É preciso
sonhar
José
Comblin – Teólogo - Conferência na UCA, El Salvador,14/11/2010.
O conteúdo das perguntas que me chegam revela que há um certo desconforto quanto à situação da Igreja: insegurança. No pontificado de Pio XII, que havia condenado todos teólogos e movimentos sociais importantes, os seminaristas, depois jovens sacerdotes, também desconcertados, perguntavam: ainda há futuro?
Naquela
época, se publicou uma biografia de Pio XII, onde se dizia: "Hoje, a
situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água -
levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair. A
Igreja está cortada do mundo, não há nenhuma possibilidade de entrar".
Depois
veio João XXIII e todos os perseguidos, de repente, são as luzes no Concílio;
todas as proibições são levantadas. Renasceu a esperança. Digo isto para que
não se perturbem. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece...
1.
O Fim da Cristandade
Estamos
nos aproximando da fase final da cristandade. Faz séculos que se anuncia a
morte da cristandade, ela está agonizando, há 200 anos... e pode continuar sua
agonia, durante décadas. Isto quer dizer que a Igreja deixou de ser a
consciência do mundo ocidental. Deixou de ser a força que anima, estimula e
explica a fonte da cultura, da economia e de tudo, no tempo da cristandade.
Tudo foi destruído, progressivamente, desde a Revolução Francesa e, na América
Latina, desde a independência.
Agora,
a cristandade está entrando, em sua fase final. Um sinal é a Encíclica Caritas
et Veritate. Quantas pessoas leram a Encíclica? Impressionante silêncio....
Talvez, silêncio respeitoso... mais provavelmente, silêncio de indiferença.
A doutrina social da Igreja não importa mais a ninguém, uma vez que ela também
deixou de se interessar pelo que acontece na realidade concreta.
A
Doutrina Social Católica está em silêncio por não entrar, com força, nos
problemas do mundo atual. Fica com teorias tão vagas, tão abstratas, tão
genéricas... A carta Caritas in Veritate poderia ser assinada pelo FMI,
pelo Banco Mundial... sem nenhum problema. Não há nada que incomode esse
pessoal. Então, para que serve a Encíclica? Disse coisas boas. Propôs passar de
Igreja de "conservação" a Igreja de "missão". Só que pensa
isso feito pelas instituições que não são de missão, mas de conservação -
diocese, paróquia, seminários, Congregações Religiosas. Essas instituições, de
repente e por milagre, vão se transformar em missionárias?
A
cristandade está se dissolvendo progressivamente. Mas, o problema é o depois. O
que virá depois? Como virá? Daí a insegurança nossa por não saber o que vem
depois. Isto aconteceu, na história, e vai acontecer muitas vezes. É preciso
aprender a resistir, a suportar, a não se deixar desanimar ou perder a
esperança pelo que vem acontecendo. O grave é que em Roma, os líderes não estão convencidos de que a cristandade está
morta. Acreditam que as Encíclicas iluminam o mundo, que as instituições
eclesiásticas iluminam e conduzem o mundo. Ou seja, a Igreja é um mundo fechado
que, de fato, vive em um castelo medieval, cercado de água. Vamos tentar
interpretar que está acontecendo e ver qual é o "método teológico"
que convém para isso.
2. O Evangelho vem de Jesus Cristo, a
religião não
É preciso
partir da distinção básica feita, por vários teólogos, entre Evangelho e
religião. O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo.
O Evangelho não é religioso. Jesus não fundou uma religião. Não fundou ritos,
não ensinou doutrinas, não organizou um sistema de governo. Ele se dedicou a
anunciar, a promover o Reino de Deus - uma mudança radical de toda a
humanidade, em todos os seus aspectos.
Jesus propõe
uma mudança e mudança cujos autores serão os pobres. Dirige-se aos pobres certo
que só eles são capazes de agir com sinceridade e autenticidade para promover
um mundo novo. Seria essa uma mensagem política? Não é política no sentido de
que propõe um plano, uma maneira... para isso a inteligência humana é
suficiente; mas como meta política, porque isto é uma orientação dada a toda a
humanidade.
