25 de dezembro de 2012

Não temais.




(Uma resposta ao comentário e à convicção do pastor Ademir Kreutzfeld ao cartão de Natal da PPL que cita uma frase de Che Guevara: "Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera". Aquele pastor comenta: "Ahh... mas el Che conseguimos eliminar!!!!" Por esta forma de se expressar ele se considera, com muito orgulho, co-autor do assassinato do Che; ou ao menos co-autor da idéia de que é preciso eliminar com balas de fuzil a todos que difundem a idéia de que é possível construir uma nova sociedade de irmãos e de irmãs e de que é possível construir  "o novo homem e a nova mulher", que segundo a expressão do apóstolo Paulo, a "nova criatura" (que é construída pelo próprio Deus), segundo 2 Co 5.17: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas".)

Lc 2.10-11: "O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor".

Não temais. Eis a boa nova de Natal: Não temais!

De que temos medo na Igreja (que se chama de Jesus Cristo)? Temos medo desta nova sociedade de irmãos e de irmãs que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Temos medo da simples idéia de que esta nova sociedade, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus, seja possível. Temos medo de todas as pessoas que anunciam que é possível participar sob o convite de Deus desta nova sociedade de irmãos e de irmãs, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Temos mais medo ainda daqueles que não apenas anunciam a possibilidade de se poder construir uma nova sociedade sem classes sociais, mas que já põe em prática estas idéias que provém da pregação de Jesus Cristo e que ele chama de Reino de Deus. Sinais bem concretos desta nova sociedade põem a direita em polvorosa e por isso a Reforma Agrária foi congelada e qualquer tentativa de construir um novo modelo de se viver na Amazônia é revidado com alguns assassinatos de lideranças para intimidar os demais. A direita continua crendo que as idéias e as novas práticas igualitárias se pode matar com balas de fuzil.
Por causa do medo de que esta idéia de uma nova sociedade de irmãos e de irmãs é possível o Sinédrio, o sumo sacerdote e o governador romano Pôncio Pilatos crucificaram Jesus Cristo. Esta idéia de que um outro mundo é possível (aquele proposto por Jesus Cristo que ele chama de Reino de Deus onde não há classes sociais, portanto não há propriedade privada dos meios de produção e por isso não há exploração de uma pessoa sobre a outra pessoa), além do mundo proposto pela direita que é classista e explorador baseado na propriedade privada dos meios de produção, assusta ainda hoje a direita na e fora da Igreja. O medo desta idéia de que é possível construir uma sociedade de irmãos e de irmãs fez com que os exploradores do povo e seus apoiadores matassem Jesus Cristo na cruz.
Os exploradores do povo achavam no passado e ainda acham hoje que é possível matar esta idéia. Esta idéia de uma nova sociedade de irmãos e de irmãs onde não há propriedade privada dos meios de produção e por isso mesmo não há classes sociais e nem exploração de uma pessoa ou de uma classe sobre a outra é algo inimaginavelmente amedrontador para os exploradores do povo e seus aliados. Por isso ainda hoje são perseguidas e mortas aquelas pessoas que ousam afirmar que não tem medo de anunciar que é possível de se construir esta nova sociedade igualitária ou, pior, tem a coragem de começar este processo de construir esta nova sociedade já agora com sinais bem concretos e reais dentro e fora da Igreja. Ainda hoje a direita na e fora da Igreja é de opinião que se deve matar com balas de fuzil todas as pessoas que são partidárias desta idéia de que um outro mundo é possível, um mundo de irmãos e de irmãs, um mundo sem classes sociais antagônicas e em permanente luta construído em cima da propriedade privada dos meios de produção que viabiliza a exploração de uma pessoa sobre a outra. Esquecem, no entanto, que idéias não se podem matar com balas de fuzil.
O Anás, o Caifás e o Pôncio Pilatos e toda a corja de puxa sacos dos exploradores, de ontem e de hoje, achavam que crucificando a Jesus Cristo eles eliminariam com isto também suas idéias de que o Reino de Deus é possível. Enganaram-se. Esta idéia de uma nova sociedade de irmãos e de irmãs, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus, que Che Guevara chama de comunismo, que os povos andinos chamam de Sumak Kawsay, que os povos africanos chamam de ubuntu e o povo guarani chama de Terra sem Males, é possível. Jesus Cristo chega a dizer que esta nova sociedade já está no meio de nós (Lc 17.21), de tão possível que ela é. Já há muitas experiências desta nova sociedade nos dias de hoje, também na Igreja. Infelizmente muitos na Igreja, que se chama segundo o nome de Jesus Cristo que foi enviado para construir este Reino de Deus (Lc 4.43), esta nova sociedade de irmãos e de irmãs, se apavoram com a simples idéia de que isto seja possível e apóiam a idéia de que se deva matar com balas de fuzil todas as pessoas que difundem esta idéia de que esta nova sociedade de irmãos e de irmãs é possível.
O Hitler, o Stalin, o Mao, o Pol Pot, o Kennedy, o Emílio Garrastazu Médici, o Videla, o Pinochet e tantos outros mandaram matar com balas de fuzil a milhares de pessoas que criam que é possível construir esta nova sociedade de irmãos e de irmãs cuja base não é a propriedade privada dos meios de produção (At 2 e 4) que viabiliza a exploração de uma classe sobra a outra. A estes se juntam milhares de pessoas que se dizem cristãs e que apóiam a idéia de assassinar com balas de fuzil a todas as pessoas que crêem na possibilidade de se construir a partir da fé em Jesus Cristo (ou não) uma nova sociedade de irmãos e de irmãs, que não permite a exploração de uma pessoa sobre a outra, uma sociedade sem classes sociais.
A história já demonstrou, e o Cristo ressurreto e a sua Igreja são prova disto, que não se pode matar esta idéia da construção de uma nova sociedade de irmãos e de irmãs que Jesus Cristo chama de Reino de Deus e que outras pessoas chamam por outro nome. Chamemos como a queiramos chamar, esta nova sociedade de irmãos e de irmãs que é possível, e não serão balas de fuzil que matarão esta idéia e esta possibilidade.
O Império Romano matou cerca de cem mil cristãos que diziam que esta nova sociedade de irmãos e de irmãs é possível e a estavam construindo na prática da vida diária. A Igreja Cristã, por sua vez, mais tarde, matou centenas de vezes mais cristãos que o Império Romano, em nome de Jesus Cristo, que diziam que esta nova sociedade de irmãos e de irmãs é possível. Ainda hoje a grande maioria de cristãos treme estupefata diante desta idéia de que é possível construir uma nova sociedade de irmãos e de irmãs que não se baseia na propriedade privada dos meios de produção que possibilita a exploração de uma classe sobre a outra e por isso apóiam o assassinato de todos que apóiam esta idéia de que o Reino de Deus é possível, mesmo que alguns o denominam por outro nome.
Centenas de Golpes de Estado foram financiados pelos USA e seus apoiadores no século XX para impedir a divulgação desta idéia de que um outro mundo é possível. Milhares de pessoas foram perseguidas, presas, torturadas e assassinadas por estas ditaduras civis e militares porque criam nesta idéia de que é possível construir uma nova sociedade de irmãos e de irmãs. Estas milhares de pessoas perseguidas, presas, torturadas e assassinadas o foram com o apoio de grande parte da Igreja Cristã e de pessoas como a do pastor Ademir Kreutzfeld. Lembro do caso do pai do atual ministro da saúde que foi denunciado pelo pastor de sua comunidade como subversivo e foi preso e torturado barbaramente nos porões da ditadura civil-militar brasileira e teve que viver vários anos no exílio. Lembro da Igreja Luterana da Alemanha que se dividiu porque uma parte apoiava o nazismo; lembro da Igreja Luterana do Chile que se dividiu porque uma parte apoiava a ditadura do Pinochet e no tempo da ditadura civil-militar brasileira a Igreja Cristã não se portou diferente em que boa parte apoiou, em nome de Jesus Cristo, o sistema repressivo montado à serviço do imperialismo dos USA. São exemplos de como se tenta matar com balas de fuzil a idéia de que o Reino de Deus é possível.
Quando da ditadura civil-militar brasileira quem foram as pessoas mais perseguidas? As que tinham idéias próprias: intelectuais, professores, escritores, políticos, comunistas, sindicalistas, religiosos, músicos, artistas. Quais eram os mais perigosos para o regime ditatorial? Os comunistas? Não. Não? Não. Pelo número de mortos vemos isto: os de esquerda foram 457 mortos pela tortura ou execução extrajudicial (que é uma palavra mais bonita para assassinato a sangue frio), 370 foram camponeses mortos pela repressão ou pelo latifúndio armado pela ditadura, mas os mais perigosos foram os indígenas, 5 mil mortos. Por que os indígenas são os mais perigosos? Porque eles não apenas pensam diferentes, mas fazem algo pior ainda, eles vivem diferente e não se enquadram na sociedade de consumo capitalista e por isso tem que ser extintos e o pior que isto tudo é que eles não tem propriedade privada dos meios de produção, esta, a terra, é de posse do coletivo e isto é uma coisa simplesmente insuportável para qualquer capitalista; além de não trabalhar para o mercado de consumo (índio é preguiçoso e não trabalha, dizem os capitalistas) e nem se enquadrar no mercado de consumo (apesar que muitos já foram enquadrados no sistema). Este processo continua ainda hoje sob a ditadura do capital como nos conta o Paulo Maldos, na Revista Carta Capital de 20 dezembro de 2012, ele é secretário Nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência e atua, no momento, na luta pela terra do povo xavante:
"Outro é o núcleo que tem os 22 grandes invasores, que operam na política. Esses acionam prefeitos da região, políticos, a bancada do Mato Grosso, o governador. Agem para pressionar o governo federal, o Supremo Tribunal Federal, junto ao presidente da Câmara dos Deputados, ao Senado, e ministros aqui em Brasília. É uma história de como o latifúndio opera. Ele atua na cabeça dos três poderes, estabelecendo a tensão, contando a sua versão das coisas. Exigindo respeito à propriedade, mas contando muita mentira. E a mídia é um grande instrumento deles de contar a sua versão das coisas: que viveriam sete mil pessoas lá, que haveriam duas mil cabeças de gado, que tem título de propriedade. A capacidade de manipulação é fantástica. É um absurdo o quanto de mentiras existe nesse processo. A capacidade de faltar com a verdade veiculando uma situação absolutamente fantasiosa sobre o que é Marãiwatséde, sobre a história de Marãiwatséde e a população não índia. Inverdades a respeito da proporção das coisas: está para nascer o milésimo xavante de Marãiwatséde por esses dias. Mas através da mídia falavam em 150 índios, e sete mil não-indígenas. A gente conseguiu encontrar, durante todo esse processo, notificando gente na estrada, nos botecos, 455 pessoas. Esse número é bem distante dos sete mil alardeados. Então tem uma operação que eles fazem, no nível dos três poderes e na mídia, com números totalmente irreais.
A grande questão era evitar que a terra voltasse a ser dos legítimos donos e ficasse para o mercado. Esse é o pano de fundo dessa disputa: se é um território reconhecido como indígena, de propriedade da União, com usufruto exclusivo da comunidade; ou se é uma terra disponibilizada para o mercado de terras. Essa é a grande queda-de-braço. Só isso explica a virulência dos operadores políticos, econômicos e sociais, que se jogam contra esse processo. No caso concreto, os grandes invasores não admitem a terra fora do mercado. Eles consideram que possuem 7 mil, 9 mil hectares, e raciocinam pelo preço do mercado de terras no Mato Grosso, como se tivessem 50, 60 milhões de reais de patrimônio. Essa ocupação foi fruto de uma invasão deliberada, pura e simples, com a colocação de cercas e de pistoleiros. Eles acham que isso pode se chamar propriedade.
A gente identificou no Posto da Mata criminosos, literalmente. Os maiores agitadores ali são ex-presidiários. Com processos de sequestro, assalto a banco, assalto a mão armada, recém saídos da cadeia em Cuiabá. São os mais agressivos no Posto da Mata. Por exemplo: quando estávamos fazendo a notificação, e houve uma tensão no final da notificação, foi o prefeito de São Félix do Araguaia, chamado Filemon, que foi lá e ficou fazendo agitação e jogando a população contra os oficiais de Justiça e contra a Forca Nacional e a Polícia Federal. Filemon é o mesmo que está na origem da invasão, nas gravações de 1992 incentivando a invasão. O mesmo personagem volta 20 anos depois incentivando a população contra a notificação. E quem é que ele incentivou e acabou virando um carro da Força Nacional, quase matou o oficial que estava dentro do carro? Dos sete que viraram a caminhonete, três foram identificados: um recém saído da cadeia por sequestro, outro por assalto a banco, outro por roubo com mão armada. Eles operam em todos os níveis. Por um lado, sobre tribunais, deputados, senadores, ministros. Por outro lado, na mídia. E inclusive com criminosos foragidos da justiça – no Posto da Mata tem muitos foragidos da Justiça."
Esta é a propaganda, num mau português, da campanha dos fazendeiros na internet.

