21 de abril de 2013

10 anos do PT no poder: Da utopia à distopia?



A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.



Sumário


Grande transformador social ou o grande articulador do capitalismo brasileiro?
Ausência de criatividade e ousadia
Social democracia mínima
Abandono do projeto ético
Governismo versus esquerdismo
Modelo econômico e governança
Esvaziamento do movimento social

Eis a análise.

Na festa do PT realizada no dia 20 de fevereiro desse ano para celebrar os seus 33 anos de existência e 10 anos de poder, um gigantesco painel (foto) destacava-se com a imagem estilizada de Lula e Dilma. De um lado Lula, liderança maior da história do partido e de outro Dilma, a presidente que simboliza o PT no poder.

No painel estão registradas as conquistas da década do PT no poder: de um lado, uma família traduzindo a mobilidade social de milhares de brasileiros resultante do sistema de assistência social implantando pelo PT sobretudo pelo Bolsa Família e das políticas de ativação do mercado interno e, de outro, um operário traduzindo o “pleno emprego” no mercado brasileiro e a valorização do trabalhador via aumento real do salário mínimo.

Aparece ainda no painel, o programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ – simbologia forte de que com o PT no poder o sonho da casa própria está sendo viabilizado. Ao fundo do painel à direita e à esquerda, a clássica imagem esmaecida do campo e da cidade. Alusão de um partido e de um governo que se preocupa com o mundo urbano e rural.

No principal discurso da noite, Lula afirmou que esse é “um governo que não tem medo dos números” numa clara referência ao fato de que a década do PT no poder significou enormes avanços quando comparada com a década perdida da ‘Era FHC’. O balanço do PT de sua gestão é que o país assistiu a uma “década da inclusão social”.

De fato cumpriu o PT as expectativas que dele se aguardava? O partido tem feito um governo efetivamente de esquerda? As respostas a essas perguntas são objeto de grande controvérsia. Há aqueles que vibram com o governo do PT e veem uma gestão exitosa e coerente com sua história e programa e há aqueles que fazem uma análise crítica, lamentando a perda da chance histórica na efetivação de mudanças de fundo na contramão da modernização conservadora brasileira processada nas últimas décadas, particularmente a partir dos anos 1930.

O balanço da década do PT no poder foi tema da revista IHU On-Line nº 413, de 01-04-2013, intitulada “Partido dos Trabalhadores, 10 anos no poder. Um governo de esquerda?”.

A análise que segue sobre o desempenho do PT no poder toma como referência principal os entrevistados pela revista IHU On-Line – os cientistas político Werneck Vianna e Luiz Gonzaga de Souza Lima, os filósofos Vladimir Safatle e Renato Janine Ribeiro, o psicanalista Tales Ab’Sáber, o historiador Valter Pomar, o economista Claudio Salvadori Dedecca e os sociólogos Francisco de Oliveira e Rudá Ricci. Completa a análise reportagens, entrevistas e artigos das ‘Notícias do Dia’, publicadas diariamente no sítio do IHU.

Grande transformador social ou o grande articulador do capitalismo brasileiro?

A chegada do PT dez anos atrás ao poder foi saudada como a possibilidade de uma “refundação do Brasil” e o início de uma “Nova Era”. Foi traduzida como o coroamento da longa jornada de lutas do movimento operário, camponês e estudantil travada desde os anos 50, interrompida pelo golpe militar, e retomada nos anos 70. A ascensão do PT ao governo foi cercada de enormes esperanças e expectativas na efetivação de reformas estruturais e vigorosa resposta ao Consenso de Washington traduzida nas políticas neoliberais que castigavam o país e todo o continente latino-americano.

Conseguiu o PT responder a esses desafios? Segue uma síntese da análise do significado dos 10 anos do PT no poder pelos entrevistados pela IHU On-Line.

Na análise do cientista político Werneck Vianna o PT veio ao mundo com uma missão, a de transformar, mas aos poucos foi capitulando. Segundo ele, o PT “foi se tornando uma presença tradicional na política, o que não quer dizer que não ative ainda reformas, só que reformas pontuais, porque na verdade, o PT se tornou o grande operador do modo do capitalismo brasileiro”.

Segundo Werneck, “é inquestionável que o PT foi eleito pela esquerda, a começar pela própria natureza da sua principal liderança, um operário metalúrgico, de chão de fábrica, com apoio do movimento sindical brasileiro à sua candidatura, de movimentos sociais muito relevantes e o seu compromisso com os temas sociais”. Então, diz ele, “no governo, o PT se empenha em realizar pelo menos uma parte do seu programa”. Porém, destaca o sociólogo da PUC-Rio, “as dificuldades eram muito grandes e o seu projeto originário de reformas teve que ser abandonado em nome da governabilidade”.

Para Werneck, o tema da governabilidade marca de forma muito poderosa sua história de governo: “Essa governabilidade diz que as alianças tinham que ser ampliadas, importava sobretudo reter a máquina governamental em suas mãos, o que faz com que o partido se torne, com o passar do tempo, progressivamente um partido de vocação eleitoral e não de mobilização popular”.

Conclui Werneck Vianna: “Não foram anos de enraizamento, de aprofundamento de uma cultura de esquerda no país. Do ponto de vista da esquerda, tudo está por fazer”. O sociólogo diz que na essência o PT não enfrentou os grandes potentados – agronegócio, finanças, grande indústria, oligarquias –, esses, em sua análise, continuaram sendo os que mais ganharam nos últimos dez anos.

Ausência de criatividade e ousadia

O filósofo Vladimir Safatle é outro que partilha da ideia de que o PT ficou distante da realização de um governo que possa ser chamado de esquerda.

Em sua análise, faltou ousadia ao PT. Diz ele: “Qual deveria ter sido a função de um novo momento [o PT no poder] do ponto de vista econômico e social no Brasil? Era fazer um investimento maciço na construção de grandes sistemas de serviço público. Lutar pela construção de algo parecido a um Estado do bem-estar social. Isso não foi feito e nem existe um plano do governo que diga, por exemplo, que daqui a 15 anos teremos todo um sistema de ensino médio público”.

Segundo ele, não foi feito nada parecido “porque isso exigiria um novo modelo de financiamento do Estado, uma reforma tributária de esquerda, que pegasse o dinheiro das classes mais ricas, taxasse a renda e as fortunas delas para usar esse dinheiro com o intuito de financiar esse novo sistema do serviço público brasileiro”. De acordo com ele, “já se passaram dez anos desde o primeiro governo Lula e dez anos depois não há sequer um projeto no Congresso Nacional para a taxação de grandes fortunas. No interior do lulismo, todas as políticas que poderiam radicalizar conflitos de classe foram e serão evitadas”.