E a religião?
Jesus não fundou uma religião. Seus discípulos criaram uma religião a partir
d'Ele. Porque a religião é algo indispensável aos seres humanos. Eles não podem
viver sem religião. Se uma religião se desintegra... se busca outra. Há 38.000
religiões registradas nos EUA! Ou seja, não faltam religiões, elas aparecem,
constantemente. O ser humano não pode viver sem religião, mesmo que se afaste
das grandes religiões tradicionais.
A religião é
criação humana. Entre a religião cristã e as demais religiões, a estrutura é
igual. É uma mitologia. Assim, há a mitologia cristã, a mitologia hinduísta,
xintoísta, confucionista. Isso é parte indispensável da humanidade. Necessita
interpretar todo o incompreensível da humanidade pela intervenção de entidades,
seres sobrenaturais, fora deste mundo, que dirigem esta realidade.
A religião é
feita de ritos. Ritos para afastar as ameaças e acercar-se dos benefícios.
Todas as religiões têm ritos. Todas têm pessoas separadas, preparadas para administrar
os ritos, ensinar a mitologia. Isto é comum a todas. Isso aconteceu com os
cristãos também. Devia acontecer. Como poderiam viver sem religião?
Como começou a
religião Cristã? Começou quando Jesus se transformou em objeto de culto. Isso
aconteceu bastante cedo, sobretudo entre os discípulos que não o conheceram,
não haviam vivido com ele, nem estado próximos dele. Ou seja, a geração
seguinte ou que viveu mais distante, Jesus se transformou em objeto de culto.
Com isso ele se desumanizou, gradualmente. O culto de Jesus vai, aos
poucos, substituindo o seguimento de Jesus. Jesus nunca pediu aos
discípulos um ato de culto, que lhe oferecessem um rito... Ele queria o
seguimento, seu seguimento.
Essa dualidade
começa a aparecer cedo. Trinta ou quarenta anos depois da morte de Jesus,
apareceu com tanta força que levou Marcos a escrever um Evangelho para
protestar contra a tendência de desumanização que faz de Jesus, um objeto de
culto. Seu Evangelho veio para recordar a palavra de profeta: Não! Jesus era isso,
fez isso, viveu aqui neste mundo, viveu nesta terra!
Com o
desenvolvimento da religião cristã que se fez aos poucos, essa tentação
reapareceu. Nasceu um começo de doutrina, o Símbolo dos Apóstolos. Que diz o
Símbolo dos Apóstolos sobre Jesus? Diz que nasceu e morreu. Nada mais. Como se
as outras coisas que ele fez não tivessem importância, como se a revelação de
Deus não fosse justamente a própria vida de Jesus, seus atos, seus projetos,
todo o seu destino terrestre.
Essa foi a
revelação, mas ela já vai se perdendo de vista. Os Símbolos de Niceia e
Constantinopla, da mesma maneira: Cristo nasceu e morreu. O Concílio de
Calcedônia define que Jesus tem natureza divina e natureza humana. Mas, o que é
natureza? Um ser humano não é natureza. Um ser humano é uma vida, um projeto,
um desafio, uma luta, uma convivência, em meio a muitos outros. Isso é o
fundamental se queremos fazer o seguimento de Jesus.
3. Religião: distinção entre sagrado e profano
Progressivamente,
a partir dos primeiros Concílios, apareceu esse distanciamento, na religião
cristã que se forma. No Concílio de Niceia e Constantinopla já há um núcleo de
ensinamento de teologia e a Igreja vai se dedicar a defender, promover,
aumentar essa teologia. Na época, já se havia organizado as grandes liturgias,
de Basílio e outros, e já se organizara um clero. O clero, como classe
separada, é invenção de Constantino. Até Constantino, não havia distinção entre
pessoas sagradas e pessoas profanas. Eram todos leigos. Jesus havia apartado a
classe sacerdotal e não previu qualquer outra classe sacerdotal porque todos
são iguais.