Isto nos dá uma idéia de como age o sistema capitalista, especificamente aqui o agronegócio, contra quem tem idéias e práticas de vida diferentes e opostas ao sistema capitalista. A ordem do sistema é: matar e exterminar estes subversivos!
Por isso o anúncio dos anjos: "Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor." é tão importante: Não precisamos ter medo de anunciar e viver que esta nova sociedade que Jesus Cristo chama de Reino de Deus é possível. Jesus Cristo nasceu para nos anunciar isto e não serão balas de fuzil que matarão esta idéia e esta possibilidade já real em tantos lugares, também na Igreja Cristã, também, inclusive, contra toda a realidade presente na Igreja que apóia a prática de matar com balas de fuzil as pessoas que difundem esta idéia de que uma nova sociedade igualitária e solidária de irmãos e de irmãs é possível, como já o demonstramos a cada vez que celebramos a Ceia do Senhor.
Recentemente a Polícia Federal teve que tirar de sua humilde casa o bispo emérito Dom Pedro Casaldáliga para protegê-lo dos assassinos do agronegócio porque mesmo idoso e alquebrado pela doença de Parkinson é uma ameaça em potencial ao agronegócio que diz que não existe outra possibilidade de se organizar a sociedade além do capitalismo predador de seres humanos e da natureza. Diante deste pensar do agronegócio nós cristão dizemos: Isto é mentira! Há outra forma de organizar a vida das pessoas e de toda a sociedade que é a proposta de Jesus Cristo: o Reino de Deus. Como diz o bispo subversivo ameaçado de morte pelo agronegócio: "O capitalismo é um pecado capital. O socialismo pode ser uma virtude cardeal: somos irmãos e irmãs, a terra é para todos e, como repetia Jesus de Nazaré, não se pode servir a dois senhores, e o outro senhor é precisamente o capital. Quando o capital é neoliberal, de lucro onímodo, de mercado total, de exclusão de imensas maiorias, então o pecado capital é abertamente mortal". Os defensores do capitalismo dizem que todos que defendem idéias diferentes deles e propõe que há a possibilidade de se organizar a sociedade de forma fraterna sem explorados e exploradores devem ser mortos por balas de fuzil para que desta forma também se apaguem as suas idéias. Esquecem os assassinos e seus apoiadores e simpatizantes (muitos deles inclusive das Igrejas Cristãs, seguindo a tradição da Conquista) que idéias e nem a esperança de uma nova sociedade não capitalista não se matam com balas de fuzil, pois a proposta do Reino de Deus que Jesus Cristo nos coloca através dos Evangelhos é uma proposta não capitalista. O capitalismo não salva, só Jesus Cristo salva! Se o capitalismo não salva por que tantos cristãos se agarram tanto à ele? Se o capitalismo não salva então porque tantos cristãos insistem em manter a sua prática espoliativa e defender suas idéias de segregação de classe baseada na propriedade privada dos meios de produção? Por que a ideologia capitalista se sobrepõe ao Evangelho de Jesus Cristo? Será por que amam mais o mundo do que a Deus? Por que obedecem mais às ordens do mundo, o capitalismo, que é um dos instrumentos que o diabo usa para tentar impedir a construção do Reino de Deus? O que dizer diante desta palavra de 1 Jo 2.15: "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele"? Segundo esta palavra de 1 Jo 5.4: "porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" nossa tarefa como cristãos é combater e vencer o mundo, o capitalismo. A fé em nosso Senhor Jesus Cristo é o instrumento para combater e vencer o mundo, o capitalismo, portanto quem não combate o capitalismo, o mundo, não é de Deus e não o ama.
Os Impérios de Portugal e da Espanha, no período da Conquista, com a aprovação e bênção da Igreja Cristã Ocidental com sede em Roma, tentaram matar as idéias e a prática desta sociedade igualitária não capitalista que havia na África e nas Américas como nos dizem a Bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, concedida pelo papa Nicolau V para o Império de Portugal para legitimar a escravidão e o saque:
“Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho infante d. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos d. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado”;
e a Bula Inter Coetera, de 4 de maio de 1493 enviada para o Império da Espanha continua legitimando o massacre dos povos originários das Américas em nome de Jesus Cristo:
“... por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia [...] A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor das presentes, vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes delas, e reduzi-los à Fé Católica”.
Haja arrogância! O papa (a Igreja) se considera como vigário de Cristo o dono do planeta Terra e doa partes dela a quem ele quiser com o direito de assassinar e massacrar quem não o reconhece como tal e "reduzi-los à Fé Católica". O termo "reduzi-los" foi usado literalmente, no sentido de exterminá-los porque não se adequavam às idéias dos dominadores - foram 70 milhões de mortos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Só para lembrar aos protestantes que naquela época pertencíamos à esta Igreja Cristã do Ocidente, portanto somos cúmplices disto tudo.
Em outras palavras: "Morram todos os que não se sujeitam às dinâmicas do capitalismo selvagem abençoado por Deus!" O relato de 1552 do Frei Bartolomé de Las Casas mostra como foi a tentativa de eliminar as idéias e práticas não capitalistas nas Américas que a Igreja chamava de "evangelização" e de "catequese": "(...) Os espanhóis entravam nas vilas, burgos e aldeias não poupando nem crianças e velhos, nem mulheres grávidas e parturientes, e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços (...) sempre matando, incendiando, queimando, torrando índios e lançando-os aos cães (...) e assassinaram tantas nações que muitos idiomas chegaram a desaparecer por não haver ficado quem os falasse (...) e no entanto ali teriam podido viver como num paraíso terrestre, se disso não tivessem sido indignos..." (O Paraíso Destruído. Frei Bartolomé de Las Casas. L&PM Editores). O agronegócio escravocrata no Brasil continua nesta linha assassinando lideranças indígenas, ambientalistas, religiosos, camponeses e sindicalistas para que a "economia verde" seja da cor e sob o controle do dólar.
O Império Romano já tentou, durante três séculos, matar as idéias desta nova sociedade que Jesus Cristo chama de Reino de Deus; a própria Igreja Cristã já o tentou depois do fracasso do Império Romano no passar dos séculos e ninguém até hoje conseguiu matar a idéia desta nova sociedade igualitária, sem classes sociais, fraterna, de irmãos e irmãs, onde os meios de produção estão sob o controle de toda a sociedade. Não será o capitalismo que irá ter sucesso nesta empreitada assassina de matar a idéia da construção desta nova sociedade igualitária que é o Reino de Deus, que outros chamam por outros nomes, sejam qual forem os nomes dados.
Por isso neste Natal anunciamos: "Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor"; as suas idéias e a prática destas não serão mortas por nenhuma bala de fuzil, por mais que o capital e a Igreja se esforcem por eliminá-las.
Pastor Günter Adolf Wolff