O professor da Usp comenta que por outro lado com o PT no poder nesses dez anos “não houve nenhum avanço na constituição de algum tipo de democracia direta”. Segundo ele, “as decisões do governo continuam sendo completamente permeadas por sistemas obscuros de interesses dos setores mais tacanhos da sociedade brasileira, sem que nenhum tipo de aprofundamento da democracia plebiscitária ou de uma constituição da participação popular mais efetiva tenha sido sequer tentado. Tudo isso demonstra uma espécie de fim da criatividade política institucional desse ciclo”.

Na opinião de Safatle, “o que o PT entendeu nesses 10 anos foi que gerir e administrar o poder significava garantir as condições mínimas de governabilidade com o Congresso Nacional”. Segundo ele, “dentro dessa lógica, não existe muita coisa a ser feita a não ser aquilo que já foi feito”.

Para o filósofo, o PT pecou pela falta de ousadia, criatividade. O que faltou? Diz ele: “Gerir o poder é instaurar um processo de reforma que faça com que cada vez menos se seja dependente dos setores mais atrasados da vida social. É importante cada vez menos ter que gerenciar o atraso transformando paulatinamente os processos decisórios do governo em direção à democracia direta. Essa era a saída e a esse respeito nada foi tentado”.

Para Safatle a experiência dos dez anos de poder no PT é frustrante: “Para qualquer partido de esquerda o problema central vai ser sempre a desigualdade social, econômica e de direitos. E de fato, num primeiro momento, foi esse o problema que apareceu como foco central do PT. Só que esse problema está cada vez mais difícil de ser encontrado como prioridade do governo. Falta um novo ciclo de políticas de combate à desigualdade. Esse é um sintoma da mortificação política. Do ponto de vista intelectual, temos a estabilidade do cemitério. Por isso, diria que a função deste ciclo terminou”.

Ainda mais rigoroso e severo na análise, o sociólogo Francisco de Oliveira questionado se o PT manteve um projeto de esquerda ao longo dos 10 anos em que se encontra à frente da presidência da República, foi enfático: “Não, de forma nenhuma”. E afirmou: “o PT não é mais o partido da transformação e, sobretudo, uma transformação já na direção do socialismo. O PT aburguesou-se. O projeto do PT hoje, como o de todos os partidos, é manter-se no poder e ponto”.

Social democracia mínima

Outro entrevistado pelo IHU On-Line, o psicanalista Tales Ab’Sáber faz também um balanço duro dos dez anos do PT no poder. Segundo ele, no poder “o partido aceitou as decisões conservadoras sobre a política econômica, dando garantias de contratos ao grande capital, aceitou a gestão fisiológica, e mesmo corrupta, da máquina política de Brasília, expulsando inapelavelmente a esquerda do partido”.

Na análise de Tales Ab’Sáber foram as quatro posições assumidas pelo governo Lula: 1) aceitação da real politique fisiológica e arcaica brasileira; 2) manutenção dos contratos e dos preços do capitalismo financeirizado brasileiro de então, com autonomia e garantia de gestão pró-mercado do Banco Central brasileiro; 3) políticas de investimento e de aumento de renda, via transferência e via crédito, para os muitos pobres, visando a dinamização e o aumento do mercado interno e 4) aberta e calculada política da imagem de Lula, junto aos pobres e à indústria cultural global, ao ponto dele chegar a alcançar um novo nível de mistificação política, o do carisma pop.

Com estas ações, diz ele, “se produziu um novo e raro pacto social entre capital, trabalho e pobreza no Brasil, em uma espécie de social democracia mínima, que levou à verdadeira hegemonia política lulista ao final de seu segundo mandato, em 2010”. Afirma Tales Ab’Sáber: “os pobres estão satisfeitos no consumo, os ricos estão liberados e felizes”.

Outro entrevistado pelo IHU On-Line que considera frustrante o desempenho do PT no poder é o cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima. Segundo ele, “os erros do partido e do governo são imensos”. Entre eles, o autor da obra A refundação do Brasil. Rumo à sociedade biocentrada cita: 1 - perda de conteúdo utópico, as composições políticas, as alianças necessárias para alcançar e manter o poder e a absorção das esquerdas nos padrões éticos tradicionais da política brasileira; 2 - acomodação com a realidade do estado de negócios e com o modo tradicional como as elites organizaram as relações entre ocupação de cargos públicos e a economia da empresa Brasil; 3 - o projeto político se transformou em um simples projeto de poder.

Como exemplo da distopia do PT, o cientista político cita o abandono do tema da Reforma agrária, a incapacidade de equacionar a questão indígena e a prática de uma política ambiental atrasada e em franco antagonismo com as perspectivas utópicas dos programas originários das esquerdas brasileiras. Arremata ele: “O sonho de um modelo de desenvolvimento alternativo se dissolve a cada acordo com o agronegócio e, sobretudo, com as grandes empreiteiras. As grandes empreiteiras terminaram por entrar no pacto de poder, ao lado dos bancos, das multinacionais e do agronegócio”.

Acerca da questão indígena citada anteriormente pelo cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima, o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Roberto Antonio Liebgott na entrevista ao IHU On-Line afirma que o PT no poder tem sido um desastre: “A relação deste governo, e dos que o antecederam, está muito longe de ser comprometida com o projeto de vida, de justiça e dignidade dos povos indígenas.”

Segundo ele, “lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil analisam que as opções dos governos petistas foram pelo boi, pela soja, pelo agronegócio, pelas empreiteiras e empresas de energia elétrica (os barrageiros)”.

O sociólogo Rudá Ricci é outro que faz um balanço crítico dos dez anos do PT no poder. Segundo ele, “o PT que assumiu o poder há 10 anos não é o mesmo de 2003, é mais dócil, mais entranhado na lógica neoclientelista, perdeu a utopia. É o partido da ordem”. Do ponto de vista ideológico, diz ele, “o PT se acomodou às clássicas ideologias de esquerda que tanto criticou na sua origem: estatismo, centralismo, personalismo, burocratização. O PT se tornou o PCB do século XXI”. Destaca Rudá, “entre capital e trabalho, Lula preferiu ficar com os dois. Procurou compor interesses. Criou um ambiente de estabilidade política ao domesticar movimentos sociais e organizações populares”.

Abandono do projeto ético

Há ainda outro tema que emerge nas entrevistas e pelo qual o partido é criticado nos seus 10 anos de poder, o tema da ética: “O PT, na oposição, tinha duas bandeiras centrais: o combate à ausência da ética na política e a luta contra a miséria e a pobreza. Ficava claro que lutar contra a pobreza extrema era ético, e reciprocamente. Ou seja, não se separavam a agenda moral e a social do partido”, destaca o filósofo Renato Janine Ribeiro na IHU On-Line.

