1 de maio de 2014

BATE-PAPO COM DIÓGENES


Diferenças entre política e POLÍTICA

BATE-PAPO COM DIÓGENES
Delmar Purper

Diógenes é um famoso filósofo que viveu na antiga Grécia, morador de rua. Morava dentro de um barril, um tipo de tonel. Pregava o desapego aos bens materiais, dizia que o que importa é ser feliz, e a felicidade está no autodomínio e na liberdade, não em ter coisas. Criticava as instituições, a sociedade e os valores sociais como a ganância, o egoísmo e a corrupção. Andava com uma lamparina acesa pelas ruas de Atenas, em plena luz do dia, como se estivesse procurando alguma coisa. Aos que perguntavam o que estava procurando, respondia que procurava um homem. Isto é, procurava um homem de verdade, que fosse livre, e não escravo dessa necessidade de acumular bens.
Diógenes ficou tão famoso que um dia o rei Alexandre, o Grande, quis conhecê-lo. Alexandre dominava quase todo o mundo conhecido da época. Naquele tempo, era mais poderoso do que Barack Obama é hoje. O rei foi procurar Diógenes, que  estava confortavelmente instalado dentro do seu tonel. Conversaram um tempo, e Alexandre ficou impressionado com a sabedoria do filósofo. Disse, então:
- Diógenes, tô impressionado com a tua sabedoria. Você é o cara! Você sabe que eu sou o homem mais poderoso do mundo. Peça o que você quiser que eu te dou.
Diógenes se esticou um pouco mais, se ajeitou melhor no seu tonel e respondeu:
- Posso pedir o que eu quiser? Então sai da frente que eu quero tomar sol e você tá me fazendo sombra!
Pois não é que um dia desses eu tinha ido cortar o cabelo no Joel, ali na avenida central de Itaiópolis, e na volta topei com o Diógenes sentado num banco do calçadão? Levei um susto. Não pude deixar de puxar conversa.
- Rapaz! Você não é o famoso filósofo Diógenes?
Visivelmente contrariado porque eu interrompi a sua meditação, respondeu, seco:
- Sou. E você não é aquele que aquela vez fez aquilo naquele lugar?
Não sei o que ele quis dizer com aquilo, mas achei melhor concordar.
- Isso, isso! Sou eu mesmo. Mas homem do céu! Nunca pensei em encontrar alguém tão importante em nossa cidade. Não te incomodo se te fizer algumas perguntas? Ando encasquetado com algumas coisas...
- Incomodar, já incomodou. Então, diz aí! O que te aflige? Desembucha!
-  Sabe o que é? Ultimamente ando tentando entender a política e...
- Iiiii! Mais um que quer ser político e não sabe por onde começar.
- Não é nada disso. Não quero nenhum cargo e não sou candidato a nada. Deus me livre! Só tô querendo entender por que parece que quanto mais as coisas no Brasil melhoram, pior ficam.
- Ah, bom. Aí o assunto me interessou. Você diz que o Brasil melhorou. O que melhorou?
- A inflação tá controlada há 10 anos.
- É.
- O desemprego é um  dos mais baixos do mundo.
- Verdade.
- A renda do povo melhorou muito. Quarenta e não sei quantos milhões saíram da pobreza. A classe média nunca ganhou tanto.
- Sim.
- Tem programa social de tudo que é tipo. Tem Minha Casa Minha Vida, tem Luz para Todos, tem PROUNI, tem...
- Tá, tá! Não precisa desfiar todo esse rosário. Tô esperando você me dizer o que foi que melhorou.
- Ora, Diógenes!  Tudo isso que eu falei é melhoria, é progresso.
- Tudo o que você falou só significa que as pessoas hoje ganham mais dinheiro, não quer dizer que melhoraram.
- Mas não é essa a função da política, melhorar economicamente a vida das pessoas?
- Da política sim, mas não da POLÍTICA.
- Peraí! Quer dizer que existe mais de um tipo de política?
- Claro!
