26 de fevereiro de 2019

A crítica do capitalismo, em tempos de barbárie


Um professor de Filosofia ligado à “crítica do valor” relança livro e sustenta: Bolsonaro não é aberração, mas a nova norma do sistema; para não sermos tragados por ele, precisamos ler Marx a partir de novas óticas
Marildo Menegat, entrevistado por Marco Weissheimer, em Sul21
As crises cíclicas do capitalismo sempre produziram situações destrutivas com regressões à barbárie. Essas crises, porém, não são meramente cíclicas. Elas também vão se acumulando e se tornando cada vez mais crises sistêmicas e estruturais, onde a regressão à barbárie é cada vez mais permanente. Nós já estamos vivendo uma situação de barbárie permanente, onde o sistema insiste em funcionar com a mesma lógica, mesmo que a humanidade e a natureza não sobrevivam a ele. Essa é uma das teses centrais do livro A Crítica do Capitalismo em Temos de Catástrofe (Editora Conseqüência), de Marildo Menegat, professor de Filosofia, do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Menegat esteve em Porto Alegre no início de fevereiro para o lançamento do livro e participou de um debate no Plenarinho da Assembleia Legislativa. Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a sua obra que, entre outras coisas, analisa o atual estágio do capitalismo que estaria levando o mundo a um beco sem saída. “Para continuarmos mantendo o trabalho, produção de mercadorias e circulação de dinheiro como fundamentos desta sociedade nós temos que destruir a humanidade e a natureza”, afirma. O professor da UFRJ também avalia a situação brasileira neste cenário de barbárie permanente em escala global. Para ele, a vitória de Bolsonaro é a expressão política que um colapso social. Segundo critérios da ONU, os números da violência no Brasil já caracterizam uma situação de guerra civil de baixa intensidade. Menegat chama a atenção para o papel dos militares neste cenário e para a experiência que eles tiveram no Haiti:
“Na medida em que o capitalismo vai colapsando no mundo inteiro, inclusive na América Latina – veja os casos da Venezuela, da Argentina e, de certo modo, do Brasil – é necessário garantir espaços territoriais onde ele ainda é capaz de acumular. No Haiti, o Exército brasileiro se capacitou a fazer isso não somente no Brasil, mas na América Latina inteira. A Venezuela, possivelmente, venha a ser uma continuidade dessa experiência”.
O subtítulo de seu livro fala do “giro dos ponteiros do relógio no pulso do morto”. Qual o significado dessa expressão no contexto de sua análise sobre o estágio atual do capitalismo?
Há cerca de 20 anos venho fazendo uma leitura a contrapelo do marxismo, associando-me a uma leitura internacional que vem sendo feita já há mais tempo, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que se chama crítica do valor. A crítica do valor tem dois eixos muito importantes. O primeiro é fazer uma crítica ao que chamamos de categorias que fundamentam a sociedade moderna, como, por exemplo, trabalho, dinheiro, valor, mercadoria. Por outro lado, procura fazer uma análise do processo de crise do capitalismo, um tema muito polêmico e complexo. É polêmico porque o marxismo, no final do século dezenove e início do século vinte, fez grandes discussões sobre o fôlego histórico do capitalismo, questionando se ele era uma forma de produção eterna ou se tinha um tempo histórico determinado. Além disso, também debateu quais eram os sinais de uma possível crise estrutural dessa forma de vida social. Os autores que falavam na possibilidade de um colapso do capitalismo acabaram perdendo a razão de seu argumento quando o capitalismo se reconstroi no período pós-guerra. Só que esses autores estavam certos em afirmar que o capitalismo tinha um limite histórico. Rosa Luxemburgo, por exemplo, dizia que o capitalismo tinha um limite de expansão. Chega um certo momento que a reprodução ampliada dele não consegue mais produzir valor novo.
O capitalismo é, em essência, uma esfera apartada da economia que domina todas as outras esferas da vida social. É uma novidade histórica. Isso não aconteceu na Antiguidade nem na Idade Média. Moses Finley, um historiador judeu-alemão que migrou para a Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, diz que na Grécia antiga e na Roma antiga aquilo que nós chamamos modernamente de economia não existia. É claro que essas sociedades precisam de uma esfera de produção da sua existência material, como toda sociedade precisa. Mas nenhuma sociedade produziu isso por meio de objetivações abstratas como o capitalismo produz. O valor é uma objetivação abstrata. O capitalismo é regido por uma lógica de acumulação de objetividades abstratas que vão se tornando cada vez mais insanas.
Então, quando falamos de crise econômica, estamos falando da essência do capitalismo. O valor, para ser produzido, precisa ser extraído de mais valor. Só que essa extração de mais valor vai sempre depender do desenvolvimento das forças produtivas. Há certo momento do desenvolvimento da técnica em que o trabalho humano é residual e não acumula mais valor novo que permita um processo de expansão do capital. A partir dos anos 70, a crítica do valor começa a desenvolver uma análise que dizia que, com a terceira revolução tecnológica, começamos a chegar neste limite histórico. A partir daí, os fenômenos que passamos a observar no capitalismo são cada vez mais expressões desse limite da acumulação. A crise de 1973-1975 já é uma expressão disso. A partir dela, toda a história do capitalismo é uma tentativa desesperada do capital em busca de saídas para esse limite.
Eu pertenço à geração dos anos 80, quando foram criadas organizações como o PT, a CUT e o MST. Em meio a essas experiências comecei a pensar os limites programáticos delas. O que nos mobiliza como horizonte histórico já não é mais factível. No final dos anos 80, a União Soviética está colapsando e o socialismo real deixa de existir. O limite programático que enfrentamos aqui não é que não haja espaço para uma crítica radical do capitalismo em defesa de outra forma de vida social. Esse limite consiste no fato de que o capitalismo, como uma forma social total mundial, encontrou seu ponto de chegada, iniciando um largo processo de colapso. A minha elaboração é sobre esse colapso do capitalismo visto da periferia, que é a nossa experiência brasileira. E faço isso a partir do conceito de barbárie. “A Crítica do Capitalismo em Tempos de Catástrofe” é o quarto livro desse percurso de elaboração teórica.
