Drones:
dossiê sobre uma guerra suja
Como EUA
executam, sem julgamento, supostos “inimigos”. Por que civis são alvo. De onde
partem ataques. Que precedentes o programa abre
Por Cora
Currier, ProPublica
É possível
que você já tenha ouvido falar das “kill lists” – listas de nomes de pessoas a
serem assassinadas. Certamente você já ouviu falar dos drones. Mas os detalhes
da campanha que os EUA movem contra militantes no Paquistão, no Iêmen e na
Somália – peça chave da abordagem que o governo Obama optou por dar à segurança
nacional – permanecem envoltos em segredo. Aqui oferecemos um guia do que já
sabemos e do que ainda não sabemos.
Onde se trava
a guerra ‘dos drones’? Quem faz essa guerra?
Os
aviões-robôs comandados à distância, os drones, são a arma escolhida pelo
governo Obama para matar militantes fora do Iraque e do Afeganistão. Os drones
não são a única arma – também há notícias de ataques aéreos tradicionais e
outros. Mas segundo uma das estimativas disponíveis, em mais de 95% dos
assassinatos premeditados executados depois de 11/9/2001, os alvos foram mortos
por drones. Uma das vantagens dos drones é que os soldados norte-americanos
fogem da linha de fogo.
O primeiro
ataque noticiado contra a Al-Qaeda aconteceu no Iêmen em 2002. A CIA aumentou
muito o número de ataques secretos com drones no Paquistão, durante o governo
George W. Bush em 2008. E sob o governo Obama o uso foi drasticamente ampliado
também no Paquistão e no Iêmen, em 2011.
Mas a CIA não
é a única agência a atacar com drones. O exército também já admitiu “ação
direta” no Iêmen e na Somália. Os ataques nesses países são executados sempre
secretamente por grupos do Comando Conjunto de Operações Especiais [orig. Joint
Special Operations Command, JSOC]. A partir do 11/9, esse JSOC foi aumentado. É
hoje dez vezes maior, e assumiu funções de espionagem, além das funções de
combate. (Por exemplo, uma das equipes do JSOC atuou na operação que assassinou
Osama Bin Laden.)
A guerra de
drones é lutada por controle remoto, a partir de bases instaladas em território
dos EUA e numa rede de bases secretas espalhadas por todo o mundo. O Washington
Post conseguiu obter alguma informação sobre isso, examinando contratos de
construção nos quais havia itens não explicados. Por exemplo, na construção da
base dos EUA, numa minúscula nação africana, o Djibuti, de onde partem muitos
dos ataques contra Iêmen e Somália. Antes disso, no mesmo ano, a revista Wired
mapeou os atos de guerra dos EUA contra o grupo militante al-Shabaab da
Somália, e a crescente presença militar dos EUA em toda a África.
O número de
ataques no Paquistão caiu em anos recentes, de um máximo de 100 em 2010, para
cerca de 46, ano passado. Mas o número de ataques contra o Iêmen cresceu,
chegando a mais de 40 ano passado. E só nos primeiros dez dias de 2013, já
houve sete ataques no Paquistão.
O jargão da
guerra dos drones
AUMF
[Authorization for Use of Military Force / Autorização para Uso de Força
Militar] é lei do Congresso dos EUA, aprovada poucos dias depois dos ataques de
11/9, que dá ao presidente autoridade para “usar toda a força necessária e
apropriada” contra qualquer pessoa ou grupo envolvido naqueles ataques ou que
tenha dado abrigo a alguém neles envolvido. Ambos, Bush e Obama exigiram para
si amplos poderes para deter e matar suspeitos de terrorismos, baseados nessa
AUMF.
AQAP
[Al-Qaeda in the Arabian Peninsula / Al-Qaeda na Península Arábica] é o grupo
afiliado à al-Qaeda que tem base no Iêmen, responsabilizado pelo atentado a
bomba contra um avião no Dia de Natal de 2009. Ao longo do ano passado, os EUA
aumentaram o número de ataques com drones contra a AQAP, nos quais foram
assassinados líderes do grupo e outras pessoas que não foram identificadas como
militantes.
DISPOSITION
MATRIX [Matriz de alvos a serem dispostos (mortos)] É um sistema para rastrear
suspeitos de práticas de atos de terrorismo e para classificá-los, com registro
de onde possam ser assassinados (ou capturados). O jornal Washington Post
noticiou nesse outono [nórdico] que o sistema “Disposition Matrix” é uma
tentativa de codificar, em listas nas quais os alvos são dispostos conforme sua
importância relativa, para serem assassinados. Essas listas são as chamadas
“kill lists” [listas para matar] dos esquadrões oficiais da morte dos EUA.
