26 de fevereiro de 2013

Alguns ingênuos chamam isto de democracia.




Drones: dossiê sobre uma guerra suja

Como EUA executam, sem julgamento, supostos “inimigos”. Por que civis são alvo. De onde partem ataques. Que precedentes o programa abre
Por Cora Currier, ProPublica
É possível que você já tenha ouvido falar das “kill lists” – listas de nomes de pessoas a serem assassinadas. Certamente você já ouviu falar dos drones. Mas os detalhes da campanha que os EUA movem contra militantes no Paquistão, no Iêmen e na Somália – peça chave da abordagem que o governo Obama optou por dar à segurança nacional – permanecem envoltos em segredo. Aqui oferecemos um guia do que já sabemos e do que ainda não sabemos.
Onde se trava a guerra ‘dos drones’? Quem faz essa guerra?
Os aviões-robôs comandados à distância, os drones, são a arma escolhida pelo governo Obama para matar militantes fora do Iraque e do Afeganistão. Os drones não são a única arma – também há notícias de ataques aéreos tradicionais e outros. Mas segundo uma das estimativas disponíveis, em mais de 95% dos assassinatos premeditados executados depois de 11/9/2001, os alvos foram mortos por drones. Uma das vantagens dos drones é que os soldados norte-americanos fogem da linha de fogo.
O primeiro ataque noticiado contra a Al-Qaeda aconteceu no Iêmen em 2002. A CIA aumentou muito o número de ataques secretos com drones no Paquistão, durante o governo George W. Bush em 2008. E sob o governo Obama o uso foi drasticamente ampliado também no Paquistão e no Iêmen, em 2011.
Mas a CIA não é a única agência a atacar com drones. O exército também já admitiu “ação direta” no Iêmen e na Somália. Os ataques nesses países são executados sempre secretamente por grupos do Comando Conjunto de Operações Especiais [orig. Joint Special Operations Command, JSOC]. A partir do 11/9, esse JSOC foi aumentado. É hoje dez vezes maior, e assumiu funções de espionagem, além das funções de combate. (Por exemplo, uma das equipes do JSOC atuou na operação que assassinou Osama Bin Laden.)
A guerra de drones é lutada por controle remoto, a partir de bases instaladas em território dos EUA e numa rede de bases secretas espalhadas por todo o mundo. O Washington Post conseguiu obter alguma informação sobre isso, examinando contratos de construção nos quais havia itens não explicados. Por exemplo, na construção da base dos EUA, numa minúscula nação africana, o Djibuti, de onde partem muitos dos ataques contra Iêmen e Somália. Antes disso, no mesmo ano, a revista Wired mapeou os atos de guerra dos EUA contra o grupo militante al-Shabaab da Somália, e a crescente presença militar dos EUA em toda a África.
O número de ataques no Paquistão caiu em anos recentes, de um máximo de 100 em 2010, para cerca de 46, ano passado. Mas o número de ataques contra o Iêmen cresceu, chegando a mais de 40 ano passado. E só nos primeiros dez dias de 2013, já houve sete ataques no Paquistão.
O jargão da guerra dos drones
AUMF [Authorization for Use of Military Force / Autorização para Uso de Força Militar] é lei do Congresso dos EUA, aprovada poucos dias depois dos ataques de 11/9, que dá ao presidente autoridade para “usar toda a força necessária e apropriada” contra qualquer pessoa ou grupo envolvido naqueles ataques ou que tenha dado abrigo a alguém neles envolvido. Ambos, Bush e Obama exigiram para si amplos poderes para deter e matar suspeitos de terrorismos, baseados nessa AUMF.
AQAP [Al-Qaeda in the Arabian Peninsula / Al-Qaeda na Península Arábica] é o grupo afiliado à al-Qaeda que tem base no Iêmen, responsabilizado pelo atentado a bomba contra um avião no Dia de Natal de 2009. Ao longo do ano passado, os EUA aumentaram o número de ataques com drones contra a AQAP, nos quais foram assassinados líderes do grupo e outras pessoas que não foram identificadas como militantes.
DISPOSITION MATRIX [Matriz de alvos a serem dispostos (mortos)] É um sistema para rastrear suspeitos de práticas de atos de terrorismo e para classificá-los, com registro de onde possam ser assassinados (ou capturados). O jornal Washington Post noticiou nesse outono [nórdico] que o sistema “Disposition Matrix” é uma tentativa de codificar, em listas nas quais os alvos são dispostos conforme sua importância relativa, para serem assassinados. Essas listas são as chamadas “kill lists” [listas para matar] dos esquadrões oficiais da morte dos EUA.
GLOMAR A expressão designa a resposta a um tipo de pedido de informação sobre programa secreto, cuja existência não possa ser nem confirmada nem negada. A palavra foi usada pela primeira vez em 1968, quando a CIA disse a jornalistas que não podia “nem confirmar nem negar” a existência [de um navio chamado] “Glomar Explorer”. Hoje, a CIA tem respondido a quem procure informação sobre seu programa de drones com “respostas GLOMAR”.
JSOC [Joint Special Operations Command / Comando Conjunto de Operações Especiais] é segmento militar altamente secreto. É o grupo que executou o assassinato de Bin Laden e, hoje conduz o programa dos drones militares no Iêmen e na Somália. Trabalham tb na coleta de inteligência.
PERSONALITY STRIKE [Ataque ‘personalidade’] Designa o ataque a um indivíduo identificado como líder terrorista.
SIGNATURE STRIKE [Ataque ‘assinatura’] Designa o ataque contra algum suspeito de ter atividade política militante, mesmo que sua identidade seja desconhecida. Esses ataques baseiam-se na análise de um “padrão de vida” – informação que a inteligência reúna sobre comportamentos que façam pensar que um indivíduo seja militante político. Esse tipo de ataque, que Bush inaugurou no Paquistão, já é autorizado hoje também no Iêmen.
TADS [Terror Attack Disruption Strikes / (aprox.) Ataques para interromper ação terrorista], expressão usada às vezes em referência a ataques nos quais não se conhece a identidade do alvo a ser assassinado. Funcionários do governo Obama têm dito que os critérios para os TADS são diferentes dos critérios para os Ataques ‘assinatura’, mas nem uns nem outros foram jamais claramente explicados.
Como se definem as vítimas a serem assassinadas?
Vários artigos (1, 2 e 3) baseados, na maior parte, em comentários feitos por funcionários não identificados permitem conhecer, pelo menos, um quadro parcial de como os EUA selecionam seus alvos para assassinatos políticos predefinidos. Dois relatórios recentemente publicados – de pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade Columbia e do Conselho de Relações Exteriores –  também oferecem considerações detalhadas sobre o que se sabe de todo esse processo.
Sabe-se que a CIA e os militares mantiveram, por muito tempo, ‘listas de matar’ que se sobrepunham. Segundo relatos de noticiários da primavera passada, as listas dos militares atropelou as demais nas reuniões comandadas pelo Pentágono, cabendo à Casa Branca a decisão final. Missões particularmente ‘sensíveis’ têm de ser autorizadas pessoalmente pelo presidente Obama.
Esse ano, o processo mudou, ao que se sabe, para concentrar a análise dos indivíduos-alvos e os critérios gerais para os assassinatos premeditados, na Casa Branca. Segundo o Washington Post, as análises são feitas agora em reuniões regulares entre as várias agências, no Centro Nacional para Contraterrorismo. Enviam-se recomendações para um seminário permanente de oficiais do Conselho de Segurança Nacional. E as decisões finais são levadas pelo Conselheiro para Contraterrorismo da Casa Branca, John Brennan, diretamente ao presidente. Vários estudos têm mostrado o importante e controverso papel de Brennan na modelagem de toda a trajetória do programa de assassinatos premeditados. Essa semana, Obama nomeou Brennan para dirigir a CIA.
Pelo menos alguns ataques da CIA não tem de esperar pelo sinal verde da Casa Branca. O diretor da CIA tem autonomia, ao que se sabe, para autorizar assassinatos premeditados no Paquistão. Numa entrevista em 2011, John Rizzo, ex-advogado chefe da CIA, disse que os advogados da agência analisavam detalhadamente cada ‘alvo’.
Segundo o Washington Post, o recente esforço do governo Obama para impor limites mais bem definidos às listas para matar e aos “assassinatos assinatura” não inclui a campanha da CIA no Paquistão. A CIA ganhou mais, no mínimo, um ano, para prosseguir na campanha de assassinatos premeditados no Paquistão segundo, exclusivamente, os próprios protocolos.
Os EUA assassinam pessoas cujos nomes nem sabem?!
Sim. Por mais que funcionários do governo apresentem os ataques de drones como limitados a “líderes de alto nível da al-Qaeda que planejem ataques” contra os EUA, muitas vezes o que se vê são ataques contra ‘possíveis’ militantes cujas identidades os EUA absolutamente não conhecem. Os chamados “Ataques ‘assinatura’” começaram com Bush, no início de 2008; com Obama foram muito expandidos. Não se sabe exatamente quantos dos ataques são “ataques ‘assinatura’”.