Há uma linha de continuidade entre essas obras, então?
Sim. Dos anos 90 até 2018, o que venho fazendo é precisar o que chamo de barbárie. Esse conceito já está presente na Antiguidade. Para os gregos, a barbárie era sempre uma coisa externa à cultura deles. No caso dos romanos, o quadro é um pouco mais complexo, pois eles entendiam que a sua própria cultura também podia produzir barbárie, apesar de chamarem isso mais de decadência. Para o iluminismo, a barbárie sempre será externa: o indígena, o colonizado, o não-europeu ocidental. Em Marx, há uma reflexão muito lúcida sobre a barbárie. Para ele, a barbárie é um produto do próprio desenvolvimento do capitalismo. Marx pensa esse conceito em dois momentos. Por um lado, ele fala de uma barbárie momentânea. Em todo momento de crise, que são cíclicas no capitalismo, se produz uma situação destrutiva com regressões à barbárie. No entanto, essas crises não são meramente cíclicas. Elas também vão se acumulando e se tornando cada vez mais crises sistêmicas e estruturais, onde a regressão à barbárie é cada vez menos momentânea. A barbárie vai se tornando cada vez mais permanente. Na nossa época ela é permanente. Aí é que entra a ideia do giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. O sistema insiste em funcionar, mas a humanidade não sobrevive a ele.
As crises do capitalismo no final do século dezenove e início do vinte foram “resolvidas” com duas guerras mundiais. Esse elemento da destruição é uma condição de sobrevivência do capitalismo?
De sobrevivência eu não diria, mas a guerra moderna nasce com o capitalismo. Robert Kurz mostra que um dos aspectos fundamentais das origens do capitalismo está ligado às armas de fogo. Essas armas introduziram um desequilíbrio na guerra feudal, que tinha armas produzidas de forma artesanal. O equilíbrio de combate entre os senhores feudais era razoável. Quando as armas de fogo começam a ser introduzidas produz-se um imenso desequilíbrio de poder. Correr atrás dessas armas torna-se uma questão de vida ou morte. Elas não são mais produzidas em oficinas artesanais. E para serem adquiridas exigem um tipo de mediação que é o dinheiro, naquela época em forma de ouro, prata, metais preciosos. As armas de fogo produzem uma fome por dinheiro que vai desorganizar completamente a sociedade medieval e iniciar um processo de reorganização da vida social.
Desde esse momento histórico – séculos dezesseis e dezessete – a guerra passou a ser parte permanente do processo de produção e de reprodução do capitalismo. Qualquer economia importante do mundo tem um setor armamentista significativo. O grande salto do capitalismo industrial na Inglaterra, no século dezenove, se dá durante as guerras napoleônicas. Elas exigiram da indústria inglesa um departamento de produção de bens de capital, de máquinas e armas, separado do departamento de produção de bens de consumo. Então, a produção de armas é inerente à história do capitalismo. Em alguns momentos, a produção de armas também é uma boa forma de se dar um destino para uma superacumulação de capital. Toda a lógica do capitalismo é destrutiva. O capitalismo é um modo de produção destrutivo. Voltando à ideia de Marx, a barbárie é o telos, o fim do capitalismo. Ele não é uma base de organização social compatível com a construção de uma civilização emancipada. Esperar do capitalismo as bases dessa emancipação humana é um grande erro.
Considerando essa lógica destrutiva e o atual contexto político e econômico internacional qual é a possibilidade, na tua avaliação, da crise desembocar em uma nova grande guerra em escala global?
Já está em curso. Nos anos 90, tivemos alguns sintomas da crise em curso, como o colapso da União Soviética e do leste europeu, o desmanche da Iugoslávia, a guerra nos Bálcãs, a crise das dívidas externas da América Latina e do norte da África, entre outros. Este contexto histórico vai produzir um tipo de fenômeno social absolutamente novo: novas formas de guerras civis que já não tem uma noção muito definida de tomada de poder. Há um colapso da economia e do Estado e esse espaço é ocupado pela violência. Nós vimos como essa forma de guerra civil se deu nos Bálcãs, com limpezas étnicas e ações da OTAN. O processo de separação de repúblicas que faziam parte da União Soviética, como Georgia e Chechênia, é outro exemplo. Na América Latina, o nosso padrão foi diferente. Aqui esse processo se expressa numa explosão da criminalidade que não carrega consigo uma bandeira nacional ou étnica, embora sejam os pobres e negros que estão sendo esmagados pelas armas.
No final dos anos 70, início dos anos 80, o número de mortes por causas externas no Brasil não passava de 11 mil/ano. Em meados dos anos 90, esse número já tinha subido para a faixa dos 36 mil mortes. Hoje, está em torno de 60 mil mortes/ano. É um crescimento muito maior que o crescimento da população neste período. Portanto, temos uma situação de violência endêmica, resultado de enfrentamentos armados que ocorrem em territórios urbanos. Você não tem exércitos definidos, mas tem uma guerra permanente. Temos uma média de 29 mortes (por causas externas) por 100 mil habitantes. Segundo a ONU, esses dados são os de uma guerra civil de média intensidade. Então, mesmo que não se tenha uma guerra civil declarada, ela está dada.
Essa guerra civil não declarada é contemporânea da guerra na Chechênia e de outras guerras em outras partes do mundo, cada uma com características particulares, mas que fazem parte do mesmo processo de crise do capitalismo. O que é essa crise? A organização da sociedade por meio da produção de mercadorias e a sua permanente expansão já não é mais possível. Uma parte cada vez maior da população está sobrando. E essas pessoas que sobram são sujeitos monetários sem dinheiro. Todos nós que vivemos no capitalismo precisamos de dinheiro para realizar nossas necessidades. Um contingente cada vez maior de pessoas não tem como acessar esse dinheiro, ficando alijadas da vida econômica. Em várias partes do mundo temos esse mesmo fenômeno, cada um com suas particularidades e manifestando-se com uma crescente letalidade.