10 de dezembro de 2012

Os verdadeiros patrões dos eleitos




Empreiteiras são maiores doadoras de 2012

Os números finais divulgados pela Justiça Eleitoral mostram que as construtoras encabeçaram a lista de maiores doadores das eleições deste ano. Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa foram os quatro maiores financiadores privados da disputa. Juntas, investiram R$ 197,2 milhões.
O quinto maior financiador é o braço da Vale na produção de fertilizantes, que doou outros R$ 29 milhões.
A reportagem é de Paulo Gama e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 08-12-2012.
Essas empresas optaram majoritariamente por uma modalidade de doação que impede a identificação do candidato beneficiado -as chamadas doações ocultas.
Dos R$ 226,2 milhões investidos por elas, R$ 220,6 milhões - 97% do total - foram repassados às direções partidárias ou aos comitês financeiros das siglas. Os recursos são transferidos posteriormente pelos partidos aos candidatos, eliminando o vínculo entre as empresas e os beneficiados pelas doações.
Três deles doaram apenas via partidos. A Andrade Gutierrez, maior financiadora da disputa, investiu R$ 77 milhões -100% direcionado às direções partidárias. Além dela, a Vale e a Queiroz Galvão optaram exclusivamente por essa modalidade.
O PT foi o partido que mais se beneficiou delas. Recebeu R$ 63,6 milhões das cinco empresas. O PMDB foi o segundo, com R$ 49,1 milhões, e o PSDB, o terceiro, com R$ 34,9 milhões. Os três foram os partidos que mais elegeram prefeitos e vereadores em 2012.
Questionados pela Folha, os financiadores não explicaram por que optaram pela doação oculta nem disseram se influenciaram a decisão sobre o candidato beneficiado.
O percentual oculto é maior que o de 2010, quando os cinco maiores financiadores haviam repassado 74,5% de suas doações aos partidos ou comitês. Estão na lista de maiores doadores das duas eleições a OAS, a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez.
No total, partidos e candidatos declararam ter arrecadado R$ 4,8 bilhões. Desconsiderando os recursos declarados duas vezes -recebidos pelos partidos e repassado aos candidatos-, a eleição movimentou R$ 3,7 bilhões.
FINANCIAMENTO PÚBLICO
Cerca de 5% desse total foi financiado com recursos públicos, por meio do Fundo Partidário - uma reserva mantida pela União distribuída entre as legendas, proporcionalmente a seu tamanho no Congresso. Os partidos declararam ter usado R$ 179,7 milhões do fundo para pagar despesas das campanhas.
Quem mais se serviu de verbas públicas foi o PP, que gastou R$ 20,7 milhões. Na sequência vêm PSDB, com R$ 19,9 milhões, e PMDB e PSB, R$ 18,8 milhões cada um.
Individualmente, quem mais recebeu foi ACM Neto, eleito pelo DEM para a Prefeitura de Salvador.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/516258-empreiteiras-sao-maiores-doadoras-de-2012

5 de dezembro de 2012

Mataram a Irmã Dorothy.


Para termos uma idéia de como funciona a dinâmica do agronegócio e a luta pela terra no Brasil temos que assistir o filme "Mataram a Irmã Dorothy". Ele mostra a devastação da Amazônia, a grilagem de terra, a violência do latifúndio que usa peões empobrecidos para matar por 50 reais, a resistência dos sem terra empobrecidos e como funciona o nosso sistema judiciário.

Assista o filme: Mataram a Irmã Dorothy.

Pode baixar neste endereço eletrônico


http://vimeo.com/54570270



Assista também o documentário: Utopia e Barbárie
http://www.youtube.com/watch?v=4QoTj0AFgeM

Sobrevivente dos anos de chumbo.



Depoimento e apelo. Entrevista com Anivaldo Padilha


“Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania”, diz o sociólogo e membro do grupo de trabalho constituído pela Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura militar.

Confira a entrevista.

Depois de ter tido sua história de vida marcada pelas torturas da ditadura, Anivaldo Padilha acaba de encerrar um ciclo, após o julgamento de seu caso na Comissão de Anistia. “No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada”, disse à IHU On-Line.

Líder da juventude metodista e do movimento ecumênico de juventude no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha lutou contra a opressão e pela democracia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele resgata essa história e diz que na prisão conheceu o “lado mais cruel e diabólico do ser humano”, mas também “o lado mais sublime, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite”. E complementa: “Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir”.

Quase 50 anos depois, Padilha avalia que a situação do país melhorou, especialmente no âmbito jurídico-institucional. “Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços, mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual”, conclui.

Anivaldo Padilha é formado em Ciências Sociais e membro da Igreja Metodista. Esteve exilado por 13 anos no Chile, EUA e Suíça. De regresso ao Brasil, em 1984, incorporou-se ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI. Em 1994, participou da fundação de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. É membro da equipe de assessores de KOINONIA, membro da Diretoria do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Região Brasil) e da Junta Diretiva do Church World Service, dos Estados Unidos e mora em São Paulo.


IHU On-Line – Em maio deste ano, o senhor recebeu indenização da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pelos graves danos que lhe foram causados na época da ditadura. Como se sente diante desta decisão?

Anivaldo Padilha – Com muita sinceridade, devo dizer que o aspecto mais importante da anistia é o caráter político da decisão, e não a indenização que vou receber. Nunca lutei por dinheiro e, sim, pela democracia.

A sessão da Comissão de Anistia na qual meu caso foi julgado representou um momento ímpar para mim. Eu já havia assistido a algumas sessões da Comissão e já conhecia o ritual. No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da Comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada. Naquele momento compreendi o significado simbólico daquele gesto que eu já havia presenciado em outras ocasiões, mas não tinha ainda noção do que representava para uma pessoa que teve seus direitos violentamente agredidos por uma política de terror oficialmente executada pela ditadura.

Ao mesmo tempo, senti que, apesar de tudo e de todos os problemas que enfrentei, a minha luta e a de todos que lutaram contra a ditadura valeu a pena. A Anistia, para mim, marcou o encerramento de um ciclo importante da minha vida, mas, acima de tudo, representa estímulo e incentivo para o início ou continuidade um novo ciclo sem, contudo, significar mudança de rumos ou de lados. Se antes a luta foi contra a ditadura, hoje é a luta pelo aprofundamento da democracia que conquistamos até agora. Ou seja, vejo a construção da democracia como um processo permanente e sinto-me feliz por fazer parte desse processo.


IHU On-Line – Na época em que foi preso e torturado, qual era sua atuação na Ação Popular – AP e na liderança ecumênica jovem?

Anivaldo Padilha – Como militante da AP eu atuava no movimento estudantil (cursava Ciências Sociais na USP) e me dedicava ao trabalho de conscientização e de organização de setores da classe média. Ao mesmo tempo, trabalhava na Igreja Metodista como diretor do Departamento Nacional de Juventude e editor da “Cruz de Malta”, uma revista publicada por essa igreja e dirigida especificamente ao público jovem. Eu era também o secretário, para o Brasil, da União Latino-americana de Juventudes Ecumênicas.

Sempre procurei separar minha militância política na AP da minha participação e atuação na igreja e no movimento ecumênico apesar de que, em muitos casos, havia certa coincidência. Por exemplo, a defesa dos direitos humanos, a oposição à ditadura, a crítica às estruturas injustas da nossa sociedade e os esforços para a superação das desigualdades econômicas e sociais no Brasil eram bandeiras ecumênicas que em grande parte coincidiam com as posições políticas dos diversos movimentos que se opunham à ditadura. Meu trabalho eclesial e ecumênico envolvia a promoção de reflexões bíblico-teológicas, produção de materiais educativos visando a formação ecumênica da juventude não só metodista mas de outras igrejas também, o envolvimento de jovens em projetos sociais e o incentivo à solidariedade com pessoas perseguidas pela ditadura.

Já minha atuação na AP envolvia esforços que visavam a construção de apoios políticos e logísticos para a ação política da AP. Era um trabalho clandestino e muito arriscado, realizado com muita dificuldade pois a ditadura impedia qualquer tipo de oposição aberta.


IHU On-Line – Como o senhor descreve os 20 dias em que ficou preso no DOI-CODI, respectivamente Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna?

Anivaldo Padilha – Somados os três períodos em que estive no DOI-CODI e os em que estive no DEOPS, entre o final de fevereiro o final de junho, foram três meses de terror. O período mais difícil foi no DOI-CODI porque os interrogatórios acompanhados de torturas foram diários durante cerca de três semanas. E as torturas não eram somente físicas. Eram acompanhadas de torturas psicológicas para quebrar a resistência do prisioneiro. Por exemplo, ficar em uma cela suja, dormindo no chão em um colchão também sujo, sem possibilidade de fazer a higiene pessoal, como tomar banho ou escovar os dentes, sem ter como trocar de roupa, uma só refeição diária que no início era composta de restos do jantar do quartel do exército e posteriormente uma marmita fornecida pelo Grupo Ultra. Juntamente com esse tratamento vinham os insultos constantes dos carcereiros e dos membros da guarda. Vivi essa situação durante o primeiro período de cerca de vinte dias em que estive no DOI-CODI. A ditadura sabia que é muito difícil para uma pessoa manter o senso de dignidade diante de uma situação como essa. Entretanto, creio que todos nós, prisioneiros, tínhamos consciência de que a prisão era também uma frente de luta e que era necessário reunir todas as forças interiores que tínhamos para resistir.