Em mais de uma ocasião, os “ataques ‘assinaturas’” perpetrados pela CIA, sobretudo no Paquistão, causaram tensões com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Um funcionário contou ao New York Times sobre piada que circularia, segundo a qual, para a CIA, “três sujeitos fazendo polichinelos” são campo de treinamento de terroristas.
No Iêmen e na Somália, discute-se se os militantes que os EUA tomam por alvos estão de fato tramando contra os EUA ou se, diferente disso, estariam tramando contra o próprio país deles. Micah Zenko, membro do Conselho de Relações Exteriores que muito criticou o programa dos drones, disse em entrevista à rede ProPublica que os EUA, de fato, estão mantendo uma “força aérea contraguerrilhas” para servir aos países aliados. Não raras vezes, os ataques foram organizados a partir de inteligência local que, adiante, se comprovou errada ou insuficiente. O Los Angeles Times examinou recentemente o caso do iemenita que foi assassinado por um drone norte-americano e a complexa rede de laços e contatos políticos que cercou o caso.
Quantos já foram mortos em ataques de drones?
Ninguém conhece o número exato, mas há estimativas que falam de cerca de 3 mil mortos.
Vários grupos rastreiam os ataques de drones e estimam o número de vítimas:
– O Long War Journal cobre o Paquistão e o Iêmen.
– O New America Foundation cobre o Paquistão.
– O London Bureau of Investigative Journalism cobre Iêmen, Somália, e Paquistão, e oferece estatísticas sobre ataques com drones também no Afeganistão.
Quantos dos mortos eram civis?
Impossível saber. Os números variam muito, para mais e para menos. A New America Foundation, por exemplo, estima que entre 261 e 305 civis foram mortos no Paquistão; o Bureau of Investigative Journalism fala de 475 a 891 mortos. Todas essas estimativas são sempre superiores ao número de mortos que o governo divulga. (Há discrepâncias até entre os que oferecem as menores estimativas.)  Algumas análises mostram que o número de civis mortos diminuiu em anos recentes. (…) E o Washington Post noticiou mês passado que o governo do Iêmen frequentemente oculta ou tenta ocultar o papel dosdrones dos EUA em eventos nos quais morram civis.)
Os números são imprecisos também porque os EUA com frequência contabilizam qualquer homem em idade de prestar serviço militar, que morra em ataque de drones, como “militante terrorista”. Um funcionário do governo Obama disse à nossa rede ProPublica que “Se um grupo de homens em idade de combater está em local onde sabemos que estão construindo explosivos ou planejando ataques, assumimos que todos os ali reunidos participam do mesmo esforço.” Não se tem notícia de resultados de investigação, nem se há qualquer investigação, depois de consumado o ataque.
A Faculdade de Direito da Universidade Columbia elaborou análise em profundidade de tudo que se sabe sobre esforços dos EUA para mitigar e calcular o número de baixas entre civis. Concluiu que o caráter clandestino da guerra dos drones dificulta, quando não impede completamente as práticas de prestação pública de contas que se adotam nas ações militares tradicionais. Outro estudo de Stanford e da New York University, comprovou “ansiedade e trauma psicológico” entre habitantes de vilas paquistanesas.
Esse outono, a ONU anunciou uma investigação sobre o impacto nas populações civis – especialmente sobre acusações de “ataques duplos“ [orig. double-tap], casos em que ocorre um segundo ataque, que toma por alvos os que venham à cena do primeiro ataque para socorrer feridos.
Por que matar primeiro? Por que não se cogita de capturar suspeitos?
Funcionários do governo Obama têm dito em declarações que os militantes são tomados como alvos de execução quando representem ameaça iminente ao EUA e a captura não seja exequível. Mas a execuções em ataques de drones são muito mais frequentes que eventos de prisão de suspeitos; e os relatórios dos ataques pouco ou nada esclarecem sobre “ameaça iminente” ou “exequibilidade” de prisões. Casos que envolvam captura secreta de prisioneiros, em conflitos em área remotas, durante o governo Obama mostram as dificuldades políticas e diplomáticas que se criam para que se decida como e onde um suspeito possa ser detido ou preso.
Esse outono, o Washington Post descreveu algo denominado “disposition matrix [Matriz de alvos a serem dispostos (mortos)] – processo que oferece planos de contingência para o que fazer com terroristas, conforme o local onde estejam. The Atlantic mapeou o modo como se tomam decisões, no caso de o ‘suspeito’ ser cidadão norte-americano, baseado em alguns exemplos conhecidos. Mas, evidentemente, os detalhes dessa “matriz de alvos a serem mortos [dispostos]”, bem como as “listas de matar” a que dão origem, não são conhecidos.
Qual o fundamento que dá amparo legal a esses esquadrões da morte oficiais?
Funcionários do governo Obama têm feito várias declarações e discursos nos quais muito falam da fundamentação legal em que se baseariam os assassinatos predefinidos, mas jamais citam qualquer caso específico. De fato, ninguém reconhece oficialmente a existência da guerra de drones. Os programas de drones para assassinatos premeditados pode incluir indivíduos associados à al-Qaeda ou “forças associadas”, também fora do Afeganistão e, até, cidadãos norte-americanos.
“O devido processo legal, disse o Procurador Geral dos EUA Eric Holder, em discurso em março passado, “toma em consideração as realidades do combate”. Em que consiste esse “devido processo legal”, não se sabe. E, como já noticiamos, o governo dos EUA frequentemente se fecha  para comentários de qualquer tipo e para questões específicas – como o número de civis mortos ou os motivos específicos pelos quais um ou outro indivíduo tenha sido considerado ‘alvo preferencial’ para assassinato premeditado, ou por que a captura foi considerada ‘não exequível’ (como se vê em memorando do Departamento de Justiça, não secreto, ao qual teve acesso a rede NBC). (…)
Quando terminará a guerra dos drones?
O governo dos EUA, dizem alguns noticiários, já teria considerado a desescalada da guerra dos drones, mas, segundo outras fontes, estaria trabalhando para formalizar o programa de assassinatos premeditados, que seria convertido em programa de longa duração. Os EUA avaliam que a Al-Qaeda na Península Arábica conte hoje com “uns poucos milhares” de membros; mas há oficiais que também dizem que os EUA “não podem capturar ou assassinar todos os terroristas que se declarem ‘ligados’ à al-Qaeda.”
Jeh Johnson, que acaba de deixar o posto de conselheiro geral do Pentágono, fez uma palestra, mês passado, sob o título de “The Conflict Against Al Qaeda and its Affiliates: How Will It End?” [O conflito contra a al-Qaeda e seus afiliados: como acabará?]. Mas não marcou data.
John Brennan disse que a CIA deve voltar a concentrar-se no trabalho de coletar inteligência. Mas o papel principal de Brennan no comando da guerra dos drones a partir da Casa Branca já levantou o debate sobre o quanto sua indicação para dirigir a CIA servirá para ocultar ainda mais o envolvimento da agência, se vier a ser confirmado no posto.
E quanto a volta do chicote dos drones – e o antiamericanismo –, em todo o mundo?
Disso, sim, há muito, em todo o mundo. Os drones são cada vez mais profundamente impopulares nos países onde são empregados, e continuam a provocar protestos frequentes. Apesar disso, Brennan disse em agosto passado que os EUA veem “poucos sinais de que a ação dos drones esteja gerando sentimentos antiamericanos, ou facilitando o recrutamento de terroristas”.
O general Stanley McChrystal, que comandou os militares no Afeganistão, contrariou recentemente essa ideia: “O ressentimento criado por os EUA usarmos os veículos não tripulados como arma de ataque (…) é muito maior do que supõem os americanos médios. Osdrones são visceralmente odiados, até por gente que jamais viu um drone ou conheceu os efeitos da ação de um deles.” O New York Times noticiou recentemente que militantes paquistaneses haviam deflagrado campanha brutal contra locais acusados de espionagem a favor dos EUA.
Quanto a governos estrangeiros, a maioria dos principais aliados dos EUA mantêm silêncio sepulcral sobre os drones. Relatório da ONU, de 2010, já levantara preocupações sobre o precedente que se criava, de guerra clandestina, sem leis e sem qualquer limite. O presidente do Iêmen, Abdu Hadi, apoia a campanha dos drones norte-americanos; e o governo do Paquistão mantém uma inconfortável combinação de protestos para efeito público com aceitação oficial muda.
http://www.outraspalavras.net/2013/02/19/drones-dossie-sobre-uma-guerra-suja/