Para ele não há
pessoas sagradas e pessoas não sagradas, porque para Jesus não há diferença
entre sagrado e profano. Tudo é sagrado ou tudo é profano. Já na religião há uma
distinção básica entre sagrado e profano, em todas as religiões. E há um clero
que se dedica ao que é sagrado. Os que estão no profano, para a religião, são
receptores, não atores. Não têm nenhum papel ativo. Para ter papel ativo é
preciso ser consagrado. Isso começa no tempo de Constantino.
A partir daí,
vão aparecer duas linhas, na história cristã. A que segue o Evangelho de Marcos
que recorda Jesus veio para mostrar o caminho para que o sigamos. Essa
linha é que vai renovar, em diversas épocas históricas, o que foi a vida de
Jesus e como ele ensinou. Pode-se seguir isso, na história. Não se sabe tudo,
porque a grande maioria que seguiu o caminho de Jesus foram pobres, dos quais
nunca se falou nos livros de história e, portanto, não deixaram nenhum documento.
Mas, há pessoas que deixaram documentos e com isso se pode acompanhar onde, na
história da Igreja cristã, aparece o Evangelho, que buscava, primeiramente, a
vivência do Evangelho. Quem buscava, radicalmente, o caminho do Evangelho eram,
como dizia Hélder Câmara, as "minorias abraãmicas".
A maioria está
no outro polo, na religião. Ou seja, dedicando-se à doutrina. Ensinando a
doutrina, defendendo a doutrina contra os hereges e as heresias... Essa foi uma
de suas grandes tarefas: praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe
sacerdotal. Isso nos leva a distinção que vai se manifestar em toda a história.
O polo "Evangelho" está em luta com o polo "religião" e
"religião" contra o polo "Evangelho", em toda a história.
Toda a história
cristã é uma contradição permanente entre quem se dedica à religião e aqueles
que se dedicam ao Evangelho. Claro que há intermediários, não há polos totais.
Mas, na história, é visível duas histórias, dois grupos que se manifestam. A
História da Igreja era "história da instituição eclesiástica" e ali
só se falava da religião, supondo que religião era introdução ao Evangelho.
Mas, isso é suposição: se dizia na teologia tradicional da cristandade que tudo
o que nasceu no sistema católico vem de Jesus, o que existe na Igreja Católica
Romana vem de Jesus.
Com
malabarismos teológicos se consegue mostrar que tudo tem, afinal, sua raiz em
Jesus. Não têm raiz em outras religiões, em outras culturas. Como se os
cristãos convertidos à Igreja fossem puros de toda cultura e toda religião.
Todos trazem sua cultura e sua religião e introduzem, em sua vida cristã,
elementos que são da religião e cultura anterior e por isso, resulta em uma
religião que é sempre ambígua, complexa.
É inevitável
porque os seres humanos que entram na Igreja não são anjos. Estão carregados de
séculos e séculos de história e transmissão cultural e tudo isso entra,
naturalmente, na Igreja. Daí a oposição que se mostra claramente. Se diz: o
Evangelho procede de Deus e, portanto, não pode mudar. A religião é criação
humana, portanto, pode e deve mudar segundo a evolução da cultura, das
condições de vida dos povos em geral. Se a religião fica apegada a seu passado
é, pouco a pouco, abandonada a favor de outra religião mais adaptada. O que é
compreensível.
O Evangelho é
vivido na vida concreta, material, social. A religião vive em um mundo
simbólico. Tudo é simbólico - doutrina, ritos, sacerdotes... todos são
entidades simbólicas, que não entram na realidade material. O Evangelho é
universal, porque não traz nenhuma cultura e não está associado a nenhuma
cultura, a nenhuma religião. As religiões estão sempre associadas a uma
cultura. P. ex., a religião católica atual está ligada à subcultura clerical
romana que a modernidade marginalizou, que está em plena decadência porque seus
membros não quiseram entrar na cultura moderna. O Evangelho é renúncia ao poder
e a todos os poderes que existem na sociedade. A religião busca o poder e o
apoio do poder em todas as formas de poder. E são tão visíveis!