Lado mais cruel e diabólico do ser humano

Sempre digo que conheci na prisão o lado mais cruel e diabólico do ser humano. É quando o mal que temos dentro de nós assume o controle total dos nossos atos e passa a agir com total liberdade. É quando o mal se instala de forma absoluta. Pude vivenciar isso na ação dos torturadores, mas não era algo simplesmente individual. É claro que alguns deles se moviam por sentimentos de extremo sadismo, mas é possível até que alguns deles fossem meigos com seus amigos e familiares. Entretanto, ali no DOI-CODI, tornavam-se possuídos pelo poder de vida ou de morte que tinham sobre nós, pois tinham consciência de que estavam executando uma política de Estado. Sabiam que a tortura não era somente uma técnica sistemática de interrogatório, mas, acima de tudo, um instrumento de terror usado para intimidar a sociedade. Não se sentiam pessoalmente responsáveis e acreditavam na impunidade.

O lado mais sublime do ser humano

Ao mesmo tempo, conheci o que considero o lado mais sublime do ser humano, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite como a que na qual nos encontrávamos. Essa solidariedade se manifestava de várias formas: nas palavras de incentivo e de encorajamento quando um de nós era levado para interrogatório ou quando regressava das sessões de torturas e necessitava de cuidados; no respeito às diferenças político-ideológicas que havia entre os prisioneiros; na manifestação concreta do amor ao próximo que atingia o ponto máximo na capacidade de doação da própria vida como aconteceu com vários de nossos companheiros e companheiras. Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir. Não quero fazer uma análise maniqueísta e reduzir essa experiência a uma luta entre o bem e o mal, mas o fato objetivo é que naquela situação as fronteiras entre um e o outro se tornavam muito claras para nós e isso nos ajudava a discernir claramente de que lado deveríamos estar e encontrar forças para não nos rendermos.


IHU On-Line – Que sentimento o senhor guarda em relação ao pastor metodista José Sucasas Jr. e o bispo Isaías Fernando Sucasas, já falecidos, que lhe denunciaram?

Anivaldo Padilha – É importante esclarecer que as denúncias feitas pelo bispo Isaias Fernandes Sucasas e seu irmão pastor José Sucasas Jr. contra mim não foram a causa imediata da minha prisão. Fui preso juntamente com uma companheira de militância, Eliana Rolemberg, quando fomos à casa do tio de dois jovens da Igreja Metodista retirar um pacote de documentos que eles haviam deixado lá para nós. O tio deles abriu o pacote, considerou o material subversivo e chamou o DEOPS, na época comandado pelo infame delegado Sérgio Fleury. Os sobrinhos não sabiam que o tio deles era informante do DEOPS. Durante uma das sessões de torturas por que passei, enquanto eu negava ser comunista e membro de uma organização clandestina, uma dos torturadores me disse: “Você quer que acreditemos em você ou naquele pastor que afirma que você é comunista?”. Naquele momento não consegui saber o nome do tal pastor. Ouvi essa mesma pergunta várias vezes depois e não tenho dúvidas de que a delação foi uma das causas para a intensificação das torturas que sofri.

Foi somente há cerca de seis anos que descobri que não era um, mas dois pastores que me haviam denunciado. As denúncias foram feitas por escrito nas margens de uma cópia do “Unidade”, um jornal artesanal da juventude metodista que eu editava e que era bastante crítico da liderança conservadora da Igreja.

As denúncias dos irmãos Sucasas foram enviadas ao escritório do Serviço Nacional de Informações – SNI em São Paulo. Esse documento consta do conjunto de documentos a meu respeito que estão hoje no Arquivo do Estado de São Paulo. E há cerca de três anos descobri que ambos eram informantes do DEOPS. Um estudante que estava trabalhando em sua dissertação de mestrado teve acesso ao diário do bispo Sucasas e nele encontrou dois registros, feitos em 2008. No primeiro, o bispo narra que ele e seu irmão foram ao DEOPS e se colocaram à disposição para colaborar com a repressão. No segundo registro, feito alguns dias depois, ele descreve a segunda visita que ele e seu irmão fazem ao DEOPS para retirar suas respectivas carteiras de informantes.

É interessante registrar que eles não sabiam do meu envolvimento com a Ação Popular. Fica claro nas anotações que fizeram nas margens do jornal que a delação praticada por eles estava relacionada aos conflitos internos na igreja entre os setores progressistas, principalmente a juventude, e os setores conservadores. Em outras palavras, usaram a delação aos órgãos de repressão da ditadura como um meio de repressão contra a juventude da Igreja Metodista.

Fantasma das torturas

Não sei dizer exatamente o que sinto hoje sobre eles. Com eu já afirmei publicamente em outras ocasiões, durante muito tempo, no meu período de exílio, fui perseguido pelo fantasma das torturas. Depois de muito esforço consegui perdoar os torturadores e também os que me denunciaram. A partir daí os pesadelos desapareceram. Foi um processo terapêutico para mim, uma forma que encontrei de vencê-los. Já disse também que há situações em que o perdão é mais importante para quem perdoa do que para quem é perdoado. Mas isso, em minha opinião, só faz sentido no âmbito subjetivo, nas relações interpessoais. No âmbito político, essas pessoas têm que ser responsabilizadas judicialmente porque seus crimes não foram somente contra os presos políticos individualmente, mas principalmente contra a sociedade brasileira. E a sociedade tem o direito e a obrigação de responsabilizá-los judicialmente.


IHU On-Line – Como o senhor se sentiu ao partir para o exílio com a esposa grávida, sendo obrigado a ficar distante da família, sem conviver com seu filho – hoje o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde? Quais as principais consequências que esse processo gerou para o senhor e sua família?

Anivaldo Padilha – Após conseguir liberdade condicional, permaneci no Brasil vivendo na clandestinidade durante cerca de cinco meses. Nesse período vivi com o auxílio do Conselho Mundial de Igrejas. Isso me possibilitou retomar contatos com meus companheiros da AP, especialmente com minha companheira (não éramos casados) que também estava na clandestinidade. Nesse período ela ficou grávida. Foi um período muito difícil para mim. Eu estava fisicamente muito debilitado e psicologicamente abalado devido às condições precárias da prisão e às torturas que havia sofrido. Não podia conseguir emprego regular, pois as empresas exigiam atestado de antecedentes. Meu pai havia praticamente perdido a visão devido a um derrame, não tinha aposentadoria e vivia sob os cuidados da minha mãe. Eles dependiam totalmente de mim financeiramente.

Ao mesmo tempo, o cerco da repressão contra a AP e as organizações de esquerda em geral se intensificava e estava claro que se fosse preso novamente eu seria morto, pois essa tinha sido a ameaça que sofri por parte do capitão Homero, um dos torturadores, quando saí da prisão. Durante esse período de clandestinidade, agentes do DEOPS foram à casa dos meus pais por duas vezes para me prender. No final de abril de 1971, fui convencido de que não havia mais possibilidades de eu permanecer no Brasil.

Dívida

Só eu sei a angústia que senti ao ter que deixar minha companheira, grávida de três meses, sabendo que ela também corria riscos de ser presa, torturada e talvez assassinada juntamente com nosso filho que ainda estava por nascer. Meu filho nasceu enquanto eu estava no exílio! Esse é um dos traumas profundos que ainda me perseguem, pois só pude conhecê-lo, abraçá-lo e conversar com ele quando ele estava com oito anos, quando vim ao Brasil logo após a assinatura da Lei de Anistia para, então, formalmente reconhecer a sua paternidade e fazer seu registro de nascimento. Só pude conviver com ele, em uma relação de pai/filho, depois de regressar ao país definitivamente em outubro de 1983.

Eu disse em várias ocasiões que essa é uma dívida que a ditadura tem para comigo e com todos nós e que nunca poderá ser paga. A dívida só não é maior porque minha companheira (por quem tenho o maior respeito e admiração) e minha mãe tiveram sempre o cuidado de explicar para ele os motivos por eu não estar no Brasil. Ele cresceu sabendo que eu estava distante, mas não ausente. Durante esse período, apesar de todas as dificuldades de comunicação e os necessários cuidados com a segurança, houve trocas de mensagens entre nós, algumas por fitas cassetes e desenhos, outras por fotos. E o mais salutar disso foram as trocas de comunicação entre o Alexandre e os meus dois filhos (Celso e Paulo) que nasceram no exterior. A amizade entre eles é muito grande e há claramente um clima de admiração mútua entre eles.


IHU On-Line – De que maneira o senhor relaciona a ditadura militar com os mais de três séculos de escravidão?