19 de fevereiro de 2013

Eletricidade: um negócio rentável no Brasil.



Entrevista especial com Dorival Gonçalves Júnior

“Durante a campanha eleitoral, o PT assumiu o compromisso de promover mudanças com vistas a assegurar a ‘atratividade’ dos investimentos em toda a cadeia, no caso da indústria de eletricidade, sem abrir mão dos fundamentos executados pelo governo do PSDB”, lamenta o engenheiro.

Confira a entrevista.

"As hidrelétricas no Brasil tornaram-se fábricas de produção de eletricidade, de risco de realização da receita nulo e elevada lucratividade”. É a partir dessa crítica que o engenheiro Dorival Gonçalves Júnior (foto) aponta as medidas políticas dos últimos anos, que têm transformado o setor elétrico brasileiro em uma fonte rentável para investidores nacionais e internacionais, e “a eletricidade em mercadoria internacional”. “Vender eletricidade produzida em base hidráulica, ao preço da produção térmica, transformou esta cadeia produtiva em fonte de elevada lucratividade e de intensa disputa de muitos setores capitalistas”, diz à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. E esclarece: “Desde 2004, com a lei 10.848, os novos empreendimentos hidrelétricos são licitados pelo Estado Brasileiro em leilões. Ganham o direito de construir e explorar economicamente o recurso hidráulico o consórcio de empreendedores que se dispõe a construir e vender no mínimo 70% da energia produzida, ao menor preço em reais por cada 1.000 KWh (R$/MWh) para as empresas distribuidoras.  Estas últimas são as empresas que vendem eletricidade para a quase totalidade da população brasileira (consumidores residenciais, comerciais, médias e pequenas indústrias, correspondem por volta de 75% do consumo nacional)”.

Para ele, a aprovação da lei 12.783, consequência da MP 579, “é a continuidade de uma política que busca dar competitividade aos capitalistas que optarem por instalar seus negócios no Brasil”. Gonçalves Júnior também questiona a redução de 18% da conta de luz, porque não atende à proposta das classes trabalhadoras. Para ele, o anúncio de diminuição das tarifas tem “um forte apelo ideológico para as massas trabalhadoras de que o governo está trabalhando pelas causas populares ao diminuir o custo da tarifa das residências dos trabalhadores e na manutenção/criação de empregos. Por outro lado, todos os capitalistas sabem que a diminuição das tarifas para os trabalhadores – se ocorrer – significa a diminuição do custo de reprodução da força de trabalho, logo está se criando mais um espaço para a expansão do lucro”.

Dorival Gonçalves Júnior é Engenheiro Eletricista, especialista em Sistemas de Potência, pela Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT, e em Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs, pela Unifei-MG, mestre e doutor em Engenharia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente leciona na UFMT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como avalia a Lei 12.783, oriunda da MP 579, sobre a renovação das concessões do setor elétrico?

Dorival Gonçalves Júnior - Antes de lhe responder preciso deixar claro que a minha avaliação é feita segundo a perspectiva da classe trabalhadora. Assim, a MP 579, agora Lei 12.783, é uma iniciativa do governo para tentar superar uma das contradições engendradas no interior da recente reforma industrial que aconteceu na cadeia produtiva de eletricidade. Estou falando dos elevados preços da eletricidade que atinge diretamente a classe trabalhadora, parcelas significativas da burguesia industrial e comercial brasileira. O processo de mudança patrimonial e política iniciado em meados de 1990, com a finalidade de resgatar o controle da exploração do trabalho através do processo de privatização e, consequentemente, o aumento da exploração dos trabalhadores através da demissão e intensificação do trabalho, concomitante à institucionalização da eletricidade como mercadoria com o seu preço internacionalizado, entre outras medidas tomadas, não tinham assegurado até o início dos anos 2000 a “atratividade” para os investimentos na geração. Isto acabou colaborando para o racionamento entre junho de 2001 e fevereiro de 2002. O governo do PSDB, que capitaneava este processo, apesar de ter estabelecido uma série de encaminhamentos, que mesmo sob o racionamento, garantiu a continuidade dos lucros, acabou perdendo credibilidade. Este evento associado a outros, permitiram ao PT credenciar-se para substituir o governo do PSDB.

Compra de eletricidade

Durante a campanha eleitoral, o PT assumiu o compromisso de promover mudanças com vistas a assegurar a “atratividade” dos investimentos em toda a cadeia, no caso da indústria de eletricidade, sem abrir mão dos fundamentos executados pelo governo do PSDB. Isto é, manter a indústria de eletricidade organizada pelos “sinais de preços”. O PT eleito, após mais de um ano em discussão com todos os setores da burguesia industrial, comercial, e financeira interessada na cadeia produtiva de eletricidade, institucionalizou, em março de 2004, as leis 10.847 (criação da EPE) e 10.848 (comercialização da energia elétrica). Estas leis consolidaram um conjunto de medidas que solidificaram a elevada lucratividade da indústria em toda a cadeia e, além disso, reduziram os riscos dos investidores na geração, ao ancorar os novos empreendimentos com contratos de longo prazo, na conta de eletricidade dos consumidores do “mercado regulado”. A partir de então, a venda da eletricidade é feita em dois ambientes. O primeiro é o ambiente de contratação regulada, onde a eletricidade tem a tarifa definida pela ANEEL através de uma metodologia que assegura o preço internacional para a eletricidade. É neste ambiente que os consumidores residenciais, comerciais, e médias/pequenas indústrias compram por volta de 70% da eletricidade vendida no país. O outro, é o ambiente livre, onde grandes consumidores compram sua energia diretamente dos geradores, e dependendo da maneira que estão ligados no sistema de transporte de eletricidade do país, pagam “pedágio” pela transmissão e/ou “pedágio” pela distribuição. Esta foi a forma que arquitetaram para garantir aos setores capitalistas uma forma de poder comprar sua eletricidade abaixo do preço internacional, especialmente, pela possibilidade de poder tirar partido da produção no período de chuvas.