Segundo ele, “isso é preocupante, porque seu lugar ficou vazio”. Na opinião de Janine Ribeiro, “não existe mais o partido diferente de todos os outros. Não há mais um projeto ético que procure mudar toda a sociedade brasileira. A sociedade está mudando, mas o aumento do poder de compra é mais importante, no governo do PT, do que eram as utopias petistas, por exemplo, no que se referia à cultura e à educação. O lugar da ética na política ficou vazio, e o único grupo que pode aspirar a ocupá-lo é o dos verdes. Perto disso, a hipoteca do sistema financeiro sobre a política é apenas um aspecto, não traduzindo o essencial: que se perdeu boa parte da fé na política”. Para Janine Ribeiro, o partido hoje é valorizado pela sua política de inclusão social, mas não mais pelos seus princípios éticos.

O filósofo Vladimir Safatle também comenta que o tema da ética é importante para a esquerda e que não se pode tergiversar sobre isso. Segundo ele, “muitas vezes queremos acreditar que a revolta contra a corrupção é só uma pauta da direita”, porém diz ele, “só que se esquece que existe, na verdade, uma força política progressista dentro das demandas éticas”. O problema afirma Safatle, “não é o Estado, mas é a forma como o Estado foi privatizado, servindo como caixa de ressonância de interesses privados completamente escusos de grandes empreiteiras, do sistema financeiro, de grandes empresas. E é esse vínculo que deve ser cortado de uma vez por todas; esse vínculo incestuoso entre o setor econômico, hegemônico e a máquina do Estado”.

Isso significa, afirma o filósofo, “utilizar a indignação ética como uma arma fundamental de transformação política e institucional, só que isso a esquerda não consegue mais fazer, por ela ter se aproveitado das fragilidades da estrutura institucional brasileira, em vez de ter tentado modificá-la”. Para Safatle, “isso é imperdoável e as consequências disso serão cobradas de uma maneira muito forte”.

Governismo versus esquerdismo

Parcela das críticas anteriores é contestada pelo membro do Diretório Nacional do PT Valter Pomar. Para Pomar não contribui para o debate nem “o governismo exacerbado, que só tem olhos para o que é possível fazer aqui e agora, atacando qualquer postura crítica; e nem um esquerdismo também exacerbado, que só tem olhos para o objetivo final, desconsiderando qualquer análise realista da correlação de forças”.

O historiador reconhece que “ainda não conseguimos superar a herança neoliberal, porque não conseguimos fazer as reformas estruturais necessárias para superar o desenvolvimentismo conservador e, principalmente, porque não estamos conseguindo implementar algumas tarefas estratégicas, a saber: a reforma política no sentido amplo da palavra, a democratização da comunicação social, a politização e organização dos setores que ascenderam socialmente durante estes dez anos, bem como das novas gerações”.

Pomar não concorda, porém, com as análises que considera o PT e seu governo como refém do capital e até mesmo como um “inimigo” a ser combatido. Segundo ele, “há formas mitigadas de esquerdismo entre setores da intelectualidade brasileira, que organizam sua análise da realidade a partir de uma premissa falsa, a saber: a de que o PT seria a força hegemônica na sociedade brasileira, confundindo governo com poder e, por tabela, atribuindo ao Partido dos Trabalhadores a responsabilidade por uma situação que decorre da hegemonia realmente existente”.

É bom lembrar sempre diz ele que “ainda vivemos num país marcado pela herança neoliberal, hegemonizado pelo grande capital e pelas forças de centro-direita. Isso não quer dizer, obviamente, que o PT não possa e não deva ser criticado, especialmente quanto à maneira como ele busca superar a herança neoliberal e a hegemonia da centro-direita e do grande capital”.

Na perspectiva anterior, o economista Claudio Salvadori Dedecca destaca que “se olharmos a situação do país em 2003 e hoje, e quais foram os resultados sociais que o país alcançou ao longo de 10 anos, talvez pudéssemos dizer que a política foi de esquerda, porque gerou alguma redistribuição de renda no país, gerou emprego, fortaleceu o setor produtivo”.

Segundo ele, “o grande aspecto positivo que o governo do PT produziu foi uma vinculação muito estreita da necessidade de provocar um desenvolvimento na base produtiva com geração de emprego. E, mais do que isso, ampliou essa perspectiva com políticas de renda, como foi o caso do salário mínimo, do Bolsa Família, que tiveram um papel importante no sentido de fortalecer as condições de vida da população mais pobre”.

Entretanto, comenta Dedecca, “isso ainda não é suficiente para fazer uma transformação significativa das condições de vida da população brasileira. Investimentos em educação, saúde, saneamento e reforma agrária são fundamentais para uma transformação social mais robusta do país. Só que isso leva tempo e muitas vezes essas iniciativas são constrangidas pelo calendário eleitoral”.

Modelo econômico e governança

Duas críticas fortes emergem ainda ao PT e sua década de exercício do poder: 1 - a crítica ao modelo que permanece subsumido à lógica do capital e a incapacidade de enfrentá-lo quando necessário; 2 – a opção por uma governabilidade que tornou o partido e governo refém das forças conservadoras.

Na análise de Luiz Werneck Vianna, "O nacional (no Brasil, hoje) é subsumido à lógica da modernização econômica, que, na nova tradução que lhe concede o governo, passa a ser um processo conduzido condominialmente pelo poder político, pela tecnocracia e pelo grande empresariado, novo ator ativo na tomada de decisões, ao contrário dos surtos modernizantes anteriores, em que o poder político agia monocraticamente”.

Segundo ele, “sob esse estatuto de acento bismarkiano, o nacional se apresenta sem vínculos com a agenda da sociedade civil, que se tem orientado, desde a democratização do País, em torno da agenda de direitos. Nesse registro, quando muito, a sociedade civil é vista como uma beneficiária indireta dos êxitos da acumulação capitalista resultante dos econômicos bem-sucedidos no interior de nossas fronteiras e fora delas”. Trata-se pois diz Werneck Vianna “de um projeto nacional grão-burguês, que manipulações ideológicas ora em curso pretendem aproximar retoricamente da configuração do ideário nacional-popular".

Na análise do sociólogo Cândido Grzybowski, “o modelo econômico que foi reativado pelos governos do PT aponta as mesmas opções estratégicas de antes: exportações baseadas em ‘commodities’ minerais e agrícolas, agronegócio, grandes projetos sob a liderança de grandes grupos econômicos e financeiros, energia mesmo ao custo de impactos socioambientais, industrialização e consumismo individual como condição”.

Segundo o filósofo Vladimir Safatle “o governo escolheu alguns players globais, que vão se transformar em empresas multinacionais brasileiras, financiou tais empresas com dinheiro do BNDES e acabou por produzir uma oligopolização da economia, o que é imperdoável”. O projeto desse modelo, destaca o sociólogo José de Souza Martins “é apenas ou sobretudo incluir e integrar, não se trata de superar e de transformar, mas de aderir".