- Explica melhor esse negócio de política e POLÍTICA. Quem são os políticos que fazem política?
- Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma, José Serra...
- Êpa! Não vai me dizer que são todos farinha do mesmo saco.
- Farinha do mesmo saco? O que é isso?
- Desculpa! É um jeito de falar. Você tá dizendo que esses que você falou são todos iguais?
- Você não perguntou se eles são iguais, perguntou quem são os políticos que fazem política. Iguais eles não são. Os do passarinho bicudo colorido fazem política para favorecer o 1% dos mais ricos, os da estrela vermelha fazem política a favor dos outros 99%. Mas o jeito de fazer política é o mesmo.
- E quem mais faz política?
- Aécio Neves, Marina Silva, Eduardo Campos, Raimundo Colombo, Barack Obama...
- E POLÍTICA, quem faz?
- Só o papa.
- O quê??? O papa? Mas o que é que o papa tem a ver com política? Explica melhor esse negócio de política e POLÍTICA porque você tá me dando um nó nas ideias!
- A política serve pras pessoas terem poder.
- E o poder serve pra quê?
- Pra ganhar dinheiro.
- E o dinheiro serve pra quê?
- Pra ter mais poder.
- Entendi. Quer dizer que na política ninguém tem boas intenções?
- De boas intenções o inferno tá cheio. Mas a engrenagem é essa. Não vê o caso do caixa 2 nas campanhas eleitorais? É crime. Os certinhos não querem fazer caixa 2, mas se não fizerem, perdem a eleição. Então fazem, cometem o crime, apesar de terem a intenção de não cometer.
- Sei. Depois que cometeram o primeiro deslize, os outros vão acontecendo ao natural. Um contrato sem concurso pra um parente, uma diária a mais, um favor com dinheiro público em troca de apoio político, e assim por diante. Os mais desonestos  já metem logo a mão no cofre. Tá, até aqui eu compreendi. E a POLÍTICA, o que é?
- POLÍTICA é a arte de administrar o bem público, é o privilégio de servir, de extravasar o desejo de ser útil, de proteger os mais fracos, é o exercício de tudo aquilo que o ser humano tem de melhor, como a honestidade, a solidariedade, a fraternidade, o amor ao próximo...
- Ih, Diógenes. Parece papo de igreja.
- Parece e é. A verdadeira POLÍTICA não é nada mais do que colocar o evangelho em prática.
- O evangelho nem é do teu tempo. O que você entende desse assunto?
- Não muito, e vocês, menos ainda.
- Por que?
- Vocês não são cristãos?
- Claro, claro, somos sim!
- Então, não deveriam viver com simplicidade e fraternidade, ajudar uns aos outros, ser honestos nos negócios, não mentir, não viver para acumular riquezas e bens materiais, etc., etc.?
- É verdade. Poucos são assim.
- Então, se não praticam o que aprendem e o que pregam, por que vocês vão na igreja?
- Nossa! Você pega pesado! Mas já entendi onde o papa entra na POLÍTICA. Li orientações que ele escreveu aos católicos sobre nunca deixar os pobres sozinhos, sobre o novo bezerro de ouro adorado pelo povo hoje em dia, que é o deus dinheiro. Li também críticas ao modelo econômico neoliberal, regido pelo mercado e não por valores éticos, modelo que empobrece e explora as pessoas para aumentar o lucro dos que já têm tudo. Mas, vamos mudar de assunto porque já vi que a igreja te irrita.
- A igreja não me irrita. O que me irrita é hipocrisia, falsidade.
- Tá. Mas me diz uma coisa. Não tem ninguém ouvindo. Esse negócio de você andar por aí em plena luz do dia com uma lanterna procurando um homem é meio esquisito.  Você é bicha, é gay?
- A lanterna é simbólica. O que eu quero dizer é que é difícil encontrar homens completos, pessoas que tenham superado a necessidade da adoração do deus dinheiro, como o papa fala. Tô gostando desse papa! Ele ainda não tá morando em um tonel, lá no Vaticano, mas já abriu mão de mordomias, coisas que os papas anteriores não tinham feito.
