7 de janeiro de 2012

Luta de Classes por causa do Reino de Deus?

Palestra proferida por Helmut Gollwitzer que o P. Baeske achou nos seus arquivos em me enviou. No polígrafo diz Material de Estudo – Departamento de Migração. Deve ser do final dos anos 70.

Helmut Gollwitzer nasceu em 29 de dezembro de 1908 em Pappenheim no Altmühltal/Bayern e faleceu em 17 de outubro de 1993 em Berlim: era teólogo evangélico, escritor e socialista. Era pastor da Igreja Confessante - Bekennenden Kirche – desde 1934, que se opôs à Hitler, ao qual se aliou a Igreja dos Cristãos Alemães - Deutsche Christen.

O Evangelho tem como meta a vinda do Reino de Deus para este mundo. Ele visa a transformação deste mundo. E a cada qual de nós ele quer usar como colaborador nesta transformação do nosso mundo.
A mensagem do Reino de Deus e a mensagem de Jesus Cristo são idênticas. O conteúdo de ambas é o poderoso empreendimento de Deus no sentido de salvar a sua humanidade de uma perdição que ela mesma se infligiu. Como mensagem do Reino de Deus, o evangelho apresenta o objetivo do agir divino; como mensagem de Jesus Cristo, ele narra a forma de concretização do empreendimento divino. (Aqui devido ao nosso tema e em conformidade com o pensamente bíblico, apresentamos formulações antropológicas, negligenciando as dimensões cósmicas da perspectiva do Reino de Deus. Mesmo que estas dimensões, sejam relevantes para uma teologia que se defronta com a ameaça ecológica, não nos podemos ocupar com elas aqui e agora, uma vez que estamos perguntando pela dimensão social da mensagem do Reino de Deus.)
A identidade das duas formas do evangelho apresenta imediatamente uma importante conseqüência: ela impede que encaremos o Reino de Deus como uma grandeza meramente futura ou transcendente e que compreendamos o tempo presente como a esfera do penúltimo, do provisório ou até mesmo como o âmbito do “tanto faz como tanto fez". Lembremo-nos que para o Antigo Testamento o reinado de Deus já agora está em fase de implantação e em luta com aquilo que se lhe antepõe. Lembremo-nos que segundo Mt 12.28 par. a expulsão dos demônios representa nada menos que a vinda da basileia tou teou (Reino de Deus).
Lembremo-nos que, na proclamação de Jesus, o anúncio da vinda iminente do Reino de Deus está indissoluvelmente relacionado com a exortação a uma ação no agora, como conseqüência deste anúncio, ou/seja, como conseqüência atual do reino futuro de Deus: o metánoien(arrependimento).
Lembremo-nos, finalmente, do estranho fato de que na linguagem pós-pascal da cristandade primitiva a expressão “Reino de Deus” quase que desaparece e a mensagem do Reino de Deus é substituída pela mensagem de Jesus Cristo. Este fato significa para Rudolf Bultmann (Glauben und Verstehen, Vol. I, p. 201) “que Paulo vê aquilo que é futuro para Jesus como presente, respectivamente, como presente inaugurado no passado”, - ou como Eberhard Juengel (cf. seu livro “Paulus und Jesus” pp. 263-273) o expressa: Trata-se da “história da relação do eschaton com a história” (p. 268). A relação histórica do eschaton, tem ela mesma uma história, devido à peculiar relação do Reino de Deus com a história terrena de Jesus Cristo, com a vida, a cruz e a ressurreição de Jesus como o evento escatológico = como o rompimento do Reino de Deus na história, algo pelo qual Jesus ainda esperava, mas que para Paulo já pertencia ao passado.
Por que lembro todos esses fatos? Eles expressam algo decisivo para as nossas reflexões posteriores: Para o Novo Testamente o Reino de Deus não se opõe ao nosso “aqui e agora" como uma grandeza transcendente e futura, externa e estranha, como mero objeto de esperança, como o último que se segue ao penúltimo, mas o presente e o futuro do Reino de Deus se entrelaçam, caindo, portanto, também já sobre o agora a sombra das cousas últimas, o eschaton já agora intervém transformadoramente no nosso mundo. Este nosso mundo já não está sozinho consigo mesmo, ele já não tem a sua salvação apenas em si próprio. A força salvadora já está presente e atuando nele. A miséria do mundo e a salvação do além já não mais se encontram apenas antepostas uma a outra, mas já se encontram em combate; o presente - o nosso mundo - já não pode ser mais descrito unicamente como, o mundo perdido; (o final da primeira página está cortada e faltam no mínimo 3 linhas)
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jornais, mas devemos compreendê-lo como uma arena de dois poderes, do poder da destruição e do da salvação. Exatamente por isso a história post Christum natum, crucifixum et ressurrectum não é um vácuo sem sentido entre o primeiro e o segundo advento de Jesus Cristo, mas uma história de transformações em que os cristãos devem ter o maior interesse, já que nestas participa - vitórias e derrotas - o evangelho do Reino de Deus.
A primeira e fundamental destas transformações é a proclamação e a fé, pois ambas são eventos que se processam neste mundo. Onde ocorre a proclamação, ali se objetiva a transformação deste mundo,
seja, a proclamação uma de graça ou uma de juízo. Se a proclamação suscita a fé, então a nossa vida foi transformada de uma forma profunda; e também ampla; pois só falamos corretamente da fé se também falamos do agir transformador. A distinção da Reforma entre a fé e as obras não significa que se deva falar exclusivamente da fé, desconsiderando as obras, mas esta distinção expressa algo sobre a relação evangélica entre fé e obras. Fides sola iustificat, sed nunquam est sola (Lutero); como cousa "ativa” a fé está sempre relacionada com a atuação do amor.
Se é verdade que os teólogos da Reforma nem sempre se expressaram adequadamente a relação entre fé e amor, entre transformação no sentido vertical e no horizontal, era-lhes, contudo, inevitável, se quisessem permanecer teólogos bíblicos; falar de ambas, da fé e das obras, da justificação e da santificação, e isto de uma forma equilibrada, ou seja; eles eram forçados a falar sobre esses elementos não em termos de
fundamental e acessório, mas em termos de elementos constituindo o centro e a periferia de um mesmo círculo.
No amor se revela a fé, ou em outras palavras: Trata-se da relevância social da fé. Através da ação, eu respondo a pergunta expressa ou inexpressa de pessoas que vivem ao meu redor: “De que nos servem as tuas dádivas recebidas e louvadas nos hinos de fé de gratidão? O Novo Testamento apresenta uma irreprimível tendência em direção ao próximo. Lutero diz em seu “Sermão sobre as boas obras”: “Quando exalto a fé e rejeito as obras sem fé, acusam-me de proibir boas obras, quando na verdade quero, de bom grado, ensinar as boas obras da fé." (Luthers Werke, ed. Buchwald, Vol.I, 905,p.7). E Ernst Fuchs afirmou, certa vez, de uma forma um tanto exagerada, mas precisa e impressionante: “O amor de Deus não vale propriamente para mim, mas para o homem ao lado de mim; apenas junto a ele posso encontrar o amor destinado também a mim, e para ele está destinado o amor concedido a mim. O fato de o homem ao meu lado poder cantar hinos de gratidão parece ao nosso Senhor mais importante do que os meus próprios hinos de gratidão” (cf. Mt 5.16: “Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus” Mt 18.23ss. A parábola do credor incompassivo, e Mt 25,31ss. O grande julgamento).
Eu gostaria de ratificar, portanto, as dúvidas que o meu amigo Jan Milic Lochman expressou recentemente nos Evangelische Kommentare (8º ano, 1975, p.253ss., - confira também Juergen Moltmann, "Kirche in der Kraft des Geistes”, 1975, p.46s. e 51) quanto à seguinte tese de Gerhard Ebeling: a justificação pela fé é o único conteúdo e o único objetivo do evangelho. Naturalmente, desde muito tempo, a boa teologia luterana vem falando assim do articulus stantis et cadentis ecclesiae, fazendo jus a importância fundamental do artigo da justificação. Mas o fundamento não constitui o todo nem a meta. O alvo é a casa - ou, sem falar em metáforas - o alvo é a cooperação com o Reino de Deus. A obra salvadora da palavra de Deus para cada qual de nós chegou ao seu termo com a justificação do ímpio, com a aceitação do pecador, com o consolo do perdão, mas tudo isto é apenas a base que possibilita o objetivo propriamente dito: A instituição do filho perdido e novamente achado como procurador (é este o significado da entrega do anel em Lc 15.22!), o chamado para a colaboração e o envio para o mundo, com intuito de atuar salvificamente através do poder de Pai (cf. Karl Barth em KD IV/3,p.553ss. §71, “Der Menschen Berufung”).