Assim, neste quadro institucional, a segurança econômica dos projetos estava garantida para todos os agentes industriais, comerciais e financeiros participantes da cadeia. Fato que pode ser evidenciado no crescimento das instalações de produção. Entre 2004 e 2012 a potencia instalada no país saltou de 90 GW para 120 GW. Acrescenta-se ainda, as estes 120 GW, a existência 26,6 GW em construção. Em termos da expansão da indústria, destaca-se que os números da geração repercutem diretamente sobre a transmissão e a distribuição. Os inúmeros negócios na geração, na transmissão e na distribuição concomitante à venda da mercadoria eletricidade ao preço internacional, garantem a todos os participantes da cadeia, uma lucratividade inigualável no ramo, mundialmente.

Mas, a partir da crise econômica instaurada em 2009, começa a surgir do lado da demanda, um movimento dos consumidores industriais e comerciais que compram eletricidade no mercado regulado questionando os preços praticados no país. Estes, com o objetivo de resgatar a competitividade em seus negócios, articulados nas federações de comércio e indústria, passam a questionar os reajustes anuais e as revisões tarifárias concedidas pela ANEEL às empresas distribuidoras. No ano de 2011, estes setores ganham apoio dos consumidores eletrointensivos, tais como os setores de: alumínio, papel celulose, petroquímico e siderúrgico. Grupos como a Alcoa, a Gerdau, entre outros, em audiências com o executivo, passaram a ameaçar o fechamento de plantas de produção no Brasil. A permanência do quadro de crise econômica, associado ao peso da eletricidade, na bolsa dos trabalhadores, nos custos das atividades industriais, comerciais e serviços, em síntese, a densidade política destes interesses, obrigou o governo a encaminhar politicamente estas reivindicações.

Modelo mercantil

Contudo, como em 2004, o problema para o governo era como exercer uma ação política de controle - neste caso no preço - e simultaneamente afirmar que mantinha o modelo mercantil como forma de organizar a cadeia de eletricidade. No contexto do debate sobre a redução das tarifas, havia consenso entre todos os setores capitalista nas questões relacionadas à redução dos impostos e dos encargos setoriais. Todos os setores capitalistas e os trabalhadores organizados (MAB, sindicatos de eletricitários etc) tinham clareza do vencimento de concessões de empreendimentos – maioria de propriedade de empresas estatais – na geração e transmissão, já amortizados. Sobre esta questão, os setores capitalistas interessados na redução das tarifas advogavam a privatização através de licitação e com suas tarifas reduzidas por se tratar de empreendimentos amortizados. Já os setores capitalistas da indústria de eletricidade (geração, transmissão, distribuição), a questão não estava em renovar ou licitar as concessões. Para estes, a definição pelo estado dos preços da eletricidade dos empreendimentos amortizados, sinaliza uma intervenção direta na definição dos preços em toda cadeia produtiva da eletricidade.

Neste tema, os trabalhadores defendiam a renovação das concessões dos empreendimentos sob o comando das estatais e propunham que a venda da eletricidade dos empreendimentos amortizados, fosse destinada exclusivamente aos consumidores residenciais, como forma de reduzir acentuadamente as tarifas para este segmento de consumo. Além disso, os trabalhadores tinham pauta específica, em relação às condições de trabalho nas estatais. Então qual foi a saída arquitetada? Para compreender o encaminhamento dado, compete analisar o modus operandi do PT. O governo do PT tem, entre suas estratégias de poder, uma atuação política no Estado, no sentido de encaminhar medidas institucionais e econômicas com o objetivo de criar as condições para que interesses capitalistas nacionais/internacionais, tais como, os das cadeias produtivas ligadas: à mineração, energia, agronegócio, entre outras, sejam atraídas para instalar suas plantas de bens de produção, bens de consumo e bens de serviços no território nacional. Neste sentido, tirando partido da natureza privilegiada brasileira, que na ótica capitalista, esta natureza - combinada a tecnologias e à força de trabalho eficiente - é base de elevada produtividade do trabalho. Portanto, esta atuação política objetiva demonstrar às forças capitalistas que, ao realizarem os seus investimentos aqui, terão acesso a lucros superiores aos que obteriam em qualquer lugar do mundo. Esta política do governo do PT - de atração e expansão capitalista no Brasil - pode ser constatada:

1. Na busca incessante de reorganizar o Estado em novas bases institucionais onde o planejamento (criação das: Empresa de Planejamento Energético e Empresa de Planejamento e Logística) a regulamentação/fiscalização (fortalecimento das agências reguladoras: ANEEL; ANP; ANA etc) do Estado se realiza com princípios de mercado;

2. Na criação de políticas de controle do custo do crédito (redução de juros) e financiamento da produção e consumo ancoradas nos bancos estatais (Caixa; BB e BNDES);

3. No emprego das estatais como empresas que alavancam o desenvolvimento de cadeias produtivas (caso do papel da Petrobras para o desenvolvimento de polos petroquímicos, do agronegócio na produção de etanol e biodiesel e da ELETROBRAS nos consórcios de construção das grandes hidrelétricas e linhas de transmissão, são alguns exemplos deste apoio.) assegurando às empresas capitalistas os estágios de negócios mais lucrativos na cadeia de produção; e

4. Na expansão da oferta, através do Estado e da iniciativa privada, de uma rede de cursos de formação e especialização da força de trabalho (aumento massivo do número de vagas para a classe trabalhadora em escolas técnicas, universidades públicas e privadas) com vistas a aumentar a produtividade do trabalho dos trabalhadores brasileiros.

Projeto político do PT

Assim, o governo do PT, orientado por seu projeto político, supõe que, por um lado, atende a maioria dos segmentos capitalistas (nacional e internacional) que, atraídos por este cenário de oportunidades aos lucros extraordinários, veem no PT o partido político da ordem e defendem sua permanência no poder e, por outro lado, também tem apoio dos trabalhadores, pois mantido as políticas de aperfeiçoamento da produtividade da força de trabalho concomitante ao ambiente de crescimento econômico, independente das taxas de exploração do trabalho, grandes contingentes de trabalhadores são incorporados em processos produtivos. Isto aparenta aos trabalhadores a existência de melhores condições de trabalho, quando cotejadas as que existiam no passado recente.

Competitividade

Então, recuperando a entrevista da Dilma no final de 2012, para o governo, este ano é “o ano da competitividade ...”. Portanto, a MP 579 (lei 12.783) é a continuidade de uma política que busca dar competitividade aos capitalistas que optarem por instalar seus negócios no Brasil. Esta norma atende a expressivos setores capitalistas. Isto pode ser verificado nas medidas políticas contidas na MP. A extinção da Reserva Global de Reversão - RGR e a redução da Cota de Consumo de Combustíveis - CCC Cota de Consumo de Combustíveis e da Cota de Desenvolvimento Energético - CDE atende sem distinção a todos os setores capitalistas, sejam os da cadeia produtiva de eletricidade, sejam os que têm a eletricidade como um insumo em seus negócios. A renovação das concessões dos empreendimentos amortizados permite a diminuição das tarifas que varia entre 16% (para os consumidores residenciais) e 28% (consumidores industriais) no ambiente de contratação regulada.