Na análise de André Singer, autor de comentado estudo sobre o lulismo - o PT arquivou o seu radicalismo em 2002 com a Carta ao Povo Brasileiro. “O que estava lá? Um conjunto de garantias ao capital de que o PT não faria um governo de ruptura. Foi uma mudança de fundo. De um partido de confronto para um partido de não confronto com o capital”, afirma. Para Singer, entretanto, o partido e mais que o partido o lulismo simultaneamente executaram políticas de combate à pobreza capazes de ativar o mercado interno e diminuir a desigualdade social, cumprindo uma parte importante do programa original do partido.

Outra condicionante impediu o governo dos 10 anos do PT em avançar em rupturas e assumir uma agenda mais ousada na área social. A política de alianças foi uma delas. Ancorado na tese da governabilidade, o governo fez acordos com forças conservadoras para governar e viu o seu poder de fazer mudanças restringidas por essas forças.

O enorme leque de partidos – amplo, gelatinoso e de espectro ideológico conservador – que se encontra na base do governo desde o seu início foi um freio para enfrentar fortes interesses econômicos. O governo se tornou refém dessa lógica. Não conseguiu enfrentar os interesses do agronegócio, do capital produtivo e financeiro porque em tese argumenta que precisa deles para poder governar.

Esvaziamento do movimento social

Os 10 anos do PT no poder “esvaziou” o movimento social do qual o partido é originário. Três movimentos convergiram para esse processo.

Primeiro, centenas de dirigentes, ativistas e militantes foram para o governo. Uma vez no governo, parcela significativa e majoritária dessa militância assumiu interlocução com os seus movimentos de origem reproduzindo o discurso de que agora o governo avançaria na implementação da agenda dos movimentos e contribuíram para o arrefecimento das mobilizações, articulações e lutas.

Segundo, o governo passou a pautar parte do movimento social ao agendar, por exemplo, as Conferências Nacionais no debate de temas específicos, ato contínuo e combatendo o discurso da criminalização dos movimentos passou a receber reiteradamente os mesmos no Palácio do Planalto com o discurso de permanente diálogo e aparente sensibilidade às demandas apresentadas.

Terceiro, o decréscimo de conflitos na relação com o governo do PT deve-se também ao fato de que muitos movimentos sociais optaram pela distensão quando não atitude colaborativa com o governo.

Nesses 10 anos do PT no poder, um paradoxo se instalou. Melhorou a interlocução, mas não necessariamente o fluxo, encaminhamento e resolução das reivindicações. O governo e o seu modelo desenvolvimentista falou quase sempre mais alto que os interesses dos movimentos sociais.

O painel da festa dos 10 anos do PT no poder citado no início dessa análise traduz a forte metamorfose no que se transformou o PT nesses dez anos. Nele, nenhuma referência aos movimentos sociais que estiveram na origem do partido.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519280-conjuntura

2 de abril de 2013

A transformação do projeto político em um simples projeto de poder



Para Luiz Gonzaga de Souza Lima, a distribuição de renda para a população mais pobre, capitaneada pelo PT, permitindo a sua elevação a um nível de consumo mínimo, teve um efeito imenso sobre a sociedade brasileira. “Muito maior do que a magnitude dos números”, enfatiza

Por: Graziela Wolfart

"Aqui se criou o que deve ser denominado de incorporação excludente"

Autor da tese sobre a refundação do Brasil a partir do conceito da “formação social empresarial” de nosso país na época da colonização, o cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima situa os 10 anos de administração do PT e da esquerda política no Brasil nesse contexto histórico e cultural. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, ele recupera aspectos de sua tese para embasar suas posições a respeito dos rumos da política em nosso país na última década. “Nesses dez últimos anos os governos do PT cometeram erros. Entretanto os seus acertos no tocante à política de renda e de juros e o reconhecimento político dos atores políticos no âmbito das classes populares alteraram profundamente as relações entre cidadãos e estado no Brasil. Alcançar estes objetivos em um regime democrático e sem rupturas nem crise dentro do sistema político e em um quadro de estabilização econômica foi o maior êxito do governo do PT e diferencia seu governo das outras experiências políticas de governos de esquerda no âmbito da América Latina”. No entanto, para Luiz Gonzaga a renúncia utópica protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores diante do poder Executivo federal “termina por desaguar em antigas concepções e tem conduzido o governo à prática de uma política ambiental atrasada e em franco antagonismo com as perspectivas utópicas dos programas originários das esquerdas brasileiras. O sonho de um modelo de desenvolvimento alternativo se dissolve a cada acordo com o agronegócio e, sobretudo, com as grandes empreiteiras”, lamenta.

Luiz Gonzaga de Souza Lima é cientista político mineiro e professor universitário. Estudou psicologia na PUC-Minas e é doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Milão. Lecionou Sociologia do Desenvolvimento e Política Internacional na mesma instituição, de 1974 a 1979. Foi professor de Ciências Políticas e Política Internacional na PUC-Rio. A partir de 1992 foi professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, ensinando Teoria Política e Política Internacional, aposentando-se da universidade em 2008. Atualmente vive entre a Fazenda Inglesa, em Petrópolis, e Cumuruxatiba na Bahia, dedica-se a compartilhar suas reflexões e a escrever ensaios sobre a crise contemporânea. O blog pessoal do autor é www.reflexoes-brasileiras.blogspot.com.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a formação do povo brasileiro nos ajuda a compreender a forma atual de fazer política em nosso país?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Em primeiro lugar me parece necessário colocar a chegada das esquerdas ao poder no Brasil no contexto da originalidade da formação e da história política brasileira. O Brasil se forma a partir da instalação, em nosso território, de um conjunto de agroindústrias modernas, que tinham como finalidade a produção de açúcar para o mercado mundial. Estas empresas do agronegócio foram construídas através da captação de recursos em vários centros econômicos e financeiros europeus. Irá se formar, neste processo, o que pode se entender como uma holding internacional, gerenciada pela coroa portuguesa e por homens de negócios daquele país.

Foi um empreendimento duplamente internacional. De um lado era internacional porque tinha como base capitais, tecnologia e gerenciamento que incorporava agentes de vários países, incluindo governos, banqueiros, comerciantes. Além de portugueses, destacavam-se agentes econômicos das províncias que mais tarde formariam a Holanda e banqueiros italianos. Era um empreendimento europeu, pode-se dizer. Por outro lado, era internacional também porque não produzia para si, mas produzia para o mercado mundial. Suas dimensões sempre foram o mercado mundial. As agroindústrias aqui instaladas nunca possuíram como horizonte o mercado nacional, praticamente inexistente, e não se limitou ao mercado europeu. Produzia para o mundo. O açúcar era consumido e comercializado na África, na Ásia e, principalmente, na Europa.