II – O Reino de Deus é uma Nova Vida Comunitária

Com esta tese retiro uma objeção que mantive por longo tempo contra Lutero e que estava relacionada com sua definição de Reino de Deus no Catecismo Menor. (Ali Lutero responde, na segunda parte de sua explicação da segunda petição do “Pai nosso” à pergunta “Como isto acontece?” da seguinte forma: “Quando o Pai Celeste nos concede o seu Espírito Santo, para que por sua graça creiamos em sua Sagrada Palavra e vivamos divinamente, aqui por algum tempo e lá eternamente”.) à primeira vista parece ocorrer aqui uma individualização e defuturização existencialista da esperança do Reino de Deus; efetivamente, estas foram as conseqüências que esta explicação teve e que Lutero talvez queria que tivesse. O Reino de Deus não parece ser mais aqui a grande visão do novo céu e da nova terra, a utopia absoluta de um mundo são, da sociedade humana como ela deveria ser quando do fim da obra redentora de Deus. Aparentemente o olhar não está mais voltado para a salvação do indivíduo em meio a um mundo resignadamente negado e sem perspectivas de mudança – portanto, uma escatologia interiorizada, sem esperança e impulso para o mundo e a história.
Mas também é possível ler as palavras de Lutero sem tais restrições. Então elas apontam para elementos importantes:
1) O Reino de Deus significa um acontecimento que parte de Deus, ele é uma ação de Deus e não um estado de coisas que pode ser desvinculado de Deus, uma espécie de “Schlaraffenland” em que desemboca a história da humanidade, uma sorte para aqueles que vivem até lá e um azar para os que morrem antes.
2) O Reino de Deus consiste em nosso comportamento, não em condições objetivas que Deus e (como se costuma enfatizar) apenas cria para nós através de uma transformação miraculosa o mundo. O Reino de Deus é idêntico à nossa atuação, ao nosso novo estilo de vida. Para o Reino de Deus vale (porque eles são basicamente idênticos) o que nós afirmamos teologicamente da fé, do amor e da liberdade: são realizações doadas e efetivadas pela graça de Deus, mas elas não deixam de ser nossas realizações. Graça é mexer-se e não ficar simplesmente acomodado. Podemos comparar este fenômeno com o processo de ser acordado: ser-acordado passivo é simultaneamente, se bem que em uma seqüência temporal irreversível, o acordar ativo. A ação de Deus consiste em minha ação; a atividade de Deus - inacessível a minha atividade, por isso passiva - consiste em minha atividade, ou seja, ela se concretiza em minha atividade. Onde quer que "creiamos e vivamos divinamente, ali ocorre o Reino de Deus”
Com isto se revela falsa a alternativa segundo a qual o Reino de Deus é criado por Jesus ou por nós, pois esta alternativa imagina o Reino de Deus como um estado de coisas. A verdade desta alternativa apenas no Não que a teologia da Reforma oferece justificadamente à pergunta se nós, homens não-livres, estamos em condições de nos colocar em tal estilo de vida “divino”. Mas deste não, (onde ocorre o Reino de Deus, não se deve concluir a nossa passividade frente ao Reino de Deus. Onde ocorre o Reino de Deus, onde a vontade de Deus está entrando em vigência) ali somos chamados de uma forma extremamente intensa à participação livre, ativa e responsável.
3) Com isto se relativiza de forma exitosa a diferença tão “temporariamente feita (sob o nome “reserva escatológica”) entre o “temporariamente aqui e o eternamente lá”. Assim como é verdade que Israel foi eleito, que Jesus Cristo já veio, que a comunidade dos discípulos já foi vocacionada, que a nossa fé, nosso amor e a nossa esperança já agora podem responder à Palavra de Deus, assim também é verdade que o Reino de Deus responde já agora, “aqui temporariamente.”
A diferença apresentada pelo “lá eternamente” consiste no fato de podermos esperar por uma “nova terra”. (Cf. explicação de Lutero para a terceira petição - "seja feita a tua vontade assim na terra como no céu", - na segunda parte de sua resposta à pergunta “Como acontece isto?”: "quando Deus quebranta e impede quaisquer tramas e vontades más, como as do diabo, do mundo e da nossa carne, as quais tentam impedir que o seu nome nos santifique e que seu reino venha a nós, mas fortalecendo-nos e mantendo-nos firmemente ligados a sua Palavra e Fé até o nosso fim. Esta é sua vontade boa e graciosa”). Nesta nova terra não é preciso quebrantar “tramas e vontades más”, pelo contrário, nesta nova terra "tramas e vontades más" foram eliminadas ao redor de nós e em nós, e todos nós formamos uma comunidade em que concretizamos com Deus, a partir de Deus e diante de Deus a “vida divina" como descrita da forma mais simples por Jesus na "lei áurea" (Mt 7,12): "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas”.
4) Lutero menciona o diabo, o mundo e nossa carne, como elementos cujas "tramas e vontades más” devem ser quebrantadas sempre de novo e, finalmente, de uma forma definitiva. Ignoro agora, por motivos de tempo, o primeiro destes elementos (e não porque ele seja aparentemente mitológico - lembremo-nos apenas com que insistência o velho Ernst Bloch formulava perguntas que tendiam para este assunto!). O terceiro elemento nos é bastante conhecido e para os teólogos de hoje ele é quase o único em que pensam, quando - de uma forma altamente idealista - tratam da libertação e da renovação do homem, como se o indivíduo necessitasse apenas de uma transformação espiritual interna para que ele confronte o mundo como um homem novo e - no contexto da reserva escatológica e das possibilidades históricas - melhore também a este. Mas o que Lutero quer dizer com o segundo elemento do mal, denominado “mundo”? Seria minimizá-lo pensar apenas na maldade dos outros homens; trata-se, penso eu, de algo mais objetivo, daquilo que hoje em dia se denomina de estrutura. Não somente a vontade má de outros homens - de um Hitler ou de um Stalin - quer impedir “que o nome de Deus nos santifique e que seu Reino venha a nós". Tal opinião se encontra exatamente entre os teólogos que preconceituosamente limitam o agente do pecado ao indivíduo, procedimento que lhes poupa o trabalho da pergunta pelo pecado estrutural, impedindo-os de compreender concreta e amitologicamente o “Basileúien” do pecado (Rm 5.21). Marx afirma que os homens fazem a historia, mas que esta obra dele o confronta com um poder objetivo, alheio e inescrutável. Exatamente este é o caso do "mundo", das estruturas da sociedade: o comportamento contrário à "Lei Áurea” - a segurança da vida às custas dos outros, a avareza, a fome de poder, etc. - está objetivada nas estruturas e reina sobre nós. Também o homem renovado não consegue viver à parte destas condições vigentes, pelo contrário, elas lhe são impostas, por mais que ele queira transformar seu comportamento no estreito âmbito de sua vida pessoal: o grito de Paulo pela libertação do corpo desta morte (Rm 7.24) atinge, não apenas nosso conflito interno entre saber o bem e fazê-lo, mas também o igualmente inevitável conflito entre o conhecimento e a vontade para o bem, de um lado (portanto, de minha nova liberdade) e a coação para a realização do mal, para a cumplicidade com o mal na prisão das más estruturas, do outro lado. Estas coações podem ser maiores ou menores, mas nenhum de nós está livre delas. Nós, os mais velhos, experimentamos a coação de viver e apoiar a guerra de Hitler. Vivemos hoje sob a coação da filiação àquelas instituições criminosas denominadas “países brancos industrializados". O que pode fazer um oficial da Unidade Atômica americana, um diretor da ITT, um ministro da Defesa, se lhe ocorre que as "tramas e vontades más” de sua “carne” são quebrantadas pelo Espírito de Deus e ele deseja "crer e viver divinamente" - também já “aqui temporalmente”?
Estes exemplos mostram que, mais do que em tempos passados, não apenas os que “estão por baixo", mas também, os que “estão por cima" são escravos das condições vigentes, prisioneiros das estruturas que não nos permitem "viver divinamente". Às vezes, há uma reduzida liberdade de escolha no sentido de isentar-se da co-autoria criminosa – Quando, eu, p. ex., consegui a minha transferência do setor das metralhadoras para o do saneamento, em conformidade com o meu propósito de não destruir vidas humanas naquela guerra. Mas eu não me desvinculara da cumplicidade com Hitler e das vantagens proporcionadas por seu uniforme, e a estrutura em si, esta coação objetiva para o pecado, de milhões de pessoas, esta estrutura ainda permanecia intacta.
A necessidade de transformar condições sociais não é, portanto, menor do que a de transformar corações humanos, se quisermos que homens “aqui temporariamente - vivam divinamente”. O evento do reino de Deus nos traz o conflito com as estruturas de nossa sociedade faz com que gemamos neste cativeiro "Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24), e faz com que, confiantes na libertação prometida, não mais aceitemos o cativeiro sob as “relações ímpias”, deste mundo (Barmen II) como dadas pelo destino, mas que nos aliemos àqueles que lutam no sentido de transformar ou até mesmo abolir em definitivo aquelas estruturas mais carentes que existem em nossa sociedade.
Mas Lutero, em conseqüência do tradicional individualismo teológico, omitiu em sua explicação da segunda petição algo que agora devemos complementar, ou seja, devemos levar a sério o “nós” em seu texto: "viver divinamente” só é possível com um "viver divinamente” em conjunto. A terceira tese mostrará que com isso o conflito com o pecado estrutural ainda se torna mais veemente do que aquele exemplificado anteriormente com indivíduos.

