15 de outubro de 2024

Apontamentos sobre a pregação pura da Palavra de Deus como Lei e Evangelho.

 

 

No REGIMENTO INTERNO da IECLB Art. 5º, § 1º consta: “A Comunidade congrega os membros da Igreja em torno de um centro comum de culto, onde a Palavra de Deus é anunciada puramente e os sacramentos são administrados retamente”.

 

Como é a pregação pura da Palavra de Deus como Lei e Evangelho?

 

Marx[1] fala que

“O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência da pessoa que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência.”

Engels[2] nos resume a descoberta de Marx dizendo

“... que em cada época histórica a produção econômica e a estrutura social que dela necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa época...

N. K. Krupskaya[3], companheira de Lênin, fala que

“Ele (a pessoa) precisa entender a sua interdependência, saber como, a partir de uma determinada ordem social, crescem os pontos de vista religiosos e morais.”

Engels[4] ainda nos lembra que a economia não condiciona tudo na vida, mas é o fator principal.

 

Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu nunca afirmamos mais do que isso. Se alguém o tergiversa dizendo que o fator econômico é o único determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura - as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as Constituições que, uma vez ganha uma batalha, são redigidas pela classe vitoriosa etc., as formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o seu desenvolvimento ulterior até serem convertidas em sistemas dogmáticos - exercem igualmente a sua ação sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam predominantemente sua forma. ... Frente aos adversários, tínhamos que sublinhar este princípio cardinal que era negado, e nem sempre dispúnhamos de tempo, espaço e ocasião para dar a devida importância aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e reações.

 

Kautsky[5] lembra:

 

Torna-se necessário que cada combatente amplie seu horizonte através de conhecimentos científicos, reconheça as grandes conexões sociais, no espaço e no tempo, não para suprimir o trabalho detalhado, nem mesmo relegá-lo a um segundo plano, mas para o vincular conscientemente ao processo social no seu conjunto.

 

Se olharmos os Evangelho veremos que em Mateus 2 o autor faz uma análise de conjuntura da realidade opressiva na qual Jesus de Nazaré nasceu. Fala da brutalidade da ditadura militar romana. Lucas nos capítulos 2 e 3 também faz uma análise da conjuntura do tempo de Jesus para situar o leitor que Jesus atuou nesta realidade da luta de classes. Marcos 1.1 faz uma análise suscita da realidade frente à qual Jesus Cristo se opõe: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” Jesus é filho de Deus, não César. O Evangelho de Jesus Cristo começa aqui na periferia da periferia, na Palestina, ocupada militarmente pela ditadura militar romana a serviço dos latifundiários escravocratas que controlam o Estado. Este Evangelho se contrapõe ao evangelho de Roma, que mata, saqueia e escraviza.

As pessoas, do tempo do NT, que liam os Evangelhos conheciam a realidade na qual viviam, por isso temos que olhar Por trás das Palavras, como diz o frei Carlos Mesters. Para elas Mc 1.1 era claro, mas para nós que não estamos acostumados a fazer análise de estrutura da sociedade de classes e de conjuntura da realidade da luta de classes isso não está claro. A maioria de nós nem sabe a que classe social pertence e com isso nem sabe como funciona a luta de classes na qual estamos inseridos mesmo não sabendo disso.

A Igreja crescida na realidade da sociedade de classes europeia e condicionada pelo capitalismo não ensina como fazer análise de estrutura da sociedade de classes e nem ensina fazer análise de conjuntura para podermos assim entender o Evangelho. Os condicionamentos do modo de produção da vida material não deixam a Igreja enxergar o que está Por Trás das Palavras dos Evangelhos. Assim lemos os Evangelhos, e toda Escritura, a partir dos condicionamentos do modo de produção da vida material capitalista que escondem a realidade da luta de classes contada na Bíblia e a de hoje. O capitalismo é o filtro de nossa pregação. Por esse filtro só passa o que o capitalismo permite para a sua reprodução.