- Certo, mas você fugiu do assunto. Você é gay?
- Não, não sou. E se fosse, o que você teria a ver com isso?
- Nada, nada. Desculpe. Era só uma curiosidade.
- Uma curiosidade que revela preconceito. Cada um pode ser o que quiser, não está prejudicando ninguém. Já reparou que gays e lésbicas são mais sensíveis, tolerantes e fraternos?
- É, já tinha reparado.
- Pois é! Não deveriam ser discriminados. Aliás, vocês são cheios de preconceitos. Sabe aquele ídolo que vocês tem e que adoram nas igrejas, que geralmente aparece pregado numa cruz?
- Jesus Cristo... Mas ele não é ídolo.
- Esse mesmo. Já passei lá pelo lugar onde ele viveu. Nasci ali por perto. Lá todo mundo é negro ou bem moreno, tem olhos escuros e cabelo crespo. Sabe por que vocês retratam o ídolo de vocês branco, com cabelos louros e lisos e olhos azuis? Porque vocês são racistas.
- Barbaridade! Você tira cada conclusão! Mas eu já disse, não é ídolo.
- É o que então?
- Sei lá, mas não é ídolo! Ídolos são Chitãozinho e Chororó, Roberto Carlos...
- Aquele cantor que as mulheres na menopausa adoram? Que cobra uma fortuna pra cantar e que no final da apresentação lambe uma rosa e joga pras menopausadas?
- É, esse! Você gosta?
- Não. Meus artistas cantam de graça pra mim.
- É mesmo? E quem são eles?
- O sabiá, a corruíra, o bem-te-vi, o canário...
- Ah, então você tem um canário na gaiola?
- Não. Vocês botam Roberto Carlos numa gaiola?
- Tinha esquecido. Assim como São Francisco de Assis, você é amigo e protetor dos animais. Gosta muito de cachorro, né?
- É. Ao contrário das pessoas, os cachorros são fiéis, nunca traem os amigos, não têm preconceito, reconhecem instintivamente quem é amigo e quem é inimigo...
- Bom, de música você não gosta, de que gosta então?
- Eu não disse que não gosto de música. Só não gosto do cantor das menopausadas. Também não gosto do estilo bate-estaca.
- Ué, que estilo é esse?
- Aquele que faz pam, pam, pam. Tocam principalmente nos carros. A gente ouve quando estão a 5 quadras de distância. Dói nos ouvidos de quem está dentro das casas, imagina de quem mora em um tonel.
- É, esse é um problema de saúde pública, porque as pessoas que ouvem som nessa altura estão ficando surdas.
- Se elas ficarem surdas, não faz mal. Se não usam o cérebro, pra que vão precisar dos ouvidos? O problema é que isso incomoda pessoas que não querem ouvir esse som bate-estacas.
- Caramba! Você é sempre tão nervoso?
- Hoje tô calmo.
- Imagina se estivesse nervoso! Mas, pra te alegrar um pouco, queria prestar uma homenagem e fazer um agradecimento. Vocês, gregos, inventaram a democracia...
- Que vocês, brasileiros, não sabem usar... E eu não sou grego. Nasci em Sinop.
- Em Sinop, ali no Mato Grosso?
- Não, em Sinop na Turquia, seu tonto!
- Como assim, não sabemos usar a democracia... Temos eleições de 2 em 2 anos. Temos liberdade de expressão, imprensa livre. E temos um sistema judiciário que cuida das garantias dos cidadãos. Temos liberdade para trabalhar, produzir, ter propriedades...
- Têm liberdade pra produzir, mas só ficam com migalhas do que produzem. 1% dos mais ricos dominam a economia. Esse 1% também elege a maioria dos deputados e senadores. E manda no judiciário, que praticamente nunca condena ninguém dessa elite. E é dono da imprensa, que fabrica as notícias do jeito que mais interessa aos seus negócios, isto é, mentem à vontade. Você chama isso de democracia?