GLOMAR A
expressão designa a resposta a um tipo de pedido de informação sobre programa
secreto, cuja existência não possa ser nem confirmada nem negada. A palavra foi
usada pela primeira vez em 1968, quando a CIA disse a jornalistas que não podia
“nem confirmar nem negar” a existência [de um navio chamado] “Glomar Explorer”.
Hoje, a CIA tem respondido a quem procure informação sobre seu programa de
drones com “respostas GLOMAR”.
JSOC [Joint
Special Operations Command / Comando Conjunto de Operações Especiais] é
segmento militar altamente secreto. É o grupo que executou o assassinato de Bin
Laden e, hoje conduz o programa dos drones militares no Iêmen e na Somália.
Trabalham tb na coleta de inteligência.
PERSONALITY
STRIKE [Ataque ‘personalidade’] Designa o ataque a um indivíduo identificado
como líder terrorista.
SIGNATURE
STRIKE [Ataque ‘assinatura’] Designa o ataque contra algum suspeito de ter
atividade política militante, mesmo que sua identidade seja desconhecida. Esses
ataques baseiam-se na análise de um “padrão de vida” – informação que a
inteligência reúna sobre comportamentos que façam pensar que um indivíduo seja
militante político. Esse tipo de ataque, que Bush inaugurou no Paquistão, já é
autorizado hoje também no Iêmen.
TADS [Terror
Attack Disruption Strikes / (aprox.) Ataques para interromper ação terrorista],
expressão usada às vezes em referência a ataques nos quais não se conhece a
identidade do alvo a ser assassinado. Funcionários do governo Obama têm dito
que os critérios para os TADS são diferentes dos critérios para os Ataques
‘assinatura’, mas nem uns nem outros foram jamais claramente explicados.
Como se
definem as vítimas a serem assassinadas?
Vários artigos
(1, 2 e 3) baseados, na maior parte, em comentários feitos por funcionários não
identificados permitem conhecer, pelo menos, um quadro parcial de como os EUA
selecionam seus alvos para assassinatos políticos predefinidos. Dois relatórios
recentemente publicados – de pesquisadores da Faculdade de Direito da
Universidade Columbia e do Conselho de Relações Exteriores – também oferecem considerações detalhadas
sobre o que se sabe de todo esse processo.
Sabe-se que a
CIA e os militares mantiveram, por muito tempo, ‘listas de matar’ que se
sobrepunham. Segundo relatos de noticiários da primavera passada, as listas dos
militares atropelou as demais nas reuniões comandadas pelo Pentágono, cabendo à
Casa Branca a decisão final. Missões particularmente ‘sensíveis’ têm de ser
autorizadas pessoalmente pelo presidente Obama.
Esse ano, o
processo mudou, ao que se sabe, para concentrar a análise dos indivíduos-alvos
e os critérios gerais para os assassinatos premeditados, na Casa Branca.
Segundo o Washington Post, as análises são feitas agora em reuniões regulares
entre as várias agências, no Centro Nacional para Contraterrorismo. Enviam-se
recomendações para um seminário permanente de oficiais do Conselho de Segurança
Nacional. E as decisões finais são levadas pelo Conselheiro para
Contraterrorismo da Casa Branca, John Brennan, diretamente ao presidente.
Vários estudos têm mostrado o importante e controverso papel de Brennan na
modelagem de toda a trajetória do programa de assassinatos premeditados. Essa
semana, Obama nomeou Brennan para dirigir a CIA.
Pelo menos
alguns ataques da CIA não tem de esperar pelo sinal verde da Casa Branca. O
diretor da CIA tem autonomia, ao que se sabe, para autorizar assassinatos
premeditados no Paquistão. Numa entrevista em 2011, John Rizzo, ex-advogado
chefe da CIA, disse que os advogados da agência analisavam detalhadamente cada
‘alvo’.
Segundo o
Washington Post, o recente esforço do governo Obama para impor limites mais bem
definidos às listas para matar e aos “assassinatos assinatura” não inclui a
campanha da CIA no Paquistão. A CIA ganhou mais, no mínimo, um ano, para
prosseguir na campanha de assassinatos premeditados no Paquistão segundo,
exclusivamente, os próprios protocolos.
Os EUA
assassinam pessoas cujos nomes nem sabem?!
