"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8.32)
2 de abril de 2013
A transformação do projeto político em um simples projeto de poder
Para Luiz Gonzaga de Souza Lima, a distribuição de renda para a população mais pobre, capitaneada pelo PT, permitindo a sua elevação a um nível de consumo mínimo, teve um efeito imenso sobre a sociedade brasileira. “Muito maior do que a magnitude dos números”, enfatiza
Por: Graziela Wolfart
"Aqui se criou o que deve ser denominado de incorporação excludente"
Autor da tese sobre a refundação do Brasil a partir do conceito da “formação social empresarial” de nosso país na época da colonização, o cientista político Luiz Gonzaga de Souza Lima situa os 10 anos de administração do PT e da esquerda política no Brasil nesse contexto histórico e cultural. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, ele recupera aspectos de sua tese para embasar suas posições a respeito dos rumos da política em nosso país na última década. “Nesses dez últimos anos os governos do PT cometeram erros. Entretanto os seus acertos no tocante à política de renda e de juros e o reconhecimento político dos atores políticos no âmbito das classes populares alteraram profundamente as relações entre cidadãos e estado no Brasil. Alcançar estes objetivos em um regime democrático e sem rupturas nem crise dentro do sistema político e em um quadro de estabilização econômica foi o maior êxito do governo do PT e diferencia seu governo das outras experiências políticas de governos de esquerda no âmbito da América Latina”. No entanto, para Luiz Gonzaga a renúncia utópica protagonizada pelo Partido dos Trabalhadores diante do poder Executivo federal “termina por desaguar em antigas concepções e tem conduzido o governo à prática de uma política ambiental atrasada e em franco antagonismo com as perspectivas utópicas dos programas originários das esquerdas brasileiras. O sonho de um modelo de desenvolvimento alternativo se dissolve a cada acordo com o agronegócio e, sobretudo, com as grandes empreiteiras”, lamenta.
Luiz Gonzaga de Souza Lima é cientista político mineiro e professor universitário. Estudou psicologia na PUC-Minas e é doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Milão. Lecionou Sociologia do Desenvolvimento e Política Internacional na mesma instituição, de 1974 a 1979. Foi professor de Ciências Políticas e Política Internacional na PUC-Rio. A partir de 1992 foi professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, ensinando Teoria Política e Política Internacional, aposentando-se da universidade em 2008. Atualmente vive entre a Fazenda Inglesa, em Petrópolis, e Cumuruxatiba na Bahia, dedica-se a compartilhar suas reflexões e a escrever ensaios sobre a crise contemporânea. O blog pessoal do autor é www.reflexoes-brasileiras.blogspot.com.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a formação do povo brasileiro nos ajuda a compreender a forma atual de fazer política em nosso país?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Em primeiro lugar me parece necessário colocar a chegada das esquerdas ao poder no Brasil no contexto da originalidade da formação e da história política brasileira. O Brasil se forma a partir da instalação, em nosso território, de um conjunto de agroindústrias modernas, que tinham como finalidade a produção de açúcar para o mercado mundial. Estas empresas do agronegócio foram construídas através da captação de recursos em vários centros econômicos e financeiros europeus. Irá se formar, neste processo, o que pode se entender como uma holding internacional, gerenciada pela coroa portuguesa e por homens de negócios daquele país.
Foi um empreendimento duplamente internacional. De um lado era internacional porque tinha como base capitais, tecnologia e gerenciamento que incorporava agentes de vários países, incluindo governos, banqueiros, comerciantes. Além de portugueses, destacavam-se agentes econômicos das províncias que mais tarde formariam a Holanda e banqueiros italianos. Era um empreendimento europeu, pode-se dizer. Por outro lado, era internacional também porque não produzia para si, mas produzia para o mercado mundial. Suas dimensões sempre foram o mercado mundial. As agroindústrias aqui instaladas nunca possuíram como horizonte o mercado nacional, praticamente inexistente, e não se limitou ao mercado europeu. Produzia para o mundo. O açúcar era consumido e comercializado na África, na Ásia e, principalmente, na Europa.