Falemos sobre o
poder... Na época da prisão de bispos em
Riobamba, o núncio dizia: "se a Igreja não tiver apoio dos governantes,
não pode evangelizar". Pode-se pensar o contrário: caso tenha o apoio dos
poderes será difícil evangelizar. Mas, essa é a mentalidade ainda remanescente
na cristandade, na Igreja fundida em uma realidade político-religiosa e, então,
naturalmente, unidas todas as autoridades: o clero e o governo; o clero e o
Exército - tudo unido. Renunciar a isso é muito difícil.
Renunciar à
associação com o poder é muito difícil. Um exemplo - um bispo franciscano da
Bahia é Luís Flávio Cappio. Ficou famoso por duas greves de fome que fez para
protestar contra um projeto faraônico do governo, baseado em imensa mentira.
Tornou-se conhecido e foi convidado para o Kirchentag da Igreja alemã. Depois,
falou em várias cidades da Alemanha. Um grupo se aproximou dele para
entregar-lhe uma doação para suas obras. Era bastante: cerca de 100 mil
dólares. Ele perguntou: "De onde vem esse dinheiro?" Disseram que
eram de empresas que alguns executivos recolheram. O Bispo disse: "Não
aceito. Não aceito dinheiro roubado dos trabalhadores, de compradores de
material". Não aceitou aliança com o poder econômico. Não sei quantos, no
clero, não aceitariam... Esse bispo franciscano é igual a São Francisco. Toda a
vida foi assim. Por isso, fui morar na sua diocese, para santificar-me um
pouquinho, em contato com pessoa tão evangélica...
Então, como
nasceu a Igreja da qual falamos: essa realidade histórica, concreta de que
temos experiência? Para o povo, em geral, a Igreja é o Papa, bispos, padres,
religiosas, religiosos... esse conjunto institucional do qual falamos e que
provoca tanta incerteza. Como nasceu a Igreja? Jesus não fundou nenhuma igreja.
O próprio Jesus se considerava judeu. Era o povo de Israel renovado e os
primeiros discípulos também; os doze apóstolos são os patriarcas da Igreja do
Israel renovado. A primeira consciência era da continuação de Israel, a
perfeição, a correção de Israel. Mas uma vez que o Evangelho penetrou no mundo
grego, aí Israel não significava muita coisa para eles e, então, Paulo inventa
outro nome. Dá às comunidades que funda, nas cidades, o nome de
"ekklesia", o que se traduziu por "igreja".
O que é a
ekklesia? O único sentido que tem no grego é "a assembleia do povo reunido
que governa a cidade". Na prática eram as pessoas mais poderosas; é que na
cidade grega o povo se governa a si mesmo e faz isso, em reuniões que são
"ecclesias". Paulo não dá nenhum nome religioso às comunidades; os vê
como um grupo destinado a ser a animação. A mensagem de transformação das
cidades, de tal maneira que estão constituindo o começo de uma humanidade nova.
E é a humanidade onde todos são iguais, todos governam a todos. Depois vem a
Carta aos Efésios em que se fala da Igreja como tradução de "kahal"
dos judeus, ou seja, é o novo Israel. E a ecclesia é aí também o novo Israel.
Ou seja, todos os discípulos de Jesus unidos em muitas comunidades, mas não
unidos institucionalmente, mas unidos pela mesma fé. Todos constituem a "ecclesia",
a grande Igreja que é o corpo de Cristo. Ainda não existem instituições.