III

A comunidade é aquele lugar em que se chocam a vida nova e a vida velha. Quanto mais evidente for este choque, tanto mais ela é autêntica comunidade cristã; quanto menos, tanto mais ela se revela ajustada ao mundo.
O choque atinge mormente o entrelaçamento da existência individual com as relações étnicas (nacionais) e sociais (classistas). Isto revela o quanto é ilusória uma separação da conversão individual e a transformação das estruturas (cf. Helmut Thielicke, Guenther Klein, etc.). Pois,
1) estamos soldados até o mais íntimo de nosso pensar e sentir por estes dois elementos (o nacional e o classista) e
2) somos, devido às posições de domínio proporcionadas por esta filiação étnica e social, sempre cúmplices do poder e da exploração. Uma “metánoia” (arrependimento, mudança) individual que não tende igualmente a abolir esta cumplicidade, é uma meia-conversão, refreada exatamente ali onde a conversão exige maior sacrifício e onde ela é mais necessária ao próximo.
A nova vida (cf. Gl 3.28 e Cl 3.11) quer tirar das diferenças étnicas o seu caráter antagônico e substituí-lo pela alegria com a peculiariedade do outro, ela quer fazer que a relação classista desapareça. Para tanto ela revela o mal suscitado por estes dois tipos de relacionamento, e isto principalmente nos dias de hoje. Pois a incapacidade
a) de criar organizações internacionais mais eficientes e
b) de desistir do sistema capitalista de exploração são as causas para o fim iminente da vida humana no saqueado planeta terra. As acima mencionadas palavras de Paulo vinculam estreitamente a missão da comunidade cristã e a atual situação apocalíptica do mundo.
Elas apontam para as filiações sociais em que vivemos e através das quais nos tornamos determinadas pessoas históricas. Elas colocam a filiação com Cristo - ou seja, o Reino de Deus já inaugurado - em conexão com a nossa filiação social, e esta conexão é tal que modifica a sociedade. Mas as citadas filiações diferem entre si:
1) a sexual 2) a nacional-cultural e 3) a social.
A primeira pertence à criação de Deus, a segunda à história de Deus conosco, através da qual a humanidade se diferencia entre si em povos e línguas diversas, a terceira, porém, pertence, à história de nosso pecado. Assim como o caráter destas filiações é diferente, assim também é diversa a transformação que sofrem pelo Reino de Deus. Esta transformação pode ser descrita, e esta descrição vale para as três filiações, como igualdade de direitos na família de Jesus Cristo. Judeus não mais possuem privilégios diante de não-judeus, a parede de separação foi derrubada (Ef 2.14). A superioridade dos gregos sobre os bárbaros não lhes oferece um direito mais amplo, um valor humano maior; a terrível barreira cultural deixou de existir; o privilégio da educação persiste unicamente como instrumento de serviço. A guerra dos sexos encontra o seu fim; a mulher se emancipou da tradicional opressão e entra em posse de seus direitos; ela é igual ao homem. Todos, porém, permanecem o que por natureza e história inevitavelmente são: homens, mulheres, gregos, judeus etc. Suas diferenças, até agora causa para soberba, desprezo e privação de direitos, são oportunidades para o enriquecimento dos dons na multifacetada família de Jesus Cristo.
Bem outro é o problema de senhores e escravos. Aqui não se trata de uma diferença inabolível, mas de uma diferença imposta de fora. Ela surge através da atividade humana contra outros homens, mais exatamente, da atividade contrária à vontade de Deus. Pois a Bíblia, em toda sua extensão, se mostra unânime em mostrar que Deus não criou nenhum homem como escravo e que ele é libertador da escravidão. Esta diferença, portanto, não é transformada pelo Reino de Deus em uma causa de enriquecimento mútuo, mas é abolida. Na família de Jesus continuam a existir judeus e não-judeus, gregos, bárbaros, homens e mulheres; mas senhores e escravos não mais existirão. Esta realidade é distorcida pelo fato de a comunidade primitiva não ter tido condições de abolir a instituição da escravidão. Ela só pôde eliminá-la em seu próprio meio, ela só pôde estabelecer a igualdade de direitos no âmbito da comunidade e nas relações entre os seus membros. Exteriormente, em termos jurídicos, eles permaneciam senhores e escravos; mas eles viviam juntos como irmãos.
Exponho todas estas cousas de uma forma tão ampla para tornar clara a extraordinária transformação social que ocorre no mundo com a inauguração do Reino de Deus em Jesus Cristo. De modo algum a sociedade permanece intocada, e suas inimizades étnicas e culturais e suas formas de opressão não deverem continuar até o final dos tempos. Pelo contrário, ela é atacada por Jesus Cristo, compreendendo-se Cristo não mais como uma pessoa individual, mas sempre conjuntamente com a comunidade que nELE é “UM”, uma grandeza coesa, a sociedade sem classes oposta e inserida na sociedade classista, pois ela não apenas rompeu com o comportamento e atitudes tradicionais, mas ela ataca, com sua existência peculiar e com sua confissão de Cristo, o comportamento agora vigente, como sendo contrário à vontade de Deus, colocando em seu lugar, como desejada por Deus, a sociedade fraterna dos que possuem direitos iguais.
