16 de junho de 2024

O discurso e a prática.

 

O discurso teológico aceito e recorrente na Igreja diz que pela fé e pelo batismo somos irmãos e irmãs (Cl 1.1-2), somos livres (Gl 5.1), somos iguais (2 Co 8.13-15), somos santos (Ef 1.1) e somos sacerdotes (1 Pe 2.9).

A questão é: qual o projeto de sociedade que a Bíblia propõe para o agora para que possamos ser na prática irmãos e irmãs, livres e iguais? Pois, na prática na sociedade capitalista somos patrão e peão, somos inimigos de classe. Como devemos organizar a economia e a política na sociedade atual para criar todas as condições para que as pessoas possam ser irmãs e livres e não inimigas de classe? Enfim, como é o Reino de Deus (Rm 14.17) na vida real e concreta no já agora?

Qual o projeto de vida plena que a Bíblia propõe na prática para a humanidade? Na prática a Bíblia já propõe isso no Projeto Político Revolucionário da Terra Prometida no AT segundo o credo da classe camponesa palestina em Dt 6.20-23, que fala da Revolução Agrária conduzida por Javé no processo de construção de uma sociedade sem classes para emancipar a classe camponesa.

Os camponeses sem terra escravos somente se tornaram totalmente livres quando tomaram posse coletiva da terra nas montanhas da Palestina (Nm 26.52-56), após terem tomado o poder político do Estado e extinguiram o Estado (Js 8), para após colocar a terra sob controle coletivo, popular, da tribo (Nm 26.52-56), porque a terra é de Deus (Sl 24.1) e por isso não dá para vender ela como propriedade privada (Lv 25.23) porque nós somos posseiros na terra, que é patrimônio da humanidade, e não pode ser propriedade privada, pois é de propriedade de Deus, que a criou. Vender a terra como propriedade privada é como roubar a terra de Deus para torná-la uma mercadoria. Não podemos vender o que não é nosso porque apenas foi emprestado por Deus para todos poderem usá-la para sobreviver. Terra é patrimônio da humanidade, não propriedade privada de alguns. O povo somente é livre se tiver o controle, o usufruto e a posse coletiva dos meios de produção, caso contrário é escravo assalariado. Javé concedeu a terra aos camponeses como posse e controle tribal junto com a extinção do Estado para lhes garantir a total liberdade.

Esse processo insurgente da Revolução Agrária conduzida por Javé pela classe camponesa, que culminou com a extinção da propriedade privada da terra, foi iniciado, organizado e conduzido por Javé (Êx 3) para construir uma sociedade sem classes para emancipar a humanidade. Somente é livre quem tem o poder de participar do controle coletivo dos meios de produção. Quem não controla nenhum meio de produção não é livre, por isso, diz o credo de Dt 6.20-23, que Javé tirou a classe camponesa escrava da escravidão do Egito e deu a terra aos camponeses. Ao dar a terra Javé concede o controle coletivo sobre ela, pois reproduzir a propriedade privada da terra na Terra Prometida seria reproduzir a sociedade de classes, a exploração e a expropriação de classes experimentada no Egito. Javé não deu a terra como propriedade privada, mas como posse e usufruto coletivo. É isso que garante a liberdade de todas as pessoas. O Projeto da Terra Prometida é um Projeto de uma nova sociedade, uma sociedade sem classes onde se eliminou a propriedade privada da terra e com isso o que sustenta essa sociedade de classes, o Estado, criação da sociedade de classes para legalizar a expropriação de classe (Gn 47.13-26). Essa é a grande novidade.

Já em Gn 11.1-9 a Bíblia aponta que Javé elimina o Estado, pela mudança da ideologia (linguagem), por ser resultante da sociedade de classes baseada na propriedade privada da terra. Ao propor a eliminação do Estado Javé está propondo a eliminação do que cria o Estado, que é a propriedade privada da terra, que gera as classes sociais que constroem o Estado como aparelho seu para garantia de manutenção de seus privilégios de classe através das leis, da força militar e do templo como religião do Estado para sacralizar a expropriação de classe como algo divino, sagrado e imutável.