Claro que não
podia continuar assim. Os judeus que aceitaram o cristianismo não abandonaram
todos o judaísmo. Quando cresceu o número de cristãos cresceu o número de comunidades
e, aí, começaram a surgir algumas estruturas. No tempo de Paulo ainda não há
presbíteros, mesmo que São Lucas diga o contrário. Mas, São Lucas não tem valor
histórico. Atribui a Paulo o que se fazia no seu tempo. Imagina que Paulo
fundou presbíteros, conselhos presbiterais. Como se justificaria um bispo sem
ordenar sacerdotes? É evidente um começo de separação ainda muito simples,
porque ainda não há sacralidade, não há nada sagrado. Os presbíteros não são
sagrados, nem os presbíteros das sinagogas não eram sagrados. Eles tinham a
função, a missão de governo, de administração, mas não função ritual ou função
de ensino de uma doutrina.
Depois
apareceram os bispos. No final do século II, se estima que o esquema episcopal
esteja generalizado, mas demorou bastante. Clemente de Roma, quando publica e
escreve sua Carta aos Coríntios, diz "presbíteros", o que não é
bispo. Ainda em Roma não há bispo, só presbíteros. Mas se organizou o esquema
episcopal. É provável que para as lutas contra as heresias, contra o
gnosticismo, se necessitasse de uma autoridade mais forte, para poder enfrentar
o gnosticismo e todas as novas religiões sincréticas que aparecem naquele
tempo.
E a Igreja como
instituição universal, quando aparece? No século III, havia Concílios regionais:
bispos de várias cidades que se reuniam. Mas, uma entidade para
institucionalizar tudo não existia. Quem inventou a Igreja universal foi o
imperador Constantino. Ele reuniu os bispos que havia, com viagem e alimentação
pagas por ele, e com a organização do Concílio dirigida pelo imperador e os
delegados do imperador. Isto constitui um precedente histórico. Até hoje não
estamos livres disso: que a Igreja universal, como instituição, tenha nascido
com o imperador.
Depois, caiu o
imperador romano e, progressivamente, o papa conseguiu chegar à função
imperial. Houve lutas, na Idade Média, entre o papa e o imperador, mas sempre o
papa se estimava superior ao imperador. Nas cruzadas, o papa era generalíssimo
de todos os exércitos cristãos. Era personalidade militar - comandante em chefe
do exército cristão. E dentro da linha dos Estados pontifícios, isto ainda se
mantém.
Quando o papa
perdeu o poder temporal, reforçou seu poder sobre as Igrejas: governa as
igrejas como um imperador - todos os poderes são centralizados em uma única mão
e com todas as vantagens de uma corte. Se não nada de democracia na Igreja, quem
orienta o papa? A corte! Os cortesões, os que estão ali próximos. Claro que ele
não pode fazer tudo, mas é uma corte separada do povo cristão. Ainda sofremos
as consequências da ação de Constantino. O Papa Paulo VI disse em alguns
momentos que teria que mudar a função atual do Papa, o que o Papa faz. João
Paulo II na "Unum sint" também disse que é preciso dar-se conta de
que o grande obstáculo no mundo de hoje é essa concentração de todos os poderes
no Papa. Seria preciso encontrar outra maneira de exercer isso. Isso para dizer
que tudo isto pertence à religião.
4. Tarefa da teologia: no Evangelho e na religião
A partir disso,
qual é a tarefa da teologia? É complexa; porque tem uma tarefa no Evangelho e
uma tarefa na religião. A teologia foi durante séculos a ideologia oficial da
Igreja. Seu papel era justificar o que a Igreja diz e faz com argumentos
bíblicos, argumentos da tradição, liturgia, e um monte de coisas que se aprende
no seminário. Muitos não acreditavam nisso, mas a maioria crê. Que fazer?
Primeira tarefa: o que diz o Evangelho? A primeira tarefa é saber o que diz o
Evangelho? O que é de Jesus? O que é penetração do judaísmo, de outra cultura,
de outro tipo de religião? O que vem de Jesus segundo o Novo Testamento? Todo o
Novo Testamento não vem de Jesus? Não, as Epístolas pastorais que falam, por
exemplo, dos presbíteros, não vêm de Jesus. Então, a tarefa da teologia
consistirá em dizer o que é de Jesus, o que ele realmente quis, o que realmente
fez e em que consiste realmente o seguimento de Jesus.