Nos Bálcãs, tivemos aquilo que a crítica do valor chama de guerra de ordenamento mundial. Essas guerras de ordenamento mundial têm uma característica diferente das antigas guerras imperialistas, onde havia uma grande potência querendo dominar territórios. A Inglaterra e os Estados Unidos se expandiram dominando territórios. A própria Alemanha nazista tentou se expandir dominando territórios. Na atualidade, a última grande superpotência, os Estados Unidos, não tem interesse em dominar diretamente territórios. Ao invés disso, fazem guerras de intervenção para manter minimamente, em várias regiões do mundo, espaços de possível acumulação no capital. No Oriente Médio, por exemplo, toda acumulação de capital passa pelo petróleo. Nos Bálcãs, a acumulação de capital passa por controlar a população daquela região para não colapsar o resto da Europa ocidental.
Nos anos 90, a imigração da população da região da antiga Iugoslávia chegou a cerca de um milhão de pessoas. Foi o primeiro grande surto de refugiados europeus. Hoje, controlar essas massas de refugiados no mundo é uma questão estratégica para se manter as ilhas ainda possíveis de acumulação de capital. Na América Latina essas questões já estão dadas também. Esses conflitos, em um primeiro nível, se organizam como guerras civis, mas elas tendem a se ampliar e nesta ampliação tendem a ser guerras de outra ordem, guerras abertas que envolvem a intervenção de exércitos de diferentes países. Isso talvez possa nos ajudar a entender um pouco um dos fenômenos que está por detrás da grande presença militar no governo Bolsonaro. Esse fenômeno, na minha leitura, tem uma relação direta com a nova fase que entramos neste processo de guerras imanentes ao colapso do capitalismo. As guerras da década de 90 já são insuficientes para explicarmos as guerras que se iniciam depois de 2008 e que tem uma envergadura mais generalizada e exigem intervenções mais abertas.
Os militares brasileiros, então, já teriam uma formulação sobre esse fenômeno?
Sim. A experiência brasileira no Haiti foi definidora disso. Ela serviu, em um primeiro momento, como controle de um país que tinha colapsado. O medo da ONU em relação ao Haiti não era que a população do país estava morrendo de fome, mas sim que ela iniciasse um processo de migração em massa. Era necessário garantir minimamente a governabilidade dos países da região. A intenção básica da resolução da ONU que decidiu que o Brasil lideraria a missão dos capacetes azuis era fazer com que aquela população permanecesse no Haiti. O Exército brasileiro adquire no Haiti uma experiência de intervenção e de governo que é inédita para ele. O general Augusto Heleno, assim como os demais generais que foram para lá, torna-se praticamente o vice-presidente do Haiti. O presidente era uma figura formal, de fachada. Boa parte do governo estava nas mãos de generais brasileiros, inclusive com verbas da ONU razoáveis. Esses generais também precisavam estar em contato com comandantes dos principais exércitos do Conselho de Segurança da ONU, principalmente com o exército americano. Essa experiência internacional vai definir, para os militares brasileiros, a consciência do papel que deveriam ter no futuro, na América Latina. Na medida em que o capitalismo vai colapsando no mundo inteiro, inclusive na América Latina – veja os casos da Venezuela, da Argentina e, de certo modo, do Brasil – é necessário garantir espaços territoriais onde o capitalismo ainda é capaz de acumular. No Haiti, o Exército brasileiro se capacitou a fazer isso não somente no Brasil, mas na América Latina inteira. A Venezuela, possivelmente, venha a ser uma continuidade dessa experiência.
Em um debate realizado em Porto Alegre, em janeiro, Paulo Arantes disse que os militares brasileiros consideram a Venezuela uma Síria em potencial. É por aí mesmo?
Exatamente. O colapso da Venezuela já gerou uma massa de refugiados de aproximadamente três milhões de pessoas, que foram para Colômbia, Equador, Brasil e, uma parte menor, para os Estados Unidos e a Europa. Os desdobramentos futuros envolvendo a Venezuela estão claramente articulados com o cenário que descrevi anteriormente. A América Latina está entrando em uma nova fase neste processo de colapso do capitalismo. As fronteiras nacionais, na medida em que vão colapsando, vão produzindo um movimento de massas humanas assombrosas. O capitalismo brasileiro é o mais organizado da América do Sul e tem setores com capacidade de sobreviver um pouco melhor a essa avalanche. Portanto, é natural que boa parte dessa população seja atraída para o Brasil. Para os militares, definir melhor o controle dessas fronteiras e a capacidade de intervir no interior destes países para controlar suas populações tornou-se uma questão fundamental.
No contexto da análise que faz sobre a situação da América Latina no atual estágio de crise do capitalismo, a eleição de Bolsonaro seria uma espécie de expressão política desse colapso em curso?
 Sim. É perfeita a sua observação. Os governos do PT se deram em meio a esse processo de colapso que vem desde os anos 80. Nos últimos 40 anos, nós tivemos três das quatro piores crises da nossa história. A primeira dessas quatro foi a de 29, que, curiosamente, foi a mais suave das quatro. Depois, tivemos a de 1981-1982, que foi violentíssima e definiu o fim da ditadura militar. Em seguida veio a do período Collor. E, por último, a crise de 2014-2017. Considerando essa nossa história, consciente ou inconscientemente, o debate político se resume a como administrar essas crises que já são sintomas de um colapso. Não nos recuperamos bem de nenhuma delas.
Um bom critério para observar isso é o peso da indústria no PIB brasileiro que vem caindo desde os anos 80. Somos um país em desindustrialização, processo aliás que é uma marca do mundo hoje. Tirando a China, a desindustrialização é uma realidade no mundo inteiro, inclusive nos Estados Unidos onde é um problema grave.
Os quatorze anos de governos do PT foram uma forma de gestão dessa crise. Como eu associo esse colapso do capitalismo a uma regressão permanente à barbárie, cabe dizer que os governos do PT foram formas de gestão da barbárie. Como é que o PT faz essa gestão da barbárie? Ele tem um know how que foi acumulando nas suas experiências municipais em prefeituras. Nestas prefeituras, ele desenvolve o conceito de governabilidade social, que é tornar viáveis pessoas que, do ponto de vista social e econômico, eram inviáveis. Na medida em que a economia deixa de absorver os “inviáveis”, monetarizar esses indivíduos é uma questão fundamental para garantir a continuidade da sua existência. O PT faz isso numa baixa intensidade por meio de um conjunto de programas sociais, o que permite que essas pessoas possam comer, se vestir, ter acesso à escola para seus filhos, ou seja, um mínimo de condições de existência social segundo um padrão civilizatório muito rebaixado.