Assim, apesar de não atender a parcela organizada dos trabalhadores (MAB e sindicatos de eletricitários, entre outros), tem no anúncio de diminuição das tarifas um forte apelo ideológico para as massas trabalhadoras de que o governo está trabalhando pelas causas populares ao diminuir o custo da tarifa das residências dos trabalhadores e na manutenção/criação de empregos. Por outro lado, todos os capitalistas sabem que a diminuição das tarifas para os trabalhadores – se ocorrer – significa a diminuição do custo de reprodução da força de trabalho, logo está se criando mais um espaço para a expansão do lucro.

Interesses capitalistas

Embora, o governo tenha feito um enorme esforço para não desagradar aos interesses capitalistas da cadeia produtiva de eletricidade, bancando os custos econômicos decorrentes da diminuição das tarifas nas empresas estatais, isto não impediu o descontentamento do setor que viu nesta MP, uma ação intervencionista de Estado e limitadora do mercado.

Este cenário oportunizou ao PSDB, que vem de sucessivas derrotas políticas, a tentar se credenciar de novo como o partido político que melhor representa os interesses capitalistas. Por isso tomou a decisão política de não aceitar a renovação das concessões dos empreendimentos das empresas estatais (CEMIG, COPEL e CESP) nos estados (Minas Gerais, Paraná, São Paulo) em que este partido detém o poder. Então, a MP 579 (lei 12.783) expressa o resultado momentâneo desta disputa política e econômica intercapitalista. A forma como a mídia tem “criado” um estado de elevado risco de operação e desabastecimento da eletricidade no país é prova de que a disputa continua. E esta reação contrária à lei 12.783 tende a aumentar à medida que for se aproximando o período de renovação das concessões dos empreendimentos amortizados, que estão sob controle das empresas privadas. No capitalismo, não existe empresa que reduz o preço de suas mercadorias porque os seus meios de produção já estão amortizados. Pois, o trabalho dos trabalhadores em instalações, máquinas e equipamentos amortizados são fontes de lucros extraordinários que os capitalistas não abrem mão.

IHU On-Line - Qual a implicação de construir hidrelétricas nos rios do Pantanal?

Dorival Gonçalves Júnior - Para falar em hidrelétricas no Pantanal, antecede caracterizá-lo em termos de suas principais peculiaridades físicas e bióticas. Limitando-se ao Pantanal no território brasileiro, o Pantanal mato-grossense localiza-se nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, numa extensa planície banhada pela bacia do Alto Paraguai. Nas bordas da planície se estende uma estreita região de Planalto, divisora de águas das principais bacias brasileiras. No noroeste e norte de Mato Grosso, próximo ao divisor de águas do Pantanal com a bacia Amazônica, região que nasce o rio Paraguai, destacam-se os rios: Jauru, Cabaçal e Sepotuba. Na região norte, nordeste e leste de Mato Grosso, próximo ao divisor de águas do Pantanal com a bacia Amazônica e bacia do Tocantins está situada a bacia do rio Cuiabá, principal afluente do rio Paraguai na bacia do Pantanal. O rio Cuiabá se destaca pela dimensão de sua bacia de drenagem bem como pelos seus afluentes, como: o rio Manso; o São Lourenço e o rio Correntes. Outro rio afluente do rio Paraguai que se destaca é o rio Taquari, com sua bacia localizada no leste de Mato Grosso do Sul.

Na região do Pantanal, a pluviometria média anual está em torno de 1.250 milímetros. O modo como ocorre o período seco e de chuvas acaba determinando o regime das águas na região que marcam as estações do Pantanal. Por isso, os habitantes nativos costumam dividir as estações no Pantanal em: “enchente” de outubro a setembro; a “cheia” de janeiro a março; a “vazante” de abril a maio; e a “seca” de junho a setembro. Os rios na região de planície são dotados de muitos meandros e canais que interligamos rios e as lagoas, constituindo grandes áreas de inundação nos períodos de cheias. É esta característica particular, como diz a pesquisadora da Embrapa Débora Calheiros, o “pulso das águas do Pantanal”, durante o período de cheias que faz os rios atingirem cotas suficientes para alimentar lagoas e as extensas áreas de alagamento, as quais determinam habitat especial responsável por uma rica e particular fauna e flora no pantanal mato-grossense.

Impactos das hidrelétricas

Com estas considerações iniciais sobre o Pantanal é possível avaliar os impactos da construção de hidrelétricas nos rios do Pantanal. As hidrelétricas construídas estão localizadas na região de planalto da bacia de drenagem do Pantanal. A quase totalidade dos empreendimentos são usinas hidrelétricas a fio d’água e apenas uma delas é de reservatório de acumulação. Cabe destacar que as hidrelétricas a fio d’água são aquelas que a vazão afluente é igual à vazão de fluente. Isto é, a água que chega a montante das instalações da hidrelétrica, independente do volume, é lançada à jusante da instalação. Daí decorre o argumento de que este tipo de empreendimento causa baixo impacto, pois, segundo os que assim argumentam, este tipo de instalação não altera o regime hidrológico do rio.

Esta argumentação, em geral se mostra falsa na realidade, especialmente, quando se trata das hidrelétricas construídas na bacia de drenagem do Pantanal. Um exemplo típico é o caso do rio Jauru, em Mato Grosso, afluente do rio Paraguai. Neste rio foram construídos seis empreendimentos sucessivos em uma extensão aproximadamente de 60 Km. De modo que, considerando as hidrelétricas instaladas da nascente para a foz, a água a jusante da primeira hidrelétrica está praticamente na cota da barragem da segunda hidrelétrica e assim sucessivamente até a sexta hidrelétrica. Constituindo uma cascata de seis barramentos sucessivos, que mesmo sendo todos empreendimentos a fio d’água,estes, proporcionaram um grande impacto direto ambiental e social no rio Jauru. Cerca de 60 km do curso do rio Jauru que eram - sem a construção das hidrelétricas -, dotados de pequenas cachoeiras combinadas às corredeiras foram transformados num conjunto de seis reservatórios sucessivos. Limitando a análise sobre o que ocorreu no curso original do rio Jauru, verifica-se que, por um lado, pôs fim a declividade natural do rio na extensão em que foram construídas as hidrelétricas atingindo diretamente as espécies de peixes migratórias e, por outro lado, os reservatórios individualmente - apesar de terem reduzida capacidade de armazenamento - por estarem dispostos de maneira sucessiva, possibilita ao conjunto de hidrelétricas uma capacidade de armazenamento na cascata que determina um novo regime hidrológico a jusante do complexo. O que mostra a fragilidade do argumento de que as hidrelétricas a fio d’água não alteram a vazão natural dos rios.

Efeitos

A dimensão dos impactos sociais e ambientais pode ser contatada na extinção do pescado e o desaparecimento da atividade dos pescadores do município de Porto Esperidião, em Mato Grosso, proporcionada pelas hidrelétricas construídas nestes últimos dez anos no rio Jauru. Situação muito semelhante a do rio Jauru -hidrelétricas construídas sucessivamente - já está parcialmente materializada nos rios: Juba - afluente do Sepotuba -; São Lourenço e afluentes; Correntes e afluentes; e o rio Itiquira, todos pertencentes à bacia do Pantanal. Mas, a condição de maior impacto ambiental e social, produzido diretamente por um empreendimento hidrelétrico localizado no Pantanal, é o caso da hidrelétrica Manso. Esta Hidrelétrica está localizada na foz do rio Casca com o rio Manso a cerca de 80 km da foz do Manso no rio Cuiabá. A hidrelétrica Manso é de reservatório de acumulação, cuja área de inundação se estende por mais de 43.000 hectares, seu reservatório tem uma capacidade de acumulação de volume útil de aproximadamente três bilhões de metros cúbicos. Os impactos diretos determinados por esta hidrelétrica são muitos.

Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, por volta de 1000 famílias foram diretamente impactadas pelo empreendimento. Outro grande impacto verificado pela construção de Manso está no novo regime hidrológico imposto ao longo do curso do rio Cuiabá, principalmente, no trecho compreendido entre a foz do rio Manso no rio Cuiabá até a foz do rio São Lourenço no Cuiabá. Pois, como o rio Manso é o maior contribuinte nesta extensão – extensão do rio Cuiabá contida na região denominada baixada Cuiabana – com a construção da hidrelétrica a vazão do rio Manso, e por sua vez a do rio Cuiabá, ficou praticamente regularizada. Explicando a regularização. Com a construção da hidrelétrica o rio Manso não apresenta mais o seu regime natural, pois no período de “cheia” a maior parte da água afluente a barragem fica armazenada no reservatório para ser utilizada no período de seca. O rio Manso, a jusante do local onde está a hidrelétrica, tinha vazões de mais de 1.200 metros cúbicos por segundo, hoje as vazões neste período não ultrapassam 350 metros cúbicos por segundo, e, no período de seca, as vazões chegavam a menos de 20 metros cúbicos por segundo estando agora – após a construção da hidrelétrica - em torno de 150 metros cúbicos por segundo.

Assim, com a regularização, o rio Manso que a jusante da barragem tinha durante o período de cheias vazões máximas superiores a 1.200 metros cúbicos por segundo e que durante a seca tinha vazões mínimas menores que 20 metros cúbicos por segundo passou, com a construção da hidrelétrica de Manso, a ter uma vazão que oscila entre o valor máximo e mínimo respectivamente de 350 e 150 metros cúbicos por segundo. Aqui, está a razão do grande impacto ambiental e social produzido pela hidrelétrica de Manso na região da baixada cuiabana. A construção da hidrelétrica alterou profundamente o regime hidrológico do rio Manso e do rio Cuiabá, especialmente, no trecho entre a localização da foz do rio Manso no rio Cuiabá e na foz do rio São Lourenço no rio Cuiabá. Ou seja, neste extenso curso do rio Cuiabá desapareceu o “pulso das águas”, com gravíssimas consequências, principalmente, para as áreas de planícies. Pois, o rio Cuiabá sofre significativa influência da regularização do rio Manso proporcionado pela Hidrelétrica Manso, de modo que, as águas em seu leito já não atingem as cotas capazes de através dos canais que ligam o rio às lagoas alimentá-las nos períodos de cheias. Assim, nesta área – baixada Cuiabana – as estações: “enchente”, “cheias”, “vazante” e “seca” foram intensamente modificadas. Para registrar é suficiente constatar o fim da atividade pesqueira em inúmeras comunidades ribeirinhas que se estendiam desde a cidade de Nobres até a cidade de Barão de Melgaço em Mato Grosso. As secas registradas nas Lagoas Siá Mariana e Chacororé, após a construção da hidrelétrica de Manso, são o testemunho inequívoco dos impactos ambientais produzidos no meio físico, biótico e social na região.

IHU On-Line - De acordo com os pesquisadores que estudam o Pantanal, as hidrelétricas e PCHs instaladas ao longo do bioma utilizam 70% do potencial hidrelétrico da Bacia do Alto Paraguai. O que esse valor significa e representa considerando a peculiaridade do bioma?

Dorival Gonçalves Júnior - Atualmente, a potência instalada pelo conjunto das 37 hidrelétricas (Usinas Hidrelétricas - UHE’s - são as instalações com potência instalada acima de 30 MW – e as PCH’s– são as denominadas Pequenas Centrais Hidrelétricas cujas instalações tem potência instalada compreendida entre 1 MW e 30 MW –) existentes na bacia do Pantanal está em torno de 1.140 MW,  que corresponde exatamente à potencia instalada na UHE de Machadinho, localizada no rio Pelotas na divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Este valor equivale – hoje – acerca de 1,2% da potência instalada em PCH’s e UHE’s no Brasil. Mas, cabe destacar, que o parâmetro geralmente utilizado - potência instalada em usina hidrelétrica - não é uma noção que mostra a produtividade da hidrelétrica. Este indicador diz respeito apenas à quantidade que a instalação poderá produzir. O parâmetro que indica a produtividade de uma usina é a sua energia firme. De maneira simplificada, energia firme - de uma usina de produção de eletricidade - equivale à quantidade de potência elétrica média que a usina assegura durante o período de um ano.

Para exemplificar considere duas situações concretas. A primeira, a usina hidrelétrica de Manso, localizada no rio Manso na bacia do pantanal mato-grossense, que tem 210 MW de potência instalada e sua energia firme é de 92 MWmédios. A segunda, a usina hidrelétrica Serra do Facão, localizada no rio são Marcos – em Goiás – afluente do rio Paranaíba, com potência instalada de 210 MW, mas a sua energia firme é de 182 MWmédios. O que se procura mostrar aqui? Procura-se evidenciar que para compreender se uma usina hidrelétrica é produtiva é necessário saber a sua energia firme e não a sua potência instalada, como em geral, as propagandas para a viabilização de empreendimentos hidrelétricos fazem. Assim, pelo exemplo, as hidrelétricas de Manso e Serra do Facão, apesar de terem a mesma potência instalada – 210 MW –, Serra do Facão produz duas vezes mais eletricidade, em média por ano, do que a hidrelétrica de Manso. Então, utilizando a noção de energia firme verificamos a baixa produtividade média das hidrelétricas instaladas na bacia do pantanal, uma vez que, a produção na bacia não ultrapassa a 600 MWmédios. Este valor corresponde apenas a cerca de 1,1% da produção nacional, quando referenciado na produção hidrelétrica no Sistema Interligado Nacional em 2011.

Contudo, a irrelevância da produção das hidrelétricas do Pantanal não está materializada apenas no reduzido percentual de sua contribuição ao sistema interligado nacional, mas sim, no período que a sua produção é considerada significativa. As hidrelétricas localizadas na bacia do Pantanal operam todas interligadas ao Sistema Elétrico Nacional, e o período em que elas conseguem produzir maisé no período de maior pluviosidade na região Sudeste. E este período é exatamente quando existe excedente de eletricidade no sistema, pois as hidrelétricas do Sudeste, especialmente as da bacia do Paraná, estão “vertendo energia”. Para esclarecer, energia vertida é a operação – na hidrelétrica – no período em que a vazão afluente possibilitaria a produção da potência instalada. Mas como as cargas (residenciais, industriais, comerciais etc) não demandam esta capacidade de energia que a usina pode produzir e como o seu reservatório não tem capacidade de armazenamento para reservá-la para o período de baixa afluência, os operadores da hidrelétrica se veem obrigados a descartar parte da vazão afluente através dos vertedouros e não a direcionando aos grupos turbo-geradores, que produzem eletricidade. Esta operação – vazão lançada aos vertedouros - é denominada na usina hidrelétrica de energia vertida.

Para ter a dimensão do quanto de energia é vertida nas hidrelétricas localizadas no Sudeste brasileiro, basta utilizar apenas os dados da hidrelétrica de Itaipu. Nesta, a média anual de energia vertida nos últimos seis anos (2006 a 2011), é maior que toda a energia que pode ser gerada pelo potencial hidráulico (construídas e levantadas) da bacia do pantanal. Assim, se nos referenciarmos: nas características de baixa produtividade das hidrelétricas do Pantanal; na insignificante contribuição que as hidrelétricas do Pantanal podem dar ao sistema interligado nacional; e, principalmente, nos impactos que estes empreendimentos estão provocando na bacia do Pantanal, não existem argumentos para dar continuidade à implantação de empreendimentos hidrelétricos no pantanal mato-grossense.

