converti e agora estou rico. Agora estou rico porque Deus está comigo, pois Deus só está com os ricos". "Os pobres são pobres porque estão longe de Deus!', dizem os teólogos da teologia da prosperidade. Para esta teologia o ser pobre é uma maldição de Deus. Não é exatamente isto que Jesus fala em Mt 5 e Lc 6.20: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus". Como o Jesus de Nazaré, o Deus encarnado, que era pobre, marginalizado, migrante, sem terra e sem teto se encaixa nesta teologia? A Religião cristã sempre se tem prestado à legitimar a opressão capitalista. No entanto, o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo não legitima nenhum sistema opressor. Por isso a igreja (em minúsculo) transformou o Evangelho em Religião, pois a função da Religião é legitimar o sistema econômico opressor vigente. O Evangelho, por sua vez, propõe a subversão do sistema opressor dominante. Por isso Jesus foi crucificado como subversivo, como nos conta Lc 23.2,5. Assim sendo, todo cristão, que se baseia no Evangelho, é um subversivo. Aquele cristão que se baseia na Religião Cristã é um mantenedor e legitimador da opressão. A função da Religião é transformar o Evangelho de Jesus Cristo em Religião. A função da Religião é neutralizar e anular o Evangelho.

Como será que o governador tucano cristão de São Paulo e sua obediente polícia trataria este Jesus sem teto em Pinheirinho? A justiça classista em vez de despejar o Naji Nahas como proprietário (quer dizer desapropriar o terreno por ser caloteiro) de seu terreno no Pinheirinho pelos impostos devidos e não recolhidos, despeja os sem teto. Não estavam os dois fora da lei? Como a lei penaliza apenas a parte pobre dos fora da lei? É que a justiça é cega e depende de quem a conduz. Certamente este juiz também se considera cristão convertido e 'neutro' na luta de classes existente na sociedade. Ajoelhar-se-iam, o governador e sua obediente polícia, diante deste Jesus sem teto para adorá-lo ou Ele teria que se ajoelhar diante de sua polícia que o trataria à porretada como o seu colega governador Pilatos o fez?

"Os direitos dos credores da massa falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição. O principal deles está inscrito logo no art. 1º, III, que indica a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Esse valor permeia toda a ordem jurídica e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes. Outro princípio constitucional foi afrontado: o da função social da propriedade. É verdade que a Constituição garante o direito de propriedade. Mas toda vez que o faz, estabelece a restrição: a propriedade deve cumprir sua função social". Escreve José Osório de Azevedo Jr., desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo

Como será que está a relação destes empresários 'cristãos convertidos' com os seus empregados, que os tornaram ricos? Tem até uma associação internacional de empresários cristãos convertidos que se reúne periodicamente para comer bem e rezar para "que chegue intacta à Jamaica a mercadoria que se dispõe a embarcar", assim como o fez o nosso capitão inglês em seu navio negreiro. Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno - “A Adhonep é uma associação mundial de homens de negócio, profissionais liberais, autoridades civis e militares que se reúnem durante jantares ou almoços para compartilhar experiências narradas por um leigo que, apesar de possuir dinheiro, teve sua vida transformada por Jesus”, no dizer do industrial Custódio Rangel Pires, presidente nacional e internacional da associação. Quanto tempo os seus empregados trabalham de graça para que o patrão 'convertido' possa ter seu sagrado lucro e assim perpetuar o capitalismo, achando que está perpetuando a fé cristã?

Quantas perguntas, diria Brecht, a partir de seu poema:
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída —
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

O que precisamos mostrar sempre de novo é que a ideologia capitalista se traveste de fé cristã. Por isso os cristãos não conseguem enxergar a diferença entre fé cristã e ideologia capitalista. Cada sistema econômico procura transformar o Evangelho de Jesus Cristo em Religião para se legitimar e se perpetuar. Por isso os cristãos que assumem a prática econômica do sistema econômico vigente acham que isto é prática cristã. No escravismo pós Constantino foi assim, no feudalismo foi assim, no capitalismo é assim. Por isso os cristãos acionistas e donos de empresas não têm a menor sensibilidade para com os seus trabalhadores; se ficam doentes por causa do processo produtivo insalubre ou intensivo os capitalistas simplesmente os descartam. Por que? Porque para o capitalismo trabalhador é apenas uma mercadoria, é coisa, para se produzir o que interessa: o lucro. O capitalista cristão convertido assume esta prática, pois o que interessa é o lucro, que é tido como bênção de Deus. Tiago 5.4-6 é muito claro frente isso: "Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência". Tiago diz que a riqueza é podre porque foi adquirida na base da fraude, do roubo, em cima da matança dos trabalhadores. Literalmente é isso. Acaba-se com a saúde do trabalhador para garantir a riqueza pessoal do empresário. Tiago desmente esta história hipócrita de que riqueza é bênção de Deus, mas ela é na verdade um roubo porque parte do salário "foi retido com fraude". É a condenação do mais valor, do lucro, que surge do roubo puro e simples. Nem precisamos da leitura de Marx para descobrir que a riqueza é coisa podre. Tiago 5.2 diz: "As vossas riquezas estão corruptas". Tiago vai na mesma linha do profeta Miquéias 3.2-3: "Os que aborreceis o bem e amais o mal; e deles arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos; que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão?" Todo sistema econômico opressor é antropofágico. O capitalismo também o é, pois consome a vida dos trabalhadores no processo produtivo. Boa parte dos trabalhadores aos 40 anos já estão impossibilitados permanentemente ao trabalho produtivo. Trabalham ainda porque precisam, senão morrerão de fome, pois quem tem problemas de coluna o INSS dificilmente aposenta por invalidez, pois a esmagadora maioria da peonada se encaixa nisso. Arrastam-se em dores permanentes ou em depressão profunda até seus últimos dias de vida.

O sistema econômico opressor é suicida, pois mata quem o mantém. O escravismo matava seus trabalhadores de tanto trabalhar e o capitalismo faz o mesmo. A forma de descarte é diferente, mas o método é o mesmo. No escravismo o trabalhador morria simplesmente de exaustão ou de doença advinda do excesso de trabalho e má alimentação. No capitalismo o Estado via impostos que a classe trabalhadora paga sustenta o descartado, via INSS, e assim o capitalista está de consciência limpa, pois não lhe cabe nenhuma responsabilidade de cuidar dos descartados; isto é obrigação do Estado com o dinheiro do próprio trabalhador e não do capitalista. O capitalista vai dizer: "Mas eu também recolhi a parte patronal do INSS", recolheu, mas quem gerou este valor foi o trabalhador. Não saiu do trabalho do patrão, saiu do trabalho do peão. Assim, o Estado é um instrumento à serviço da classe capitalista, por isso ela faz de tudo para controlá-lo: golpe de estado, tortura e assassinato se for preciso. A história recente da América Latina mostra isto muito claramente. O Estado ditatorial brasileiro assassinou 436 pessoas, o argentino 30 mil, o guatemalteco 200 mil, e assim por diante.

Por isso: todo rico é ladrão ou filho de ladrão (Mt 19), dizia o patriarca João Crisóstomo (bispo de Constantinopla, falecido em 407 A.D., que em 402 foi deposto e exilado para a aldeia de Cucusa, fronteira com a Armênia, acusado de não coadunar os interesses da Igreja com as do Império.). Dá para entender.
Almeida Garret pergunta: “E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”.