O PT conseguiu realizar isso no governo federal também por um grande acaso e esse acaso ajuda a explicar o conceito de crise que eu mencionei anteriormente. O capitalismo, desde os anos 70, já não consegue mais se expandir de forma vigorosa, produzindo valor novo. Ele se expande, então fazendo uma acumulação de valor fictícia , que é o processo especulativo. Por meio desse processo, você projeta para agora e consome agora o valor que acha que vai produzir no futuro. Ou seja, consome no presente um futuro que pensa que vai ter, mas não necessariamente vai realizar. Seguindo essa lógica, desde os anos 70, foram se produzindo grandes bolhas globais que vão segurando a economia. Esse mecanismo retarda uma crise mais brutal e cria a ilusão de que a economia está funcionando. É o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto.
No final dos anos 90, tivemos a grande bolha ponto.com, quando assistimos ao crescimento de empresas com Microsoft e Apple. No início do século 21, essa bolha estoura. Em abril de 2001, a bola de Nova York despenca, um sinal claro de que esse mecanismo tinha dificuldades para continuar se reproduzindo. Esvaziada essa bolha da alta tecnologia, criam-se duas novas grandes bolhas, da construção civil e de commodities. A bolha da construção civil envolve Estados Unidos, Espanha, Inglaterra e vários outros países do mundo, enquanto que a bolha de commodities pega a China e boa parte da América Latina. Essas bolhas estão articuladas e constituem um mesmo movimento de realização de um capital que não encontra valor real. É um capital que tem apenas uma forma contábil e precisa seguir se reproduzindo de uma forma contábil.
Essa última bolha coincidiu com o período em que o PT havia vencido as eleições. Neste período, temos uma grande expansão na produção de commodities como ferro, petróleo, soja, milho, entre outros produtos. Com isso foi possível reequilibrar uma economia que já estava na lona, o que permite ao PT reestruturar minimamente algumas funções do Estado e garantir recursos para fazer política públicas que, como eu disse, são políticas de gestão da barbárie. Quando essa bolha estoura, em 2008, já começam a se produzir crises no governo do PT. A partir de 2008, Lula vai ter que fazer uma política contra-cíclica, aumentando o endividamento do Estado. Em um primeiro momento, a economia responde bem e cresce mais de 7%. Temos um período de rearticulação da economia. A bolha internacional também se reequilibra em 2008-2009 até que, em 2012, estoura e desaparece completamente. É neste período que começam as crises dos governos da Dilma.
Aquilo que permitiu ao PT fazer a gestão da barbárie não está mais presente, mas a gestão da barbárie é necessária. A via da governabilidade social, adotada pelo PT, não é mais possível, mas é preciso gerir essas massas humanas sem função nenhuma para o sistema. A minha hipótese é que a gestão da barbárie agora será assumida por formas de violência militar, seja por meio do Exército, seja pelas polícias militares ou pelas milícias. A disseminação de milícias, de norte a sul, é um fenômeno assustador e assombroso no Brasil. Entramos numa nova fase dessa imensa degradação social, onde o bolsonarismo se mostra como a forma agressiva mais capaz de interpretar as necessidades daqueles que ainda têm algum papel na acumulação de capital em nosso país.
Em seu livro, você defende a necessidade de uma profunda transformação teórica, por parte da esquerda, para dar conta desse cenário de degradação social. A partir de que categorias essa mudança deve acontecer, na sua avaliação? Em que medida a obra de Marx é importante para essa tarefa?
Marx ainda é uma obra obrigatória, mas ele não pode ser lido de uma forma fundamentalista. Como toda obra histórica, ela carece de um trabalho de atualização e carrega algumas armadilhas do tempo histórico em que foi elaborada. Os marxistas, de forma geral, são forças modernizadoras e não anti-capitalistas. O marxista mais tradicional que todos conhecemos, que militam em partidos e movimentos sociais, tem como horizonte histórico a ideia de que o capitalismo é um modo de produção que é capaz de produzir um nível de bem estar para a humanidade. Essa ideia é absolutamente insustentável. Durante todo o século 20, nós conhecemos as elaborações de Marx mais adequadas aos momentos de modernização. Nós, brasileiros, durante muito tempo nos pautamos pela ideia de que produzir um parque industrial soberano era o supra-sumo da modernidade.
As categorias do pensamento de Marx precisam ser colocadas em movimento, sob o ponto de vista de uma análise crítica. Uma das ideias que precisa ser debatida é a de que o trabalho é um elemento ontológico da vida social. O trabalho, na verdade, não é uma categoria fundamental da vida humana porque, na sociedade moderna, ele é uma atividade abstrata. Você chama de trabalho tanto o seu trabalho de fim de curso como aluno de universidade quanto o trabalho de alguém que varre a rua. Ambos estão trabalhando. O que é a abstração do trabalho? É uma atividade medida no tempo. Essa atividade medida no tempo produz um valor e recebe um valor de troca, mas ela não tem nada de emancipatória. É apenas uma atividade necessária para a acumulação de valor e acumulação de capital.
Trabalho, mercadoria e dinheiro não são formas eternas, mas sim formas de uma sociedade determinada. E são formas abstratas e irracionais. Para continuarmos mantendo o trabalho, produção de mercadorias e circulação de dinheiro como fundamentos desta sociedade nós temos que destruir a humanidade e a natureza. É um absurdo, mas essa é a lógica posta em curso socialmente. Se não fizermos uma crítica radical a esses fundamentos que nos movem socialmente, vamos nos deparar com uma situação muito estranha que é a de não termos saída. A humanidade, apesar de tudo o que ela acumulou, terá que aceitar sua autodestruição. É uma loucura, não?
https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-critica-do-capitalismo-em-tempos-de-barbarie/