Empresa Brasil
O conjunto destas agroindústrias constitui o que pode ser chamado de Empresa Brasil. Foi uma empresa “tipo novo”, um empreendimento internacional, já globalizado desde suas origens em sua essência. Esta empresa globalizada participará ativamente da criação do próprio mercado mundial. Será também uma das colunas que darão suporte ao processo de globalização capitalista que amadurecerá definitivamente apenas em nossos tempos, ao final do século passado e neste início de milênio.
Para a construção e operacionalização desta empresa será necessário invadir e ocupar o nosso território. Será necessário também expulsar dos territórios invadidos os habitantes nativos que nele viviam há dezenas de milhares de anos. Hoje é já bastante conhecida a história desta ocupação: genocídio e devastação ambiental. A destruição ambiental e da vida ocorreram em proporções gigantescas. Milhões de humanos destruídos em poucas décadas... Um território imenso, coberto de mata foi transformado em imensas plantações de uma planta que não era nativa, trazida do oriente, a cana. Tudo deu certo. Em poucas décadas o Brasil encheu o mundo de açúcar. Mais de uma centena de engenhos produziam vários milhares de toneladas de açúcar. Por vários séculos o país será o maior produtor mundial de açúcar, e continua no top através da produção do etanol.
Além da invasão e ocupação do nosso território e a construção física da empresa, era necessária força de trabalho, pessoas para cuidar das plantações e da produção. Nativos foram recrutados para o trabalho servil. Os que não combatiam ou fugiam eram convertidos, catequizados e transformados em escravos e servos e incorporados à produção. Mas seu número não era suficiente. O grupo dirigente da Empresa Brasil resolveu a questão da mão de obra em forma surpreendente. Capturar e transportar para aqui humanos que viviam em outro continente, que aqui foram transformados em escravos. Criou-se a escravidão moderna, onde o homem foi reduzido à simples condição de mercadoria. Desde a metade do século XVI que o tráfico de escravos no Atlântico, para o Brasil e depois para toda as Américas, alcançou volumes gigantescos, tanto em número de seres humanos (várias dezenas de milhões) quanto em valor financeiro, rivalizando-se em lucros com o próprio negócio do açúcar.
A grande empresa agroindustrial
Desse modo, a empresa Brasil criou um seu mundo social próprio, um seu jeito de organização social dos humanos, com uma minoria de homens livres que comandavam uma maioria de escravos e servos, organizados no âmbito da grande empresa agroindustrial. É o que tenho chamado de formação social empresarial, muito diferente das sociedades humanas da época. Na nossa formação social a maioria dos humanos não era reconhecida como humanos, mas como coisas. Eram reconhecidos como humanos, membros do sistema social, somente a minoria de brancos e mestiços livres. Os demais eram coisas, eram somente patrimônios. Como classificar uma forma de organização social dos humanos na qual à maioria é negada a própria condição humana?
Aqui se criou o que deve ser denominado de incorporação excludente. A maioria dos humanos era integrada na produção e excluída não somente dos seus frutos, mas da vida social, não lhe sendo reconhecida nem a própria condição humana. A administração da vida social estava subordinada ao governo português. Foi criada a administração colonial, que sempre possuiu três objetivos principais: o primeiro era assegurar a subordinação do negócio e do território à coroa portuguesa; o segundo era garantir o êxito do agronegócio, isto é, servir à Empresa Brasil, e o terceiro (e último) era manter o privilégio social dos europeus e cidadãos livres e assegurar o domínio sobre os escravos e sobre as populações nativas. Foi sempre constituída pelas elites, que dominaram seus vértices e foi sempre mais um âmbito dos negócios. Constituía uma espécie de estado de negócios.
Estado econômico internacionalizado
Esta administração colonial com o passar do tempo acabou por se transformar primeiramente na administração do reino português durante as guerras napoleônicas, e depois no Estado brasileiro. Nesta trajetória histórica, manteve até recentemente todas as suas características.