Sim. Por mais
que funcionários do governo apresentem os ataques de drones como limitados a
“líderes de alto nível da al-Qaeda que planejem ataques” contra os EUA, muitas
vezes o que se vê são ataques contra ‘possíveis’ militantes cujas identidades
os EUA absolutamente não conhecem. Os chamados “Ataques ‘assinatura’” começaram
com Bush, no início de 2008; com Obama foram muito expandidos. Não se sabe
exatamente quantos dos ataques são “ataques ‘assinatura’”.
Em mais de
uma ocasião, os “ataques ‘assinaturas’” perpetrados pela CIA, sobretudo no
Paquistão, causaram tensões com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Um
funcionário contou ao New York Times sobre piada que circularia, segundo a
qual, para a CIA, “três sujeitos fazendo polichinelos” são campo de treinamento
de terroristas.
No Iêmen e na
Somália, discute-se se os militantes que os EUA tomam por alvos estão de fato
tramando contra os EUA ou se, diferente disso, estariam tramando contra o
próprio país deles. Micah Zenko, membro do Conselho de Relações Exteriores que
muito criticou o programa dos drones, disse em entrevista à rede ProPublica que
os EUA, de fato, estão mantendo uma “força aérea contraguerrilhas” para servir
aos países aliados. Não raras vezes, os ataques foram organizados a partir de inteligência
local que, adiante, se comprovou errada ou insuficiente. O Los Angeles Times
examinou recentemente o caso do iemenita que foi assassinado por um drone
norte-americano e a complexa rede de laços e contatos políticos que cercou o
caso.
Quantos já foram
mortos em ataques de drones?
Ninguém
conhece o número exato, mas há estimativas que falam de cerca de 3 mil mortos.
Vários grupos
rastreiam os ataques de drones e estimam o número de vítimas:
– O Long War
Journal cobre o Paquistão e o Iêmen.
– O New
America Foundation cobre o Paquistão.
– O London
Bureau of Investigative Journalism cobre Iêmen, Somália, e Paquistão, e oferece
estatísticas sobre ataques com drones também no Afeganistão.
Quantos dos
mortos eram civis?
Impossível
saber. Os números variam muito, para mais e para menos. A New America
Foundation, por exemplo, estima que entre 261 e 305 civis foram mortos no
Paquistão; o Bureau of Investigative Journalism fala de 475 a 891 mortos. Todas
essas estimativas são sempre superiores ao número de mortos que o governo
divulga. (Há discrepâncias até entre os que oferecem as menores
estimativas.) Algumas análises mostram
que o número de civis mortos diminuiu em anos recentes. (…) E o Washington Post
noticiou mês passado que o governo do Iêmen frequentemente oculta ou tenta
ocultar o papel dosdrones dos EUA em eventos nos quais morram civis.)
Os números
são imprecisos também porque os EUA com frequência contabilizam qualquer homem
em idade de prestar serviço militar, que morra em ataque de drones, como
“militante terrorista”. Um funcionário do governo Obama disse à nossa rede
ProPublica que “Se um grupo de homens em idade de combater está em local onde
sabemos que estão construindo explosivos ou planejando ataques, assumimos que
todos os ali reunidos participam do mesmo esforço.” Não se tem notícia de
resultados de investigação, nem se há qualquer investigação, depois de
consumado o ataque.
A Faculdade
de Direito da Universidade Columbia elaborou análise em profundidade de tudo
que se sabe sobre esforços dos EUA para mitigar e calcular o número de baixas
entre civis. Concluiu que o caráter clandestino da guerra dos drones dificulta,
quando não impede completamente as práticas de prestação pública de contas que
se adotam nas ações militares tradicionais. Outro estudo de Stanford e da New
York University, comprovou “ansiedade e trauma psicológico” entre habitantes de
vilas paquistanesas.
Esse outono,
a ONU anunciou uma investigação sobre o impacto nas populações civis –
especialmente sobre acusações de “ataques duplos“ [orig. double-tap], casos em
que ocorre um segundo ataque, que toma por alvos os que venham à cena do
primeiro ataque para socorrer feridos.
Por que matar
primeiro? Por que não se cogita de capturar suspeitos?
Funcionários
do governo Obama têm dito em declarações que os militantes são tomados como
alvos de execução quando representem ameaça iminente ao EUA e a captura não
seja exequível. Mas a execuções em ataques de drones são muito mais frequentes
que eventos de prisão de suspeitos; e os relatórios dos ataques pouco ou nada
esclarecem sobre “ameaça iminente” ou “exequibilidade” de prisões. Casos que
envolvam captura secreta de prisioneiros, em conflitos em área remotas, durante
o governo Obama mostram as dificuldades políticas e diplomáticas que se criam
para que se decida como e onde um suspeito possa ser detido ou preso.
