7 de setembro de 2011
Paulo Marques*
O PT é hoje o partido da social-democracia brasileira. Essa afirmação que faço, se fosse dita a uns 10 ou 20 anos atrás seria contestada por grande parte dos líderes do PT. Hoje, no entanto, ano do IV Congresso da legenda, ocorrido no final de semana passada, creio que essa afirmação seria aceita pela maioria da atual direção, isto porque essa é uma realidade incontestável. Neste breve artigo busco argumentar sobre esta realidade, apontando alguns elementos que comprovam essa afirmação.
Quem conhece minimamente a história de três décadas do PT poderá verificar como se deu esse processo de transição de um "partido de novo tipo" dos primeiros manifestos de fundação, passando pelo histórico documento "socialismo petista" até a assimilação da lógica já clássica dos partidos da social democracia europeia. Malgrado o PT tenha nascido e se desenvolvido em um processo muito semelhante, para não dizer igual, aos partidos social democratas da Europa ocidental, ou seja, oriundo da organização da classe trabalhadora e seus poderosos sindicatos, o PT sempre procurou se diferenciar, em seus discursos, seja do modelo leninista de partido de quadros e de vanguarda, seja dos tradicionais partidos parlamentares da social democracia. O documento aprovado no 1 Congresso do partido, realizado em 1991 e denominado "socialismo petista", buscava exatamente demarcar essa diferença.
Podemos dizer que essa "demarcação" de uma identidade de "novo tipo" que encantou a esquerda não só na América Latina mas também na Europa, tem um percurso que vai da década de 80 até meados de 1995. Neste período o PT viveu um intenso conflito e debate interno entre diferentes correntes, mas que pode ser resumido em duas posições antagônicas, de um lado aqueles que acreditavam na possibilidade de um partido realmente "de novo tipo", anticapitalista, socialista e de outro os sociais-democratas, que mesmo sem nunca assumir esta característica, representavam, de forma muito clara, este pensamento(vale destacar que o debate PT/PR - partido revolucionário- já havia sido superado antes do final dos anos 80 pela maioria das tendências de esquerda. Este foi um dos motivos da saída de uma das corrente trotskistas mais conhecidas que viria a formar em 1994 o PSTU).
A disputa dos dois campos vai se decidir somente após a inédita vitória das correntes mais a esquerda do partido que ocorre no 8 encontro nacional, realizado em 1993. Foi neste encontro que a corrente majoritária a Articulação, sofre um racha dando origem a "Articulação de Esquerda". Esse Encontro marca tanto o ápice como a derrocada definitiva dos setores do PT que buscavam construir um partido de caráter anticapitalista. Foi o suspiro final de um processo iniciado com a criação do PT e que teve na campanha presidencial de 1989 o seu ponto culminante.
Além dos reflexos do 8 encontro a segunda derrota de Lula em 1994 foi decisiva para a contraofensiva dos setores social-democratas do PT, no sentido de definir o rumo que o partido deveria tomar dali para frente, o que passava necessariamente pela derrota dos setores da esquerda que ainda acreditavam em um partido anticapitalista de "novo tipo".
Foi, portanto, em 1995 que a tendência majoritária(social-democrata) que logo adotaria o nome de "Campo Majoritário" assumiria o controle definitivo do partido. Esta corrente, das maiores figuras públicas do partido entre elas Lula, a principal, nunca mais perderia o controle da máquina partidária. A lição do 8 Encontro foi muito bem assimilada pelos sociais democratas do PT.
Para que não houvesse mais risco de perda do comando, foi necessário realizar também mudanças no processo decisório do partido, tirando o poder de decisão dos militantes nos congressos de delegados, em sua grande maioria vinculados as correntes internas, e colocando na mãos dos filiados. Essa foi uma das novas regras do PED, Processo de Eleições Diretas,que abria o partido para que todos os filiados pudessem votar e escolher diretamente seus dirigentes, ou seja, a decisão agora passaria para a massa de novos petistas que não tinham a tradição de militância ou vinculação com correntes e que acompanhavam o partido pela imprensa, tendo como referencia principal as figuras públicas mais conhecidas.