Anivaldo Padilha – Creio que há vários pontos que estabelecem uma íntima relação entre a ditadura e o nosso passado escravagista. Poderia mencionar vários, mas vou citar somente dois. Um é o profundo preconceito social e racial que ainda prevalece entre setores importantes e poderosos da elite brasileira. Alguém disse (não lembro quem, neste momento) que a nossa elite saltou de uma sociedade escravagista para a modernidade sem passar pela Revolução Francesa, ou seja, não sofreu o impacto dos valores republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade; esses preconceitos têm se traduzido, em vários momentos da nossa história, em verdadeiro ódio de classe. Basta ver como esse ódio e esses preconceitos são (re) produzidos em alguns meios de comunicação atualmente; é uma elite que nunca se educou pelos valores humanistas de verdade e por isso é incapaz de conviver com a democracia e usa de todos os meios para criminalizar qualquer movimento social que possa representar uma ameaça, mesmo que remota, aos seus interesses; uma decorrência natural dessa mentalidade é tratar qualquer questão social como caso de polícia, seja em questões ligadas ao mundo do trabalho, moradia ou até saúde pública, como temos visto na cidade de São Paulo ultimamente com a violência policial contra usuários de crack; essa elite sabe exatamente o que a escravidão representou e por isso sempre tratou de mistificá-la nos livros escolares. A abolição da escravatura no país é apresentada como um ato de benignidade de uma representante da nobreza e com isso trata de apagar a memória dos horrores que a escravidão representou para uma parcela enorme da população brasileira no passado e suas consequências para seus descendentes. Eu diria que essas são as raízes ideológico-culturais da enorme desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira.

O outro é o também profundo desrespeito à dignidade humana que se traduz na perpetuação da violência das nossas polícias contra os pobres e o uso sistemático dos diferentes métodos de tortura. Antes era usada contra os escravos que se atreviam a transgredir a ordem estabelecida pelo sistema escravagista e, posteriormente, foi aprimorada para uso contra dissidentes políticos, como aconteceu durante a ditadura civil/militar. Hoje, continua a ser usada contra prisioneiros nas delegacias e prisões.


IHU On-Line – O que lhe motiva, mesmo depois desta experiência, a assumir a condição de protestante e de líder ecumênico latino-americano?

Anivaldo Padilha – O que me motiva hoje são os mesmos princípios protestantes e ecumênicos que me levaram a me engajar na luta por uma sociedade mais justa e democrática, inicialmente como parte dos movimentos pelas reformas de base no período anterior ao golpe de estado de 1964 e, posteriormente, na luta contra a ditadura. Sou ecumênico porque sou protestante. Devido à minha formação protestante, desde muito jovem compreendi os limites da Igreja institucional e sei que ela é repleta de contradições, para dizer o mínimo. A história do cristianismo nos mostra que foram poucos os momentos em que ele – o cristianismo – realmente foi fiel aos princípios do Evangelho e aos valores do Reino de Deus. Na maior parte das vezes, os grupos dominantes na Igreja-instituição se aliaram aos poderes dominantes do mundo na manutenção do status quo. Ao mesmo tempo, sempre houve minorias que procuraram ser fiéis à tradição bíblica profética na qual o movimento de Jesus se insere. E, para mim, o movimento ecumênico é parte dessa tradição. É um movimento que, por sua própria natureza, tende a ser transgressor e a constantemente desafiar as igrejas. É essa natureza do movimento ecumênico que me motiva e dá sentido ao meu envolvimento político e eclesial na luta constante pela defesa, promoção e garantia dos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.


IHU On-Line – Quais são hoje os principais desafios que envolvem a luta contra as violações de direitos humanos no Brasil?

Anivaldo Padilha – Os desafios são muito grandes e multifacetados, pois a garantia e defesa dos direitos humanos envolvem várias frentes de luta que estão relacionadas: econômicos, sociais, culturais e ambientais. Por isso, sem desprezar as outras frentes, vou me concentrar na questão da violência que hoje ocupa grande parte da agenda nacional.

Uma das heranças mais perversas da ditadura, perpetuada e disseminada pelo oligopólio da mídia sensacionalista, é que a defesa dos direitos humanos significa uma ameaça à ordem estabelecida. Na época da ditadura, quem defendia os direitos humanos era identificado na mídia como protetor de “terroristas” e não como defensores da democracia. Hoje, somos acusados de defender bandidos e não como defensores da justiça para todos os cidadãos e cidadãs. Enquanto isso, as ações das polícias militares e de milícias nas periferias das grandes cidades e de pistoleiros a serviço de fazendeiros continuam a assassinar, impunemente, lideranças comunitárias, camponesas e indígenas. Apesar da existência de um número cada vez maior de organizações da sociedade civil que têm na promoção e na garantia de direitos uma de suas prioridades, ainda não conseguimos inverter a balança de poder. E esse desequilíbrio se manifesta em praticamente todas as esferas da sociedade, incluindo aquelas instituições que, por sua natureza, supostamente deveriam ter outra compreensão, como igrejas e universidades. Essa é uma luta ideológica que temos que travar todos os dias. É uma luta desigual como sempre foi (e provavelmente sempre será) porque os instrumentos que possuímos são frágeis e enfrentamos poderosos meios de comunicação que estão a serviço da manutenção do status quo – e aqui me refiro tanto à grande mídia tradicional quanto aos blogs e redes de direita na internet.

Arcabouço jurídico de garantias

Creio que temos tido vários avanços, especialmente no âmbito jurídico-institucional. Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual. Por exemplo, nem o governo federal nem aqueles governos estaduais que sabemos ter compromissos com os direitos humanos até agora foram capazes de promover uma reforma profunda no sistema de segurança pública com a formação de uma polícia unificada focada numa política de prevenção, de inteligência e de proteção da sociedade. Ao contrário, a ênfase tem sido na ação das polícias militares. Como sabemos, a PM é uma invenção da ditadura, criada sob a ideologia de segurança nacional para a luta contra o “inimigo interno”. Ela é treinada para matar e não para proteger a sociedade. Uma nova política de segurança e uma nova polícia já representaria um grande avanço em direção à proteção de direitos. Mas sabemos que dificilmente chegaremos lá sem a mobilização da sociedade.


IHU On-Line – Como se sente tendo sido vítima de sofrimento do regime militar, num período sombrio da nossa história, das lutas pela construção de um Brasil mais justo e democrático?

Anivaldo Padilha – Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania. No fundo, me considero não um privilegiado, mas um dos sobreviventes dos anos de chumbo que percebe na memória da passagem pelo vale das sombras da morte, como diria o salmista, a força para olhar o futuro com esperança e reconhecer que tudo valeu a pena.


IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do trabalho que vem sendo feito pela Comissão Nacional da Verdade? Considera-a um avanço ou pensa que ela já nasce limitada? Possibilitará romper a impunidade que se impôs sobre os anos de chumbo com a Lei da Anistia?

Anivaldo Padilha – Eu preferia uma Comissão Nacional da Verdade – CNV mais robusta, com prazo mais longo para executar seu trabalho, com orçamento próprio e com autoridade para recomendar ao Ministério Público o indiciamento dos agentes do Estado que cometeram crimes de violação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, sabia que um CNV no Brasil só seria constituída por meio de negociações políticas que levassem a uma decisão consensual – e foi o que ocorreu. Ela não poderá propor indiciamentos; outro limite é o prazo com que ela trabalha, pois terá que apresentar seu relatório final até maio de 2014. E terá que dar conta de várias frentes de investigação. Para poder cumprir com essa tarefa monumental, a CNV tem estabelecido relações com centros de pesquisa e com organizações da sociedade civil que já têm pesquisas acumuladas sobre a ditadura. Alguns estados e municípios também estão criando suas comissões da verdade como um meio de colaborar com a CNV. Essas parcerias e iniciativas que se desenvolvem como uma forma de suprir o que parece ser um limite da CNV pode muito bem se transformar em um de seus aspectos muito positivos, que é a participação de setores da sociedade e a de ampliação do seu impacto.

Entranhas dos porões da ditadura

Já sabemos muito sobre o que aconteceu durante a ditadura e sobre o papel que muitas instituições e setores da sociedade desempenharam naquele período. Entretanto, há ainda muito a se descobrir e também muito a se comprovar. Creio que ao expor publicamente as entranhas dos porões da ditadura e mostrar como a repressão se estruturou, qual a sua linha de comando, como atuou, quem apoiou e quem foram seus agentes, dificilmente a CNV deixará de causar um impacto positivo. Por exemplo, creio que seu relatório contribuirá para fortalecer a necessidade de o Brasil intensificar a discussão sobre a necessidade de se remover os resquícios autoritários tanto ideológicos quanto institucionais que herdamos da ditadura, aquilo que Ulisses Guimarães chamou de entulho autoritário. Um desses entulhos é a interpretação da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal – STF, interpretação que dá continuidade à tradição brasileira de impunidade e de acordo entre as elites.

Minha esperança é que, além de produzir um relatório robusto e inquestionável sobre os crimes cometidos durante a ditadura, a CNV produza na sociedade o sentimento de que seu trabalho não se refere somente ao passado, mas, acima de tudo, aponta para o futuro a fim de que aquele passado nunca mais se repita.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Anivaldo Padilha – Sim, gostaria de dar uma informação e de fazer um convite, quase um apelo. Quero informar que a CNV decidiu investigar o papel das igrejas durante a ditadura. Um grupo de trabalho já foi constituído. Ele é formado por pesquisadores que já têm trabalho acumulado nesse campo. Tenho a honra de compartilhar a sua coordenação com o Paulo Sérgio Pinheiro, membro efetivo da CNV. Pretendemos nos concentrar em quatro áreas:

1) o papel das igrejas na preparação do golpe;
2) papel que desempenharam na legitimação e consolidação da ditadura;
3) a colaboração de setores das igrejas com a repressão; e
4) resistência de setores das igrejas à ditadura e repressão sofrida por grupos dissidentes internos.