Vendo a
história, porque as situações culturais eram diferentes, quais as
manifestações, onde podemos reconhecer a continuidade da linha Evangélica?
Pois, se quisermos penetrar no mundo de hoje e apresentar o cristianismo ao
mundo de hoje, tudo o que é religioso não interessa. O que pode interessar é o
Evangelho e o testemunho evangélico. Ninguém vai se converter pela teologia.
Você pode fazer as melhores aulas, ninguém vai se fazer cristão por causa da
teologia. Pergunto por que nos seminários se crê que a formação sacerdotal é
ensinar a teologia? Eu não entendo. Não há outra coisa mais importante para
evangelizar? Não é muito mais complexo? Por isso, faz 30 anos que decidi, na
presença de Deus, nunca mais trabalhar em seminários...
A linha
evangélica é essa - São Francisco. São Francisco era um extremista. Não queria
que seus irmãos tivessem livros: nada de livros. Com o Evangelho basta, não se
necessita nada mais. Ele próprio dizia: "O que ensino, não aprendi de
ninguém, nem do papa; aprendi de Jesus diretamente, por seu Evangelho".
Isso é o que pode convencer o mundo de hoje que está em perturbação completa e
que se afasta, sempre mais, das Igrejas institucionais antigas, tradicionais.
Quase todas as grandes religiões nasceram entre os anos 1.000 e 500 antes de
Cristo, salvo o Islã que apareceu depois, mas que é um ramo da tradição
judeu-cristã.
·
O
que fazer com a religião?
O que fazer com a
religião? É preciso examinar em todo o sistema de religião, o que ajuda a
entender, a compreender, a agir segundo o Evangelho. Isso terá nascido por
inspiração do Espírito em monges, por exemplo? Se alguém olha a vida dos monges
do deserto, no Egito, vê que isso não é mensagem. Não é mensagem e não vem do
Evangelho. Ou seja, muitas coisas vêm não se sabe de que tradição, talvez do
budismo ou coisas assim. Então, é preciso examinar o que é e o que ainda vale
hoje.
Jesus não
instituiu 7 sacramentos. Até o século XII se discutia se eram 10, 7, 5, 9, 4.
Não havia acordo. Finalmente, decidiram que havia 7 por motivos dos 7 dias do
Gênesis, 7 planetas, o número 7... mas, há coisas que já não falam para as
pessoas de hoje. Por exemplo, o sacramento da penitência com confissão a um
sacerdote. Quantos se confessam atualmente? Há 20 anos, na Semana Santa, numa
paróquia popular, um padre auxiliar atendia 2.000 confissões, e o pároco outras
tantas. Atualmente, 20, 30... as pessoas já não respondem mais. Isso foi
definido no século XII, XIII. Por que manter algo que já não tem nenhum
significado e, ao contrário, provoca muita recusa? Que alguém necessite falar
com alguém, que o pecador goste de falar com alguém, mas não justamente ao
sacerdote. Há muitas pessoas, muitas mulheres que podem exercer esse ofício
muito melhor, com mais equilíbrio, sem atemorizar como fazem os sacerdotes.
Há muitas
coisas que é necessário revisar porque não têm futuro. É inútil defender ou
manter algo que já é obstáculo para a evangelização e que não ajuda em nada.
Nas liturgias há coisas que mudar. A teoria do sacrifício foi introduzida pelos
judeus. No templo se oferece sacrifícios, os sacerdotes são pessoas sagradas
que oferecem sacrifício. Toda essa teoria, atualmente não significa
absolutamente nada. Que o padre seja dedicado ao sagrado para oferecer
sacrifício e que a Eucaristia seja sacrifício, vem de Jesus? Não vem de Jesus.
Então, é preciso ver o que vale ou não vale. Para que manter algo que não vale?