Os encontros, antes marcados pelas discussões, debates e polêmicas programáticas, são substituídos por momentos de votar na "chapa dos líderes", dos quadros públicos e detentores de mandatos". A dinâmica interna, que funcionava o ano todo com a mobilização de diversos setoriais, núcleos, se resumirá a organização de campanhas eleitorais e períodos de prévias para escolhas de candidatos majoritários.
O PT avançava assim cada vez mais para sua caracterização como um tradicional partido clássico da social democracia. A prioridade dada a disputa nas instituições, os mandatos parlamentares substituindo as correntes de opinião, os núcleos de base substituídos pelos parlamentares representavam este perfil. Isto, no entanto, não impedia que o partido continuasse sendo a principal referencia dos sindicatos e dos movimentos populares, a diferença estava em que agora estes últimos tornavam-se apenas correia de transmissão do partido. Cabe destacar que esse processo não é contraditório ou estranho com a história da social-democracia europeia, é mais um elemento da sua identidade.
Outro fator importante a destacar na trajetória do PT é que o partido quando esteve no poder em administrações locais conseguiu inovar na sua ação pública. Pela primeira vez diversos municípios tiveram experiências inovadoras em matéria de políticas públicas que apontavam para a superação não só da política neoliberal mas dos próprios limites da democracia representativa. Isto se deu principalmente nas experiências de democracia direta como o Orçamento Participativo. Não foi por nada que a esquerda europeia e latino americana escolheu Porto Alegre como capital do Fórum Social Mundial, encontro dos movimentos anticapitalistas que buscavam no deserto neoliberal alguma alternativa.
Todavia, foi só mesmo quando o PT assumiu o governo federal em 2002 que o seu caráter social-democrata se tornou explícito. O PT no governo central implementou uma agenda tipicamente social-democrata( me refiro a clássica, e não a terceira via de caráter neoliberal): estancou as políticas neoliberais de sucateamento do setor público, retomou o papel do Estado como indutor do desenvolvimento capitalista, criou políticas sociais de grande alcance como o combate a miséria e retomou uma posição soberana e pró-ativa nas relações internacionais com destaque para o protagonismo na rearticulação de um bloco Latino americano e de países emergentes como os BRICS.
Em uma perspectiva histórica poderíamos afirmar que a agenda do PT foi, grosso modo, não só uma agenda social-democrata clássica mas a retomada da agenda nacional-desenvolvimentista interrompida pelo golpe militar de 64. A respeito disso podemos dizer que o PT é, em certa medida, a continuidade do que seria o PTB de Jango e Brizola caso não tivéssemos o golpe militar. Conforme assinala o historiador Jorge Ferreira na biografia de João Goulart, lançada recentemente, o PTB também foi o partido dos trabalhadores, dos sindicatos, com uma ampla base social e de intelectuais progressistas que disputou com o partido comunista a representação da classe trabalhadora. Não fosse o golpe militar, o PTB teria todas as condições para tornar-se o partido da social-democracia brasileira. O que o diferenciava do PT é o fato de que no PTB nunca existiram correntes marxistas ou anticapitalistas. A identidade dos dois está na agenda do desenvolvimento capitalista soberano, anti imperialista, nacionalista, o que é sem dúvida a bandeira do PT hoje.
Portanto, com a chegada do PT ao governo temos o coroamento da estratégia social-democrata, ou seja, a hegemonia total deste pensamento político no seio do partido. O que restava de posição anticapitalista no interior do partido no inicio do governo Lula deixou de existir com a saída de um grupo de militantes e intelectuais para criar um novo partido, o PSOL, que pelo que demonstrou até hoje, só herdou o que de pior existia no PT, ou seja, o eleitoralismo e o pragmatismo. A única diferença do PSOL hoje é a manutenção da retórica pseudorrevolucionária de orientação trotskista.
Mas, afinal, quando o PT assume sua condição de partido social democrata? Sobre isso não há consenso entre os analistas.Alguns teóricos dizem que o momento simbólico foi a "Carta aos Brasileiros", documento assinado por Lula sinalizando aos mercados que o governo do PT não seria um governo de rupturas.
Na verdade o PT não teve um "momento" em que assumiu sua condição que, sejamos claros até hoje não é assumida por nenhum petista. O PT mantém seu discurso de partido socialista, talvez por que a palavra social democrata no Brasil ainda esteja sendo utilizada( melhor dizendo sequestrada) ainda pelo partido mais liberal do pais.