Tudo isso, porém, não acontece automaticamente, mas deve ser elaborado e trabalhado pela comunidade. Nela ocorre o choque das reivindicações das antigas filiações, das velhas fidelidades com a reivindicação da filiação à família de Jesus Cristo. Em contínuas discussões a comunidade e seus membros devem decidir-se pela vida nova e em conformidade com o Reino de Deus e contra a vida velha. Rm 12.1-2 mostra como o homem aqui é reivindicado em toda a sua atividade e como a transformação do seu comportamento deve se estender a toda vida. Se esta pequena comunidade não consegue eliminar a escravidão lá fora, isto não significa que sua atitude fraternal frente aos escravos deva se restringir ao culto e unicamente aos escravos cristãos. O discípulo de Jesus Cristo não pode tratar homem algum como escravo, ou reduzi-lo à escravidão, não pode ser mais um caçador ou comerciante de escravos. Ele não deve mais compartilhar de justificações ideológicas para a escravidão, ele não pode mais deixá-las incontestadas. Se ele for homem de influência, ele deverá empregar a mesma para minimizar as leis escravagistas com o propósito de aboli-las definitivamente; ele deve lutar por uma coexistência mais pacífica e justa dos grupos étnicos. A comunidade e seus membros constituem um elemento subversivo e humanizante na sociedade na medida em que ela efetivamente tiver ultrapassado todas as diferenças e for “UM” em Cristo.
Mas isso, como eu já frisei, deve ser elaborado. Rm 12.1-2 apresenta a misericórdia de Deus como o lema para o trabalho necessário devido aos choques. Eu menciono os pontos principais:
1) Julgar: Necessário é o julgamento crítico e concreto da sociedade em que a comunidade se encontra, a análise inexorável das inimizades grupais, da opressão e da exploração muitas vezes disfarçadas. Onde se omite, por comodidade ou por medo, esta análise implacável, já se está no caminho de ajustamento.
2) Não participar: Também não aquilo que a etiqueta, a consciência de status etc. prescrevem e, ao mesmo tempo, estar consciente de que não podemos concretizar inteiramente esta não-participação. Não nos podemos retirar do mundo e da sociedade, nem podemos conduzi-los de vez a um novo modelo de vida. Encontramo-nos envolvidos nas guerras de nossos países (Cf. a história da ética da guerra!), nas estruturas classistas de nossa sociedade. Cada dia de novo nós precisamos decidir de novo como nós, assim entretecidos, podemos impor a nossa peculiaridade, nosso julgamento, nosso protesto, e como podemos trabalhar no sentido da transformação daquilo que existe. O nosso estar-inserido na sociedade nos tenta a moderar nosso julgamento e a ajustar nosso comportamento. Em vez disso, porém, ele nos deve estimular a romper todas as fraudes, a radicalizar o julgamento e a desenvolver alternativas políticas.
3) Começar já agora: desde o âmbito pessoal ao político, do comportamento privado à opção política.
4) Analisar: as formas concretas em que se objetiva a nossa vontade contrária a Deus, analisar os fatores concretos que se opõem à mudança ou os que podem ser explorados a seu favor.
5) Olhar de baixo: Isto significa que não devo olhar a mim mesmo, meu próprio comportamento, a realidade da vida comunitária, as reais condições sociais como normalmente o faço - a partir de minha própria posição com os privilégios e facilidades, mas colocar-me na posição dos membros menos favorecidos da família de Deus, na situação daqueles que ainda não são tratados com igualdade, daqueles para os quais o "Um em Cristo” é apenas uma palavra bonita que não transforma a sua real situação. Este “rebaixar-se” e ver-a-realidade-de-baixo é um elemento singularmente importante do processo da “metánoia” (arrependimento, mudança), sem o qual o “Um” em Cristo” permanecerá no ar, ou seja, uma ideologia confundida com fé.
6) Trabalhar com vontade e esperança na abolição de estruturas que nos forçam a pecar e que nos impedem de “viver divinamente". A “reserva escatológica" não deve ser usada como desculpa para nossa preguiça, nosso, fatalismo ou até mesmo para que continuemos a usufruir as vantagens proporcionadas pela estrutura injusta. O otimismo e a fantasia dos humanistas já envergonharam suficientemente o pessimismo dos teólogos e a falta de imaginação dos cristãos. Spiritus Sanctus non est scepticus (Lutero) também vale para este contexto.
É preciso falar da "abolição", porque o basileúein do pecado se manifesta de duas formas: no pecado da pessoa (“a vontade de nossa carne") e no pecado estrutural (“a vontade do mundo”). A segunda forma é conseqüência do emprego massivo da primeira forma. A primeira forma é a maldade de nosso coração, a segunda forma é a maldade de nossa obra. A primeira nós não podemos alterar a partir de nós, a segunda, como incorporação de nossa maldade, podemos modificar. (Este é o objetivo da distinção que Lutero fez dos dois usos da lei, o usus elechticus e o usus políticus). A libertação da primeira forma de pecado é a obra do Espírito Santo através do Evangelho; a abolição de qualquer manifestação da segunda forma de pecado é nossa obra de obediência através da criação de leis melhores para a regulamentação da vida comunitária. O reconhecimento da primeira forma faz com que nós, qualquer que seja nossa filiação nacional ou social, sejamos solidários na necessidade e no recebimento do perdão e através deste sejamos reunidos como pessoas.
O esforço no sentido de abolir a segunda forma de pecado, uma obra política a ser concretizada por nós, provavelmente nos envolverá em choques e disputas em que o julgamento (Cf. o primeiro dos pontos mencionados acima) indica o objetivo que constitui, simultaneamente, o critério. A reconciliação entre pessoas é válida apenas no âmbito da primeira forma de pecado, jamais para as estruturas resultantes da segunda forma. Existe reconciliação e perdão entre senhores e escravos, não existe reconciliação da comunidade com a escravidão. A fatalidade da Igreja através da história foi ela não ter distinguido entre a reconciliação correta (= a reconciliação entre pessoas) e a falsa e desobediente (com o pecado estrutural).