Há também outra parte: o que não ajuda, o que tem sido infiltração de outras tendências, outras correntes. Por exemplo, a vida ascética dos monges irlandeses. A Irlanda foi a ilha dos monges. Ali os bispos não tinham autoridade. Serviam apenas para ordenar sacerdotes, para outras coisas podiam descansar. Quem mandava eram os monges. Os mosteiros eram os centros, o que é a diocese, atualmente. Esses monges irlandeses viviam uma vida ascética, mas tão extraordinariamente desumana para nós que é impossível que venha de Jesus, é impossível que isso ajude; esses homens eram super-homens, mas não existem mais homens assim hoje. Um exercício de penitência que faziam, por exemplo, era entrar no rio - na Irlanda os rios são frios - e ficar nu para rezar todos os salmos... Essa maneira de entender a vida, não devemos considerar que seja cristão. Também não é marca de santidade. Não é assim que a santidade se manifesta.
Todas as
congregações femininas sabem o quanto é preciso lutar para mudar costumes,
tradições que não são evangélicos. Conheço uma série de congregações femininas
e o tempo que se gasta em discussões, disputas entre aquelas que querem
conservar tudo e as que querem abandonar o que não serve mais e encontrar outro
modo de viver mais adaptado à situação atual! A tarefa da teologia é mudar,
isso muda a tradição, deixa de ser a ideologia do sistema romano, mas essa não
tem futuro. Esse tipo de teologia já faz tempo que foi progressivamente
abandonado.
Na América
Latina apareceu algo novo, conhecemos um novo franciscanismo, ou seja, uma nova
etapa, mas radical, de vida evangélica. Quando nasceu? Houve bispos que
participaram disso e que animaram Medellín e a opção pelos pobres junto com os
santos padres da América Latina que muitos conhecem. Se for preciso marcar a
origem do novo evangelismo da Igreja latino-americana, diria que foi no dia 16
de novembro de 1965. Nesse dia, em uma catacumba de Roma, 40 bispos, a maioria
latino-americanos, incitados por Helder Câmara, se juntaram e assinaram o que
se chamou de "Pacto das Catacumbas". Ali se comprometeram a viver
pobres, na alimentação. Se comprometeram e, de fato, fizeram depois que
chegaram às suas dioceses. Prometeram priorizar em todas as suas atividades o
que é dos pobres - deixar muitas coisas para se dedicar prioritariamente aos
pobres e coisas que vão no mesmo sentido. Eles que animaram a Conferência de
Medellín.
Tiveram um
contexto favorável. O Espírito Santo já naquele tempo havia suscitado pessoas
evangélicas. As Comunidades Eclesiais de Base já tinham nascido. Já havia
religiosas inseridas nas comunidades populares. Mas, eram poucos e se sentiam
um pouco marginalizados no meio dos outros. Medellín lhes deu como que
legitimidade e, ao mesmo tempo, uma animação grande, e se expandiu. Foi toda a
Igreja latino-americana? Não. Sempre é uma minoria. Um dia, um jornalista
perguntou ao cardeal Arns - um santo: "você, senhor cardeal, aqui em São
Paulo tem muita sorte, toda a Igreja se fez Igreja dos pobres, as monjas todas
a serviço dos pobres, que coisa magnífica!". Dom Paulo disse: "Sim,
pois, aqui em São Paulo 20% das religiosas foram às comunidades pobres; 80%
ficaram com os ricos". Era muito. Hoje, já não há tantas.
Foi uma época
de criação, dessas épocas em que há, às vezes, na história com efusão grande do
Espírito. Mas, temos que viver essa herança; herança que é preciso manter,
conservar preciosamente porque não vai reaparecer. Às vezes, me perguntam: Por
que hoje os bispos não são como naquele tempo? Porque aquele tempo foi uma
exceção, na história da Igreja é exceção. De vez em quando o Espírito Santo
manda exceções.