Como sei que grande parte dos leitores desta publicação estão no mundo acadêmico e ou têm relações com o campo religioso, aproveito para solicitar a colaboração no sentido de me enviar informações que possam contribuir para o trabalho do GT. Desde já agradeço e disponibilizo meu email aqui: apadilha@distopia.com.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/a-historia-de-um-sobrevivente-dos-anos-de-chumbo-entrevista-com-anivaldo-padilha/516008-a-historia-de-um-sobrevivente-dos-anos-de-chumbo-entrevista-com-anivaldo-padilha

3 de dezembro de 2012

Entrevista inédita de Paulo Freire




(dada à jornalista Marta Luz da Rádio Juazeiro, BA - Dia 24/04/1983 – Programa “Juazeiro Panorama”)

Enviada para mim pelo Ranulfo Peloso do CEPIS e a compartilho com vocês


Marta – Paulo, o que é “método Paulo Freire” de educação?

Paulo Freire - Marta, antes de ensaiar uma resposta, que não é nada fácil de ser dada, a essa sua pergunta com a qual, em todo mundo, sempre começo uma conversa, gostaria de agradecer a você, à rádio que você representa e a seus companheiros de trabalho nessa rádio, essa possibilidade que me dão de entrar nas casas dos ouvintes e levar a eles o meu “boa noite” e de levar a eles, e também a elas, quem sabe, algumas interrogações, algumas dúvidas, no campo geral da educação, no campo da compreensão do ser humano... Depois deste “muito obrigado” que deixo aqui, com muita sinceridade, tentarei responder à sua pergunta primeira.

Talvez, eu devesse dizer a você que, apesar da insistência com que muita gente, há muito tempo, vem falando, no Brasil, de “método Paulo Freire”, até não me agrada muito isso. Mas, isto é um fato e, tenho que discutir os fatos. Apesar da insistência com que se fala nesta história do chamado “método Paulo Freire”, tenho a impressão, Marta, com talvez um pouco de imodéstia, que se trata muito mais de uma certa compreensão geral da educação, de uma maneira de praticar a educação, do que propriamente de um método. Claro, que nessa compreensão geral da educação que tem a ver com uma prática coincidente com essa compreensão geral, há um método, entende? Quer dizer, no fundo, o método cabe aí dentro, está aí dentro. Por isso, disse que, talvez, eu fique pouco humilde ao dizer que a questão vai mais além do método, para alcançar uma própria compreensão da educação.

Quer dizer, que diabo é isso de educação para mim? Como é que eu vejo a educação, enquanto educador que também é educando, enquanto professor que também é aluno? Então, com tua licença, e refaço a pergunta (apesar de considerar que tua pergunta é correta, pois, é por aí que, em geral, se começa uma conversa comigo) eu diria, Marta, que há um sem-número de aspectos, um sem-número de temperos, nessa compreensão de educação que venho defendendo, e propondo, e praticando. Mas, ficaria com o que acho que é interessante dizer aos que me ouvem, agora.

Esse elemento que gostaria de sublinhar, de chamar a atenção, nessa compreensão e prática da educação que defendo, é o da l i b e r d a d e do educando, é o da l i b e r d a d e do educador. É o respeito, portanto, que o educador deve impor a si mesmo, do respeito ao educando para que ele também possa se respeitar. É o respeito ao educando, no sentido de que o educando vá se construindo como gente, em lugar de ir se reprimindo e virando coisa. A educação deveria ser exatamente isso: uma prática, uma experiência de criação e recriação da própria vida. A educação tem muito a ver com a poesia, por isso, a educação é um pouco de arte também, a Educação é essa constante busca de criar.

Veja você, a responsabilidade que a gente tem, enquanto educador. É que a gente está diante de outro ser e a nossa arte de criar e recriar tem a ver com o outro ser! Só que eu não tenho o direito de eu recriar a ti, se tu és minha educanda. Esse é o papel que te cabe: o papel de te refazer, com a minha ajuda. Mas, ao mesmo tempo, com que te ajudo como educador e tu como educanda, a que tu te faças e refaças, ao ajudar que tu te refaças, tu me ajudas a que eu me refaça também. Então, é esse aspecto que acho fundamental, de como entendo a educação. Às vezes, me espanto de como me entendem mal, como me colocam como uma espécie de “demônio misterioso”! É o que eu gostaria de dizer respondendo à tua pergunta. Talvez tenha me estendido muito; mas, era uma maneira de precisar, até sinteticamente, e dizer a ti como me vejo como educador mais do que como “metodólogo”.

Marta – De modo geral, a educação, segundo as suas palavras, deprime. O que é que é educação que deprime? Traduza concretamente.

Paulo – É claro que não é toda educação a que deprime; não é toda educação a que redime. É preciso ver que educação é. Digo que é preciso que, nós os educadores, sempre nos perguntemos: a serviço de quem nós estamos? A serviço de que nós estamos? Como educador, estou trabalhando a serviço de que? O que é que eu quero? Qual é o meu sonho? Claro que meu sonho que é um sonho de liberdade, que é um sonho de criatividade, um sonho de aventura, um sonho de risco... Esse sonho não pode ser viabilizado, possibilitado, através de uma educação que reprime, de uma educação que amesquinha. E que educação é essa? É exatamente a educação que domestica, é a educação através da qual o educador exerce um poder arbitrário de “possuir” a pessoa do educando, nos seus mínimos pormenores.

O educando não pode escolher o livro que deve ler, porque “o educador é que sabe”. O educando em casa, p. ex., o filho não tem o direito de escolher a melhor hora de estudar (como eu dizia, ontem à noite). Veja bem, Marta, eu não estou propondo que o educador se omita, seja ele pai, ou seja ela mãe, que desapareça, entende? Mas o que não é possível é que a presença do educador, no processo educativo, se agigante de tal maneira, se exacerbe de tal maneira, que a presença do educando, ou melhor, que o educando vire sombra do educador. Isso é um absurdo! Se minha presença, na minha casa ou na universidade, diante dos meus alunos, é uma presença de gigante arbitrário, todo-poderoso, mandão, como a gente tem no mundo tantos exemplos, o que seria da presença dos meus filhos em casa? E o que seria da presença dos estudantes que trabalham comigo, na universidade? Essas presenças teriam desaparecido e, em lugar delas, eu teria sombras pequeninhas de mim! Ora, essa seria uma educação deprimente, uma educação diminuidora da pessoa humana.

Pelo contrário, o educador que trabalha em favor da pessoa é exatamente o educador que fica porque some, entende? Talvez precise explicar um pouco melhor ao ouvinte, em casa, porque isso é uma coisa meio doida dizer: como é que esse cara pode ficar se ele sumiu? O que quero dizer com "sumiu" não é sumir fisicamente, ir embora, fechar a porta, desaparecer. Eu como pai, nunca desertei de minha casa. Mas, acontece que só pude permanecer na minha casa, porque fui capaz de aprender a transformar a minha presença, não numa presença diminuidora da presença de meus filhos. E é a isso que estou chamando de sumir para poder ficar.

Ao contrário, o pai que insiste em ficar é o pai que termina desaparecendo. Ele insiste tanto em ficar, ele sublinha, ele exacerba tanto sua presença que ela termina sendo rejeitada, afetiva e moralmente, pelo filho ou pelo educando. Eu não sei se te esclareceu. É claro, que essa temática é muito bonita, não é? Eu acho que tu percebes, imediatamente, porque tu (neste mínimo de tempo que tenho conversado contigo), me parece, que és uma mulher com sensibilidade poética. E, portanto, és capaz de perceber, e perceber o que significa "sair pra ficar". Porque o poeta é uma presença que não se impõe. A presença do poeta é uma presença que acalenta, que desafia e que desvela, mas que não molesta e que não se superpõe à presença de quem ama a poesia. Acho que tu és muito isto. Então, podes entender o discurso de uma pedagogia de liberdade.

Marta – É. Pelo menos, amo e muito! Mas, Paulo, durante esta semana, no seu encontro com a comunidade Juazeirense, você enfocou, de maneira muito forte, o tema "autoritarismo". E o fez, diga-se de passagem, de maneira luminosa. Por que esse tema? Qual a razão de sua escolha? O que é que é isso?

Paulo - Acho que essa também é uma excelente pergunta. Por que esse tema? Por que, em lugar disso, não falei da minha própria experiência geral da educação? Por que é que não falei sobre "métodos e processos na educação?" Por que é que falei sobre isso, sobre educação e autoritarismo? Educação e liberdade? Foi de propósito, Marta, porque não há coisa gratuita, entende? A educação, como dizia ontem, também não é uma prática neutra do "deixa como está para ver como é que fica". Falei sobre o autoritarismo porque, como brasileiro, a mim me dói, profundamente, que a gente pouco faça para dar um mínimo de contribuição no processo histórico brasileiro que independe da minha vida e da tua, enquanto indivíduos. Porque a vida do País, e a alma dele, são maiores do que a nossa vida e a nossa alma. Porque a nossa vida e a nossa alma se constituem na vida do País inteiro, da nossa comunidade brasileira. Acho que a gente faz pouco, contribui pouco para o processo de real participação democrática do povo brasileiro, na sua história. É preciso que a gente viva mesmo a democracia. Que a gente acredite nela.