IV.

A História Eclesiástica é em grande parte o cativeiro babilônico da Igreja na sociedade de classes.
O que descrevemos na tese anterior foi a irrupção no mundo e na sociedade, na forma de Igreja, do Reino de Deus, através do qual as filiações sociais experimentaram uma profunda transformação que, por seu lado, é elemento de transformação assim se originou o movimento do Cristianismo; esta era a sua intenção; assim ela se apresentava em seus primórdios. Mas esta situação não permaneceu assim. A Igreja que deveria subverter, questionar, minar e transformar a realidade social com suas separações, suas ordens hierárquicas e seus privilégios, quase sempre e em quase todos os lugares existia paralelamente a ela, não a subvertendo, mas justificando-a e consolidando-a.
É verdade que a Igreja apenas em raros momentos se esqueceu de seu caráter internacional e transcendente de classes (o seu caráter internacional foi esquecido pelos Deutschen Christen, a sua transcendência de classes foi esquecida nos primeiros 200 anos da excravidão americana, quando ainda se excluía os escravos do ensino cristão e do batismo); a Igreja se oferecia a todos e se esforçava em ganhar a todos como seus membros. Mas no momento em que isto aconteceu sem que as estruturas sociais fossem tocadas, ao contrário do que acontece nas epístolas aos Gálatas e aos Colossenses, o objetivo intencionado se transforma em seu contrário. Se a familiaridade é reduzida ao direito de todos de participar no culto e no sacramento, ao “sede legais um com outro" no trato pessoal, à assistência caritativa dos pobres e à igualdade diante de Deus "na eternidade", então isto significa a limitação do Evangelho a certos aspectos de nossa vida, então permanecem intocadas pela metánoia aquelas condições sociais que determinam toda a nossa vida terrena, então o Reino de Deus não tem contrariamente ao Evangelho, uma realidade e eficiência terrena presente.
Apenas por pouco tempo esteve presente, no início da história do cristianismo e na sua radicalidade, o ataque do inaugurado Reino de Deus a estas condições fundamentais da sociedade. Logo em seguida ocorre a espiritualização do Evangelho através do helenismo, e a Igreja se tornou desde Constantino um instrumento ideológico que sanciona estas condições.
Quando falamos desta adaptação da Igreja à sociedade vigente, devemos considerar dois aspectos:
a) Devemos evitar uma consideração moralizante que censura a “Igreja” como se: fosse uma pessoa. A Igreja jamais foi uma hipóstase autônoma, mas é constituída de homens e mulheres com relações históricas. Somos nós que formamos a Igreja e que fazemos Igreja, ou seja: fazemos sempre da Igreja aquilo que satisfaz às nossas necessidades. Com o início da era constantiniana, chegaram ao poder eclesiástico as camadas aristocráticas e elas fizeram da Igreja o que satisfazia em termos de necessidades religiosas como políticas. E isto permaneceu assim até hoje. Não foi a Igreja que se ajustou, mas as pessoas ajustaram a Igreja às suas necessidades.
b) Existe na Igreja um momento de resistência a esta tendência de adaptação e ajustamento. Sem este momento a história eclesiástica não seria nada mais do que uma ratificação peculiarmente clara do materialismo histórico. Este, um momento, é o Evangelho. A História Eclesiástica não apenas revela a entrega do Evangelho à depreciação ideológica por parte de nós e de nossos interesses sociais, mas também revela felizmente a sua singularidade em resistir e atacar, pelo menos tentativamente, aquilo que existe. Os valdenses, Wiclif, Huss, a Reforma, os anabatistas, Herrenhut, etc. construíram tais manifestações do Evangelho através do cativeiro babilônico da Igreja nas suas conexões classistas, e não sobrestimamos os grupos cristãos da esquerda de hoje, quando os colocamos ao lado dos acima mencionados.
Excurso: Do resto, não me oponho, com esta observação sobre o poder peculiar do Evangelho, à posição do materialismo histórico. Este - se entendido corretamente - não reivindica o poder de explicar todos os fenômenos da vida espiritual exclusivamente a partir de causas econômicas, mas ele constitui a pergunta sistemática pela influência de fatores sociais, principalmente econômicos, no surgimento de fenômenos espirituais, e não existe nenhum motivo teológico que nos force a evitar esta questão. A expropriação de amplos círculos da pequena e da média burguesia, graças à qual também nós vivemos hoje da venda de nossa força de trabalho, a transformação da inteligência em forças técnicas de auxílio do capital, a experiência de duas guerras mundiais, o fascismo, os problemas ecológicos - tudo isso talvez nos tenha tornado inconscientemente mais sensíveis para as vítimas do capital, talvez nos tenha aproximado do proletariado e afastado da burguesia, tornando-nos, assim, mais atentos para as tendências crítico-sociais do Evangelho.
Não é fácil suportar e assimilar este reconhecimento. Sabemos que a Igreja desde Constantino sempre esteve ligada às camadas dominantes, sendo sustentada por estas camadas economicamente e apoiando a manutenção do sistema vigente, e isto não vale apenas para as grandes Igrejas confessionais, mas também para as congregações livres e a maioria dos grupos cristãos livres. Esta constatação não elimina o que ocorreu de verdadeiro trabalhe de fé nestas igrejas e grupos. Mas a nossa gratidão não pode suprimir o fato de que a confissão da fé encontrou os seus limites quando ameaçava tocar as condições vigentes na sociedade. Lembremo-nos que nas enúmeras rebeliões das oprimidas massas populares ocorridas durante a história européia, estas freqüentemente recorriam ao Evangelho, mas as igrejas oficiais ou a maioria dos crentes jamais estavam ao seu lado, aliando-se ao poder governamental que consideravam instituído por Deus ou acima dos partidos, sem que desconfiassem que estavam tomando partido na luta de classes. O que lhes parecia obediência à Palavra de Deus, era, em realidade inserção tradicional no tecido classista, e isto principalmente também porque o clero pertencia às classes superiores, e porque a educação clerical era e é simultaneamente, uma introdução à camada superior. Isto vale igualmente para os clérigos provenientes das classes mais baixas, que com a sua ascensão social deixavam para trás a sua classe de origem. Esta descrição continua válida para os dias de hoje. (Cf. "Kirche und Klassenbindung", ed. por Yorick Spiegel, 1974) A ascensão social para uma classe superior leva à lealdade para com ela e a conseqüente minimização das afirmações do Evangelho na medida em que estas questionarem os interesses da classe superior. O pastor, amigado à classe de cima, torna-se o ungüento da consciência da sociedade existente, primeiramente feudal e depois burguesa, quando deveria ser o seu espinho.