7 de fevereiro de 2019

Bolívia

Ministro do Trabalho da Bolívia:

"Crescimento recorde é fruto do fortalecimento do mercado interno"

07/02/2019
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Ministro Héctor Rodríguez: “a Bolívia descartou a cartilha do FMI e do Banco Mundial”.
Foto: Monica Fonseca Severo
-A +A
La Paz.- Nesta entrevista, o ministro do Trabalho, Emprego e Assistência Social da Bolívia, Héctor Hinojosa Rodríguez, destaca os mais importantes avanços obtidos nestes 13 anos do governo Evo Morales (2006-2019) para a classe trabalhadora e o conjunto da sociedade. Conquistas econômicas, políticas e sociais que, sustentadas na nacionalização dos setores estratégicos e na industrialização, fortalecem a independência e a soberania da nação andina, que se afirma cada vez mais como ponto de referência para os nossos países e povos.

No campo dos direitos laborais e sociais, a estabilidade no emprego para os pais e mães até a criança completar um ano, a política de valorização do salário mínimo – que saltou de cerca de 60 para 300 dólares -, a conquista do 14º salário sempre que o Produto Interno Bruto (PIB) aumentar 4,5% – e o reconhecimento do protagonismo dos movimentos sociais, com quem o presidente se reúne uma vez por mês para debater e deliberar ações governamentais, são iniciativas que reiteram o compromisso democrático e falam por si.

Que as realizações do presidente Evo Morales – que governa o país que mais cresce na América do Sul pelo 5º ano consecutivo – gritem em meio às trevas neoliberais que assombram nosso país e parte do continente com a velha e surrada cartilha de privatizações, desnacionalizações e retrocessos ditada pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Mais do que isso, que os feitos do “país de índios”, tão detestado pelos bolsonaristas, ecoem, estimulando a reflexão e a luta pela Pátria Grande e pela Humanidade.


Com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), o presidente Evo Morales determinou a criação do décimo quarto salário aos trabalhadores públicos e privados como forma de reconhecimento de seu papel na geração da riqueza. Qual o impacto desta medida para o fortalecimento e impulsionamento do mercado interno e sua importância para a desconcentração da renda?

Primeiramente é necessário fazer um esclarecimento. Atualmente, o nosso modelo econômico se assenta sobre certos pilares fundamentais: o primeiro deles é uma política própria, independente e soberana, isso quer dizer que os bolivianos temos nossa própria autodeterminação para definir nossas políticas econômicas, que se definem conforme nossas necessidades nacionais, produtivas e sociais.

Outro dos pilares fundamentais é que se sustenta na nossa própria demanda, no nosso mercado interno. Descartamos desde o início o principio neoliberal do exportar ou morrer. E em terceiro lugar está a recuperação dos nossos recursos naturais, das nossas empresas estatais e, com esta força da economia estatal, temos empreendido o processo de industrialização e diversificação da economia.

Isso é fundamental porque acaba com o velho mito de que a economia que temos é meramente extrativista. Na realidade, o setor extrativo da nossa economia só aporta 13% do Produto Interno Bruto (PIB).

E, finalmente está a redistribuição da riqueza. Elemento que permite que a riqueza que saía antes como exportação de capitais, exportação de produtos, agora fique dentro do país justamente para atender as necessidades mais importantes da população, o que nos tem permitido, em primeiro lugar, reduzir os níveis de pobreza e elevar o nível da qualidade de vida dos bolivianos.

Estes são os princípios que nos permitiram que sejamos, pelo quinto ano consecutivo, o país que mais cresce na América do Sul, com uma média de 4,5% do PIB, que supera o dos demais.