Como a Igreja é condicionada pelo modo de produção da vida material capitalista ela só ensina a leitura da Bíblia que passa pelo filtro do modo de produção da vida material capitalista. Como dizia Juan Luis Segundo: precisamos libertar a teologia desse condicionamento do modo de produção da vida material vigente.

Por que a Igreja não ensinou como fazer análise da estrutura do modo de produção da vida material vigente e não ensinou a fazer análise da conjuntura da realidade da luta de classes na qual vivemos para sabermos como pregar o Evangelho no chão da luta de classes no qual vivem as comunidades? Pelo simples fato de que ela não poder ensinar o que não sabe, pois está condicionada pelo modo de produção da vida material capitalista que impede isso. O Evangelho de Jesus Cristo exige ruptura radical (Mc 1.15) com o mundo (sociedade de classes). 1 Jo 2.15 diz: “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele;” O mundo hoje é o capitalismo. Quem ama e defende o capitalismo está fora do Reino de Deus. Se autoexcluiu. Por isso precisamos saber como é o “mundo”, a sociedade de classes capitalista para não sermos enrolados por ele. A Igreja não ensina isso, porque não sabe como funciona o mundo atual. Mas ainda há tempo dela estudar como funciona o modo de produção da vida material vigente para saber como é o mundo para dentro do qual pregamos o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo. Nesta ingenuidade e ignorância a Igreja vive e envia seus pastores e pastoras a pregar o Evangelho para dentro de um mundo que estes não conhecem. Com sua pregação querem guiar o povo, é cego guiando outro cego, e todos já estão caídos na valeta, mas não o sabem. E com isso eles apenas reproduzem o que o capitalismo quer e permite, sem o saber, achando que estão pregando puramente a Palavra de Deus como Lei e Evangelho.

Precisamos saber disso, dito acima, para falar da pregação pura do Evangelho de Jesus Cristo. Nossa prática econômica condiciona o nosso pensar. Como a pregação pura do Evangelho entra nisso? Quão pura é nossa pregação do Evangelho de Jesus Cristo se o nosso pensar é condicionado pelo capitalismo, que é nossa prática econômica? A prática é o critério da verdade.

A partir da prática econômica capitalista os europeus vieram para as Américas para pregar o Evangelho de Jesus Cristo. O seu pensar era condicionado pela sua prática econômica. Significa que a sua leitura do Evangelho era condicionada pela sua prática econômica. Qual era sua prática econômica? Roubar a terra dos povos originários, escravizá-los e quem resistia era massacrado. Depois a moda era importar escravos da África para que estes pudessem produzir a riqueza dos latifundiários escravocratas europeus. Roubar a terra dos povos nativos, massacrá-los e escravizá-los para gerar a riqueza dos senhores latifundiários era a prática econômica vigente. Até a Igreja tinha escravos indígenas e africanos. Como se pregava puramente a Palavra de Deus nesta realidade?

Como se prega hoje na sociedade de classes capitalista, dinamizada pela luta de classes, a Palavra de Deus como Lei e Evangelho na IECLB, condicionado pelo modo de produção da vida material capitalista?

 Esta pregação é a pura pregação do Evangelho? Ou é legitimação do modo de produção da vida material vigente?

A sociedade capitalista permite a pura pregação da Palavra de Deus ou apenas a pregação adaptada e condicionada pelo modo de produção da vida material vigente?

Uma pregação que não exige ruptura com o modo de produção da vida material não é pregação evangélica. 2 Co 5.17 lembra: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas”. A nova criatura não reproduz as práticas da velha criatura condicionada pelo modo de produção da vida material vigente. O Evangelho exige a extinção dessa sociedade na qual há patrão e peão. Quem defende isso é a velha criatura. Patrão e peão são inimigos de classe, não irmãos.