V.

O Reino de Deus não nos liberta “aqui temporariamente” da luta de classes, mas nos confere nela lugar, objetivo e métodos.
De uma forma mais geral podemos dizer: O Reino de Deus não nos liberta das lutas terrenas, mas ele nos indica no meio delas as nossas tarefas como cristãos. Pois, se bem que mandados como cordeiros para o meio de lobos, os discípulos de Jesus, como seres sociais, estão inseridos, de uma forma ou outra, nas lutas terrenas. Seria ilusório pensar que eles se podem colocar acima delas, que possam permanecer imparciais e que não participam da vitória ou da derrota de um ou outro grupo. Na ética de guerra esta inevitabilidade se tornou bem patente para os cristãos; mas isto é apenas um exemplo para o entrelaçamento em lutas e parcialidades as mais diversas possíveis.
É um claro sintoma da conexão classista das Igrejas, que elas tenham uma elaborada (e em todas as igrejas confessionais praticamente idêntica) ética de guerra, mas não tenham uma tradição doutrinária semelhante em questões da luta de classes e uma tradição doutrinaria apenas negativa quanto ao que concerne à revolução. Com a expansão da Igreja e desde Constantino as classes superiores, às quais pertencia o Estado, não mais podiam deixar a Igreja entregue ao seu pacifismo anterior. Tornados cristãos, elas precisavam para si, para os seus governados uma justificação para a guerra como um elemento essencial da existência e atividade estatal. Por isso era necessário que se discutisse freqüentemente o problema da participação na guerra e do pacifismo. Mas às classes superiores não interessava uma abordagem aberta dos conflitos e das lutas de classes. Pelo contrário, era necessário que se ocultasse o máximo possível a existência na sociedade de tal fenômeno. Por isso até hoje quase não se fala - e quando se fala, isto ocorre de uma forma negativa – da luta de classes na ética social cristã.

Respondemos, por isso primeiramente de forma sucinta as seguintes perguntas:
1) O que é sociedade de classes?
2) Vivemos aqui e agora em uma sociedade de classes?
3) O que é luta de classes?
4) O que é sociedade de classes?

1) O que é sociedade de classes?
Em um sentido mais amplo e menos específico queremos designar como sociedade de classes uma sociedade em que certas camadas têm, asseguradas pelo poder, em mãos a parte maior do produto social geral - uma sociedade estratificada hierarquicamente em termos de privi1égios materiais e políticos. Sociedade de classes em um sentido mais restrito é apenas a sociedade capitalista, porque se divide de uma forma cada vez mais acentuada, em duas classes antagônicas. Enquanto que nas sociedades de classes primitivas as classes e até mesmo os membros mais ricos e mais pobres de uma mesma classe podiam existir lado a lado sem se explorar, - por exemplo, o artesão ao lado do agricultor, o agricultor rico das planícies ao lado do colono pobre das montanhas - e as relações de exploração não eram uma forma de relação essencial, mas casual, ambas as classes da sociedade capitalista, a dos proprietários dos meios de produção e a dos “produtores diretos, ou seja, a dos trabalhadores, se encontram em relação fundamental: uma não pode existir sem a outra, apenas podem sobreviver se relacionando uma com a outra e, simultaneamente, em oposição, de modo que o que é paraíso para uma, é o inferno para a outra. “De uma forma cada vez mais acentuada" - assim o expressei - porque este tipo de relação de classes cresce cada vez mais, enquanto que a anterior, pré-capitalista, diminui cada vez mais. A causa desta relação antagônica está na oposição da posse dos meios de produção e a não-posse, algo que constitui uma clara relação de poder na medida em que o não-proprietário depende, para sobreviver, ainda mais do proprietário e de sua política salarial do que antigamente o agricultor ou artesão pobres, com seus poucos meios de produção, do agricultor ou artesã ricos. Contrariando a impressão superficial, segundo a qual a sociedade burguesa funciona como elemento nivelador, esta sociedade desenvolveu o antagonismo classista mais agudo desde a sociedade escravista.

2) Vivemos aqui e agora em uma sociedade de classes?
Se atribuirmos a descrição acima ao estágio inicial do capitalismo, é questionável, porém, a sua validade para o aqui e agora. Não é verdade que capitalismo, após aquela primeira fase que gerou uma rica alta-burguesia, uma camada média que vivia agradavelmente, e uma massa proletária miserável, teve uma função niveladora através da elevação do padrão de vida das massas, da padronização do estilo de vida, do interesse comum no lucro das empresas, da igualdade política e das conquistas sociais (se bem que muitas vezes também forçadas pelo proletariado)? A partir deste ponto de vista pensa-se ser possível dizer o seguinte: através da luta de classes (no século XIX e no início do século XX) chegamos hoje à reconciliação de classes e à participação igual de todos.
Qual desses dois pontos de vista se aplica à nossa sociedade? Esta é uma pergunta que não deve ser respondida pela Teologia, mas pela análise sociológica. Também anseios cristãos - porque seria bonito, assim deveria ser, porque a luta de classes é uma cousa feia, ela não deve existir - não devem ter a última palavra aqui, assim como também não é correto pintar as cousas mais pretas do que elas realmente são, só para que tenhamos oportunidades para atitudes revolucionárias. A função da Teologia não é nos dizer como é a realidade social, mas a função é apontar para as tarefas que temos no contexto desta realidade.
Neste esboço tão sucinto eu me restrinjo, por isso, à seguinte afirmação: Tanto o abismo entre países ricos e pobres (pois em uma época de comércio mundial e de interesses internacionais não podemos julgar a nossa sociedade apenas pelas condições nacionais), assim como as atuais crises e (desemprego, concentração de capital) e os métodos com que se lida com estas crises (onerarão das grandes massas através da economia estatal, impostos, inflação, redução salarial e ausências de reformas, mas com ofertas de incentivos para os empresários) mostram claramente que aquela nivelação era ilusão e as crises revelam de novo abertamente o caráter classista da sociedade capitalista. Mas isto também significa: ela mostra nua e cruamente que nesta sociedade a relação entre as duas classes é determinada pela luta o e classes.