- Pensando bem,  é verdade. Os 99% dos brasileiros são meio desinformados e atrapalhados.
- Meio desinformados e atrapalhados nada! Totalmente burros! Onde já se viu 1% dominar 99%!
- Tá, mas pelo menos não temos escravidão. Os teus amigos gregos inventaram a democracia mas tinham escravos. Nós não temos mais.
- Não têm? Então vai ali no Banco do Brasil em dia de pagamento dos aposentados. Você vai ver pessoas enrugadas, sofridas, cansadas, tortas de tanto trabalhar, todas com problemas de coluna. Pelo tanto que trabalharam durante uma vida inteira, essas pessoas deveriam ser sócias do banco, não estarem em uma fila pra receber um salário mínimo como consolo por todo o trabalho que fizeram.
- Caramba! Você só vê desigualdade e injustiças em nossa sociedade! Não temos nada de bom?
- Têm, sim. Há um lugar onde todos são iguais, ninguém é mais importante do que ninguém.
- Aleluia!  Até que enfim um elogio. E que lugar é esse?
- O cemitério.
- Você questiona tudo. Em outros tempos, seria considerado subversivo.
- Que que é isso?
- Subversivo é alguém que está fora dos padrões estabelecidos pelos que mandam na sociedade.
- Como aquele loirinho de olhos azuis e cabelo escorrido, que não é pra chamar de ídolo?
- Mais ou menos isso. Olha, Diógenes, a prosa tá boa mas eu vou ter que ir andando. Pensei que você iria levantar o meu astral, mostrar caminhos, mas me deixou mais desanimado.
- Mas eu mostrei caminhos!
- Mostrou? Não vi.
- Como assim, não viu? Tu é bem lerdinho da cabeça!
- Tá me chamando de burro?
- Posso te chamar de "meio desinformado e atrapalhado", se você preferir.
- Tá bom! Calma! Explica de novo!
- Vocês brasileiros vivem em uma sociedade egoísta, competitiva, individualista, preconceituosa, onde a coisa mais importante é a luta diária pelo dinheiro. Não que dinheiro não seja importante. Não é necessário vocês todos irem morar em um tonel. Mas o dinheiro e os bens materiais não podem ser o único objetivo da vida. O objetivo é a felicidade. Os bens podem aqui e ali ajudar a dar um pouco de conforto, mas a felicidade está muito mais na forma como a gente se relaciona com as outras pessoas do que no tamanho da conta bancária. Então, a principal transformação que precisa acontecer não é lá em Brasília, mas no coração de cada um. A política, por mais bem intencionada que seja, só nos leva até um certo ponto. Só distribuir renda não resolve. O pobre que chega à classe média nega o seu passado de pobreza, despreza os que ficaram pra trás, até explora os que continuam pobres. Os de classe média não querem ser confundidos com pobres e os ricos não querem ser confundidos com a classe média. Como se uns fossem mais importantes do que os outros. Já a POLÍTICA é a transformação que começa em cada pessoa e depois modifica as estruturas, o poder, o governo, os impostos, a imprensa, o judiciário, etc. A POLÍTICA não virá pronta, de cima pra baixo. É uma revolução que precisa ser feita por vocês, pelo povo, pelos plebeus. Ela precisa ser construída pelas pessoas de boa vontade, que não pensam só em si mesmas, que se preocupam com os outros, inclusive com os outros que ainda nem nasceram, mas que herdarão o mundo que deixaremos pra eles.
- Rapaz, agora entendi a diferença entre política e POLÍTICA. Teu discurso até me emocionou. Queria poder votar em um candidato a Presidente que pensasse assim. Aliás, esse ano tem eleição. Eu podia lançar o  teu nome pra Presidente. Quer?
- Não, não quero ser Presidente. O que eu quero é que você saia da frente porque eu estava aqui neste banco, tranquilo, meditando e tomando um solzinho e faz meia hora que você tá aí parado na minha frente fazendo sombra.

Itaiópolis, março de 2014