Empresa Brasil

O conjunto destas agroindústrias constitui o que pode ser chamado de Empresa Brasil. Foi uma empresa “tipo novo”, um empreendimento internacional, já globalizado desde suas origens em sua essência. Esta empresa globalizada participará ativamente da criação do próprio mercado mundial. Será também uma das colunas que darão suporte ao processo de globalização capitalista que amadurecerá definitivamente apenas em nossos tempos, ao final do século passado e neste início de milênio.

Para a construção e operacionalização desta empresa será necessário invadir e ocupar o nosso território. Será necessário também expulsar dos territórios invadidos os habitantes nativos que nele viviam há dezenas de milhares de anos. Hoje é já bastante conhecida a história desta ocupação: genocídio e devastação ambiental. A destruição ambiental e da vida ocorreram em proporções gigantescas. Milhões de humanos destruídos em poucas décadas... Um território imenso, coberto de mata foi transformado em imensas plantações de uma planta que não era nativa, trazida do oriente, a cana. Tudo deu certo. Em poucas décadas o Brasil encheu o mundo de açúcar. Mais de uma centena de engenhos produziam vários milhares de toneladas de açúcar. Por vários séculos o país será o maior produtor mundial de açúcar, e continua no top através da produção do etanol.

Além da invasão e ocupação do nosso território e a construção física da empresa, era necessária força de trabalho, pessoas para cuidar das plantações e da produção. Nativos foram recrutados para o trabalho servil. Os que não combatiam ou fugiam eram convertidos, catequizados e transformados em escravos e servos e incorporados à produção. Mas seu número não era suficiente. O grupo dirigente da Empresa Brasil resolveu a questão da mão de obra em forma surpreendente. Capturar e transportar para aqui humanos que viviam em outro continente, que aqui foram transformados em escravos. Criou-se a escravidão moderna, onde o homem foi reduzido à simples condição de mercadoria. Desde a metade do século XVI que o tráfico de escravos no Atlântico, para o Brasil e depois para toda as Américas, alcançou volumes gigantescos, tanto em número de seres humanos (várias dezenas de milhões) quanto em valor financeiro, rivalizando-se em lucros com o próprio negócio do açúcar.

A grande empresa agroindustrial

Desse modo, a empresa Brasil criou um seu mundo social próprio, um seu jeito de organização social dos humanos, com uma minoria de homens livres que comandavam uma maioria de escravos e servos, organizados no âmbito da grande empresa agroindustrial. É o que tenho chamado de formação social empresarial, muito diferente das sociedades humanas da época. Na nossa formação social a maioria dos humanos não era reconhecida como humanos, mas como coisas. Eram reconhecidos como humanos, membros do sistema social, somente a minoria de brancos e mestiços livres. Os demais eram coisas, eram somente patrimônios. Como classificar uma forma de organização social dos humanos na qual à maioria é negada a própria condição humana?

Aqui se criou o que deve ser denominado de incorporação excludente. A maioria dos humanos era integrada na produção e excluída não somente dos seus frutos, mas da vida social, não lhe sendo reconhecida nem a própria condição humana. A administração da vida social estava subordinada ao governo português. Foi criada a administração colonial, que sempre possuiu três objetivos principais: o primeiro era assegurar a subordinação do negócio e do território à coroa portuguesa; o segundo era garantir o êxito do agronegócio, isto é, servir à Empresa Brasil, e o terceiro (e último) era manter o privilégio social dos europeus e cidadãos livres e assegurar o domínio sobre os escravos e sobre as populações nativas. Foi sempre constituída pelas elites, que dominaram seus vértices e foi sempre mais um âmbito dos negócios. Constituía uma espécie de estado de negócios.

Estado econômico internacionalizado

Esta administração colonial com o passar do tempo acabou por se transformar primeiramente na administração do reino português durante as guerras napoleônicas, e depois no Estado brasileiro. Nesta trajetória histórica, manteve até recentemente todas as suas características.

Mas ela não pode ser compreendida como um estado, no sentido conceitual do que é um Estado nacional. Não existia uma nação. Não foi constituída pelos habitantes do sistema social empresarial aqui estabelecido. Por outro lado não só não possuía soberania, como tinha como finalidade assegurar os pactos econômicos que mantinham a subordinação do país. Também garantia o domínio político, cultural e físico de uma minoria sobre a maioria da população, excluída da renda e da vida social. Desse modo nasceu aqui o Estado econômico internacionalizado, um estado diferente dos estados nacionais como se entendia na Europa.

Nossa história econômica, política, social é mais bem entendida a partir da observação sobre a trajetória das relações existentes no âmbito do trinômio constituído pela Empresa Brasil, pela Formação social empresarial e pelo Estado econômico internacionalizado. Cada parte deste trinômio tem demonstrado grande estabilidade, tanto no que diz respeito às suas funções essenciais quanto em seus fundamentos estruturais. O progresso, a estabilidade e o enriquecimento da Empresa Brasil passou a significar o próprio desenvolvimento. O Brasil sempre mostrou que é possível o desenvolvimento das suas empresas com a pobreza e a exclusão de sua população.

Povo e cultura brasileira

É também necessário observar que nos segredos dos labirintos criados pelas relações entre os termos deste trinômio surgirão outros dois termos que se incorporarão definitivamente na equação histórica brasileira, transformando-a em um novo e complexo polinômio. Trata-se do povo brasileiro, uma etnia nova, que nasce de dentro destas relações, uma etnia diversa entre todas porque é planetária, fruto da mistura de humanos de todos os continentes, e a cultura brasileira, uma cultura mundial, plural em seus fundamentos, por isso mesmo democrática e fundada sobre uma imensa vontade de vida e de alegria. Estes dois novos termos, gerados no curso de um rico processo histórico, começam a se afirmar desde meados do século XX e influenciam cada vez mais a caminhada histórica do Brasil. Esta influência se expressa na reivindicação, implícita com suas próprias existências, de transformar a formação social empresarial em uma sociedade de verdade. Uma sociedade na qual todos sejam reconhecidos e se reconheçam como membro de um mesmo povo, com iguais direitos e deveres, onde a diversidade, física e cultural, seja não só permitida, mas valorizada, com a convivência democrática entre os diversos. Onde também não haja exclusão de nenhum tipo e onde não falte um pedaço de Brasil para os brasileiros. É uma refundação. É possível. Somos poucos e aqui tudo é muito grande.

Inflexões: Vargas e Lula

Somente em dois momentos históricos esta tendência sofrerá inflexões, alterando-se as relações entre os termos deste trinômio. O primeiro destes momentos foi durante o governo Vargas, tanto a ditadura quanto o período presidencial democrático. Um pacto social manterá inalterada a situação no campo, mas assegurará a industrialização, gerando a possibilidade de uma parte da população, até então dominada e excluída, os trabalhadores urbanos, de participar do sistema político e elevar a sua participação na renda nacional. A inserção dos “de baixo” no sistema político será limitada. Eles não poderão se organizar com autonomia, era proibido a construção de partidos operários, socialistas ou comunistas. Ainda assim esta inserção política conduzirá a demandas de mudanças estruturais mais profundas na formação social empresarial. Abrir-se-á uma fase histórica de lutas políticas para a implementação do programa de Reformas de Base. A radicalização inevitável destas pugnas políticas levará à crise do sistema e ao golpe militar de 1964.

