Roberto
Amaral
22/11/2018
Do
golpe continuado (fato objetivo à espera dos cientistas políticos) caminhamos
para a ditadura de novo tipo, aquela que, para exercer-se, não carece de um
novo direito. Impera com o direito que encontra. Este, no entanto, torna-se
maleável, à mercê da interpretação política do poder judiciário, sempre atento
aos humores do Príncipe que tanto pode ser o presidente da República, quanto um
general de quatro estrelas, ou, mais modernamente, o invisível, onisciente,
onipotente, onipresente ‘Mercado’.
Ontem
como hoje, aqui e em toda a parte.
A
ditadura, que a esta altura não precisa ser conceituada, não é,
necessariamente, o regime da ilegalidade, mas o de uma legalidade autoritária
que muitas vezes pode, antes da força, alimentar-se nas vozes da soberania
popular (onde muitos governos autoritários têm origem) porque o direito é
simplesmente isto: o ordenamento da vontade dominante. Assim, para estabelecer-se
e vicejar, não precisa, a ditadura, necessariamente, derrogar a ordem dada;
pode mesmo governar com o instrumental cedido pelo regime herdado. Ao fim e ao
cabo: mesmo a ordem legal democrática pode servir ao regime autoritário, ou,
mais precisamente, a ordem democrática pode prestar-se à sua manipulação pelo
autoritarismo que, no Brasil, não é monopólio dos militares, pois pervade todos
os espaços da vida social e sempre foi um atributo a mais a serviço da
dominação das elites.
Nos
negros anos 40-50 da democracia nos EUA, por exemplo, o furor macarthista,
êmulo ideológico da mesma família da ku-klux-kan, prescindiu de reforma
constitucional ou de inovações legislativas para impor-se imolando reputações,
perseguindo e desempregando escritores, cineastas e artistas, atores e
jornalistas e políticos de um modo geral.
Em
entrevista ao Valor (29.10208) Wanderley Guilherme dos Santos adverte que
governos reacionários são uma possiblidade democrática (desde que se preserve o
processo eleitoral-representativo), o que salta aos olhos numa rápida leitura
de nossa história recente: no alvorecer da democracia e da ordem
jurídico-liberal derivada da Constituição de 1946, o governo Dutra foi uma
experiência reacionária, sem precisar ofender a ordem legal, a mesma ordem que
deu piso ao regime de Café Filho até Nereu Ramos (1954-55), quando dois
presidentes da República (Carlos Luz e Café Filho), com os aplausos
historicamente corretos dos democratas, foram depostos ‘na forma lei’, mais
precisamente ‘impedidos’ de continuar exercendo seus mandatos.
Uma
vez mais os fins justificando os meios, foi esta a forma encontrada pelos
juristas, a bordo dos tanques de guerra da Vila Militar, para assegurar o
império constitucional garantindo a posse de Juscelino Kubitscheck e João
Goulart, eleitos no pleito de 1955, que os presidentes impedidos intentavam
impedir.
A
operação seria, mais tarde, homologada pelo STF. Recomendo aos jovens liberais
a leitura do voto do relator, ministro e jurista Nelson Hungria, joia do
realismo político.
O
‘golpe legal’ que não é uma invenção nossa, repetir-se-ia na curta história do
segundo governo de Dilma Rousseff, derrogado por um golpe de Estado de fato,
que, ademais de contar com o respaldo do STF (que igualmente respaldara os
pronunciamentos militares de 1937, 1955 e 1964), respeitou os procedimentos da
lei, nos limites de seu formalismo, cego para ver, nesse e nos demais casos, a
violência intrínseca a toda fratura da soberania popular.
A
estrita observância da ordem legal não é, e jamais foi, garantia de respeito
aos direitos humanos, porque o direito não tem caráter, ele deriva da força que
o institui. Conteúdo amoldado pelo continente, é instrumente quase arbitrário
nas mãos de quem o aplica, principalmente quando este agente não se submete a
uma instância revisora.
O
que pretendo sublinhar, e neste ponto não caminho adiante de Wanderley, é que o
governo do capitão não precisará violar a lei para caracterizar-se como
ditadura, porque poderá ser um governo antidemocrático nos limites e sob o
amparo do direito vigente.
Para
prever o que pode ser o futuro sob a batuta do capitão (admirador de reles
torturadores como o Cel. Ulstra, ou ditadores como Viktor Orbàn, primeiro
ministro da Hungria, que há pouco inaugurou em Budapeste um monumento em
homenagem à invasão nazista) basta uma olhadela no nosso entorno.
