O discurso teológico aceito e recorrente na Igreja diz que pela fé e
pelo batismo somos irmãos e irmãs (Cl 1.1-2), somos livres (Gl 5.1), somos iguais
(2 Co 8.13-15), somos santos (Ef 1.1) e somos sacerdotes (1 Pe 2.9).
A questão é: qual o projeto de sociedade que a Bíblia propõe para o
agora para que possamos ser na prática irmãos e irmãs, livres e iguais? Pois,
na prática na sociedade capitalista somos patrão e peão, somos inimigos de
classe. Como devemos organizar a economia e a política na sociedade atual para
criar todas as condições para que as pessoas possam ser irmãs e livres e não
inimigas de classe? Enfim, como é o Reino de Deus (Rm 14.17) na vida real e
concreta no já agora?
Qual o projeto de vida plena que a Bíblia propõe na prática para a humanidade?
Na prática a Bíblia já propõe isso no Projeto Político Revolucionário da Terra
Prometida no AT segundo o credo da classe camponesa palestina em Dt 6.20-23,
que fala da Revolução Agrária conduzida por Javé no processo de construção de
uma sociedade sem classes para emancipar a classe camponesa.
Os camponeses sem terra escravos somente se tornaram totalmente livres quando tomaram posse coletiva da terra nas montanhas da Palestina (Nm 26.52-56), após terem tomado o poder político do Estado e extinguiram o Estado (Js 8), para após colocar a terra sob controle coletivo, popular, da tribo (Nm 26.52-56), porque a terra é de Deus (Sl 24.1) e por isso não dá para vender ela como propriedade privada (Lv 25.23) porque nós somos posseiros na terra, que é patrimônio da humanidade, e não pode ser propriedade privada, pois é de propriedade de Deus, que a criou. Vender a terra como propriedade privada é como roubar a terra de Deus para torná-la uma mercadoria. Não podemos vender o que não é nosso porque apenas foi emprestado por Deus para todos poderem usá-la para sobreviver. Terra é patrimônio da humanidade, não propriedade privada de alguns. O povo somente é livre se tiver o controle, o usufruto e a posse coletiva dos meios de produção, caso contrário é escravo assalariado. Javé concedeu a terra aos camponeses como posse e controle tribal junto com a extinção do Estado para lhes garantir a total liberdade.
Esse processo insurgente da Revolução Agrária conduzida por Javé pela
classe camponesa, que culminou com a extinção da propriedade privada da terra,
foi iniciado, organizado e conduzido por Javé (Êx 3) para construir uma
sociedade sem classes para emancipar a humanidade. Somente é livre quem tem o
poder de participar do controle coletivo dos meios de produção. Quem não
controla nenhum meio de produção não é livre, por isso, diz o credo de Dt
6.20-23, que Javé tirou a classe camponesa escrava da escravidão do Egito e deu
a terra aos camponeses. Ao dar a terra Javé concede o controle coletivo sobre
ela, pois reproduzir a propriedade privada da terra na Terra Prometida seria
reproduzir a sociedade de classes, a exploração e a expropriação de classes
experimentada no Egito. Javé não deu a terra como propriedade privada, mas como
posse e usufruto coletivo. É isso que garante a liberdade de todas as pessoas.
O Projeto da Terra Prometida é um Projeto de uma nova sociedade, uma sociedade
sem classes onde se eliminou a propriedade privada da terra e com isso o que
sustenta essa sociedade de classes, o Estado, criação da sociedade de classes
para legalizar a expropriação de classe (Gn 47.13-26). Essa é a grande
novidade.
Já em Gn 11.1-9 a Bíblia aponta que Javé elimina o Estado, pela mudança
da ideologia (linguagem), por ser resultante da sociedade de classes baseada na
propriedade privada da terra. Ao propor a eliminação do Estado Javé está
propondo a eliminação do que cria o Estado, que é a propriedade privada da
terra, que gera as classes sociais que constroem o Estado como aparelho seu para
garantia de manutenção de seus privilégios de classe através das leis, da força
militar e do templo como religião do Estado para sacralizar a expropriação de
classe como algo divino, sagrado e imutável.
A Bíblia é contra a propriedade privada dos meios de produção, é contra
a sociedade de classes, é contra o Estado, é contra a Religião controlada pelo
Estado, é contra o controle da religião pela classe economicamente dominante
detentora da propriedade privada dos meios de produção. Por isso os levitas não
ganharam terra e os apóstolos eram pobres (Mt 19.25-30). A religião (Igreja)
deve ser controlada pelos empobrecidos (1 Co 1.27-28; 4.9-13) dentro do
processo de luta pela sociedade sem classes, que Jesus Cristo chama de Reino de
Deus, no já agora.