O segundo momento foi a vitória eleitoral do PT e a chegada de Lula à presidência da república, que é o objetivo desta entrevista.

É necessário, em primeiro lugar, considerar que as esquerdas não chegam ao poder no Brasil para realizar o “seu” programa. Os ideários socialistas do PT não foram abandonados, mas o programa de governo do PT não os contempla. O PT vence as eleições com uma coalizão partidária heterogênea. Portanto, o programa de governo necessariamente será diferente do programa do PT. O programa de governo do PT, conforme a Carta aos Brasileiros, se propõe ser somente uma gestão diferente do Estado econômico internacionalizado. O que não é pouco. Garante as regras do jogo que sempre foi jogado, mas reivindica a possibilidade de fazer inovações que não alterem os fundamentos do sistema.

A grande descoberta das esquerdas no Brasil

Que diferença é esta? É aquela de realizar mudanças estruturais lentas e graduais na formação social empresarial, reduzindo o nível de exclusão, através de uma nova política de renda, incorporando novas massas aos consumos básicos da sociedade industrial-tecnológica atual, com compensações econômicas às empresas ao mesmo tempo em que assegura a ampliação da participação política da sociedade no âmbito do regime democrático representativo. A invenção desta possibilidade é a grande descoberta das esquerdas no Brasil. Os setores importantes da Empresa Brasil, ou seja, o sistema financeiro, as grandes indústrias multinacionais e o agronegócio mantiveram seu crescimento, aumentaram sua lucratividade, enquanto parte dos recursos fiscais foram distribuídos diretamente à população. Isto faz com que as mudanças estruturais, lentas e graduais, criadas pelos dois governos do PT não produzam conflitos diretos com os principais segmentos da economia capitalista brasileira e internacional. Nem conduziu o país a confrontos políticos no âmbito internacional com os Estados Unidos da América e com a Comunidade Européia. Ao contrário de outros países da América Latina.

IHU On-Line – Em que medida a tese da “formação social empresarial” aparece na forma como o PT conduziu o poder nos últimos 10 anos?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Considerando as dimensões próprias do Brasil, os resultados alcançados por esta nova forma de administrar o país alcançaram resultados notáveis. Os números são imponentes. O principal programa de distribuição de renda, o Bolsa Família, já alcança 14 milhões de famílias e absorve R$ 24 bilhões de reais. A contrapartida dos beneficiários com o programa, sobretudo no que diz respeito à educação infantil e dos jovens, elevou as matrículas para 16 milhões de crianças e jovens. Aumenta também o treinamento e educação de adultos. Somente no sistema SENAI se prevê matrículas na ordem de um milhão no próximo ano. Segundo o economista Marcelo Neri, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 2003 e 2011, 40 milhões de pessoas se juntaram à classe C no Brasil, que passou para 105 milhões de pessoas. No recorte feito por Neri, eram consideradas como classe média famílias com renda mensal entre R$ 1.200 R$ 5.174. Agora, as faixas foram atualizadas para entre R$ 1.750 e R$ 7.450. “É claro que essa não é uma classe média europeia ou americana, é a classe média brasileira” declara o economista.

Mas Por exemplo, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, de 2009, mostra que no âmbito desta nova “classe média” 9% dos pais de família são analfabetos, 71% das famílias não têm planos de saúde e 1,2% das casas (cerca de 400 mil) sequer têm banheiros. (O Globo, 21/03/2013).

Certamente que os números dos programas sociais do governo do PT, que em conjunto absorvem próximo aos 60 bilhões de reais, seriam maiores se não existisse a crise do capitalismo nos países desenvolvidos. Como o Brasil é um país internacionalizado até os miolos, ele tende a sofrer mais o impacto desta crise do capitalismo mundial. Mas ainda assim, o país não sofreu recessão e nem reduziu os seus gastos sociais.

IHU On-Line – Como a tese da “formação social empresarial” favoreceu a criação e o sucesso das políticas sociais de governo implantadas pelo PT em nosso país?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – A verdade é que esta distribuição de renda para a população mais pobre, permitindo a sua elevação a um nível de consumo mínimo, teve um efeito imenso sobre a sociedade brasileira. Muito maior do que a magnitude dos números. Estes programas produziram dois saldos imensos.

O primeiro é a sensação de dignidade que a população mais pobre passou a sentir. Pela primeira vez se sente diretamente beneficiada por um programa do estado. Se sente cidadã. Sente que foi reconhecida. Em uma recente entrevista a um grupo em uma aldeia pobre do nosso país, ouvi que o importante não era o dinheiro, que era até pouco para as necessidades, mas era o cartão e a conta no banco. Permite fazer compras no cartão, e, como assegura uma renda, permite compras a crédito de pequenos bens, que antes não podiam ser efetuadas, como liquidificador, ferro elétrico e até celulares. A transferência de renda associada à redução drástica das taxas de juros que eram cobradas pelo sistema financeiro, alteraram completamente as relações renda/consumo no âmbito da população mais pobre.

Amadurecimento político

O segundo é o amadurecimento político da população quando verifica que seus movimentos sociais são reconhecidos e seus dirigentes são recebidos pelas autoridades. Os índios são recebidos pelas autoridades públicas, ministério público, prefeitos, etc., assim como os camponeses sem terra e as associações, tanto aquelas territoriais como as que tratam de gênero, minorias, meio ambiente, etc. Muitas organizações não governamentais também ajudaram bastante na construção de novas relações entre os movimentos sociais e o estado. Certamente mudaram as relações cidadãos/renda/consumo, mas as alterações nas relações políticas do cidadão com o estado foram mais profundas. Estas relações dizem respeito diretamente ao exercício da cidadania.

Vontade de “ser sociedade”

Estes resultados não monetários da atual política de renda e de juros terminaram por se combinar com a imensa vontade de ser sociedade que este povo novo dos trópicos possui. Uma vontade indomável de romper de vez com os acanhados limites e constrangimentos da formação social empresarial. Tem sido o próprio povo, sobretudo a população mais pobre, que tem afirmado e aumentado o valor deste ganho político e cultural de cidadania. Talvez o maior resultado da política de rendas é bem mais importante do que o consumo que esta permite. Trata-se do encontro desta política com esta vontade de dignidade política que brota da intimidade da alma da população brasileira.