Esse outono,
o Washington Post descreveu algo denominado “disposition matrix [Matriz de
alvos a serem dispostos (mortos)] – processo que oferece planos de contingência
para o que fazer com terroristas, conforme o local onde estejam. The Atlantic
mapeou o modo como se tomam decisões, no caso de o ‘suspeito’ ser cidadão
norte-americano, baseado em alguns exemplos conhecidos. Mas, evidentemente, os
detalhes dessa “matriz de alvos a serem mortos [dispostos]”, bem como as
“listas de matar” a que dão origem, não são conhecidos.
Qual o
fundamento que dá amparo legal a esses esquadrões da morte oficiais?
Funcionários
do governo Obama têm feito várias declarações e discursos nos quais muito falam
da fundamentação legal em que se baseariam os assassinatos predefinidos, mas
jamais citam qualquer caso específico. De fato, ninguém reconhece oficialmente
a existência da guerra de drones. Os programas de drones para assassinatos
premeditados pode incluir indivíduos associados à al-Qaeda ou “forças
associadas”, também fora do Afeganistão e, até, cidadãos norte-americanos.
“O devido
processo legal, disse o Procurador Geral dos EUA Eric Holder, em discurso em
março passado, “toma em consideração as realidades do combate”. Em que consiste
esse “devido processo legal”, não se sabe. E, como já noticiamos, o governo dos
EUA frequentemente se fecha para
comentários de qualquer tipo e para questões específicas – como o número de
civis mortos ou os motivos específicos pelos quais um ou outro indivíduo tenha
sido considerado ‘alvo preferencial’ para assassinato premeditado, ou por que a
captura foi considerada ‘não exequível’ (como se vê em memorando do
Departamento de Justiça, não secreto, ao qual teve acesso a rede NBC). (…)
Quando
terminará a guerra dos drones?
O governo dos
EUA, dizem alguns noticiários, já teria considerado a desescalada da guerra dos
drones, mas, segundo outras fontes, estaria trabalhando para formalizar o
programa de assassinatos premeditados, que seria convertido em programa de
longa duração. Os EUA avaliam que a Al-Qaeda na Península Arábica conte hoje
com “uns poucos milhares” de membros; mas há oficiais que também dizem que os
EUA “não podem capturar ou assassinar todos os terroristas que se declarem
‘ligados’ à al-Qaeda.”
Jeh Johnson,
que acaba de deixar o posto de conselheiro geral do Pentágono, fez uma
palestra, mês passado, sob o título de “The Conflict Against Al Qaeda and its
Affiliates: How Will It End?” [O conflito contra a al-Qaeda e seus afiliados:
como acabará?]. Mas não marcou data.
John Brennan
disse que a CIA deve voltar a concentrar-se no trabalho de coletar
inteligência. Mas o papel principal de Brennan no comando da guerra dos drones
a partir da Casa Branca já levantou o debate sobre o quanto sua indicação para
dirigir a CIA servirá para ocultar ainda mais o envolvimento da agência, se
vier a ser confirmado no posto.
E quanto a volta
do chicote dos drones – e o antiamericanismo –, em todo o mundo?
Disso, sim,
há muito, em todo o mundo. Os drones são cada vez mais profundamente
impopulares nos países onde são empregados, e continuam a provocar protestos
frequentes. Apesar disso, Brennan disse em agosto passado que os EUA veem
“poucos sinais de que a ação dos drones esteja gerando sentimentos
antiamericanos, ou facilitando o recrutamento de terroristas”.
O general
Stanley McChrystal, que comandou os militares no Afeganistão, contrariou
recentemente essa ideia: “O ressentimento criado por os EUA usarmos os veículos
não tripulados como arma de ataque (…) é muito maior do que supõem os
americanos médios. Osdrones são visceralmente odiados, até por gente que jamais
viu um drone ou conheceu os efeitos da ação de um deles.” O New York Times
noticiou recentemente que militantes paquistaneses haviam deflagrado campanha
brutal contra locais acusados de espionagem a favor dos EUA.
Quanto a
governos estrangeiros, a maioria dos principais aliados dos EUA mantêm silêncio
sepulcral sobre os drones. Relatório da ONU, de 2010, já levantara preocupações
sobre o precedente que se criava, de guerra clandestina, sem leis e sem
qualquer limite. O presidente do Iêmen, Abdu Hadi, apoia a campanha dos drones
norte-americanos; e o governo do Paquistão mantém uma inconfortável combinação
de protestos para efeito público com aceitação oficial muda.
http://www.outraspalavras.net/2013/02/19/drones-dossie-sobre-uma-guerra-suja/
Nenhum comentário:
Postar um comentário