Mas ela não pode ser compreendida como um estado, no sentido conceitual do que é um Estado nacional. Não existia uma nação. Não foi constituída pelos habitantes do sistema social empresarial aqui estabelecido. Por outro lado não só não possuía soberania, como tinha como finalidade assegurar os pactos econômicos que mantinham a subordinação do país. Também garantia o domínio político, cultural e físico de uma minoria sobre a maioria da população, excluída da renda e da vida social. Desse modo nasceu aqui o Estado econômico internacionalizado, um estado diferente dos estados nacionais como se entendia na Europa.
Nossa história econômica, política, social é mais bem entendida a partir da observação sobre a trajetória das relações existentes no âmbito do trinômio constituído pela Empresa Brasil, pela Formação social empresarial e pelo Estado econômico internacionalizado. Cada parte deste trinômio tem demonstrado grande estabilidade, tanto no que diz respeito às suas funções essenciais quanto em seus fundamentos estruturais. O progresso, a estabilidade e o enriquecimento da Empresa Brasil passou a significar o próprio desenvolvimento. O Brasil sempre mostrou que é possível o desenvolvimento das suas empresas com a pobreza e a exclusão de sua população.
Povo e cultura brasileira
É também necessário observar que nos segredos dos labirintos criados pelas relações entre os termos deste trinômio surgirão outros dois termos que se incorporarão definitivamente na equação histórica brasileira, transformando-a em um novo e complexo polinômio. Trata-se do povo brasileiro, uma etnia nova, que nasce de dentro destas relações, uma etnia diversa entre todas porque é planetária, fruto da mistura de humanos de todos os continentes, e a cultura brasileira, uma cultura mundial, plural em seus fundamentos, por isso mesmo democrática e fundada sobre uma imensa vontade de vida e de alegria. Estes dois novos termos, gerados no curso de um rico processo histórico, começam a se afirmar desde meados do século XX e influenciam cada vez mais a caminhada histórica do Brasil. Esta influência se expressa na reivindicação, implícita com suas próprias existências, de transformar a formação social empresarial em uma sociedade de verdade. Uma sociedade na qual todos sejam reconhecidos e se reconheçam como membro de um mesmo povo, com iguais direitos e deveres, onde a diversidade, física e cultural, seja não só permitida, mas valorizada, com a convivência democrática entre os diversos. Onde também não haja exclusão de nenhum tipo e onde não falte um pedaço de Brasil para os brasileiros. É uma refundação. É possível. Somos poucos e aqui tudo é muito grande.
Inflexões: Vargas e Lula
Somente em dois momentos históricos esta tendência sofrerá inflexões, alterando-se as relações entre os termos deste trinômio. O primeiro destes momentos foi durante o governo Vargas, tanto a ditadura quanto o período presidencial democrático. Um pacto social manterá inalterada a situação no campo, mas assegurará a industrialização, gerando a possibilidade de uma parte da população, até então dominada e excluída, os trabalhadores urbanos, de participar do sistema político e elevar a sua participação na renda nacional. A inserção dos “de baixo” no sistema político será limitada. Eles não poderão se organizar com autonomia, era proibido a construção de partidos operários, socialistas ou comunistas. Ainda assim esta inserção política conduzirá a demandas de mudanças estruturais mais profundas na formação social empresarial. Abrir-se-á uma fase histórica de lutas políticas para a implementação do programa de Reformas de Base. A radicalização inevitável destas pugnas políticas levará à crise do sistema e ao golpe militar de 1964.
O segundo momento foi a vitória eleitoral do PT e a chegada de Lula à presidência da república, que é o objetivo desta entrevista.
É necessário, em primeiro lugar, considerar que as esquerdas não chegam ao poder no Brasil para realizar o “seu” programa. Os ideários socialistas do PT não foram abandonados, mas o programa de governo do PT não os contempla. O PT vence as eleições com uma coalizão partidária heterogênea. Portanto, o programa de governo necessariamente será diferente do programa do PT. O programa de governo do PT, conforme a Carta aos Brasileiros, se propõe ser somente uma gestão diferente do Estado econômico internacionalizado. O que não é pouco. Garante as regras do jogo que sempre foi jogado, mas reivindica a possibilidade de fazer inovações que não alterem os fundamentos do sistema.