A Bíblia é contra a propriedade privada dos meios de produção, é contra a sociedade de classes, é contra o Estado, é contra a Religião controlada pelo Estado, é contra o controle da religião pela classe economicamente dominante detentora da propriedade privada dos meios de produção. Por isso os levitas não ganharam terra e os apóstolos eram pobres (Mt 19.25-30). A religião (Igreja) deve ser controlada pelos empobrecidos (1 Co 1.27-28; 4.9-13) dentro do processo de luta pela sociedade sem classes, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus, no já agora.

Hoje a IECLB (e sua teologia) é controlada pela pequena burguesia urbana e rural conservadora, o longo braço estendido do capital internacional no município. Essa pequena burguesia defende intransigentemente a propriedade privada dos meios de produção e a sociedade de classes com o seu privilégio natural e (quase) divino de exploração e de expropriação das classes não proprietárias.

Deus é contra a propriedade privada da terra, pois a propriedade privada dos meios de produção gera as classes sociais, os proprietários e os não proprietários (hoje os assalariados e antigamente os escravos). A classe dos proprietários, para defender os seus privilégios de classe, constrói o Estado, como aparelho legitimador e legalizador da exploração e da expropriação das classes não proprietárias. Isso tudo gera a opressão, a exploração de classe e a escravidão, como nos conta Gn 47.13-26. Isso tudo foi gerado porque a terra (meio de produção) foi tornada propriedade privada, que gerou a escravidão de uma parte da população, que perdeu a posse da terra.

Javé para restaurar a liberdade de todo o povo organiza a classe camponesa, a tira do Egito, toma o poder político na Palestina, extingue o Estado, instrumento da classe proprietária, e coloca novamente a terra como posse e usufruto coletivo, sob controle da tribo (Nm 26.52-56). Terra, meio de produção, tem que estar sob controle coletivo para garantir a liberdade de todas as pessoas. Somente é livre quem participa do controle coletivo dos meios de produção. Isso requer a extinção da propriedade privada dos meios de produção e do que ela gera: as classes sociais, a exploração e a expropriação de classe, o Estado e o templo, como religião do Estado. Nesta sociedade sem classes o Poder Popular é exercido em Assembleia Popular (Nm 27.1-11; Js 24). Esse é o Projeto Político de Javé no AT. Como a função da Bíblia é apontar para hoje, esse Projeto de Javé é para ser viabilizado hoje no meio da humanidade para emancipá-la da sociedade de classes. A essência do credo camponês palestino é a subversão da sociedade de classes para eliminá-la.

Assim o AT propõe que seja constituída a sociedade em todos os tempos. É o que o NT chama de uma comunidade de irmãos e de irmãs. Somente podemos ser irmãos de fato se somos livres (Gl 5.1) e o somos se tivermos de fato o poder de controle sobre os meios de produção (At 4.32-37). Patrão e peão não são irmãos, são inimigos de classe.

Na prática ser irmão, livre e santo é viver numa sociedade que controla coletivamente os meios de produção como sugere o credo da classe camponesa palestina em Dt 6t.20-23.

Por isso Mt 19.16-22 diz que a vida eterna e o discipulado de Jesus exigem a extinção da propriedade privada dos meios de produção para acabar com a pobreza advinda da propriedade privada dos meios de produção. A primeira comunidade exercita isso em At 2 e 4 e em Gl 3.28 extingue as classes sociais (Lc 4.18-19 – libertar os cativos), nem liberto nem escravo, que geram a opressão cultural, étnica e de gênero.

Numa sociedade de classes não podemos ser de fato irmãos e irmãs, pois somos de fato patrão e peão, inimigos de classe. É-se irmão e irmã somente quando se está inserido no processo de luta pela extinção da propriedade privada dos meios de produção nas lutas por justiça e paz (Rm 14.17) tocados pela Igreja aliada ao Movimento Popular, ao Movimento Sindical, às ONGs de esquerda e aos Partidos Políticos de esquerda (comunistas) ou quando a Igreja se alia às lutas do Movimento Popular, do Sindical e dos Partidos de esquerda (comunistas). É o que Lutero chama de em processo, num vir a ser, justo e pecador. Comunidade (Igreja) que não está inserida em nenhuma luta por justiça e paz dentro do processo da luta de classes para acabar com a propriedade privada dos meios de produção se autoexcluiu do Reino de Deus. Tem o papel da cachaça: Enevoar e embaralhar a realidade.

