25 de novembro de 2018

A nova cara da ditadura brasileira




Roberto Amaral



22/11/2018





Do golpe continuado (fato objetivo à espera dos cientistas políticos) caminhamos para a ditadura de novo tipo, aquela que, para exercer-se, não carece de um novo direito. Impera com o direito que encontra. Este, no entanto, torna-se maleável, à mercê da interpretação política do poder judiciário, sempre atento aos humores do Príncipe que tanto pode ser o presidente da República, quanto um general de quatro estrelas, ou, mais modernamente, o invisível, onisciente, onipotente, onipresente ‘Mercado’.



Ontem como hoje, aqui e em toda a parte.



A ditadura, que a esta altura não precisa ser conceituada, não é, necessariamente, o regime da ilegalidade, mas o de uma legalidade autoritária que muitas vezes pode, antes da força, alimentar-se nas vozes da soberania popular (onde muitos governos autoritários têm origem) porque o direito é simplesmente isto: o ordenamento da vontade dominante. Assim, para estabelecer-se e vicejar, não precisa, a ditadura, necessariamente, derrogar a ordem dada; pode mesmo governar com o instrumental cedido pelo regime herdado. Ao fim e ao cabo: mesmo a ordem legal democrática pode servir ao regime autoritário, ou, mais precisamente, a ordem democrática pode prestar-se à sua manipulação pelo autoritarismo que, no Brasil, não é monopólio dos militares, pois pervade todos os espaços da vida social e sempre foi um atributo a mais a serviço da dominação das elites.



Nos negros anos 40-50 da democracia nos EUA, por exemplo, o furor macarthista, êmulo ideológico da mesma família da ku-klux-kan, prescindiu de reforma constitucional ou de inovações legislativas para impor-se imolando reputações, perseguindo e desempregando escritores, cineastas e artistas, atores e jornalistas e políticos de um modo geral.



Em entrevista ao Valor (29.10208) Wanderley Guilherme dos Santos adverte que governos reacionários são uma possiblidade democrática (desde que se preserve o processo eleitoral-representativo), o que salta aos olhos numa rápida leitura de nossa história recente: no alvorecer da democracia e da ordem jurídico-liberal derivada da Constituição de 1946, o governo Dutra foi uma experiência reacionária, sem precisar ofender a ordem legal, a mesma ordem que deu piso ao regime de Café Filho até Nereu Ramos (1954-55), quando dois presidentes da República (Carlos Luz e Café Filho), com os aplausos historicamente corretos dos democratas, foram depostos ‘na forma lei’, mais precisamente ‘impedidos’ de continuar exercendo seus mandatos.



Uma vez mais os fins justificando os meios, foi esta a forma encontrada pelos juristas, a bordo dos tanques de guerra da Vila Militar, para assegurar o império constitucional garantindo a posse de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, eleitos no pleito de 1955, que os presidentes impedidos intentavam impedir.



A operação seria, mais tarde, homologada pelo STF. Recomendo aos jovens liberais a leitura do voto do relator, ministro e jurista Nelson Hungria, joia do realismo político.



O ‘golpe legal’ que não é uma invenção nossa, repetir-se-ia na curta história do segundo governo de Dilma Rousseff, derrogado por um golpe de Estado de fato, que, ademais de contar com o respaldo do STF (que igualmente respaldara os pronunciamentos militares de 1937, 1955 e 1964), respeitou os procedimentos da lei, nos limites de seu formalismo, cego para ver, nesse e nos demais casos, a violência intrínseca a toda fratura da soberania popular.



A estrita observância da ordem legal não é, e jamais foi, garantia de respeito aos direitos humanos, porque o direito não tem caráter, ele deriva da força que o institui. Conteúdo amoldado pelo continente, é instrumente quase arbitrário nas mãos de quem o aplica, principalmente quando este agente não se submete a uma instância revisora.



O que pretendo sublinhar, e neste ponto não caminho adiante de Wanderley, é que o governo do capitão não precisará violar a lei para caracterizar-se como ditadura, porque poderá ser um governo antidemocrático nos limites e sob o amparo do direito vigente.





Para prever o que pode ser o futuro sob a batuta do capitão (admirador de reles torturadores como o Cel. Ulstra, ou ditadores como Viktor Orbàn, primeiro ministro da Hungria, que há pouco inaugurou em Budapeste um monumento em homenagem à invasão nazista) basta uma olhadela no nosso entorno.