A grande descoberta das esquerdas no Brasil
Que diferença é esta? É aquela de realizar mudanças estruturais lentas e graduais na formação social empresarial, reduzindo o nível de exclusão, através de uma nova política de renda, incorporando novas massas aos consumos básicos da sociedade industrial-tecnológica atual, com compensações econômicas às empresas ao mesmo tempo em que assegura a ampliação da participação política da sociedade no âmbito do regime democrático representativo. A invenção desta possibilidade é a grande descoberta das esquerdas no Brasil. Os setores importantes da Empresa Brasil, ou seja, o sistema financeiro, as grandes indústrias multinacionais e o agronegócio mantiveram seu crescimento, aumentaram sua lucratividade, enquanto parte dos recursos fiscais foram distribuídos diretamente à população. Isto faz com que as mudanças estruturais, lentas e graduais, criadas pelos dois governos do PT não produzam conflitos diretos com os principais segmentos da economia capitalista brasileira e internacional. Nem conduziu o país a confrontos políticos no âmbito internacional com os Estados Unidos da América e com a Comunidade Européia. Ao contrário de outros países da América Latina.
IHU On-Line – Em que medida a tese da “formação social empresarial” aparece na forma como o PT conduziu o poder nos últimos 10 anos?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Considerando as dimensões próprias do Brasil, os resultados alcançados por esta nova forma de administrar o país alcançaram resultados notáveis. Os números são imponentes. O principal programa de distribuição de renda, o Bolsa Família, já alcança 14 milhões de famílias e absorve R$ 24 bilhões de reais. A contrapartida dos beneficiários com o programa, sobretudo no que diz respeito à educação infantil e dos jovens, elevou as matrículas para 16 milhões de crianças e jovens. Aumenta também o treinamento e educação de adultos. Somente no sistema SENAI se prevê matrículas na ordem de um milhão no próximo ano. Segundo o economista Marcelo Neri, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre 2003 e 2011, 40 milhões de pessoas se juntaram à classe C no Brasil, que passou para 105 milhões de pessoas. No recorte feito por Neri, eram consideradas como classe média famílias com renda mensal entre R$ 1.200 R$ 5.174. Agora, as faixas foram atualizadas para entre R$ 1.750 e R$ 7.450. “É claro que essa não é uma classe média europeia ou americana, é a classe média brasileira” declara o economista.
Mas Por exemplo, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, de 2009, mostra que no âmbito desta nova “classe média” 9% dos pais de família são analfabetos, 71% das famílias não têm planos de saúde e 1,2% das casas (cerca de 400 mil) sequer têm banheiros. (O Globo, 21/03/2013).
Certamente que os números dos programas sociais do governo do PT, que em conjunto absorvem próximo aos 60 bilhões de reais, seriam maiores se não existisse a crise do capitalismo nos países desenvolvidos. Como o Brasil é um país internacionalizado até os miolos, ele tende a sofrer mais o impacto desta crise do capitalismo mundial. Mas ainda assim, o país não sofreu recessão e nem reduziu os seus gastos sociais.
IHU On-Line – Como a tese da “formação social empresarial” favoreceu a criação e o sucesso das políticas sociais de governo implantadas pelo PT em nosso país?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – A verdade é que esta distribuição de renda para a população mais pobre, permitindo a sua elevação a um nível de consumo mínimo, teve um efeito imenso sobre a sociedade brasileira. Muito maior do que a magnitude dos números. Estes programas produziram dois saldos imensos.