IHU On-Line – O que o PT poderia ter feito pelo Brasil nos últimos 10 anos levando em conta justamente a herança de exclusão que carregamos desde o início de nossa formação histórica? Esse fato pode ajudar a compreendermos por que é tão difícil elaborar um projeto nacional autônomo?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Nestes dez últimos anos os governos do PT cometeram erros. Entretanto os seus acertos no tocante à política de renda e de juros e o reconhecimento político dos atores políticos no âmbito das classes populares alteraram profundamente as relações entre cidadãos e estado no Brasil. Alcançar estes objetivos em um regime democrático e sem rupturas nem crise dentro do sistema político e em um quadro de estabilização econômica foi o maior êxito do governo do PT e diferencia seu governo das outras experiências políticas de governos de esquerda no âmbito da América Latina.

Naturalmente que nem tudo são rosas. O governo do PT também produziu grandes decepções. Os erros do partido e do governo são imensos. Entre eles podem ser considerados:

– O abandono do programa do partido em função de um programa de governo diverso, fruto de conciliações e de um governo de coalizão, sem que seus militantes e eleitores fossem informados com suficiente clareza;

– A acomodação com a realidade do estado de negócios e com o modo tradicional como as elites organizaram as relações entre ocupação de cargos públicos e a economia da empresa Brasil. Ou seja, o estado para cuidar dos negócios, é, ele mesmo, um negócio. A direção deste estado é um negócio que se realiza, em geral, através de relações políticas e econômicas ilegais. É a corrupção, fundamento de todos os cargos públicos neste país desde a primeira administração colonial. Os novos governantes foram envolvidos pelos mesmos mecanismos de corrupção que sempre existiram. Neste sentido o PT, com raras exceções, não se distinguiu de outros partidos, sobretudo daqueles que sempre exerceram o poder no Brasil. Não foi a eleição do Lula a incorporar o PT nestas tradicionais relações entre poder econômico e político. Na medida em que começaram a administrar prefeituras, estados, instituições, empresas estatais, etc., ao longo dos anos, o partido e seus militantes foram sendo progressivamente envolvidos pela sedução destas relações. Quando o PT alcança a Presidência estas relações já tinham envolvido o partido.

Os fantasmas do passado

– O PT foi dominado pelos fantasmas do passado. O sistema político brasileiro produz o que é denominado de presidencialismo de coalizão. O presidente eleito, sobretudo os eleitos no segundo turno, em geral, não possui maioria parlamentar. Talvez o pânico da ingovernabilidade tenha assombrado o PT, e fez com que o golpe de 1964 e afastamento do Collor da Presidência se transformassem em fantasmas. Apenas foi possível vislumbrar a possibilidade de vitória eleitoral, iniciou-se o trabalho de construção de uma maioria parlamentar. Maioria capaz de evitar estes dois desfechos políticos. Em vez de construir esta maioria, ou pelo menos tentar construí-la, à luz do dia, baseada em pontos programáticos, com propostas e discussões públicas, o PT preferiu acordos secretos que foram, na realidade, grandes negócios. O partido preferiu comprar uma maioria parlamentar, como o governo anterior comprou a maioria para votar a emenda da reeleição, e governos de todos os passados compraram todas as maiorias. E começou pelas legendas pequenas e médias, aquelas que no âmbito do sistema político brasileiro são chamadas frequentemente legendas de aluguel. Os episódios são conhecidos e deram origem ao processo judicial do mensalão.

– Vindo de uma experiência de longos anos na oposição, o PT não estava habituado a construir parcerias com forças políticas e atores sociais diferentes dele. Todos, por longos anos, foram seus adversários. Nestas condições o partido, em todos os níveis, preferiu uma ocupação segura de todos os espaços institucionais, partidarizando assim todas as funções públicas. É o que normalmente é chamado de aparelhamento. No regime militar ocorreu este aparelhamento, mas não conseguiu ser completo. Na Nova República, na falta de uma força política hegemônica, os cargos e as funções foram sempre ocupadas por várias forças políticas, juntas nas várias coalizões políticas que se sucederam, o que dava a falsa impressão de que eram escolhidos sempre os melhores, os mais qualificados.

É também necessário considerar que o peso relativo do PT entre as forças políticas que estão no governo é imenso. Existe também o fato de que de todas as forças políticas que estão no governo, o PT é a única que possui seções, militantes e quadros em todo o país. Estas circunstâncias jogaram a favor do aparelhamento.

Somente uma coalizão entre forças políticas fortes, ou uma outra visão da administração pública, poderá conduzir ao exercício do poder em forma plural e com debates públicos e qualificados sobre as opções possíveis para resolver os problemas com os quais esta administração se confronta.

Desvitalização utópica

– A perda de conteúdo utópico. As composições políticas, as alianças necessárias para alcançar e manter o poder e a absorção das esquerdas nos padrões éticos tradicionais da política brasileira, terminaram por conduzir o PT e as esquerdas no poder a uma desvitalização utópica. A utopia foi morrendo junto com o crescimento do pragmatismo político e da transformação da política em questão de êxito pessoal e não mais de construção de um projeto político. O projeto político se transformou em um simples projeto de poder.

Três exemplos ilustram esta transformação.

1) O abandono do tema da Reforma agrária. O modelo de produção rural baseada na grande propriedade, no grande latifúndio (seja de soja, outros cereais ou na grande pecuária extensiva) terminou por obter grandes consensos dentro do governo. Este consenso era necessário para que o grande agronegócio se transformasse em um partner importante do novo governo. Com o abraço a este modelo de produção rural, o PT e as esquerdas abandonaram um dos temas que estão nos fundamentos das suas próprias construções políticas, que é a Reforma Agrária, a garantia de acesso à terra por parte dos produtores rurais brasileiros. Não está na agenda a solução definitiva para o movimento dos sem terra, MST, ou seja, a expropriação e a distribuição de terras para os que integram este grande contingente social brasileiro anda a passos de tartaruga. É uma temática que desagrada o agronegócio e prejudica as alianças de poder em muitos estados brasileiros.

2) A incapacidade de equacionar a questão indígena. Pelo mesmo motivo, aos poucos, vão sendo proteladas as demarcações das terras indígenas, mesmo daquelas que já foram definidas como tal. É também uma área de conflito com o agronegócio. Esta lentidão, como no caso da Reforma Agrária, tem impedido que a política brasileira receba dois atores importantes, em condições de pari dignidade política com os outros. Trata-se dos habitantes originários do território, os verdadeiros fundadores do Brasil e os pequenos proprietários e produtores rurais.

3) Esta renúncia utópica termina por desaguar em antigas concepções e tem conduzido o governo à prática de uma política ambiental atrasada e em franco antagonismo com as perspectivas utópicas dos programas originários das esquerdas brasileiras. O sonho de um modelo de desenvolvimento alternativo se dissolve a cada acordo com o agronegócio e, sobretudo, com as grandes empreiteiras. As grandes empreiteiras terminaram por entrar no pacto de poder, ao lado dos bancos, das multinacionais e do agronegócio.