Justamente pelo princípio da distribuição da riqueza foi criado o décimo quarto salário, que é um reconhecimento produtivo dos trabalhadores, dos setores produtivos da economia do país.

Este ano ocorreram modificações no pagamento do 14º salário.

Sim. Uma delas tem a ver com a decisão voluntária do nosso irmão presidente e dos ministros de renunciarem ao 14º salário, economizando os recursos para reforçar precisamente uma das medidas mais importantes que hoje se está aplicando, que é o Sistema Único de Saúde, instrumento com o qual se pretende implantar a saúde gratuita para todo o povo boliviano.

Outra modificação importante que foi realizada é que 15% deste salário extra seja utilizado na compra de produtos feitos na Bolívia, elaborados por nossas manufaturas, por nossa indústria nacional.

Há algum dispositivo de fiscalização?

Sim, existe. Este percentual vai injetar aproximadamente US$ 150 milhões para fortalecer a nossa própria produção. Mesmo que a medida não tenha sido inicialmente compreendida, agora, paulatinamente, todos vão entendendo que se trata de comprar de bolivianos, como um padrão de beneficiando a nossa economia.

Qual a quantidade de trabalhadores beneficiados?

Um dado macroeconômico: no ano de 2005 tínhamos um pouco mais de 500 mil assalariados no país e, na atualidade, temos 1,8 milhão de assalariados.

Há alguma forma de apurar este vínculo empregatício? Porque um dos problemas que temos é justamente a fragilidade das estruturas para a fiscalização. E o que dizer quando há um salto desta magnitude no número de pessoas com relação formal de emprego?

Sim. Nós temos mecanismos de controle. Um deles é denominado Registro Obrigatório de Empregadores. Através deste registro, que é totalmente virtual, no pagamento do 13º salário mais de 23 mil empresas apresentaram suas planilhas de pagamento. Então se espera que também paguem o 14º. Caso não o façam, terão de pagar em dobro. Qualquer trabalhador que seja prejudicado apenas tem de ir a um dos escritórios do Ministério do Trabalho para verificarmos a veracidade da denúncia. Uma vez comprovada, será encaminhada a sanção correspondente, reiterada a obrigatoriedade do pagamento em dobro que o patrão terá de desembolsar.

Quais são as principais conquistas da classe trabalhadora no campo dos direitos socioeconômicos ao longo dos 13 anos do governo Evo?

No passado tínhamos um Estado que nem diríamos neoliberal, mas que tinha como filosofia a economia de mercado. Neste Estado o Ministério do Trabalho tinha a responsabilidade de conciliação entre o capital e o trabalho. Em termos futebolísticos agia como um árbitro, mas sempre um árbitro inclinado a favor do capital. Hoje a Constituição política do Estado determina que a legislação laboral tem como principio fundamental a proteção do trabalho. E não é uma simples inclinação política e ideológica, senão que na realidade entre o empregador, o capital, e entre o operário, o trabalhador, nesta relação sempre sai ganhando o patrão, que é quem tem poder econômico, político, capacidade de influência diante da Justiça, etc.

Então nosso Estado, por meio dos dispositivos trabalhistas, equilibra esta relação desigual, incorporando os princípios fundamentais do direito laboral que buscam a proteção e defesa dos direitos dos trabalhadores. Por isso temos uma das legislações mais avançadas do continente.

Atualmente, podemos dizer que uma das principais conquistas dos trabalhadores têm a ver com a estabilidade laboral, a conquista do trabalho digno e, obviamente, a ampliação de novas fontes de trabalho. Porém temos que destacar a igualdade de direitos entre as trabalhadoras e trabalhadores: salário igual para trabalho igual, o que parece uma utopia mesmo para outros continentes que costumam dizer que são os mais democráticos.

Existem normas trabalhistas que protegem a mãe e o bebê. Tanto as mães quanto os pais gozam de estabilidade durante todo o processo de gestação até o primeiro ano da criança. Além disso, há uma norma específica por meio da qual as pessoas com deficiência gozam de estabilidade permanente.

Obviamente, em relação a outros países os direitos sindicais estão plenamente garantidos. O Fórum Sindical se respeita integralmente, e estamos elaborando normas para proteger ainda mais a atividade sindical. Os sindicatos gozam de plenas liberdades. A relação entre governo e sindicatos é uma relação entre governo e trabalhadores e suas expressões, porque nós nos autodefinimos como governo dos movimentos sociais e dos trabalhadores.

Nosso presidente estabeleceu uma espécie de gabinete social que na primeira terça-feira de cada mês reúne todos os dirigentes das organizações sociais, sindicais, comunitárias, cooperativas, de transporte, camponesas, indígenas, etc., para avaliar com o presidente a conjuntura política, a gestão governamental e elaborar propostas para serem executadas posteriormente pelo governo.

Qual é a estrutura de que dispõe o seu Ministério para acompanhar o cumprimento da legislação trabalhista?

O Ministério tem entre suas responsabilidades duas áreas fundamentais: o vice-Ministério de Trabalho, Higiene e Segurança ocupacional e o de Emprego, Serviço Civil e Cooperativas. O primeiro tem a obrigação de fazer cumprir as normas laborais através de 27 delegacias departamentais e regionais que estão distribuídas em todo o país. Porém contamos também com o funcionamento de estruturas móveis. Além disso, temos boas relações com os sindicatos que são um mecanismo de controle precisamente para fomentar, promover e fortalecer as organizações sindicais, porque com eles nos articulamos, contribuindo mutuamente para o cumprimento das normas. E isso é necessário porque temos um grau de crescimento empresarial que é surpreendente. No ano de 2005 existiam cerca de 60 mil empresas registradas e hoje são 350 mil. Portanto, obviamente, a carga para o Ministério do Trabalho cresceu bastante e fortalecemos mecanismos indiretos que nos ajudam a fazer cumprir as normas laborais.