O primeiro é a sensação de dignidade que a população mais pobre passou a sentir. Pela primeira vez se sente diretamente beneficiada por um programa do estado. Se sente cidadã. Sente que foi reconhecida. Em uma recente entrevista a um grupo em uma aldeia pobre do nosso país, ouvi que o importante não era o dinheiro, que era até pouco para as necessidades, mas era o cartão e a conta no banco. Permite fazer compras no cartão, e, como assegura uma renda, permite compras a crédito de pequenos bens, que antes não podiam ser efetuadas, como liquidificador, ferro elétrico e até celulares. A transferência de renda associada à redução drástica das taxas de juros que eram cobradas pelo sistema financeiro, alteraram completamente as relações renda/consumo no âmbito da população mais pobre.
Amadurecimento político
O segundo é o amadurecimento político da população quando verifica que seus movimentos sociais são reconhecidos e seus dirigentes são recebidos pelas autoridades. Os índios são recebidos pelas autoridades públicas, ministério público, prefeitos, etc., assim como os camponeses sem terra e as associações, tanto aquelas territoriais como as que tratam de gênero, minorias, meio ambiente, etc. Muitas organizações não governamentais também ajudaram bastante na construção de novas relações entre os movimentos sociais e o estado. Certamente mudaram as relações cidadãos/renda/consumo, mas as alterações nas relações políticas do cidadão com o estado foram mais profundas. Estas relações dizem respeito diretamente ao exercício da cidadania.
Vontade de “ser sociedade”
Estes resultados não monetários da atual política de renda e de juros terminaram por se combinar com a imensa vontade de ser sociedade que este povo novo dos trópicos possui. Uma vontade indomável de romper de vez com os acanhados limites e constrangimentos da formação social empresarial. Tem sido o próprio povo, sobretudo a população mais pobre, que tem afirmado e aumentado o valor deste ganho político e cultural de cidadania. Talvez o maior resultado da política de rendas é bem mais importante do que o consumo que esta permite. Trata-se do encontro desta política com esta vontade de dignidade política que brota da intimidade da alma da população brasileira.
IHU On-Line – O que o PT poderia ter feito pelo Brasil nos últimos 10 anos levando em conta justamente a herança de exclusão que carregamos desde o início de nossa formação histórica? Esse fato pode ajudar a compreendermos por que é tão difícil elaborar um projeto nacional autônomo?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Nestes dez últimos anos os governos do PT cometeram erros. Entretanto os seus acertos no tocante à política de renda e de juros e o reconhecimento político dos atores políticos no âmbito das classes populares alteraram profundamente as relações entre cidadãos e estado no Brasil. Alcançar estes objetivos em um regime democrático e sem rupturas nem crise dentro do sistema político e em um quadro de estabilização econômica foi o maior êxito do governo do PT e diferencia seu governo das outras experiências políticas de governos de esquerda no âmbito da América Latina.
Naturalmente que nem tudo são rosas. O governo do PT também produziu grandes decepções. Os erros do partido e do governo são imensos. Entre eles podem ser considerados:
– O abandono do programa do partido em função de um programa de governo diverso, fruto de conciliações e de um governo de coalizão, sem que seus militantes e eleitores fossem informados com suficiente clareza;
– A acomodação com a realidade do estado de negócios e com o modo tradicional como as elites organizaram as relações entre ocupação de cargos públicos e a economia da empresa Brasil. Ou seja, o estado para cuidar dos negócios, é, ele mesmo, um negócio. A direção deste estado é um negócio que se realiza, em geral, através de relações políticas e econômicas ilegais. É a corrupção, fundamento de todos os cargos públicos neste país desde a primeira administração colonial. Os novos governantes foram envolvidos pelos mesmos mecanismos de corrupção que sempre existiram. Neste sentido o PT, com raras exceções, não se distinguiu de outros partidos, sobretudo daqueles que sempre exerceram o poder no Brasil. Não foi a eleição do Lula a incorporar o PT nestas tradicionais relações entre poder econômico e político. Na medida em que começaram a administrar prefeituras, estados, instituições, empresas estatais, etc., ao longo dos anos, o partido e seus militantes foram sendo progressivamente envolvidos pela sedução destas relações. Quando o PT alcança a Presidência estas relações já tinham envolvido o partido.