O Projeto Político Revolucionário Global de Deus para emancipar a Humanidade da sociedade de classes na Bíblia, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus (Lc 4.43; 16.16), é uma sociedade sem classes sociais, sem patrão e sem peão, sem propriedade privada dos meios de produção, sem luta de classes, sem exploração e expropriação de classe, sem Estado e sem templo, como religião do Estado, que tem o papel de legitimar a propriedade privada e a expropriação de classe. O que define e garante a liberdade das pessoas é o controle coletivo e popular dos meios de produção (Gl 5.1; At 4.32-37; Mt 19.16-22; Nm 26.52-56).

É isso o que na Igreja normalmente se chama de salvação. Salvação é um processo coletivo do qual a pessoa participa por graça e fé. Salvação é um processo coletivo dinâmico, não é estanque e meramente individual. Para isso o Espírito Santo criou um instrumento político revolucionário coletivo em permanente movimento sem fronteiras chamado de Igreja de Jesus Cristo que junto com outros instrumentos políticos insurgentes e revolucionários usados por Deus, como o Movimento Popular, o Movimento Popular Específico (mulheres, negros, indígenas e a comunidade LGBTQIA+), o Movimento Sindical, as ONGs de esquerda e os Partidos Políticos de esquerda (comunistas), que também lutam nesse processo insurgente para construir uma sociedade sem classes onde as pessoas são irmãs, emancipadas, livres e iguais. Esse processo salvífico coletivo (Mt 1.21) já iniciou com Jesus Cristo (Mc 1.14-15) e se completará com a ressurreição do corpo e com a vida eterna do corpo ressurreto.

Quem está inserido nessa luta é irmão e irmã; os outros são inimigos de classe, que devemos amar mostrando esse Projeto Político de Deus de uma sociedade sem classes e sem propriedade privada dos meios de produção, circulação e distribuição para emancipar a humanidade. Amamos os nossos inimigos de classe quando os expropriamos pelo processo revolucionário divino do Reino de Deus de seus meios de produção (Jesus convida para a auto expropriação dos expropriadores – Mt 19.21; At 5.1-11), colocando-os sob controle popular para usufruto de todos, e com isso construímos uma sociedade sem classes, de irmãos e irmãs, de pessoas livres, uma humanidade emancipada sem pobreza.

Isso hoje é mais urgente como nunca, pois o Colapso Planetário posto em andamento pela sociedade de classes capitalista nos mostrou no Rio Grande como é o processo catastrófico gerado pelo capitalismo que vai extinguir a vida no Planeta Terra. As tempestades que se abateram sobre o Rio Grande são tempestades capitalistas, geradas pela dinâmica da superexploração dos recursos naturais que criaram a crise climática. O capitalismo é a origem dos desastres ocorridos no Rio Grande. Isso é apenas o aperitivo do que está por vir, a não ser que eliminemos o capitalismo ao eliminar a propriedade privada dos meios de produção, circulação e distribuição e construímos uma sociedade de irmãos e irmãs como propõe o Evangelho de Jesus Cristo.

Chamar os outros de irmãos requer a inserção na luta para acabar com a propriedade privada dos meios de produção e seus mecanismos de reprodução que impedem de sermos irmãos e irmãs. Esse processo revolucionário insurgente sem fronteiras Jesus Cristo chama de Reino de Deus. No Reino de Deus não há propriedade privada dos meios de produção, nem classes sociais, nem luta de classes, nem exploração e expropriação de classe, nem opressão cultural, étnica e de gênero, nem Estado e nem templo, como religião do Estado, para legitimar a sociedade de classes e seus mecanismos de reprodução.

Essa leitura sobre o Projeto Político Revolucionário de Javé para Emancipar a Humanidade da sociedade de classes foi possível quando usamos o método de Marx de leitura da realidade e da Bíblia. Como a Bíblia é resultado da realidade pode-se usar o método de Marx de ler a realidade também para ler a Bíblia. Usa-se o ponto de vista da totalidade, a teoria da luta de classes e o conceito de modo de produção.

"O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento.", diz Hegel. O todo condiciona as partes. Não existe uma parte isolada do todo. O Projeto Político Global de Deus para a Humanidade condiciona as partes, as perícopes (os textos bíblicos isolados). As perícopes devem ser lidas a partir do todo. Isso amplia em muito a interpretação das perícopes. Essa leitura questiona a leitura da Bíblia que aprendemos sob o ponto de vista colonialista europeu cartesiano positivista liberal, que legitima o capitalismo e toda sociedade de classes.