Mas, no Brasil (coisa incrível!), a gente vê, (não quero nem fazer citações pessoais; não por medo, mas por uma questão até de método de trabalho). Mas, repara, Marta, como essa falta da sensibilidade democrática que é, portanto, autoritária, ocorre entre nós, diariamente. Veja como certos homens públicos, de responsabilidade nacional histórica indiscutível, que no seu discurso revelam uma tal insensibilidade pela liberdade do povo, pelo direito que o povo tem de manifestar-se e de escolher - tal discurso revela uma certa malquerença com a liberdade. Uma certa indisposição como se a liberdade fosse um inseto daninho, que faz mal ao cara, mas o cara fala em nome dela, entende? Isso é que é um negócio tremendo.

Veja: tenho ouvido tanto e lido tanto, declarações antes do meu exílio, durante meu exílio, depois da minha volta, homens de responsabilidades enormes, neste País, “fazer beicinho”, com raiva de um resultado de eleição. E declarar que o povo não pode eleger seus prefeitos porque vota mal, porque vota errado! Mas, que autoridade tenho pra dizer que o povo esta votando errado, sô?! Quando o povo do Rio de Janeiro elegeu o líder Juruna, houve gente de muita responsabilidade no Brasil, que disse também que o povo votou mal, não soube votar, que isso é um desperdício. Mas que direito tenho de dizer que votar no Juruna é um desperdício? Que votar no Timóteo é um desperdício?

Essa afirmação, em primeiro lugar, me parece profundamente elitista, afirmação de gente da elite, realmente. E a elite tem uma raiva danada da massa popular, tem um ódio! Uma coisa que me dá susto é a raiva que a elite tem da massa popular brasileira. E porque é elitista, essa inteligência do fato é profundamente autoritária. Então, ontem, minha preocupação quando coloquei, quando me perguntei sobre o que falar, em Juazeiro, achei que devia falar sobre autoritarismo. E sem fazer referências pessoais a ninguém, como você viu, ontem eu não fiz, a não ser me referir genericamente, em tese, ao professor, ao pai, ao político, ao bispo, ao sacerdote. Mas, não a este professor, a este pai, a este sacerdote, a este bispo, a tal político. Como brasileiro, não é só um direito que tenho, mas é um dever que tenho.

É evidente que por isso mesmo, como não sou autoritário, não faço um discurso autoritário contra o autoritarismo. Porque há também isso. Há quem faça discursos autoritários contra o autoritarismo. Acho, Marta, que um dos temas, no Brasil, tão importante quanto outros temas, é esse do autoritarismo. Acho que tanto quanto a gente possa, deve dizer algo sempre sobre isso, sem raivas, sem ódios, nada disso. Meu problema não é estar aqui zangado com a ou b, é tentar uma análise objetiva de um fenômeno do qual nós todos fazemos parte. Como brasileiro, também tive meus momentos autoritários na minha adolescência, na minha juventude. Eu precisei aprender disso tudo, tive, no fundo, que fazer uma opção que confirmei numa prática. E é por isso que, como professor, ainda que eu seja, que eu fosse desafiado pelos estudantes para virar autoritário, não aceitaria o desafio.

Marta – Certo. Paulo, retomando o 1º. e o 2º. degrau de nossa escalada aqui, ou continuando, apóseste 2º. que trata do autoritarismo, quero lhe fazer uma pergunta. Uma pergunta assim bem tipo detalhe, uma indagação: aqui pelo Nordeste, pelo nosso Nordeste, no meu e no seu Nordeste, existem aqui e acolá, algumas escolas que costumam adotar o sistema, o método de, p. ex., tirar pontos de uma aluna, numa nota obtida em prova, em trabalho de pesquisa, por conta do comportamento, da disciplina. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isto. O que é que você acha e porque acha assim?

Paulo - Marta, acho um absurdo isso. E vou dizer por acho. Vamos discutir, em termos muito concreto, o exemplo concreto que você colocou muito concretamente. Mas, minha resposta quero que seja concreta também, como tua pergunta. Vamos admitir que eu trabalhasse com um grupo de 20 estudantes e, um dia lá, os estudantes devem, por uma questão do próprio processo acadêmico (estou me referindo ao caso universitário, mas é a mesma coisa), e que eles devem me apresentar um tema. Um texto que eu sugeri, que escrevessem e me trouxeram. Vamos admitir que, no dia mesmo em que os estudantes me entregaram o texto, um deles, no próprio seminário, foi grosseiro com o seu colega e até mesmo comigo. Não houve isso, é um caso hipotético. Aí, levo os textos dos estudantes pra casa, sei quem são, conheço o trabalho de todo mundo porque tem seus nomes... E, lá pelas tantas, me deparo com o texto do moço que foi grosseirão com o seu companheiro, que foi pouco cortês comigo também e que apresenta um trabalho excelente. E aí, digo a mim mesmo: bem vou dar 6 a este rapaz. Ele merecia 10, mas vou dar 6 porque ele foi grosseiro, hoje. Ora, que direito eu teria de fazer isso?

O moço escreveu um texto ao qual eu devo dar uma nota; devo julgar o trabalho do moço e não a conduta que ele teve. Esse negócio de julgar a conduta que ele teve lá e atribuir uma nota, diminuir a nota do trabalho científico que realizou, é um absurdo! Não tem o que ver uma coisa com a outra, isso é um ato autoritário, arbitrário. O que pode haver é o seguinte: o que eu posso fazer, se houver inclusive necessidade para isso, é repreender o moço, é chamar a atenção do moço, certo? Agora, diminuir a nota que o trabalho dele merece porque ele foi grosseiro com o colega, não, não! Se acho absurdo isto no nível da universidade, isso é absurdo no nível da escola primária, também.

Marta: Certo, deu pra entender. Paulo Freire, exílio! Uma palavra bela, pelo menos do pondo de vista poético. Parece-me que sua vivência é grandiosa! Pelo menos, na literatura, a gente percebe que é grande a riqueza daqueles que a tiveram; em termos de obras, de poemas, de pinturas, de música... O Prêmio Nobel do ano passado que o diga. Fale-nos um pouco sobre isto. Qual a riqueza maior que você traz do exílio?

Paulo - Olhe, eu não seria capaz, Marta, de dizer qual a riqueza maior, mas seria capaz de falar alguma dessas riquezas, de te falar, uma dessas riquezas que o exílio me proporcionou. Sem que eu seja masoquista, sem que eu goste de sofrer, foi a riqueza de aprender a conviver com minha saudade, não deixar que a saudade virasse nostalgia. Porque guando a saudade vira nostalgia, tu te infernas. O que aconteceu comigo é que cuidei da minha saudade; tratei bem dela. Como tratei bem da minha saudade, tratei bem da minha saudade, tratando bem das minhas marcas. Das marcas da minha cultura que meu povo me deu.

Tratei bem da minha saudade porque aprendi, fora e longe do Brasil, diariamente,a tero Brasil como uma pré-ocupação e um cuidado enorme. A convivência com a saudade que virou uma saudade mansa: bem comportada, educada; uma saudade que não choramingava, uma saudade que dormia direito. Então, essa coisa é uma das riquezas que o exílio me ensinou.

A outra coisa que o exílio também me ensinou, e dela eu falei um pouco ontem, noutra perspectiva, foi a de cultivar uma paciência impaciente. Eu tinha profunda paciência por estar longe do Brasil, mas, ao mesmo tempo, minha paciência me envolvia e me amaciava a saudade; a impaciência por voltar alimentava também a saudade. Não sei se está claro isto. De um lado, a paciência me ajudava a ter uma saudade mansa do Brasil. Do outro, a impaciência da volta me ajudava a saudade de continuar a existir e, portanto, a que eu não me esquecesse de mim mesmo, isto é, do Brasil. Esse foi um outro imenso ensinamento de riqueza que a gente cultivou no exílio.

Outra riqueza que o exílio também nos deu a nós, a mim, a minha mulher, a meus filhos, foi a de que a cultura não se trata com juízos de valor. Em outras palavras: aprendemos, no exílio, que não há nenhuma forma de ser, de povo nenhum, que seja superior ou inferior a outra. Nós, os brasileiros, somos tão formidáveis e tão deficientes quanto os suíços são eficientes, competentes e maus também. Quer dizer: não há uma forma de cultura que seja melhor que a outra. E toda vez que uma cultura de um grupo social de um país se pretenda superior a outra, ela tende a uma postura autoritária e totalitária. Isto nós aprendemos também. Aprendemos, no Chile, a viver diferentemente do Brasil e não superior ou inferiormente. Aprendemos nos Estados Unidos, quando fui professor de universidades e morei lá, com meus filhos. Aprendemos a compreender as formas de ser dos Estados Unidos com relação a nós. Não são nem melhor nem pior que nós. Aprendemos na Europa, vivendo na Suíça, em Genebra, uma cidade linda que parece um cartão postal. Aprendemos a compreender o suíço na sua frieza, na sua distância, mas isso não significa, de jeito nenhum, que pelo fato de ser frio afetivamente distante, que não é gente. Aprendemos na África, aprendemos na Ásia, no mundo, afinal.

A andarilhagem a que o exílio me levou, me ensinou profundamente a ser de novo. No fundo, eu nunca deixei de ser. E a própria saudade do Brasil que aprendi a amaciar, jamais me fez triste. Eu e minha família jamais fomos infelizes no exilio. E até quando nós não admitíamos a hipótese de poder voltar porque, durante muito tempo do exílio, nunca mantivemos ou nunca tivemos a ilusão da volta. Nós pensávamos que os filhos voltariam, mas nós não. Então, quando deu pra voltar, foi uma maravilha, entende? Você não imagina, Marta, quando, no dia em que deu pra voltar eu não pude ficar mais, de jeito nenhum, na Europa: Então....

Marta - ... a paciência ficou impaciente demais...