IHU On-Line - Quais são os interesses econômicos e políticos que tentam viabilizar a construção de novas hidrelétricas e PCHs no Pantanal?

Dorival Gonçalves Júnior - Para responder esta pergunta, exige recuperar alguns aspectos marcantes, relacionados ao processo de reforma na indústria de eletricidade brasileira. A crise de reprodução do capital na indústria de infraestrutura estatal nos anos 1980/90 – aqui, falo especialmente da indústria de eletricidade brasileira – resultante das políticas de utilização das empresas estatais pelas forças econômicas acabaram esgotando o modelo de estatal de produção de eletricidade. Isto impôs aos setores capitalistas ligados à cadeia de produção da eletricidade uma atuação política no sentido reorganizá-la em novas bases, com vistas a recuperar a acumulação de capital.

Neste sentido, controlar diretamente todo o processo produtivo com vistas a resgatar a lucratividade, requeria a transferência do patrimônio estatal para o controle direto do capital. Por isso, o encaminhamento do processo de privatização das empresas elétricas e a organização das empresas estatais em bases de gestão privada. Outra medida política fundamental neste contexto foi a transformação da eletricidade em mercadoria internacional. Isto é, a eletricidade no Brasil, por ser predominantemente produzida a partir de recursos hidráulicos, tinha no período estatal – em acordo com os mais diversos interesses capitalistas – os seus preços vinculados aos custos da cadeia produtiva hidráulica. Isto fazia da tarifa de eletricidade brasileira, na época da produção sob a gestão do Estado, uma das mais baratas mundialmente. Então, outra medida central para resolver a crise de reprodução do capital era à institucionalização da mercadoria eletricidade ao preço de mercado, isto é, ao preço internacional. E, em 1994, o governo da época institucionalizou o preço da eletricidade brasileira, vinculando-a ao custo da cadeia produtiva térmica. Isto elevou as tarifas de eletricidade no Brasil ao dobro do que se pagava no período estatal. Vale lembrar que isto foi feito no exato momento em que se implantava no país um plano econômico – Plano Real – que reduziu praticamente à zero a inflação, fato que, permitiu obscurecer a manobra de exploração realizada.

Venda de energia

Vender eletricidade produzida em base hidráulica, ao preço da produção térmica, transformou esta cadeia produtiva em fonte de elevada lucratividade e de intensa disputa de muitos setores capitalistas. Desde então, os segmentos capitalistas ligados à indústria de eletricidade, organizados segundo os seus interesses específicos e gerais, atuam em várias frentes, sobretudo, no interior do estado brasileiro, procurando institucionalizar e regulamentar uma cadeia industrial para a eletricidade, aglutinada em negócios de baixo risco e fonte de lucros inigualáveis neste ramo da produção no mundo.

Na atualidade, são quatro os segmentos de negócio: geração, transmissão, distribuição e comercialização. Desde 2004, com a lei 10.848, os novos empreendimentos hidrelétricos são licitados pelo Estado Brasileiro em leilões. Ganham o direito de construir e explorar economicamente o recurso hidráulico o consórcio de empreendedores que se dispõe a construir e vender no mínimo 70% da energia produzida, ao menor preço em reais por cada 1.000 KWh (R$/MWh) para as empresas distribuidoras.  Estas últimas são as empresas que vendem eletricidade para a quase totalidade da população brasileira (consumidores residenciais, comerciais, médias e pequenas indústrias, correspondem por volta de 75% do consumo nacional). Aqui, é importante destacar que, quem ganha o leilão, conquista o direito de explorar economicamente o recurso hidráulico licitado por trinta e cinco anos. Em geral, cinco anos para construir o empreendimento e trinta para explorar economicamente sem riscos, pois, no leilão o grupo empreendedor conquista um contrato de venda de pelo menos 70% de sua produção para as empresas distribuidoras por trinta anos. Por isso, as hidrelétricas no Brasil tornaram-se fábricas de produção de eletricidade, de risco de realização da receita nulo e elevada lucratividade. Risco de realização de receita nulo, porque o grupo que ganha o leilão, já tem assegurado antes de construí-la, a venda de sua produção durante 30 anos com os contratos assinados e endossados pelo estado brasileiro com as empresas distribuidoras, que são obrigadas a comprar a sua energia nestes leilões. Elevada lucratividade, pois de um modo geral, estes empreendimentos tem sido conquistados, referenciados no custo de produção térmica.

Hidrelétricas no Pantanal

No caso das hidrelétricas construídas na bacia do Pantanal, estas têm contratos de venda a preços que se constituem um verdadeiro assalto ao bolso dos trabalhadores brasileiros. Pois, a maioria dos empreendimentos foi construída tirando partido de formas contratuais carregadas de benesses proporcionadas pelo Estado, a exemplo do PROINFA. Este programa instituído em 2004, no bojo do clima do pós-racionamento 2001-02, em nome de aumentar a produção de eletricidade através de fontes alternativas (pequenas centrais hidrelétricas, biomassa e eólica) o Ministério de Minas Energia elaborou um programa definindo o valor econômico de cada fonte de eletricidade e incumbiu a ELETROBRAS de celebrar contratos de compra de eletricidade por 20 anos, com os candidatos à produção, com preços por MWhanálogos ao custo das térmicas. Oito PCH’s construídas na bacia do pantanal durante os anos 2000 têm contratos com o PROINFA. Este é caso das PCH’s José Gelasio (26,6 MW) e Rondonópolis (23,7 MW), localizadas no município de Rondonópolis, em Mato Grosso, no ribeirão Ponte de Pedra, pertencente à bacia do rio São Lourenço. São empreendimentos que somam receita anual em torno 30 milhões de reais (para comprovar esta informação basta recorrer ao site da ANEEL no seguinte endereço eletrônico: http://www.aneel.gov.br/cedoc/areh20121385_2.pdf). Como os investimentos realizados não ultrapassaram a 100 milhões nos dois empreendimentos, estas PCH’s - com contratos de 20 anos de venda de sua produção – tiveram os investimentos recuperados em pouco mais de três anos com a receita assegurada pelo PROINFA. Aqui, cabe a pergunta: Quem paga esta conta? Cabe destacar que os custos do PROINFA são rateados entre todas as classes de consumidores do Sistema Interligado Nacional e, evidentemente, quem paga é a classe trabalhadora, pois só com muita luta esta consegue transferir os custos de sua reprodução para a sua mercadoria - força de trabalho.

Até meados de 2010, todos os locais com potenciais para instalação de PCH’s foram muito disputados como negócios de lucros garantidos. Atualmente, com a crise capitalista acentuada a partir de 2008, a indústria eólica mundial, com a suspensão de muitos contratos de venda de seus equipamentos, passou a disputar todos os mercados. O Brasil, considerada a organização institucional da indústria de eletricidade com a garantia do retorno ao capital investido, atraiu, em curto espaço de tempo, um grande número de montadoras de equipamentos eólicos. Estas, ao final de 2012, totalizavam no território nacional oito montadoras com uma capacidade de produção anual em torno de 3,9 GW. Estas empresas, associadas a outros grupos de interesse, passaram a participar dos leilões de novos empreendimentos, colocando os seus preços bem abaixo das Pequenas centrais hidrelétricas e das térmicas de biomassa. No último leilão de compra de eletricidade, ao final de 2012, as eólicas venderem eletricidade a menos de R$ 89,00/MWh, fato que, inviabilizou 22 projetos de PCH’s e 10 projetos de térmicas a biomassa que participaram do leilão. Assim, momentaneamente, a concorrência intercapitalista está detendo a expansão de empreendimentos hidrelétricos na bacia do Pantanal.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/eletricidade-um-negocio-rentavel-no-brasil-entrevista-especial-com-dorival-goncalves-junior/517180-eletricidade-um-negocio-rentavel-no-brasil-entrevista-especial-com-dorival-goncalves-junior

15 de fevereiro de 2013

Jesus politicamente incorreto.