Hoje a IECLB (e sua teologia) é controlada pela pequena burguesia urbana
e rural conservadora, o longo braço estendido do capital internacional no
município. Essa pequena burguesia defende intransigentemente a propriedade privada
dos meios de produção e a sociedade de classes com o seu privilégio natural e
(quase) divino de exploração e de expropriação das classes não proprietárias.
Deus é contra a propriedade privada da terra, pois a propriedade privada
dos meios de produção gera as classes sociais, os proprietários e os não
proprietários (hoje os assalariados e antigamente os escravos). A classe dos
proprietários, para defender os seus privilégios de classe, constrói o Estado,
como aparelho legitimador e legalizador da exploração e da expropriação das
classes não proprietárias. Isso tudo gera a opressão, a exploração de classe e
a escravidão, como nos conta Gn 47.13-26. Isso tudo foi gerado porque a terra
(meio de produção) foi tornada propriedade privada, que gerou a escravidão de
uma parte da população, que perdeu a posse da terra.
Javé para restaurar a liberdade de todo o povo organiza a classe
camponesa, a tira do Egito, toma o poder político na Palestina, extingue o
Estado, instrumento da classe proprietária, e coloca novamente a terra como
posse e usufruto coletivo, sob controle da tribo (Nm 26.52-56). Terra, meio de
produção, tem que estar sob controle coletivo para garantir a liberdade de
todas as pessoas. Somente é livre quem participa do controle coletivo dos meios
de produção. Isso requer a extinção da propriedade privada dos meios de
produção e do que ela gera: as classes sociais, a exploração e a expropriação
de classe, o Estado e o templo, como religião do Estado. Nesta sociedade sem
classes o Poder Popular é exercido em Assembleia Popular (Nm 27.1-11; Js 24).
Esse é o Projeto Político de Javé no AT. Como a função da Bíblia é apontar para
hoje, esse Projeto de Javé é para ser viabilizado hoje no meio da humanidade
para emancipá-la da sociedade de classes. A essência do credo camponês
palestino é a subversão da sociedade de classes para eliminá-la.
Assim o AT propõe que seja constituída a sociedade em todos os tempos. É
o que o NT chama de uma comunidade de irmãos e de irmãs. Somente podemos ser
irmãos de fato se somos livres (Gl 5.1) e o somos se tivermos de fato o poder
de controle sobre os meios de produção (At 4.32-37). Patrão e peão não são
irmãos, são inimigos de classe.
Na prática ser irmão, livre e santo é viver numa sociedade que controla
coletivamente os meios de produção como sugere o credo da classe camponesa
palestina em Dt 6t.20-23.
Por isso Mt 19.16-22 diz que a vida eterna e o discipulado de Jesus
exigem a extinção da propriedade privada dos meios de produção para acabar com
a pobreza advinda da propriedade privada dos meios de produção. A primeira
comunidade exercita isso em At 2 e 4 e em Gl 3.28 extingue as classes sociais
(Lc 4.18-19 – libertar os cativos), nem liberto nem escravo, que geram a
opressão cultural, étnica e de gênero.
Numa sociedade de classes não podemos ser de fato irmãos e irmãs, pois
somos de fato patrão e peão, inimigos de classe. É-se irmão e irmã somente quando
se está inserido no processo de luta pela extinção da propriedade privada dos
meios de produção nas lutas por justiça e paz (Rm 14.17) tocados pela Igreja
aliada ao Movimento Popular, ao Movimento Sindical, às ONGs de esquerda e aos Partidos
Políticos de esquerda (comunistas) ou quando a Igreja se alia às lutas do
Movimento Popular, do Sindical e dos Partidos de esquerda (comunistas). É o que
Lutero chama de em processo, num vir a ser, justo e pecador. Comunidade
(Igreja) que não está inserida em nenhuma luta por justiça e paz dentro do
processo da luta de classes para acabar com a propriedade privada dos meios de
produção se autoexcluiu do Reino de Deus. Tem o papel da cachaça: Enevoar e
embaralhar a realidade.