3) O que é luta de classes?
Para o reconhecimento de situações que envolvem luta de classe é preciso esclarecer os seguintes pontos:
a) Em cada sociedade caracterizada pelos privilégios de classe reina a luta de classes; pois a manutenção do poder que assegura os privilégios materiais e só pode acontecer através da luta contínua.
b) Por isso a primeira forma de luta de classes, permanente e inevitável, é a luta desenvolvida pela classe dominante. Sem luta não é possível participar do poder, apenas da servidão. A luta de classes que parte de baixo é secundária, periódica e empreendida conscientemente.
c) A luta de classes não está relacionada com métodos e armas especiais. Nela, assim como na política externa, vale qualquer meio que atinja o fim desejado. Preferidos são aqui como lá os meios não-violentos e - na luta de classes que parte de cima - os métodos de encobrimento da luta e a manipulação do adversário.
d) Uma classe dominante não tem outro objetivo além da manutenção de seu poder, o resto são, no máximo, ilusões, sonhos e ideais dentro dos limites de seu poder, ela pode proporcionar amenizações na medida em que a segurança do sistema as permitir. Uma classe oprimida pode estabelecer para si, na luta de classes, três metas diferentes:
1) A deposição da classe até agora no poder (por exemplo, a burguesia na revolução francesa);
2) a substituição de uma sociedade de classes por uma sociedade sem classe (revolução);
3) melhoramento da situação da própria classe no âmbito da sociedade existente (reformas).

A luta por reformas no sistema existente pertence naturalmente à luta de classes. Esta luta se torna ‘Reformismo’ apenas quando o objetivo fundamental, ou seja, a sociedade sem classes, é suprimida pela meta objetivada a curto prazo. Para Marx a sociedade sem classes era a tarefa histórica da classe proletária. Contrariando lugares comuns muito difundidos, é preciso dizer o seguinte:
a) Uma sociedade sem classes não é o paraíso e não pressupõe pessoas sem pecado; ela é uma ordem terrena para homens pecadores que preenche melhor do que a sociedade capitalista, aquilo que Barmen V (no primeiro esboço de Barth) considera como tarefa de uma ordem social: “preocupar-se com a justiça, paz e a liberdade de um mundo ainda não redimido”.
b) Em seu tempo Marx considerava tal sociedade como possível e necessária. Esta convicção se revela hoje, cem anos depois, não uma fantasia, mas uma necessidade ainda mais premente do que naquela época: Se não conseguirmos substituir agora o sistema capitalista por um sistema mais humano, então será tarde demais; é superstição crer que o mesmo mal que destruiu o planeta, possa também salvá-lo.

O que deve fazer a comunidade cristã, determinada pelo Reino de Deus, frente à questão classista e ao capitalismo, se ela também aqui deve, segundo Barmen II, testemunhar ativamente o seu Senhor?
1) De forma alguma tentar esquivar-se, por exemplo, com distinções entre elementos principais e secundários, entre necessidades materiais e necessidades mais profundas, e minimizações semelhantes. “Meu próprio pão não é pergunta soteriológica, mas o pão de meu próximo o é”, diz Nik. Berdjajew (Cf, Tg 2.16). Além disso: o capitalismo se caracteriza exatamente pelo fato de que nele a economia domina tudo e é onipresente.
2) De forma alguma tentar permanecer neutro. A tentativa seria em vão e mera ilusão e autodecepção. Em qualquer sociedade de classes antagônicas cada um dos seus membros se encontra em um dos lados e é perguntado se quer permanecer neste lado ou se quer passar-se para o outro lado. Devido à forma de produção capitalista, isto também inclui os que não pertencem a uma das classes antagônicas, mas ao setor da prestação de serviços. Este ponto se torna claro exatamente na conexão classista da Igreja. Nós sempre nos encontramos de um ou de outro lado, também em nossa prédica ou poimênica.
3) De forma alguma nos iludir pensando que o caráter super-classista da Igreja segundo Gl 3.28 um elemento essencial da mesma, nos liberta do entrelaçamento com a luta classista. Jesus diz SIM a todos os homens, mas nem a todos os sistemas sociais. A comunidade reconcilia os homens separados pelos sistemas, mas não se pode reconciliar com um sistema racista, fascista ou escravagista. Jesus fala a todos os homens, mas ele diz cousas bem diferentes a opressores e oprimidos. O seu caráter super-classista não oferece à Igreja a possibilidade de se desinteressar pelas questões classistas - pelo contrário, a sua vida é a antecipação da definitiva comunidade humana universal e ela deve trabalhar, portanto, já agora no sentido de superar a sociedade de classes. Sem esta tendência revolucionária-social a Igreja estará a serviço da luta de classes, ela estará fortalecendo a separação através da camada dominante.
A pergunta não é, portanto, se nós, como Igreja e como cristãos, podemos participar na luta de classes, mas a pergunta é em que lado e de que forma nós participaremos desta luta em que já nos encontramos inevitavelmente envolvidos. Baseados naquelas seis referências que propusemos em conexão com a tese 2, apresentamos algumas "dicas":