Decepções profundas na sociedade

O conjunto destes vícios, erros, desvios, chame-se como quiser, produziram decepções profundas na sociedade. O carinho da sociedade com o Ministro do STF Joaquim Barbosa é somente o lado positivo desta decepção.

A mídia brasileira (o oligopólio Marinhos, Frias, Mesquitas, Civitas) tem dedicado praticamente todos os seus espaços “políticos” à crítica destes erros e de outros desvios de conduta dos governos do PT, seja em plano nacional seja nos estados e municípios. O julgamento do mensalão foi o primeiro processo judicial transmitido ao vivo pela principal rede de televisão do país, pautando todas as outras redes e também a imprensa escrita. Estes erros e desvios não são somente objeto de denúncias das oposições conservadoras. Constituem a pauta do debate interno às forças políticas de esquerda, desde o primeiro mandato do Lula. Foram em função destes erros que se acumularam divergências que levaram à primeira cisão do PT, com a criação do PSOL, e, mais tarde à saída da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

O PT continua bem avaliado

Entretanto, o dado mais espetacular da conjuntura política brasileira, após dez anos das esquerdas no poder, é a constatação de que, apesar destes erros, apesar de uma mídia que todos os dias lembra aos brasileiros destes mesmos erros, o governo do PT continua sempre bem avaliado.

Recentemente foi divulgada a pesquisa de avaliação do governo, patrocinada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI. O governo da Presidente Dilma recolhe quase 80% de aprovação – de 78% de aprovação passou para 79% (Ricardo Noblat, 20/03/2013). O dado espetacular se constitui no fato de que, ao mesmo tempo em que a população reprova as ações do PT em vários campos da sua ação política, como no campo da ética, aprova e apóia aspectos fundamentais da sua política econômica e social e está disposta a reeleger o seu governo. Esta aprovação tende a se transformar em intenção de voto.

De acordo com o Datafolha, em pesquisa divulgada no último dia 23 de março, Dilma teria 58%, seguida pela ex-senadora Marina Silva (que articula fundar novo partido, a Rede), com 16% das intenções de voto, enquanto o senador tucano Aécio Neves (PSDB-MG) teria 10% e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), teria 6% das intenções de voto. Seis por cento votariam nulo ou em branco e 3% disseram não saber em que votar. Já o Ibope, em pesquisa feita a pedido do jornal “O Estado de S. Paulo”, aponta Dilma com 52%, mas com um potencial de votos de 76%, pois além dos 52% que dizem que votarão nela com certeza, outros 24% dizem que poderiam votar na atual presidente.

Do ponto de vista apresentado nesta entrevista, essa consagração em alta num período tão pouco favorável não está exclusivamente ligada à performance da economia brasileira e aos resultados materiais, econômicos e financeiros da política de renda. Também é consequência do conteúdo simbólico que a própria população começou a atribuir a estes resultados, ou seja, a questão da dignidade política.

Está ligada também à percepção que a população construiu sobre a eficácia desta invenção original das esquerdas brasileiras, ou seja, a transformação lenta e gradual da estrutura da formação social empresarial, sem provocar crise no conjunto do sistema e com compensações ao que pode ser considerado Empresa Brasil, aliada a transformações nas funções e na operacionalidade do tipo especial de estado que existe entre nós, o estado econômico internacionalizado).

IHU On-Line – Que influência a esquerda católica no Brasil exerceu na constituição da esquerda política em nosso país? Ainda há resquícios desse caráter de esquerda em nossos dias?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – A esquerda católica, ou, de forma mais ampla, os cristãos de esquerda, estiveram como um ator importante nas lutas pela democracia no Brasil e na formação do PT. Contribuíram enormemente para a construção do partido em plano nacional, sempre integrou seus órgãos diretivos e foi com o PT para o governo do país. Símbolos destas posições, Frei Betto foi para o palácio do Planalto com o presidente Lula, Leonardo Boff é um intelectual sempre consultado, Gilberto Carvalho continua no governo com a presidente Dilma, e tantos outros quadros pelo Brasil afora, como Luiz Alberto Gomez de Souza, Candido Mendes, Luiz Eduardo Wanderley e tantos outros.

Estou entre aqueles que atribuem às esquerdas cristãs um papel importante no ideário das esquerdas brasileiras, e com o PT não ocorre diversamente. Para este segmento, que não constitui nem nunca se constituiu em uma corrente política interna, a questão ética possui uma valência política maior. Por este motivo encontramos estas forças ao lado da Heloisa Helena e na formação do PSOL, do qual o Chico Alencar, um importante personagem da esquerda católica, é uma de suas maiores expressões. As encontramos novamente na ruptura que afasta Marina Silva do governo e do PT, e, não diversamente, encontramos estas forças entre as que combateram e combatem, dentro e fora do PT, as posturas políticas que levaram à compra de maiorias políticas no país, nos estados e nos municípios.

A parte que ainda permanece no PT constitui uma espécie de reserva ética, e uma fonte de energia que produz uma dinâmica política positiva. Mas, após as cisões citadas, perdeu parte de sua influência.

IHU On-Line – A partir da forma como o PT/a esquerda administrou o país na última década, que ideia de uma “reinvenção do Brasil” do Brasil pode ser pensada? O que faria parte desta reinvenção?

Luiz Gonzaga de Souza Lima – Não se pode minimizar as transformações sociais que ocorreram nestes últimos dez anos no Brasil. Mas também é inegável que não se construiu uma forma alternativa de viver. Foram construídas somente mudanças marginais no modelo de desenvolvimento capitalista. Este modelo de desenvolvimento apresenta a cada dia sua incompatibilidade com a vida, com toda forma de vida existente no planeta Terra, e se fundamenta em uma relação predatória e destrutiva com a natureza. É um modelo de desenvolvimento e de vida social que se esgotou, que perdeu seu dinamismo e, em sua decadência, intensifica sua força destrutiva. O governo de esquerda no Brasil não se orientou em buscar alternativas de vida social, mesmo sendo o nosso país um daqueles que possuem recursos e possibilidades para experimentar um novo caminho para a humanidade.

A renúncia utópica das esquerdas faz com que a questão da construção de uma sociedade centrada na vida e no equilíbrio com a nossa herança cósmica, permaneça ainda como um projeto, um sonho, que ainda não possui um sujeito político para realizá-lo. Não existe neste momento histórico, nem no Brasil nem em lugar nenhum do mundo, um sujeito político, ou seja, um partido, um movimento, que seja a expressão política de um novo projeto histórico para a humanidade, fundado na centralidade da vida.

Existem muitas forças sociais, movimentos locais, associações, pequenos grupos que procuram articular-se nesta direção. São forças que se alimentam do sonho de um mundo alternativo ao mesmo tempo em que constroem seus conteúdos e seus modos de realização. Estas forças, entretanto, continuam a sonhar, mas ainda não possuem uma face política, ainda não disputam o poder. Mas este tempo também chegará. Inevitavelmente.

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