O Projeto Político Revolucionário Global de Deus para emancipar a
Humanidade da sociedade de classes na Bíblia, que Jesus Cristo chama de Reino
de Deus (Lc 4.43; 16.16), é uma sociedade sem classes sociais, sem patrão e sem
peão, sem propriedade privada dos meios de produção, sem luta de classes, sem
exploração e expropriação de classe, sem Estado e sem templo, como religião do
Estado, que tem o papel de legitimar a propriedade privada e a expropriação de
classe. O que define e garante a liberdade das pessoas é o controle coletivo e
popular dos meios de produção (Gl 5.1; At 4.32-37; Mt 19.16-22; Nm 26.52-56).
É isso o que na Igreja normalmente se chama de salvação. Salvação é um
processo coletivo do qual a pessoa participa por graça e fé. Salvação é um
processo coletivo dinâmico, não é estanque e meramente individual. Para isso o
Espírito Santo criou um instrumento político revolucionário coletivo em
permanente movimento sem fronteiras chamado de Igreja de Jesus Cristo que junto
com outros instrumentos políticos insurgentes e revolucionários usados por Deus,
como o Movimento Popular, o Movimento Popular Específico (mulheres, negros,
indígenas e a comunidade LGBTQIA+), o Movimento Sindical, as ONGs de esquerda e
os Partidos Políticos de esquerda (comunistas), que também lutam nesse processo
insurgente para construir uma sociedade sem classes onde as pessoas são irmãs,
emancipadas, livres e iguais. Esse processo salvífico coletivo (Mt 1.21) já
iniciou com Jesus Cristo (Mc 1.14-15) e se completará com a ressurreição do
corpo e com a vida eterna do corpo ressurreto.
Quem está inserido nessa luta é irmão e irmã; os outros são inimigos de
classe, que devemos amar mostrando esse Projeto Político de Deus de uma
sociedade sem classes e sem propriedade privada dos meios de produção,
circulação e distribuição para emancipar a humanidade. Amamos os nossos
inimigos de classe quando os expropriamos pelo processo revolucionário divino
do Reino de Deus de seus meios de produção (Jesus convida para a auto expropriação
dos expropriadores – Mt 19.21; At 5.1-11), colocando-os sob controle popular
para usufruto de todos, e com isso construímos uma sociedade sem classes, de
irmãos e irmãs, de pessoas livres, uma humanidade emancipada sem pobreza.
Isso hoje é mais urgente como nunca, pois o Colapso Planetário posto em
andamento pela sociedade de classes capitalista nos mostrou no Rio Grande como
é o processo catastrófico gerado pelo capitalismo que vai extinguir a vida no
Planeta Terra. As tempestades que se abateram sobre o Rio Grande são
tempestades capitalistas, geradas pela dinâmica da superexploração dos recursos
naturais que criaram a crise climática. O capitalismo é a origem dos desastres
ocorridos no Rio Grande. Isso é apenas o aperitivo do que está por vir, a não
ser que eliminemos o capitalismo ao eliminar a propriedade privada dos meios de
produção, circulação e distribuição e construímos uma sociedade de irmãos e
irmãs como propõe o Evangelho de Jesus Cristo.
Chamar os outros de irmãos requer a inserção na luta para acabar com a
propriedade privada dos meios de produção e seus mecanismos de reprodução que
impedem de sermos irmãos e irmãs. Esse processo revolucionário insurgente sem
fronteiras Jesus Cristo chama de Reino de Deus. No Reino de Deus não há propriedade
privada dos meios de produção, nem classes sociais, nem luta de classes, nem
exploração e expropriação de classe, nem opressão cultural, étnica e de gênero,
nem Estado e nem templo, como religião do Estado, para legitimar a sociedade de
classes e seus mecanismos de reprodução.
Essa leitura sobre o Projeto Político Revolucionário de Javé para
Emancipar a Humanidade da sociedade de classes foi possível quando usamos o
método de Marx de leitura da realidade e da Bíblia. Como a Bíblia é resultado
da realidade pode-se usar o método de Marx de ler a realidade também para ler a
Bíblia. Usa-se o ponto de vista da totalidade, a teoria da luta de classes e o
conceito de modo de produção.
"O verdadeiro é o todo. Mas o todo é
somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento.", diz Hegel. O todo condiciona as partes. Não existe uma parte isolada
do todo. O Projeto Político Global de Deus para a Humanidade condiciona as
partes, as perícopes (os textos bíblicos isolados). As perícopes devem ser
lidas a partir do todo. Isso amplia em muito a interpretação das perícopes.