Como pregar puramente a Palavra de Deus numa sociedade de classes em permanente luta de classes na qual a classe econômica e politicamente dominante, a classe capitalista, controla tudo na sociedade, também as comunidades e paróquias, que se compõem em sua maioria da classe trabalhadora e camponesa, explorada e expropriada pela classe capitalista? Como fazer isso se a Igreja lê a Bíblia a partir da leitura europeia de Deus que legitima a sociedade de classes?

A Igreja nos ensinou durante séculos que o conflito central no texto de Gn 11.1-9 é a torre, que é o egoísmo do ser humano que quer ser deus, mas o Dr. Milton Schwantes nos mostrou que o conflito central é a linguagem, a cidade e a dispersão do povo e não a sua centralização ao redor da cidade-estado. Somente os camponeses que adotaram a ideologia (linguagem) da classe economicamente dominante ajudariam a construir uma cidade e uma torre que os explorariam através da cobrança de impostos. Como o Dr. Schwantes descobriu isso? Por que ele leu Marx, que ensina a compreender os modos de produção pré-capitalistas e a ideologia (A ideologia Alemã). Os modos de produção pré-capitalistas nos mostram que após o modo de produção Tribal vem o modo de produção Tributário e sobre este fala o texto de Gn 11.1-9. A classe-estado (proprietária privada da terra e de bois – 1 Sm 11) constrói a cidade (onde há o celeiro que abriga os cereais cobrados como impostos) e a torre (quartel que abriga os soldados para reprimir e cobrar os impostos dos camponeses).

Foi a propriedade privada da terra que gerou a cidade e a torre (o Estado), sustentadas pela classe-estado, que controlava a cidade, que cobrava impostos em cereais e trabalho forçado dos camponeses que viviam nas aldeias. A propriedade privada da terra precisa do Estado para legitimar e garantir a propriedade privada da terra, que antes era posse e usufruto coletivos. A propriedade privada da terra gerou duas classes sociais: a classe-estado e a classe camponesa. A cidade (o Estado) é o instrumento da classe proprietária privada da terra para garantir sua propriedade privada e garantir a exploração da classe camponesa através dos tributos.

A Bíblia já no seu início aponta que Javé é contra o Estado e do que o gerou, a propriedade privada da terra. Isso será eliminado no Projeto da Terra Prometida (Dt 6.20-23) onde em Js 8 se elimina o Estado, a propriedade privada da terra (Nm 26.52-56) e o templo (Js 8.30 – somente um altar). O que garante a liberdade do povo é a sociedade sem classes (controle, posse e usufruto popular da terra), sem Estado e sem templo, como religião do Estado.

No REGIMENTO INTERNO da IECLB Art. 5º, § 1º consta: “A Comunidade congrega os membros da Igreja em torno de um centro comum de culto, onde a Palavra de Deus é anunciada puramente e os sacramentos são administrados retamente”.

No culto “onde a Palavra de Deus é anunciada puramente” qual agora é a Palavra de Deus anunciada puramente: a interpretação secular colonial classista que veio da Europa, que diz que o centro está na torre e que nem menciona a cidade, ou a leitura do Dr. Milton Schwantes?

Outro exemplo. Eu aprendi que o texto de Mt 25 são três textos independentes, onde no primeiro se fala de estar preparado, no segundo se fala dos talentos (capacidades) e no terceiro se fala de acolher os excluídos.

Em 1995 tivemos no Distrito Eclesiástico Alto Jacuí um grupo de estudos entre pastores e pastoras onde lemos um texto sobre as Parábolas de Jesus. Ali o autor fala que Jesus conta suas parábolas a partir da realidade social concreta existente. Não as inventa como exercício literário.

Aí eu saquei primeiro o texto de Mt 25.14-30. Descobri qual a realidade sobre a qual Jesus ali fala, que nada tem a ver com talentos. Ali começa dizendo: “Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens.” O que ali se diz? Ali está escrito que há um senhor de escravos, que foi viajar porque não precisa trabalhar, e três escravos, que ficaram para trabalhar e gerar riquezas para este. Temos aqui uma sociedade de classes escravocrata: um senhor e três escravos. O senhor, proprietário dos meios de produção e controlador do Estado, e três escravos, libertos dos meios de produção, não proprietários.