O fato é que o PT cumpriu e ainda cumpre um papel histórico na política brasileira. O PT é a continuação das reformas de base do PTB pré-golpe, é o partido da modernização capitalista, da tentativa de construção de um Estado de bem estar social inédito no Brasil, pais que até bem pouco tempo tinha 30 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza e que detém o titulo de mais desigual, apesar de ser a 8 economia do mundo capitalista; um pais no qual ainda existe trabalho escravo, onde trabalhadores rurais são assassinados por lutarem por direitos garantidos na constituição.
Nesse pais, com estas características, a social-democracia adquire caráter revolucionário. Mas não nos enganemos, é do capitalismo que estamos falando, um sistema que se reproduz pela desigualdade, sua essência é a exploração do homem pelo homem, é a ganancia, é a destruição. E em relação a isso a social democracia não tem resposta, não é sua vocação criar um novo sistema. Esse é o papel de um partido anticapitalista e o PT não é um partido anticapitalista no sentido de ser um instrumento para transformar as estruturas do sistema. Pode ser sim uma parte da luta dos trabalhadores contra a exploração do capital mas não da substituição por outro sistema.
Por isso que o IV Congresso do PT não é nenhuma novidade. Não surpreendeu ninguém, apenas representou o que é o PT hoje, o verdadeiro partido da social democracia brasileira que tem adversários muito fortes ainda, como o poder econômico dos rentistas, que mesmo não sendo atingido diretamente pelas ações do governo, sentem o risco de que "o povo queira mais", e nesse sentido, o PT é e sempre será seu inimigo principal. Para estes setores quanto menos PT, menos perigo.
Por fim, uma pergunta que a esquerda anticapitalista deveria se fazer, seja ela a que resta no interior do PT (extremamente minoritária e fragilizada) ou que está em outro partido ou mesmo sem partido: E se o povo quiser mais? Quem terá capacidade para responder a isso? Na Europa a juventude está nas ruas querendo muito mais do que a social democracia e os liberais oferecem como única possibilidade.
A social democracia do PT não será diferente. Nesse sentido, o que está colocado para os anticapitalistas é a necessidade de pensar, elaborar um projeto anticapitalista para o futuro mas não um projeto baseado no antipetismo. O antipetismo só serve à reação, ao conservadorismo, e esse é o erro daqueles que pretendem ser alternativa ao PT pela esquerda, combatendo o PT. O PT está cumprindo seu papel e tem claramente seu limite.
O que vier para superar o PT não poderá jamais ser o anti-PT, pois as massas trabalhadores beneficiadas pelo projeto social-democrata do PT não o abandonarão, defenderão cada vez mais o projeto que lhe beneficiou. A questão central é que este projeto do PT tem e terá um limite intransponível, que é não ser anticapitalista. Este espaço precisa ser ocupado, mas não será por uma seita trotskista, um partido de vanguarda leninista. Terá que ser um partido forjado e conectado com as lutas da contemporaneidade, lutas dos explorados da nova economia do conhecimento, das novas tecnologias, das massas de jovens que estarão excluídas do irreal paraíso consumista, da luta contra a alienação e a miséria existencial, cultural e política que o capitalismo apresenta como futuro de todos.
Um partido anticapitalista se vier a existir, terá que ser necessariamente comunista, mas no sentido marxiano do termo, ou seja, de uma prática emancipada das necessidades que escravizam os homens e mulheres, de construção de uma sociedade dos livres produtores associados. Mas para isso será fundamental ser ousado, capaz de superar os dogmas do passado, ser pós-trotskista, pós-leninista e pós-petista, não anti, mas pós, caso contrário a esquerda continuará dialogando apenas com seus fiéis em pequenos "templos de sectarismo" que nada contribuem para avançar com o olhar no presente e no futuro.
* Paulo Marques é professor, mestre em sociologia pela UFRGS e doutorando em sociologia pela Universidade de Granada na Espanha, com pesquisa sobre Movimento social da Outra Economia no Brasil.
http://economiasocialistads.blogspot.com.br/2011/09/pt-do-socialismo-petista-social.html
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