Quando é preciso torcer o direito, sem mata-lo, o poder judiciário inova na interpretação, sempre a favor do interesse que se fez Estado. Que faz o STF e que fizeram os ministros dos tribunais superiores e os juízes de piso das mais diversas comarcas, nomeadamente a partir do golpe de 2016, senão refazer jurisprudência (o que implica mudar o direito no que ele tem de mais relevante que é sua aplicação) e refazer a ideia da lei, sem dela retirar ou acrescentar um fio, simplesmente reinterpretando-a segundo os interesses da ordem vigente, por definição mutante? O direito não é, está sendo.



Quantas vezes a lei, intocada em seu formalismo, foi erguida nesses dois anos para restringir direitos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva? O relatório das ofensas não cabe neste espaço.



O professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi levado ao desespero e ao suicídio sob o tacão de uma juíza de província que o ameaçava com a lei e os bilinguins da Polícia Federal.



Em plena vigência da Constituição Federal (Art.5º, LVII: ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) o ex-juiz de Curitiba (cabo eleitoral do capitão e a partir de janeiro seu plenipotenciário ministro da Justiça) e o tribunal da quarta região mandaram o ex-presidente Lula para a cadeia, e o STF, para não ser obrigado a liberta-lo, numa manobra de pauta das sessões, vício ético absolutamente legal, decidiu não julgar o habeas-corpus que inevitavelmente o libertaria.



Para tal, mas sempre na forma da lei, as togas mais uma vez se curvaram à japona e, com o sabre no pescoço, ministros e ministras decidiram ouvir os bons conselhos do comandante do exército sobre os riscos que a Corte correria se o ex-presidente conquistasse a liberdade.



Na duas últimas semanas do processo eleitoral nada menos que 17 decisões judiciais mandaram forças policiais invadir campos universitários e impedir reuniões políticas não-eleitorais, nada obstante a vigência do inciso XVI, art. 5º da C.F. que a todos assegura o direito de reunião. Depois do fato consumado, passadas as eleições, eleito o candidato previamente escolhido, o STF julgou inconstitucional as incursões jurídico-policiais. Assim não há porque falar em ferida legal.



Em plena vigência da Constituição que Ulisses Guimarães batizou de ‘cidadã’, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDF), com sede em Brasília, impôs (decisão vigente desde 2009 e só agora julgada e revogada pelo STF) a censura, que se supunha finda com a ditadura de 1964, ao Estadão, impedindo-o, por 3.327 dias, de noticiar informações sobre uma operação da Polícia Federal que atingia o empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney.



O juiz Gustavo Gomes Kalil, da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro decretou (dia 17 último) censura à TV Globo proibindo-a de divulgar qualquer parte do conteúdo (de posse da emissora) do inquérito policial que investiga, sem nada concluir, a chacina da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.



Tais fatos, catados ao acaso, remontam ao período prebolsonariano, bem podem ser um indicador do que esperam os direitos humanos e as franquias político-sociais no regime em instalação, quando haverá a perfeita comunhão de interesses e propósitos entre o poder governante, o poder judiciário, o ‘mercado’ e os meios de comunicação de massa.



Quando as circunstâncias assim o exigirem, o poder lançará mão dos juristas e os ministros do STF encontrarão a interpretação mais consentânea com seus interesses.



É a primeira opção do sistema.



Na sua retaguarda, se necessário for implementar uma ou outra reforma ou inovação legislativa, o capitão conta com um Congresso solidário no autoritarismo, e ansioso em prestar ou vender serviços. Pois se trata de Congresso assumidamente reacionário, voltado para a proteção do arbítrio. Sua pauta (construída na campanha eleitoral) já compreende a criminalização dos movimentos sociais, a redução da menoridade penal, o fim do Estatuto do desarmamento, e, como símbolo do atraso, unificados o fim do ensino gratuito e o projeto da Escola ‘sem partido’, eufemismo que procura esconder o projeto real de escola sem voz e sem ideia, universidade sem pensamento, país sem progresso, paraíso das iniquidades sociais enquanto o novo chanceler corre de Seca a Meca à procura dos comunistas que teriam inventado a revolução francesa.



Fica, assim, como ponto de reserva, pois, se acaso a interpretação sempre circunstancial da lei não satisfizer inteiramente aos desejos e necessidades do Príncipe, o Congresso fará sua parte, como fará, tem feito, o poder judiciário, todos sob a vigilância do ‘Mercado’ o verdadeiro titular da casa grande de nossos dias.



Marielle Franco – nesta quarta-feira, a chacina completa oito meses de inepta investigação. Os mandantes estão sendo perseguidos ou protegidos?



- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

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