Os fantasmas do passado
– O PT foi dominado pelos fantasmas do passado. O sistema político brasileiro produz o que é denominado de presidencialismo de coalizão. O presidente eleito, sobretudo os eleitos no segundo turno, em geral, não possui maioria parlamentar. Talvez o pânico da ingovernabilidade tenha assombrado o PT, e fez com que o golpe de 1964 e afastamento do Collor da Presidência se transformassem em fantasmas. Apenas foi possível vislumbrar a possibilidade de vitória eleitoral, iniciou-se o trabalho de construção de uma maioria parlamentar. Maioria capaz de evitar estes dois desfechos políticos. Em vez de construir esta maioria, ou pelo menos tentar construí-la, à luz do dia, baseada em pontos programáticos, com propostas e discussões públicas, o PT preferiu acordos secretos que foram, na realidade, grandes negócios. O partido preferiu comprar uma maioria parlamentar, como o governo anterior comprou a maioria para votar a emenda da reeleição, e governos de todos os passados compraram todas as maiorias. E começou pelas legendas pequenas e médias, aquelas que no âmbito do sistema político brasileiro são chamadas frequentemente legendas de aluguel. Os episódios são conhecidos e deram origem ao processo judicial do mensalão.
– Vindo de uma experiência de longos anos na oposição, o PT não estava habituado a construir parcerias com forças políticas e atores sociais diferentes dele. Todos, por longos anos, foram seus adversários. Nestas condições o partido, em todos os níveis, preferiu uma ocupação segura de todos os espaços institucionais, partidarizando assim todas as funções públicas. É o que normalmente é chamado de aparelhamento. No regime militar ocorreu este aparelhamento, mas não conseguiu ser completo. Na Nova República, na falta de uma força política hegemônica, os cargos e as funções foram sempre ocupadas por várias forças políticas, juntas nas várias coalizões políticas que se sucederam, o que dava a falsa impressão de que eram escolhidos sempre os melhores, os mais qualificados.
É também necessário considerar que o peso relativo do PT entre as forças políticas que estão no governo é imenso. Existe também o fato de que de todas as forças políticas que estão no governo, o PT é a única que possui seções, militantes e quadros em todo o país. Estas circunstâncias jogaram a favor do aparelhamento.
Somente uma coalizão entre forças políticas fortes, ou uma outra visão da administração pública, poderá conduzir ao exercício do poder em forma plural e com debates públicos e qualificados sobre as opções possíveis para resolver os problemas com os quais esta administração se confronta.
Desvitalização utópica
– A perda de conteúdo utópico. As composições políticas, as alianças necessárias para alcançar e manter o poder e a absorção das esquerdas nos padrões éticos tradicionais da política brasileira, terminaram por conduzir o PT e as esquerdas no poder a uma desvitalização utópica. A utopia foi morrendo junto com o crescimento do pragmatismo político e da transformação da política em questão de êxito pessoal e não mais de construção de um projeto político. O projeto político se transformou em um simples projeto de poder.
Três exemplos ilustram esta transformação.
1) O abandono do tema da Reforma agrária. O modelo de produção rural baseada na grande propriedade, no grande latifúndio (seja de soja, outros cereais ou na grande pecuária extensiva) terminou por obter grandes consensos dentro do governo. Este consenso era necessário para que o grande agronegócio se transformasse em um partner importante do novo governo. Com o abraço a este modelo de produção rural, o PT e as esquerdas abandonaram um dos temas que estão nos fundamentos das suas próprias construções políticas, que é a Reforma Agrária, a garantia de acesso à terra por parte dos produtores rurais brasileiros. Não está na agenda a solução definitiva para o movimento dos sem terra, MST, ou seja, a expropriação e a distribuição de terras para os que integram este grande contingente social brasileiro anda a passos de tartaruga. É uma temática que desagrada o agronegócio e prejudica as alianças de poder em muitos estados brasileiros.