O outro vice-Ministério tem como objetivo elaborar políticas de emprego que não são medidas de caráter isolado, mas parte do modelo econômico, que se sustenta no investimento público, que está destinado sobretudo a gerar recursos econômicos para a geração de divisas e, com isso também, de emprego. Então, para dizer de uma forma mais didática, são três os setores de investimento do nosso Estado: o de infraestrutura – rodovias, aeroportos, escolas, hospitais, moradias sociais, etc, que geram milhares de empregos – são pelo menos uns 500 mil empregos gerados anualmente apenas por este setor. Depois está o processo de industrialização, que mesmo que não gere tantos empregos de forma direta, o faz de forma indireta, e foram criadas grandes indústrias e temos planos para uma enorme transformação industrial do nosso país. As mais importantes são no setor de hidrocarbonetos (petróleo e gás) e o plano de industrialização do lítio, iniciado com a criação da planta de cloreto de potássio e a assinatura, com uma empresa alemã, para a produção de lítio e a imediata construção de unidades industriais para este objetivo.

No futuro serão criados aproximadamente 15 centros industriais somente em torno do lítio. Isso vai significar grandes investimentos, mas também importantes ingressos econômicos para o nosso país que, segundo os especialistas, representará uma entrada muito maior do que a que nos proporciona atualmente o gás.

A toda esta política de caráter integral se somam programas para abrir postos de trabalho nos mais variados setores, dirigidos a criar estrutura urbana, com ruas asfaltadas, serviços básicos, recuperação de terras e construção de represas que geram centenas de milhares de empregos para setores que não tiveram uma oportunidade.

Temos depois o Plano de Geração de Emprego que conta com um ítem específico destinado a jovens que recém entraram nas universidades e institutos superiores, que vem obtendo êxito, tendo garantido no ano passado entre 3 a 4 mil empregos. O outro está destinado a companheiros sem formação técnica, que não puderam concluir ou sequer iniciar o ensino superior, que é o Programa de Apoio ao Emprego (PAE). Em ambos os casos se criam subsídios que, além dos desempregados, também vão beneficiar as empresas. Por meio do PAE foram inseridas em 2018 cerca de 2.400 pessoas nas frentes de trabalho.

Com a somatória destas iniciativas, temos o índice mais baixo de desemprego da América do Sul que, segundo dados de 2017, é de 4,48%, enquanto Brasil e Argentina superam a taxa de dois dígitos.

Quais os setores econômicos que mais concentram transgressões às normas laborais?

Isso é bem difícil de dizer. Neste momento um dos setores mais ativos da nossa economia é o da construção civil, que acumula inúmeras denúncias, sobretudo no que diz respeito ao cumprimento de normas laborais, sociais e de segurança. Temos criado normas para proteger a vida dos trabalhadores. No final de 2017 aprovamos normas de segurança ocupacional exclusivas para o setor da construção, de tal maneira que se possa proteger os trabalhadores. Neste ano está em pleno processo de aprovação o seguro de vida para os operários da construção. Porém também existem numerosas denúncias em relação ao setor fabril, que é um dos que mais emprega mão de obra, principalmente em La Paz, Santa Cruz e Cochabamba. Há também dificuldades no setor agropecuário em zonas específicas onde se dá a colheita da cana-de-açúcar e da castanha. Aí temos chegado com nossos escritórios móveis, com nossas inspeções. Existem setores que têm caráter informal, com unidades produtivas bastante pequenas e vulneráveis, em que não se cumprem as normas.

Entre as mulheres, as principais denúncias são sobre o assédio, todavia ainda não há, na prática, uma plena igualdade de direitos porque há condutas que afetam o direito das nossas companheiras.

Vale a pena destacar que o Estado tem a vontade política de desenvolver cada vez mais políticas que venham a proteger o trabalhador, mas ao mesmo tempo garantir uma estabilidade econômica e social. Vamos conjugar, de forma integral, os distintos fatores da economia. Porque tampouco se trata de que os sindicatos se equivoquem no caminho com reivindicações econômicas que às vezes não podem ser atendidas pelo Estado. Os sindicatos devem ser um fator importante de contribuição para gerar maior riqueza, mas também para gerar estabilidade econômica e social, que é um dos patrimônios deste processo. Então, de maneira constante, abrimos debates com o setor dos trabalhadores para discutir sobre o papel que devem jogar os sindicatos neste processo de transformação.

Qual o papel que vem tendo a Central Operária Boliviana (COB) para o êxito deste processo de transformação?

A COB assumiu uma posição política de plena coincidência do ponto de vista estratégico com o governo para conquistar uma transformação estrutural da nossa sociedade. É um momento em que existe um pleno encontro no estratégico e no político. É claro que os sindicatos não podem deixar de jogar o papel que desempenham em favor dos trabalhadores e isso acaba gerando desencontros que são circunstanciais. O que não nos impede de, em base ao diálogo e conjuntamente, encontrar soluções.

O reajuste nominal do salário mínimo foi de 368% entre 2005 e 2018 – saltando de 440 para 2.060 bolivianos. O que representou esta elevação em termos de ganho real?