Mateus colocou este texto, após o primeiro, que ensina sobre a necessidade de se fazer permanentemente análise de conjuntura da realidade para não ser pego de surpresa pelos fatos. Análise errada, prática errada, já nos ensinava Lênin. Em Mt 25.14-30 Jesus nos deixa uma análise da estrutura e da conjuntura do escravismo romano. Sociedade de classes, na qual a classe proprietária (a classe escravocrata) vive à custa dos escravos, que geram a riqueza desta, mas não são libertos por isso.

Jesus descreve o sistema repressivo romano e o processo concentrador advindo do saque dos outros povos dominados pela invasão militar: “és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste” e “Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez.” “Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado” e “o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas”. Aqui Jesus relata o processo de dominação e expropriação romana. Quem não se enquadra e põe areia no sistema leva repressão e exclusão.

O último texto de Mt 25.31-46 mostra que o Reino de Deus é o acolher as vítimas do sistema repressor e expropriador da sociedade de classes. Como se acolhe as vítimas do sistema classista? Se acolhe eliminando a sociedade de classes baseada na propriedade privada dos meios de produção, como nos conta o texto de Mt 19.16-22, que fala da autoexpropriação dos expropriadores (ao se eliminar a propriedade privada dos meios de produção que geram a pobreza) como exigência da vida eterna e do discipulado de Jesus. A fome, sede, pessoas sem direitos, sem roupa e doentes e presos por dívidas são resultado da soceidade de classes expropriadora e repressora como Jesus conta no texto anterior. Com os excluídos Jesus controi seu Reino.

Após este discurso, segundo Mateus, Jesus entra na Semana Santa para ser preso, torturado e executado por não reproduzir os propósitos da sociedade de classes, mas propor uma sociedade de irmãos e irmãs, de pessoas livres com direitos iguais, o que só é possível com o fim da propriedade privada dos meios de produção com a expropriação dos expropriadores para acabar com a pobreza como exigência da vida eterna e do discipulado de Jesus, como ele sugere em Mt 19.16-22.

E agora, como fica a pura pregação da Palavra de Deus? A minha pregação antes de 1995 era a pura pregação da Palavra de Deus ao falar dos talentos ou o é agora, com a explicação posta acima?

Nossa pregação evolui, assim com a de Jesus, conforme Mt 15.21-28, onde a mulher cananeia mudou a postura e compreensão de Jesus frente a sua missão.

Além disso, a nossa pregação é condicionada pelo modo de produção da vida material vigente, como nos lembra Marx. Qual a saída?

Segundo Hegel[6]: "O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento." Hegel entendeu que a verdade está no todo e que tudo é um processo, um movimento. Só é possível compreender a totalidade concreta pela dialética de Marx. Ademar Bogo8 escreve:

 

“José Paulo Netto, ao expor o método em Marx, diz: Articulando estas três categorias nucleares – a totalidade, a contradição e a mediação –, Marx descobriu a perspectiva metodológica que lhe propiciou o erguimento do seu edifício teórico”. Este “edifício teórico”, assim chamado por ser concreto na sua dinâmica de aplicação, não vê a totalidade como a “soma das partes”, mas, sim, uma totalidade que se articula com “totalidades menores”, movidas por contradições internas ativas e mediadas pela estrutura particular de cada totalidade.”