2) A incapacidade de equacionar a questão indígena. Pelo mesmo motivo, aos poucos, vão sendo proteladas as demarcações das terras indígenas, mesmo daquelas que já foram definidas como tal. É também uma área de conflito com o agronegócio. Esta lentidão, como no caso da Reforma Agrária, tem impedido que a política brasileira receba dois atores importantes, em condições de pari dignidade política com os outros. Trata-se dos habitantes originários do território, os verdadeiros fundadores do Brasil e os pequenos proprietários e produtores rurais.
3) Esta renúncia utópica termina por desaguar em antigas concepções e tem conduzido o governo à prática de uma política ambiental atrasada e em franco antagonismo com as perspectivas utópicas dos programas originários das esquerdas brasileiras. O sonho de um modelo de desenvolvimento alternativo se dissolve a cada acordo com o agronegócio e, sobretudo, com as grandes empreiteiras. As grandes empreiteiras terminaram por entrar no pacto de poder, ao lado dos bancos, das multinacionais e do agronegócio.
Decepções profundas na sociedade
O conjunto destes vícios, erros, desvios, chame-se como quiser, produziram decepções profundas na sociedade. O carinho da sociedade com o Ministro do STF Joaquim Barbosa é somente o lado positivo desta decepção.
A mídia brasileira (o oligopólio Marinhos, Frias, Mesquitas, Civitas) tem dedicado praticamente todos os seus espaços “políticos” à crítica destes erros e de outros desvios de conduta dos governos do PT, seja em plano nacional seja nos estados e municípios. O julgamento do mensalão foi o primeiro processo judicial transmitido ao vivo pela principal rede de televisão do país, pautando todas as outras redes e também a imprensa escrita. Estes erros e desvios não são somente objeto de denúncias das oposições conservadoras. Constituem a pauta do debate interno às forças políticas de esquerda, desde o primeiro mandato do Lula. Foram em função destes erros que se acumularam divergências que levaram à primeira cisão do PT, com a criação do PSOL, e, mais tarde à saída da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
O PT continua bem avaliado
Entretanto, o dado mais espetacular da conjuntura política brasileira, após dez anos das esquerdas no poder, é a constatação de que, apesar destes erros, apesar de uma mídia que todos os dias lembra aos brasileiros destes mesmos erros, o governo do PT continua sempre bem avaliado.
Recentemente foi divulgada a pesquisa de avaliação do governo, patrocinada pela Confederação Nacional da Indústria – CNI. O governo da Presidente Dilma recolhe quase 80% de aprovação – de 78% de aprovação passou para 79% (Ricardo Noblat, 20/03/2013). O dado espetacular se constitui no fato de que, ao mesmo tempo em que a população reprova as ações do PT em vários campos da sua ação política, como no campo da ética, aprova e apóia aspectos fundamentais da sua política econômica e social e está disposta a reeleger o seu governo. Esta aprovação tende a se transformar em intenção de voto.
De acordo com o Datafolha, em pesquisa divulgada no último dia 23 de março, Dilma teria 58%, seguida pela ex-senadora Marina Silva (que articula fundar novo partido, a Rede), com 16% das intenções de voto, enquanto o senador tucano Aécio Neves (PSDB-MG) teria 10% e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), teria 6% das intenções de voto. Seis por cento votariam nulo ou em branco e 3% disseram não saber em que votar. Já o Ibope, em pesquisa feita a pedido do jornal “O Estado de S. Paulo”, aponta Dilma com 52%, mas com um potencial de votos de 76%, pois além dos 52% que dizem que votarão nela com certeza, outros 24% dizem que poderiam votar na atual presidente.
Do ponto de vista apresentado nesta entrevista, essa consagração em alta num período tão pouco favorável não está exclusivamente ligada à performance da economia brasileira e aos resultados materiais, econômicos e financeiros da política de renda. Também é consequência do conteúdo simbólico que a própria população começou a atribuir a estes resultados, ou seja, a questão da dignidade política.