A Bíblia é resultado da luta de classes (como mostra o credo de Dt 6.20-23) para apontar para a eliminação da sociedade de classes como Projeto de Javé para podermos ser irmãos e irmãs, iguais e livres. A confissão de fé da classe camponesa palestina em Dt 6.20-23 é o relato escrito da luta de classes na qual Javé se inseriu ao lado da classe camponesa, Javé fez uma opção de classe, para acabar com a sociedade de classes ao colocar a terra como posse e usufruto coletivos, extinguindo a propriedade privada da terra – Lv 25.23; Nm 26.52-56 – e garantindo a liberdade do povo.

O método de Marx nos ajuda a aprofundar o conteúdo bíblico. Precisamos conhecê-lo. Tomás de Aquino já disse: “Um erro no conhecimento do mundo pode nos induzir a um erro no conhecimento de Deus”.  Os capitalistas na Igreja dirão que não se pode usar o método de Marx para ajudar na leitura da Bíblia. Somente a visão capitalista colonialista patriarcal cartesiana positivista liberal europeia de Deus e de mundo pode ser usada na interpretação da Bíblia, dizem os capitalistas que mandam na Igreja, insinuando que essa leitura é neutra e apolítica. Essa visão tem legitimado o colonialismo, o escravismo colonial, o genocídio africano-indígena-camponês há mais de 500 anos. Somente a leitura capitalista da Bíblia é permitida na Igreja, sem dizer que é uma leitura capitalista, pois isto mostraria que essa leitura (de viés colonialista europeia-estadunidense) é ideológica, política, parcial e unilateral.

Não há uma leitura neutra da Bíblia e nem da realidade da sociedade de classes. Toda leitura da realidade e da Bíblia é ideológica, política, parcial, unilateral, classista, étnica e sexista. A confissão de fé da classe camponesa palestina em Dt 6.20-23 é ideológica, política, parcial, unilateral, classista, étnica e sexista. A opção de Javé para construir uma sociedade não classista nas montanhas da Palestina é classista e unilateral, pela classe camponesa. Por que Javé opta pela classe camponesa? Porque a classe-Estado que controlava a sociedade (Êx 5) não queria construir uma sociedade não classista, mas queria perpetuar a exploração e expropriação de classe (Gn 47.13-26).

Assim também hoje a classe capitalista que controla a sociedade não quer construir uma sociedade não classista. Por isso também hoje Javé opta pelas classes subalternas (classe trabalhadora, classe camponesa e povos originários e demais setores marginalizados da sociedade: mulheres, negros, comunidade LGBTQIA+) para com elas construir a nova sociedade não classista, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Javé fez a sua opção de classe no camponês sem terra marginal palestino empobrecido Jesus de Nazaré, o Cristo, para com ele construir essa sociedade não classista de irmãos e de irmãs, que a Bíblia chama de Reino de Deus.

Um pequeno burguês nos anos 80 me disse: Não dá para fazer o que a Bíblia diz, quando havíamos estudado At 4.32-37. Se não dá para fazer o que a Bíblia diz então nós cristãos somos um bando de idiotas, aloprados e imbecis que se reúnem ao redor da Palavra de Deus na igreja que na prática não dá para realizar. Tem que ser muito idiota e estúpido para se reunir no culto e ouvir uma Palavra que na prática não dá para realizar.

A questão é: não é que não dá para fazer o que a Bíblia diz, mas a questão é que não queremos fazer o que a Bíblia diz, pois isso requer arrependimento e fé no evangelho, como diz em Mc 1.15. Isso requer ruptura radical com a sociedade de classes e suas bases, exige ruptura com a prática capitalista de viver e de pensar. Isso exige conversão para o Projeto do Reino de Deus, que é uma sociedade sem classes, onde a propriedade privada dos meios de produção foi extinta como exigência da vida eterna e do discipulado de Jesus (Mt 19.16-22). Isso a burguesia não pode admitir, por isso ela controla administrativamente a Igreja para impor a sua teologia: a teologia do deus Capital com máscara de Jesus Cristo, que legitima o capitalismo.

Palmitos, SC, 11 de junho de 2024

Pastor Günter Adolf Wolff