Há um principio que adotamos: o de que o aumento salarial deve ser sempre superior à inflação. Quer dizer que não se trata de uma reposição do poder aquisitivo, mas de um aumento real. E quando estamos falando de incremento real estamos falando que os salários aumentaram sua capacidade de compra em relação ao índice inflacionário. Neste sentido podemos apontar exemplos concretos: o salário mínimo serve para calcular o bônus de antiguidade – pago ao trabalhador para valorizar sua experiência e permanência na empresa – para calcular o pagamento do subsídio à lactância, e serve também para outros cálculos que beneficiam os trabalhadores. A valorização do salário mínimo é, pois, de suma relevância.

No ano de 2005 o salário mínimo era de 440 bolivianos, que equivaliam mais ou menos a 60 dólares; hoje é de 2.060 bolivianos, que se aproxima dos 300 dólares. Sua capacidade aquisitiva é muito maior. E como comparamos isso? Em 2005 com os 440 bolivianos o subsídio à amamentação compreendia somente produtos lácteos: leite, iogurte, queijos, manteiga, para o bebê e sua mãe. Hoje, com os 2.060 bolivianos o subsídio à lactância compra o seguinte: produtos lácteos, cereais – como trigo, lentilha e aveia -, além de produtos próprios da nossa economia como amêndoas. Ademais pode comprar frutas, carnes de boi e de frango, peixes, ovos e em vez de ser uma ajuda à amamentação, como diz o nome, já é uma ajuda à cesta básica familiar. Então a mãe e o filho recebem esta ajuda desde os cinco meses de gravidez até o primeiro ano da criança.

Outra questão é que se reduziu a diferença entre os salários mais altos e os salários mais baixos. Por que os companheiros da COB não aceitaram o regulamento do 14º salário? Porque colocamos um teto de 15 mil bolivianos para o seu pagamento. Mas quanto ganha o presidente? 23 mil bolivianos.

Vale lembrar que no passado, além de um salário superior a 20 mil, o presidente recebia verbas de representação, a que renunciou o nosso irmão presidente. Mais, além destas verbas de representação, tinham um bônus clandestino, que chamavam de gastos reservados. Assim enquanto trabalhadores ganhavam mil, dois mil bolivianos, o presidente ganhava 40 mil, 50 mil bolivianos. Por outro lado o salário é apresentado como um mecanismo para que milhares de pessoas saiam da pobreza. Portanto nosso aumento salarial não é apenas nominal, é real, expandiu a capacidade de compra. E nós sabemos diferenciar isso porque na década de 80 tivemos um processo inflacionário grande.

O salário médio dos trabalhadores fabris é de aproximadamente 4.500 bolivianos. Isso quer dizer que no setor mineiro é ainda maior, como evidentemente os sacrifícios e riscos, havendo mineiros que ganham muito mais que o presidente. No setor extrativo, sobretudo, mineiro e petroleiro.

Uma das condições que permitiu à Bolívia conquistar uma série de recordes no crescimento do PIB – quatro vezes e meia o de 2005 – foi a nacionalização dos hidrocarbonetos com importantes impactos na industrialização. De que forma a formação e a capacitação profissional estão inseridas neste esforço desenvolvimentista e na afirmação da soberania?

É uma pergunta complexa. Primeiro teremos que falar sobre uma herança muito pesada, pois existia uma divisão drástica entre a economia e a educação, entre a produção e a formação profissional. Começamos no campo educativo com um currículo que permite unir a educação e a economia, a formação e a produção, a teoria e a prática. Foram construídas centenas de escolas para a formação técnica dos jovens. Isso com o objetivo precisamente de atender uma das demandas da nova estrutura econômica do nosso país.

No entanto, este déficit só estará sanado daqui a alguns anos, porque ainda temos um gargalo que é a educação superior. As universidades não estão acompanhando este processo. É como se elas estivessem paradas na história. Enquanto todos vamos avançando, as universidades estão um pouco detidas, porque se converteram em refúgio de muitos pseudointelectuais neoliberais que têm maior influencia na academia. Isso evitou a reestruturação necessária e profunda da formação profissional em nosso país. Então não está existindo uma relação harmônica que deveria existir entre educação e produção.

E como estamos solucionando este problema? É que quando se elabora um projeto econômico, como o de comprar um satélite e criar uma fábrica como a de ureia, ou quando vamos construir um hospital, pensamos em criar a estrutura, adquirir a tecnologia e na formação profissional do pessoal que vai fazê-los funcionar. O projeto não é somente criar a indústria, mas também fazer a formação. O exemplo da indústria da ureia: a Samsung fez a indústria, mas está no compromisso do contrato a formação do pessoal, de tal modo que quando se entrega a fábrica o pessoal também é boliviano. Quem dirige? Os bolivianos. Quem dirige o satélite? Os bolivianos. Quem dirige a fábrica de cloreto de potássio? Os bolivianos. Por quê? Porque nos projetos inserimos esta cláusula de formação e capacitação da mão de obra. Embora isso nos imponha um custo econômico a mais, pois se as universidades estivessem sintonizadas teríamos uma poupança para o Estado. Porém nos vimos obrigados a também formar os nossos profissionais a fim de que possam adquirir o conhecimento necessário para gerir o nosso patrimônio.

Uma das preocupações do nosso irmão presidente é desenvolver muito mais a ciência e a tecnologia. Ele costuma dizer de forma didática: nos liberamos politicamente, somos um país independente e soberano. Nos liberamos economicamente, já não dependemos do Fundo Monetário Internacional nem do Banco Mundial. Porém nos falta conquistar a libertação científica e tecnológica para alcançar a nossa plena libertação. Porque a ciência e a tecnologia ajudam imensamente nos processos de transformação. Sem o avanço da ciência e tecnologia não haverá nenhuma revolução.

- Leonardo Wexell Severo, jornal Hora do Povo – Brasil.