Artigo de Gianfranco Ravasi

Consideramos Cristo apenas como "manso e humilde de coração" e, portanto, doce, terno, calmo, e a considerar o "evangelho" apenas como uma "boa notícia". Isso é verdade, mas o amor não suprime a justiça, a bondade deve se conjugar com a verdade, a delicadeza não é sinônimo de ingenuidade, a suavidade não pode beirar o despreparo, e o bem não é ingenuidade.
A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando atracam com o barco em Cafarnaum, na margem norte do lago de Tiberíades, os peregrinos logo vislumbram as colunas e as paredes que ficaram de pé da antiga sinagoga do século IV, sinal da importância dessa cidadezinha de trânsito para a Síria, agora porém reduzida apenas a um campo arqueológico administrado pelos franciscanos.
Nessa área sinagogal, em um edifício pré-existente agora desaparecido, Cristo proferiu um discurso longo e desconcertante sobre a sua carne como alimento e sobre o seu sangue como bebida.
Se pensarmos que, naquela cultura, era proibido até mesmo tocar em um corpo dilacerado e sanguinolento, porque o sangue, sinal da vida intangível, contaminava aqueles que o manipulavam, conseguimos compreender a reação de muitos discípulos de Jesus registrada pelo evangelista João: "Este discurso é sklerós", ou seja, "duro", inaceitável (6, 60).
O próprio Cristo é consciente disso e responde: "Isso escandaliza vocês?", e em grego skándalon é a pedra de tropeço que faz com que uma pessoa que avança por um caminho acidentado tropece e caia. Não é por nada que, dirigido aos 12, os apóstolos por ele escolhidos, ele havia interpelado com uma pergunta clara e radical: "Vocês também querem ir embora?" (6, 67).
Diante dos muitos outros discípulos que voltaram atrás e não andavam mais com Jesus, seria o apóstolo Pedro que reagiria: "A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (6, 68). Essa promessa tão clara, no entanto, estava destinada não raramente a se ofuscar diante de outras palavras e comportamentos "duros" do Mestre.
Quisemos evocar essa cena evangélica para apresentar um livro que um monge da Comunidade de Bose, do Piemonte, Ludwig Monti (Le parole dure di Gesù [As palavras duras de Jesus], Ed. Qiqajon, Bose, Biella, 172 páginas), dedicou justamente às "palavras duras de Jesus", um livro que na capa tem o impressionante rosto de Cristo in opus sectile da Domus de Porta Marina em Ostia (século IV), de olhos aterradores e arrepiantes.
Eu mesmo, há muito tempo, consagrei uma coluna semanal da revista Famiglia Cristiana, a um contagem sistemática não só de "palavras duras" de Jesus, mas também de todas as passagens do Evangelho que são verdadeiras "pedras de tropeço" (skándalon) do leitor. Este, de fato, é propenso a considerar Cristo apenas como "manso e humilde de coração" e, portanto, doce, terno, calmo, e a considerar o "evangelho" apenas como uma "boa notícia".
Isso é verdade, mas o amor não suprime a justiça, a bondade deve se conjugar com a verdade, a delicadeza não é sinônimo de ingenuidade, a suavidade não pode beirar o despreparo, e o bem não é ingenuidade.
O biblista de Bose coleta 34 passagens evangélicas articulando-as segundo os destinatários (ao menos de acordo com a redação dos evangelistas), isto é, os 12 ou os discípulos, as pessoas religiosas da época (pensamos nos escribas e nos fariseus), a multidão judaica e outros, para acabar com uma frase dirigida a Deus e aparentemente problemática: "Eu peço por eles, não peço pelo mundo" (João 17, 9).
O que cria dificuldades interpretativas ou embaraço, na realidade, são muitas outras palavras de Jesus, e talvez é por isso que Monti acrescenta, no fim, uma bibliografia "para ir além...". Certamente, muitos leitores dos Evangelhos não raramente se confrontam com frases chocantes (hard sayings, as definia, em um artigo de 1983, o estudioso norte-americano Frederick F. Bruce), como por exemplo, este convite impressionante dirigido por Jesus a um aspirante a discípulo que recém havia perdido o pai e devia participar do funeral: "Siga-me, e deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos" (Mateus 8, 22).
Ou ainda, de modo igualmente provocativo e "escandaloso": "Se alguém vem a mim, e não odeia o seu pai, a sua mãe, a mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs, e até mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo" (Lucas 14, 26). Na realidade, aqui, o desconcerto (Jesus que impõe o ódio, depois de ter sempre exaltado o amor e a não violência!) é mais de índole linguística, sendo as línguas semíticas – como o aramaico subjacente ao grego dos Evangelhos – desprovidas do comparativo relativo, pelo qual "amar menos" se torna "odiar". Nesse caso, então, a perturbação diante de tal apelo se dissolve, pensando que Jesus queria dizer: "Se alguém vem a mim, e me ama menos do que o seu pai...". Mas por que Lucas, que lidava bem com o grego, não adotou logo essa forma?
Responde adequadamente Monti: "Ao custo de ofender os seus leitores de língua grega, Lucas mantém o verbo 'odiar' para ressaltar a paradoxalidade do pedido de Jesus". Em outras palavras, Jesus não é um político que, ao custo de agregar votos para si e de conservar o poder, está pronto para qualquer compromisso. Melhor poucos discípulos (o "pequeno rebanho") conscientes das exigências da escolha a ser feita, do que uma massa de seguidores aproximativos e propensos à fuga diante de um compromisso sério e severo.
Poderíamos continuar essa lista, citando mais um exemplo, como esta embaraçosa declaração de Cristo: "Qualquer pecado ou blasfêmia será perdoado; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada" (Mateus 12, 31). Santo Agostinho já confessava a sua impotência para decifrar a afirmação, reconhecendo que "nas Sagradas Escrituras não há, talvez, nenhuma questão mais comprometedora e não se encontra outra mais difícil". O nosso autor propõe uma solução sugestiva, levando-se em conta o contexto em que está em cena a luta contra Satanás e o pecado. Lá, tem-se a afirmação de Jesus que declara que "expulsa os demônios através do Espírito de Deus" (12, 28).
Então, "se o Espírito é a remissão dos pecados, blasfemar contra ele é fechar-se ipso facto ao perdão dado por Deus e recusar a se deixar converter por ele. Jesus não pronuncia uma palavra de castigo, limita-se a uma triste constatação dessa realidade de fato", que revela, dentre outras coisas, o destaque da liberdade humana.
Paremos por aqui, deixando que os leitores descubram outras "palavras duras" de Cristo, sem falar daquelas passagens evangélicas problemáticas ou complicadas, que aqui não são abordadas e às quais penso em dedicar, eu mesmo, no futuro, uma análise essencial, destinada a quem não tem uma preparação exegética específica.
Gostaríamos, de fato, que todos pudessem dar razão dos textos e da sua dificuldade, conscientes de uma frase do historiador inglês do século XVII Thomas Fuller, que, na sua Gnomologia, defendia: "Tudo é difícil antes de se tornar simples".
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517292-jesus-politicamente-incorreto-artigo-de-gianfranco-ravasi