1) Julgamento e análise
Se um sistema social é acusado de ser essencialmente desumano e quando se afirma que é necessário substituí-lo por um outro melhor, então esta discussão deve alarmar a comunidade cristã. Se a acusação for verdadeira, então ela deve ser de extremo interesse, e toda a simpatia deve ser canalizada para aqueles que tentam superar o sistema e para as alternativas mais adequadas. Aqueles que postulam tais alternativas não têm nada a provar, apenas os que consideram as mesmas desaconselháveis e inviáveis. Contra a vontade destes e levando em conta os limites do possível - mas sempre tentando ampliá-los - os cristãos se colocarão ao lado das sugestões mais moderadas, temendo sempre serem menos radicais do que o requerido. Principalmente no âmbito da comunidade cristã esta discussão será veemente, pois em discussão não estarão apenas interesses e idéias, mas trata-se aqui da obediência da comunidade diante do impulso transformador Reino de Deus. Para tanto serão úteis à comunidade quaisquer análises da realidade social, contanto que diagnostiquem os fatores e a doença desta realidade da forma mais apurada e racional possível.
Sei que sugiro o contrário do que aconteceu na Igreja e na Teologia desde o surgimento do capitalismo e do socialismo até os dias de hoje: contestação imediata e preconceituosa de qualquer acusação, extrema antipatia para com os que superavam o sistema, contestação precipitada da possibilidade de alternativas radicais através de uma miscelânea de argumentos teológicos e profanos, rígida limitação do possível, identificação do cristianismo com a moderação e - grotescamente - do radical com a posição “ideológica” (contrária à posição da fé), preferência do vigente ao necessário, utilização do ateísmo marxista como argumento cristão contra a análise marxista (em vez dos cristãos se envergonharem com o fato de eles próprios não ter produzido uma tal análise), constante procura de argumentos e esperanças em favor do sistema capitalista e contra as tentativas de concretização socialista, e nervosas rejeições de qualquer questionamento do capitalismo. Se é verdade que esta série de atitudes é compreensível logo que entendermos seus condicionamentos classistas, também não é menos verdade que não haverá renovação da Igreja sem que ela rompa com este sistema burguês que rejeita qualquer questionamento e quaisquer alternativas transformadoras. Karl Barth afirma na primeira edição de seu comentário aos Romanos, 1919, p.381): Dificilmente podereis posicionar-vos num outro lugar do que a extrema esquerda.

2) Ver as causas de baixo
Mas a atitude de rejeição existente em nossas comunidades também está relacionada com o tipo de informação que lhe é oferecida. Nossos meios de comunicação principalmente a imprensa local, se preocupa em encobrir o máximo possível a miséria que existe lá fora, entre nós, as causas da miséria, principalmente, as alternativas socialistas. Creio, e o digo com gratidão, que nos últimos dez anos mais cousa aconteceu neste sentido na Igreja, do que em qualquer outro lugar, sendo que os grupos ligados à Igreja são hoje provavelmente os mais esclarecidos da população. Não existe apenas a seqüência coração-cabeça-ação, mas também a seqüência cabeça-coração-ação. Primeiramente é preciso ver e conhecer a miséria antes que se possa senti-la. Esta é uma abordagem moral da questão social que é muitas vezes injustamente ignorada pelos marxistas. Pois à filiação à família de Jesus Cristo pertence inegavelmente um interesse vivo pelas condições de vida dos irmãos e das irmãs e pelo que obstaculariza as suas vidas, também a sua "vida divina". E exatamente aquele que se exercitou em ver as cousas solidariamente com os oprimidos, estará resguardado de subestimar obstáculos materiais e estruturais. Da autocrítica cristã, que pode ser estimulada pelo marxismo, também faz parte o reconhecimento de que a nossa avaliação dos problemas sociais e das sugestões solucionadoras está relacionada com o fato de nós não vivermos “lá embaixo” e abaixo de nós sempre se encontrarem muitos degraus da pirâmide social (Léo Tolstoi afirmou: Quem quiser julgar uma nação, deverá fazê-lo a partir de suas prisões.). Se no âmbito de nossas comunidades nos transladarmos para baixo, com o intuito de ver e observar a partir de baixo, movimento que se mostra em conformidade com o Novo Testamento, que indubitavelmente é um livro que vê o mundo de baixo, veremos que o nosso primeiro tema atualmente não é o socialismo, mas sim o capitalismo. As sugestões e as tentativas de concretização socialistas podem ser discutidas descomprometida e comodamente na cadeira de balanço e no salão paroquial, mas a miséria capitalista está patente aos nossos olhos e nos atinge a todos. As perguntas são, se esta miséria é, e se for, em sua medida, causada pela forma da produção capitalista, se e até que ponto esta forma de produção pode ser superada através de reforma, se esta forma de produção pode ser substituída por uma melhor, ou se queremos nos submeter as suas conseqüências extremamente destrutivas como que ao destino. Apenas quando estas perguntas não nos deixarem mais descansar, então também a pergunta pelo socialismo se tornará uma questão "quente” para nós.

3) Trabalhar já a partir de agora no sentido de abolir as condições vigentes.
Neste ponto a política, esta política suja e horrenda, se encontra com a comunidade cristã. É verdade que a comunidade não pode dar aos seus membros a resposta para as perguntas e acusações enumeradas anteriormente. Não é tarefa da comunidade decidir o que fazer, se a situação realmente for como descrita acima. O que a comunidade pode fazer é deliberar e discutir estas questões, mas cada membro deve dar suas respostas com os meios que tem à sua disposição. E não é a comunidade que deve efetivar concretização política, nas os grupos políticos constituídos por cristãos e não-cristãos. O que a comunidade pode fazer é, primeiro, oferecer os critérios para análise da realidade e as conseqüências daí resultantes, como o tentamos aqui parcialmente; segundo, ela pode oferecer os estímulos para que tal aconteça, é, igualmente, ela pode despertar na comunidade, através do evangelho, da vida do espírito, a esperança, a paciência e a disposição para o martírio (e principalmente esta última em uma época em que não a teologia imparcial e a religiosidade levam ao martírio real, mas sim a práxis socialista, seja ela levado a cabo por cristãos ou não cristãos)
Neste ponto, em que ocorre a transição do reconhecimento cristão para a análise racional e delineamento do programa político, gostaríamos de obter maiores informações do Evangelho, mas exatamente aqui ele nos coloca na responsabilidade autônoma, abandonando-nos ao fervilhar das correntes, de nossos dias, deixando-nos a responsabilidade da escolha. Mas também é verdade que, se discutirmos a práxis voltados para a prática, e não soubermos qual a direção a tomar como o experimenta em toda a sua extensão apenas o socialista, e se somos confrontados com tentações, o Evangelho em sua globalidade falará a nós e se revelará como o promete Lutero ao homem na tentação - como o “único consolo na vida e na morte”, e isto exatamente para aquele para quem o discipulado é impossível a não ser como socialistas.

4) Não-participação
Sobre esta “dica" não mais direi muita coisa; ela merece em si uma exposição à parte e mais ampla: como é possível a não participação em meio a um sistema de produção que, como capitalista, a tudo pervade e a tudo domina? Como é possível não participar de suas formas de pensar, de relacionamentos, interrelações e de suas reações?
Esta pergunta nos torna clara a velha pergunta formulada pela teologia Luterana a 1 Jo 3.6: "Todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não ouviu, nem o conheceu!". Romper em sua própria maneira de pensar com a mentalidade até agora vigente de comércio, de concorrência e de privi1égios, com os critérios do milieu burguês, já é em si um processo longo e doloroso, quanto mais o deve ser o rompimento com as manifestações exteriores do sistema capitalista. E o que dizer dos necessários compromissos do dia-a-dia? Estas observações são suficientes para o tema: existência socialista como forma atual do "metaneia”. O divórcio entre a doutrina e a vida acompanha o cristianismo desde os seus primórdios; ele constitui um perigo que ameaça voltar sempre de novo, por isso deve ser diariamente superado.

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