Está ligada também à percepção que a população construiu sobre a eficácia desta invenção original das esquerdas brasileiras, ou seja, a transformação lenta e gradual da estrutura da formação social empresarial, sem provocar crise no conjunto do sistema e com compensações ao que pode ser considerado Empresa Brasil, aliada a transformações nas funções e na operacionalidade do tipo especial de estado que existe entre nós, o estado econômico internacionalizado).
IHU On-Line – Que influência a esquerda católica no Brasil exerceu na constituição da esquerda política em nosso país? Ainda há resquícios desse caráter de esquerda em nossos dias?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – A esquerda católica, ou, de forma mais ampla, os cristãos de esquerda, estiveram como um ator importante nas lutas pela democracia no Brasil e na formação do PT. Contribuíram enormemente para a construção do partido em plano nacional, sempre integrou seus órgãos diretivos e foi com o PT para o governo do país. Símbolos destas posições, Frei Betto foi para o palácio do Planalto com o presidente Lula, Leonardo Boff é um intelectual sempre consultado, Gilberto Carvalho continua no governo com a presidente Dilma, e tantos outros quadros pelo Brasil afora, como Luiz Alberto Gomez de Souza, Candido Mendes, Luiz Eduardo Wanderley e tantos outros.
Estou entre aqueles que atribuem às esquerdas cristãs um papel importante no ideário das esquerdas brasileiras, e com o PT não ocorre diversamente. Para este segmento, que não constitui nem nunca se constituiu em uma corrente política interna, a questão ética possui uma valência política maior. Por este motivo encontramos estas forças ao lado da Heloisa Helena e na formação do PSOL, do qual o Chico Alencar, um importante personagem da esquerda católica, é uma de suas maiores expressões. As encontramos novamente na ruptura que afasta Marina Silva do governo e do PT, e, não diversamente, encontramos estas forças entre as que combateram e combatem, dentro e fora do PT, as posturas políticas que levaram à compra de maiorias políticas no país, nos estados e nos municípios.
A parte que ainda permanece no PT constitui uma espécie de reserva ética, e uma fonte de energia que produz uma dinâmica política positiva. Mas, após as cisões citadas, perdeu parte de sua influência.
IHU On-Line – A partir da forma como o PT/a esquerda administrou o país na última década, que ideia de uma “reinvenção do Brasil” do Brasil pode ser pensada? O que faria parte desta reinvenção?
Luiz Gonzaga de Souza Lima – Não se pode minimizar as transformações sociais que ocorreram nestes últimos dez anos no Brasil. Mas também é inegável que não se construiu uma forma alternativa de viver. Foram construídas somente mudanças marginais no modelo de desenvolvimento capitalista. Este modelo de desenvolvimento apresenta a cada dia sua incompatibilidade com a vida, com toda forma de vida existente no planeta Terra, e se fundamenta em uma relação predatória e destrutiva com a natureza. É um modelo de desenvolvimento e de vida social que se esgotou, que perdeu seu dinamismo e, em sua decadência, intensifica sua força destrutiva. O governo de esquerda no Brasil não se orientou em buscar alternativas de vida social, mesmo sendo o nosso país um daqueles que possuem recursos e possibilidades para experimentar um novo caminho para a humanidade.
A renúncia utópica das esquerdas faz com que a questão da construção de uma sociedade centrada na vida e no equilíbrio com a nossa herança cósmica, permaneça ainda como um projeto, um sonho, que ainda não possui um sujeito político para realizá-lo. Não existe neste momento histórico, nem no Brasil nem em lugar nenhum do mundo, um sujeito político, ou seja, um partido, um movimento, que seja a expressão política de um novo projeto histórico para a humanidade, fundado na centralidade da vida.
Existem muitas forças sociais, movimentos locais, associações, pequenos grupos que procuram articular-se nesta direção. São forças que se alimentam do sonho de um mundo alternativo ao mesmo tempo em que constroem seus conteúdos e seus modos de realização. Estas forças, entretanto, continuam a sonhar, mas ainda não possuem uma face política, ainda não disputam o poder. Mas este tempo também chegará. Inevitavelmente.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4856&secao=413
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