Paulo - Ficou demais, você disse muito bem. Nesse momento, a impaciência ganhou, realmente, da paciência... Eu peguei o avião e vim embora com a Elza. Ficou um filho, ficou uma filha, uma filha que se casou. Ficou um filho que, se estivesse aqui, poderia até dar um presente a ti, ao povo que nos escuta, porque ele é um grande violonista clássico. É professor hoje, na Suíça, com 26 anos - rapaz excelente! Ele teve que ficar lá; ele não tem ainda condição de voltar para o Brasil, como professor de violão clássico, como concertista. Mas ele vem todo ano ao Brasil. Ele diz “Papai, eu não aguento”! Então, a brasilidade em nós, jamais se acabou. No fundo, Marta, minha recificidade explica a minha pernambucanidade; assim como minha pernambucanidade explica a minha brasilidade, a minha brasilidade explica a minha latinoamericanidade e a minha latinoamericanidade me faz um homem do mundo. Isso o exílio me ensinou. E tu não imaginas como o exílio me trouxe, de novo, ao Recife, às raízes do Recife: Capibaribe, Capiberibe... Aquela coisa linda do Manuel Bandeira que vinhas recitando tão excelentemente, gostosamente, no carro.

Marta - Paulo, acho que o Brasil tem que estar louvando mil vezes, milhões, bilhões a Deus por tua volta. Mas, conversando, de novo, com relação a Juazeiro, lhe pergunto: você voltou, seu método refloresceu, refloresce – Aleluia! - a diocese de Juazeiro está ensejando um trabalho seu com 20 monitores, na perspectiva de uma educação libertadora... você acredita nisso aqui?

Paulo - Acredito, Marta. Onde quer que haja gente, onde quer que haja mulher e homem, acredito que se possa fazer alguma coisa. Para mim o importante é fazer. Eu não posso é deixar para amanhã o que devo fazer hoje. E é porisso que, às vezes, me canso; porque, em geral, atendo aos chamados. Não porque me ache “bonzinho”! Tenho horror a esta palavra. Não sou bonzinho, de jeito nenhum. Mas, é porque acho que tenho um compromisso, como nós todos temos. Afinal, existir é comprometer-se. O que a gente não pode, Marta, e sobre isso vou conversar bem, amanhã possivelmente, com D. Jose – o que a gente não pode é pensar, ou melhor, é animar ou embalar-nos em sonhos muito idealistas, que saiam do real.

É claro, que nossa vinda agora, é muito mais uma vinda exploratória de trabalho. Temos passado esses dias todos e tenho achado uma coisa fantástica, pra mim, pra Elza, como oportunidade de crescimento. Como oportunidade de reconhecer o conhecido. Tem sido uma beleza! Passamos de 9 da manhã ao meio dia, de 2 às 6, discutindo, debatendo, analisando, problema por problema. E os problemas são sempre postos a nós por eles, problemas da prática deles. O cara diz: "Olhe, Paulo, trabalho tal... certa vez, em certo momento... aí, tenho tal problema... Como confrontar esse problema? Então, tento compreender, teoricamente, o problema concreto que vem da prática. E, ao fazer isto, a gente vai,de certa forma, capacitando e recapacitando os quadros que estão ai. Isso não significa, porém, que amanhã, que depois de amanhã, segunda-feira-que-vem, a equipe que esta aí possa realizar um esforço de capacitação de outros quadros a um nível que satisfaça à própria equipe. Mas, Marta, “só se aprende fazendo”. Então, o que vou dizer ao D. José e a eles, quando me despedir, é que não tenham medo de começar a fazer. E no caso deles, aliás, o que já- fazem. Acho que há trabalhos aí fantásticos, independentemente de mim. Há trabalhos ai excelentes que revelam, inclusive, uma dadivosidade enorme por parte da equipe de jovens com quem estou trabalhando.

Marta - Paulo Freire, a gente até se esquece que é jornalista e ficaria o dia inteiro ouvindo você. Mas, tempo em rádio é muito importante e vou lhe fazer, agora, uma última pergunta. Entre os seus livros, extraordinários, há um que chama a atenção - "Pedagogia do 0primido". Por que essa ênfase assim tão forte no oprimido, no que diz respeitoà pedagogia?

Paulo - Pelo seguinte, Marta: porque nesse livro que escrevi em 1968...Bem, é bom, na resposta a ti, agora, contar um pouquinho da história desse livro. Depois, não tenho dúvida nenhuma, que terás que pegar esse papo todo que eu estou tendo. Serás obrigada a fazer uma montagem porque talvez não disponhas de tempo, da própria rádio, de meter esse papo tão grande que estou tendo aqui contigo. E não fico triste, de jeito nenhum. Só pediria que guardasses esse papo porque acho que, no fundo, fico contente de saber que estou vivo, que estarei vivo em Juazeiro, mesmo depois de morto, com essa VOZ que fica aqui.

Mas, bem... um pouco, rapidamente, a história desse livro. Escrevi esse livro, a partir de minha prática, a partir da minha experiência, no Brasil; escrevi já no exilio, no Chile, em 1968. Escrevi esse livro em 15 dias, os três primeiros capítulos do livro escrevi, em 15 dias. De noite trabalhava, até 3 horas da manhã e depois ia dormir; a Elza levantava e lia. Lia o que eu tinha escrito e, às vezes, me acordava e dizia rindo: “Paulo, depois desse livro, o novo exílio talvez seja na lua”. Eu ria muito com as advertências dela. Por isso que,na dedicatória, digo que ela é minha primeira ouvinte - primeira ouvinte! Estou falando no rádio – ela é a minha primeira leitora.

Escrevi esse livro, e uma das intenções ao escrever esse livro era mostrar que os oprimidos precisam de uma pedagogia sua, que não estou propondo que seja esta que escrevi, entende? Escrevi sobre isso. Eu dizia que essa pedagogia tem que ser forjada por ele, oprimido, e não pelo opressor, independentemente da boa vontade individual do opressor, independe disso! O opressor não pode fazer a pedagogia do oprimido, como o oprimido não pode fazer a pedagogia do opressor. Pedagogia do opressor quem faz é o opressor mesmo. Como a pedagogia do oprimido tem que ser feita por ele. E tem que ser feita, elaborada, reelaborada, na prática da sua libertação. Você me diria: mas, Paulo, e qual é o papel teu, o papel meu, o papel de outro que, não sendo opressor, também não é oprimido?

Aí, eu diria: no ato de forjar esta pedagogia, essa pedagogia é forjada pelo oprimido e por aqueles e aquelas que aderem a ele. Por isso, é que falo, na própria "Pedagogia do Oprimido", usando uma linguagem que também reflete minha marca cristã, que para você, que não sendo participante originariamente da classe ou do grupo social oprimido... para que você participe dele, adira a ele, em certo sentido, você tem que fazer a verdadeira Páscoa. Quer dizer, você tem que fazer a Passagem, você tem que fazer a Travessia. Essa Travessia implica em que tu tenhas que morrer um pouco, pra renascer diferentemente. Essa coisa, na verdade, é baitamente difícil, entende? Eu não vim pr'aqui, feito os fariseus, bater com a mão no peito edizer: "eu sou o pedagogo dos oprimidos”, de jeito nenhum. Humildemente digo: sou um, entre outros educadores, que se afligem com a situação dos oprimidos. E que tento fazer um mínimo de cumprimento de uma tarefa, certo?

Marta: Deixe uma mensagem para os educadores de Juazeiro e Petrolina.

Paulo - Muito bem. Comecei esse papo com Marta que me agradou muito. Sem querer te deixar numa felicidade falsa porque é coisa que não gosto, quero te dizer que “poxa”! Afinal de contas, na medida mesmo que esse livro “Pedagogia do Oprimido", está traduzido em 17 línguas, no mundo todo, significa que há uma quantidade grande da humanidade que me lê. Ás vezes, fico pensando, viu Marta, que esse troço não me deixa besta, dejeito nenhum, pelo contrário, aumenta é o sentido da minha responsabilidade.

Quer dizer, na medida em que esse livro está em 17 idiomas, esses 17 idiomas cobrem o mundo. Acontece que faz 10 anos ou 13 que esse livro se reproduz em 17 línguas. Então, no mínimo, são 800 mil, um milhão, um milhão e quinhentos mil pessoas andam lendo isso. E quando ando e peregrino, por esses pedaços de mundo, tenho sido muito entrevistado. Ora pra jornal, ora para rádio e ora para televisão, constantemente. Sem falar nas entrevistas de Universidades que guardam, nos seus arquivos 3 horas de papos comigopra arquivo, pra estudo, tudo. Mas, uma coisa que quero te dizer é que nesse papo contigo foi um dos mais gostosos que eu tive. Assim que me deixa, que me deixou em paz; foi assim uma espécie de repouso para mim.

Comecei agradecendo, sinceramente, ao fato de você me trazer e, através da rádio, falar com um sem-número de gente que não conheço e que possivelmentenão vou ver, mas que me ouve. Termino agradecendo, pessoalmente, o próprio papo que me ofereceste; o próprio momento dessa conversa que tu me ofereceste. E, ao fazer esse agradecimento,montado nesse agradecimento, diria a meus colegas e minhas colegas professoras e professores dessa áreaque a emissora cobre - professoras primárias, professoras leigas, professoras que não passaram pela escola normal... não importa. Minhas colegas e meus colegas educadores, deixo aqui a todos um grande abraço. Mas, um abraço não formal, um abraço de Esperança. De Esperança em que, apesar de tudo, e quando nada seja favorável, sequer a ter Esperança, que a gente e, portanto, eles também continuem a ter.