Quando
é preciso torcer o direito, sem mata-lo, o poder judiciário inova na
interpretação, sempre a favor do interesse que se fez Estado. Que faz o STF e
que fizeram os ministros dos tribunais superiores e os juízes de piso das mais
diversas comarcas, nomeadamente a partir do golpe de 2016, senão refazer
jurisprudência (o que implica mudar o direito no que ele tem de mais relevante
que é sua aplicação) e refazer a ideia da lei, sem dela retirar ou acrescentar
um fio, simplesmente reinterpretando-a segundo os interesses da ordem vigente,
por definição mutante? O direito não é, está sendo.
Quantas
vezes a lei, intocada em seu formalismo, foi erguida nesses dois anos para
restringir direitos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? O relatório das
ofensas não cabe neste espaço.
O
professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de
Santa Catarina foi levado ao desespero e ao suicídio sob o tacão de uma juíza
de província que o ameaçava com a lei e os bilinguins da Polícia Federal.
Em
plena vigência da Constituição Federal (Art.5º, LVII: ‘ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) o ex-juiz de
Curitiba (cabo eleitoral do capitão e a partir de janeiro seu plenipotenciário
ministro da Justiça) e o tribunal da quarta região mandaram o ex-presidente
Lula para a cadeia, e o STF, para não ser obrigado a liberta-lo, numa manobra
de pauta das sessões, vício ético absolutamente legal, decidiu não julgar o
habeas-corpus que inevitavelmente o libertaria.
Para
tal, mas sempre na forma da lei, as togas mais uma vez se curvaram à japona e,
com o sabre no pescoço, ministros e ministras decidiram ouvir os bons conselhos
do comandante do exército sobre os riscos que a Corte correria se o
ex-presidente conquistasse a liberdade.
Na
duas últimas semanas do processo eleitoral nada menos que 17 decisões judiciais
mandaram forças policiais invadir campos universitários e impedir reuniões
políticas não-eleitorais, nada obstante a vigência do inciso XVI, art. 5º da
C.F. que a todos assegura o direito de reunião. Depois do fato consumado,
passadas as eleições, eleito o candidato previamente escolhido, o STF julgou
inconstitucional as incursões jurídico-policiais. Assim não há porque falar em
ferida legal.
Em
plena vigência da Constituição que Ulisses Guimarães batizou de ‘cidadã’, o
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDF), com sede em
Brasília, impôs (decisão vigente desde 2009 e só agora julgada e revogada pelo
STF) a censura, que se supunha finda com a ditadura de 1964, ao Estadão,
impedindo-o, por 3.327 dias, de noticiar informações sobre uma operação da
Polícia Federal que atingia o empresário Fernando Sarney, filho do
ex-presidente José Sarney.
O
juiz Gustavo Gomes Kalil, da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro decretou (dia
17 último) censura à TV Globo proibindo-a de divulgar qualquer parte do
conteúdo (de posse da emissora) do inquérito policial que investiga, sem nada
concluir, a chacina da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
Tais
fatos, catados ao acaso, remontam ao período prebolsonariano, bem podem ser um
indicador do que esperam os direitos humanos e as franquias político-sociais no
regime em instalação, quando haverá a perfeita comunhão de interesses e
propósitos entre o poder governante, o poder judiciário, o ‘mercado’ e os meios
de comunicação de massa.
Quando
as circunstâncias assim o exigirem, o poder lançará mão dos juristas e os
ministros do STF encontrarão a interpretação mais consentânea com seus
interesses.
É
a primeira opção do sistema.
Na
sua retaguarda, se necessário for implementar uma ou outra reforma ou inovação legislativa,
o capitão conta com um Congresso solidário no autoritarismo, e ansioso em
prestar ou vender serviços. Pois se trata de Congresso assumidamente
reacionário, voltado para a proteção do arbítrio. Sua pauta (construída na
campanha eleitoral) já compreende a criminalização dos movimentos sociais, a
redução da menoridade penal, o fim do Estatuto do desarmamento, e, como símbolo
do atraso, unificados o fim do ensino gratuito e o projeto da Escola ‘sem
partido’, eufemismo que procura esconder o projeto real de escola sem voz e sem
ideia, universidade sem pensamento, país sem progresso, paraíso das iniquidades
sociais enquanto o novo chanceler corre de Seca a Meca à procura dos comunistas
que teriam inventado a revolução francesa.
Fica,
assim, como ponto de reserva, pois, se acaso a interpretação sempre
circunstancial da lei não satisfizer inteiramente aos desejos e necessidades do
Príncipe, o Congresso fará sua parte, como fará, tem feito, o poder judiciário,
todos sob a vigilância do ‘Mercado’ o verdadeiro titular da casa grande de
nossos dias.
Marielle
Franco – nesta quarta-feira, a chacina completa oito meses de inepta
investigação. Os mandantes estão sendo perseguidos ou protegidos?
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
https://www.cartacapital.com.br/politica/a-nova-cara-da-ditadura-brasileira