 

A Bíblia é uma totalidade composta por duas totalidades: o AT e o NT, que por sua vez se compõem de outras totalidades que são os livros que compõe cada Testamento, que por sua vez são compostos por muitas outras totalidades que são as perícopes, nas quais aparece o movimento das contradições, das mediações, dos avanços, dos recuos, dos conflitos da luta de classes da sociedade. Somente entendemos corretamente as perícopes e os livros que as compõem se temos uma visão da totalidade do Projeto Político Global de Deus na Bíblia para a Humanidade, que condiciona as perícopes. Não dá para interpretar as perícopes sem levar em conta o Projeto Global de Deus, que é uma sociedade sem classes. As perícopes estão debaixo deste guarda chuva. A chave de leitura para entendermos o Projeto Político Revolucionário Global de Deus é o Êxodo – Cruz/Ressurreição de Jesus Cristo (Dt 6.20-23 – 1 Co 15.3-4 – os credos que sintetizam o Projeto Político de Deus para a Humanidade).

Toda leitura da Bíblia é parcial, política, ideológica, classista, étnica e sexista!  Não existe leitura neutra da Bíblia. A pessoa cristã não é neutra (mas batizada em nome de Jesus Cristo), nem Jesus Cristo é neutro, nem a cruz de Cristo no Gólgota é neutra. A leitura europeia da Bíblia na qual fomos treinados não nos fala disso, pois é classista (se dizendo neutra) idealista cartesiana positivista liberal. Não parte da teoria da luta de classes, não leva em conta a totalidade do Projeto de Deus para a Humanidade, tampouco o condicionamento do modo de produção da vida material vigente na época e de hoje.

O marxismo, pelo materialismo dialético, segundo Lukács[7], pressupõe “a consideração de todos os fenômenos parciais como elementos do todo”, e “o domínio universal e determinante do todo sobre as partes”. Vamos olhar as partes a partir do todo.

 

Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova.

... a essência do método, isto é, o ponto de vista da totalidade, a consideração de todos os fenômenos parciais como elementos do todo,

 

José Paulo Netto[8] diz que

 

não vê a totalidade como a "soma das partes", mas, sim, uma totalidade que se articula com "totalidades menores", movidas por contradições internas ativas e mediadas pela estrutura particular de cada totalidade.

 

Segundo Enrique Dussel[9]: "O método dialético consiste em situar a "parte" no "todo", como ato inverso ao efetuado pela abstração analítica". As partes nos levam ao todo e o todo explica as partes. Uma parte que não se liga ao todo não existe.

Lukács[10] diz que

 

... a unificação hegeliana - dialética - do pensamento e do ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo, formam também a essência da filosofia da história do materialismo histórico. ... o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico.

 

Goldman[11] verifica que

 

O pensamento de Marx parece ser o seguinte: o indivíduo assim como os grupos humanos, constituem totalidades que não podem ser seccionadas para deles se fazer realidades autônomas. Não há pensamento independente do comportamento ou da afetividade, nem comportamento independente da consciência etc...

 

A saída é termos uma visão da totalidade do Projeto Político de Deus na Bíblia, pois o todo condiciona as partes. As partes, as perícopes, são condicionadas pelo Projeto Global de Deus na Bíblia que é o Reino de Deus como uma sociedade sem classes, porque não há mais propriedade privada dos meios de produção, pois os expropriadores foram expropriados de seus meios de produção privados, que agora são coletivos (At 2 e 4), não há mais luta de classes, nem opressão, exploração e expropriação de classes, nem Estado e nem templo, como religião do Estado, e o Poder Popular se exerce na Assembleia Popular. Paulo fala em Cl 3.9-11 e Gl 3.28: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Não há mais, a partir da fé praticada em Jesus Cristo, a opressão cultural e étnica, o cidadão e o estrangeiro sem direitos (judeu e grego). Não há mais o liberto e o escravo, fim da sociedade de classes que só é possível pela expropriação dos expropriadores com o fim da propriedade privada dos meios de produção, como sugere Mt 19.16-22. Não há mais homem e mulher, é o fim do patriarcado, o fim da opressão de gênero e a inclusão da comunidade LGBTQIA+.