Essa leitura questiona a leitura da Bíblia que aprendemos sob o ponto de vista
colonialista europeu cartesiano positivista liberal, que legitima o capitalismo
e toda sociedade de classes.
A Bíblia é resultado da luta de classes (como mostra o credo de Dt
6.20-23) para apontar para a eliminação da sociedade de classes como Projeto de
Javé para podermos ser irmãos e irmãs, iguais e livres. A confissão de fé da
classe camponesa palestina em Dt 6.20-23 é o relato escrito da luta de classes
na qual Javé se inseriu ao lado da classe camponesa, Javé fez uma opção de
classe, para acabar com a sociedade de classes ao colocar a terra como posse e
usufruto coletivos, extinguindo a propriedade privada da terra – Lv 25.23; Nm
26.52-56 – e garantindo a liberdade do povo.
O método de Marx nos ajuda a aprofundar o conteúdo bíblico. Precisamos
conhecê-lo. Tomás de Aquino já disse: “Um erro no conhecimento do mundo pode
nos induzir a um erro no conhecimento de Deus”.
Os capitalistas na Igreja dirão que não se pode usar o método de Marx
para ajudar na leitura da Bíblia. Somente a visão capitalista colonialista
patriarcal cartesiana positivista liberal europeia de Deus e de mundo pode ser
usada na interpretação da Bíblia, dizem os capitalistas que mandam na Igreja,
insinuando que essa leitura é neutra e apolítica. Essa visão tem legitimado o
colonialismo, o escravismo colonial, o genocídio africano-indígena-camponês há
mais de 500 anos. Somente a leitura capitalista da Bíblia é permitida na
Igreja, sem dizer que é uma leitura capitalista, pois isto mostraria que essa
leitura (de viés colonialista europeia-estadunidense) é ideológica, política, parcial
e unilateral.
Não há uma leitura neutra da Bíblia e nem da realidade da sociedade de
classes. Toda leitura da realidade e da Bíblia é ideológica, política, parcial,
unilateral, classista, étnica e sexista. A confissão de fé da classe camponesa
palestina em Dt 6.20-23 é ideológica, política, parcial, unilateral, classista,
étnica e sexista. A opção de Javé para construir uma sociedade não classista
nas montanhas da Palestina é classista e unilateral, pela classe camponesa. Por
que Javé opta pela classe camponesa? Porque a classe-Estado que controlava a sociedade
(Êx 5) não queria construir uma sociedade não classista, mas queria perpetuar a
exploração e expropriação de classe (Gn 47.13-26).
Assim também hoje a classe capitalista que controla a sociedade não quer
construir uma sociedade não classista. Por isso também hoje Javé opta pelas
classes subalternas (classe trabalhadora, classe camponesa e povos originários
e demais setores marginalizados da sociedade: mulheres, negros, comunidade
LGBTQIA+) para com elas construir a nova sociedade não classista, que Jesus
Cristo chama de Reino de Deus. Javé fez a sua opção de classe no camponês sem
terra marginal palestino empobrecido Jesus de Nazaré, o Cristo, para com ele
construir essa sociedade não classista de irmãos e de irmãs, que a Bíblia chama
de Reino de Deus.
Um pequeno burguês nos anos 80 me disse: Não dá para fazer o que a
Bíblia diz, quando havíamos estudado At 4.32-37. Se não dá para fazer o que a
Bíblia diz então nós cristãos somos um bando de idiotas, aloprados e imbecis
que se reúnem ao redor da Palavra de Deus na igreja que na prática não dá para
realizar. Tem que ser muito idiota e estúpido para se reunir no culto e ouvir
uma Palavra que na prática não dá para realizar.
A questão é: não é que não dá para fazer o que a Bíblia diz, mas a
questão é que não queremos fazer o que a Bíblia diz, pois isso requer
arrependimento e fé no evangelho, como diz em Mc 1.15. Isso requer ruptura
radical com a sociedade de classes e suas bases, exige ruptura com a prática
capitalista de viver e de pensar. Isso exige conversão para o Projeto do Reino
de Deus, que é uma sociedade sem classes, onde a propriedade privada dos meios
de produção foi extinta como exigência da vida eterna e do discipulado de Jesus
(Mt 19.16-22). Isso a burguesia não pode admitir, por isso ela controla
administrativamente a Igreja para impor a sua teologia: a teologia do deus
Capital com máscara de Jesus Cristo, que legitima o capitalismo.
Palmitos, SC, 11 de junho de 2024
Pastor Günter Adolf Wolff