Isso é o que Paulo define em Rm 3.8 “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei.” Não devemos nada ao Estado classista e à sociedade classista, apenas o amor ao próximo, que inclui. A forma de amar os patrões é expropriá-los de seus meios de produção privados para que reine a igualdade e a liberdade com o fim do ódio de classe. O ódio e a luta de classes é a essência do capitalismo: o bilionário Warren Buffett disse que “a luta de classes existe, mas é a minha classe, a classe rica que está fazendo a guerra, e nós estamos ganhando”.

O papel da pura pregação da Palavra de Deus é expor e clarear a luta de classes existente, como Jesus faz em Mt 25, e expor o Projeto Político Global de Deus para emancipar a Humanidade da sociedade de classes que é uma sociedade sem classes, sem propriedade privada dos meios de produção, sem luta de classes, sem exploração de classe, sem Estado e sem o templo, como religião do Estado, onde o Poder Popular é exercido em Assembleia Popular (Nm 27.1-11; Js 8.33-35; Js 24; At 6.1-7; At 15) pelos Conselhos Populares de trabalhadores, camponeses e povos originários. Isso Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Isso exige ruptura radical com a sociedade de classes e suas dinâmicas reprodutoras excludentes e opressoras (Mc 1.14-15), não dá para por vinho novo em odres velhos (Mt 9.17).

A pura pregação da Palavra de Deus como Lei e Evangelho exige que a classe trabalhadora e camponesa engajada na luta por uma sociedade sem classes tome o poder na Igreja a partir das comunidades e paróquias, hoje controladas pela pequena burguesia conservadora e reacionária defensora intransigente do capital. Se isso não ocorrer não há espaço para a pura pregação da Palavra de Deus na Igreja e na sociedade, pois quem o tentar, e muitos o tentam, será expulso da paróquia como um maldito herege por ameaçar a sociedade de classes baseada na propriedade privada dos meios de produção. Como lembra Marx: “O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”.

Só para lembrar: isso é um problema para a esquerda, pois a direita não tem esse problema de ser expulsa como herege por ameaçar a sociedade de classes, pois ela fala o que a sociedade de classes exige e reproduze a visão europeia colonialista patriarcal de Deus ensinada pelos europeus para legitimar o capitalismo. Isso lembra Mc 11.17: “Não está escrito: A minha casa será chamada casa de oração para todas as nações? Vós, porém, a tendes transformado em covil de salteadores”.

 

 

Günter Adolf Wolff, 02/10/2024



[1] MARX, Karl. Prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política” in MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos, vol. III. São Paulo. Edições Sociais. 1977, p. 301

[2]ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição alemã de 1883 do Manifesto do Partido Comunista in Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis. Vozes, 1988, p. 45

[3] KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. Sobre a questão da educação comunista da juventude in A construção da pedagogia socialista. São Paulo. Expressão Popular. 2017, p. 91

[4] ENGELS, Friedrich. Carta a Bloch, 21/9/1890, p. 520-522 in QUINTANEIRO, Tania; OLIVEIRA BARBOSA, Maria Ligia de; MONTEIRO DE OLIVEIRA, Márcia Gardênia. Um Toque de Clássicos. Marx, Durkheim, Weber. 2ª ed. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2003, p. 37

[5] KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2010, p. 33

[6] HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis/Bragança Paulista, Vozes/Editora Universidade São Francisco, 2008, p. 36.

[7] LUKÁCS, Georg. Rosa Luxemburgo como marxista in História e Consciência de classe. São Paulo. Martins Fontes. 2003, p. 105-107

[8] BOGO, Ademar. Organização Política e Política de Quadros. Expressão Popular, 2011, p. 170

[9] DUSSEL, Enrique. A produção teórica de Marx. Um comentário aos Grundrisse. São Paulo. Expressão Popular. 2012, p. 53

[10] LUKÁCS, Georg. História e Consciência de classe. São Paulo. Martins Fontes. 2003, p. 116-117

[11] GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1991, p. 197