Quem vai
evangelizar o mundo de hoje? Para mim, são os leigos. E já aparecem grupinhos
de jovens que praticam uma vida muito mais pobre, livre de toda organização
exterior, vivendo em contato permanente com o mundo dos pobres. Haveria mais se
se falasse mais, se fossem mais conhecidos. Pode ser tarefa também da teologia:
divulgar o que está acontecendo, onde o Evangelho está sendo vivido, para dá-lo
a conhecer, para que se conheçam mutuamente, porque do contrário, podem perder
ânimo ou não ter perspectivas. Uma vez que se unam, formem associações, cada
qual com sua tendência, seu modo de espiritualidade. É uma situação histórica
nova. Não espero muito do clero.
Faz tempo que
os leigos deixaram de ser analfabetos. Eles têm uma formação humana, formação
cultural, formação de sua personalidade que é superior ao que se ensina nos
seminários. Têm mais preparação para agir no mundo, mesmo que não tenham muita
teologia. Se poderia dar mais teologia, mas isso é outro assunto. Não vamos
pensar que amanhã quem vai colocar em prática o programa de Aparecida serão os
sacerdotes. Não conheço tudo, mas levando em conta os seminários que conheço,
dioceses que conheço, seriam necessários 30 anos para formar um clero novo. E
quem vai formá-lo? Para os leigos é diferente. Há muitas pessoas dispostas, e
pessoas com formação humana, com capacidade de pensar, de refletir, de entrar
em relação e contatos, de dirigir grupos, comunidades... Muitos ainda não se
atrevem. Mas aí está o futuro.
Para terminar, uma anedota: me
chamaram a Fortaleza, no nordeste do Brasil, uma cidade muito grande. De lá a
Santa Sé havia afastado, marginalizado o cardeal Aloísio Lorscheider,
mandando-o ao exílio, em Aparecida, que é lugar de castigo para bispos que não
agradam. Veio o sucessor, Dom Cláudio Hummes, que agora é cardeal em Roma.
Cláudio Hummes suprimiu tudo o que havia de social na diocese, despediu todos:
300 pessoas com a longa trajetória de serviço, com capacidade humana. Os que me
chamaram eram os 300, chorando, lamentando: "e agora não podemos fazer
nada; o que vai acontecer?". Eu lhes disse: "vocês são pessoas
perfeitamente humanizadas, desenvolvidas, com personalidade forte. Tiveram
êxito na família, êxito em suas carreiras, e trabalhos profissionais. Do que se
preocupam se o bispo quer ou não quer? Por que se preocupam se o pároco quer ou
não quer? Vocês têm formação suficiente e capacidade. Por que não agem, formam
uma associação, um grupo, de forma independente? O Direito Canônico - que
muitos católicos não sabem - permite a formação de associações independentes do
bispo, independentes do pároco. Isso não se ensina nas paróquias, mas é algo
importante. Vocês podem reunir 4, 5 pessoas para organizar um sistema de
comunicação, de espiritualidade, de organização de presença na vida pública, na
vida social: 300 pessoas com esse valor. Se paga a 5, e cada um não vai gastar
sequer 2% do que ganha; ou seja, podem muito bem manter 5 pessoas dedicadas a
isso. Escolham entre 25 e 30 anos porque essa é a época criativa. Até os 25 o
ser humano se busca. A partir deste momento, termina seus estudos e já
conseguiu trabalho. Então já quer definir sua vida: estes são os que têm
capacidade de inventar. Todas as grandes invenções se deram por gente com essa
idade". Mas não o fizeram. Por quê? Por que tanta timidez? "Vocês que
são tão capazes no mundo, na Igreja nada!" Não se sentiam capazes,
necessitavam do bispo que lhes dissesse o que fazer, necessitam de sacerdotes
que lhes digam o que fazer. Como é possível? Não se lhes ensinou. Podem ser
adultos na vida civil e crianças na vida religiosa. Mas nós podemos! Podemos
fazê-lo e multiplicá-lo em todas as regiões que vamos conhecer.
O
futuro depende de grupos semelhantes de leigos, que já existem mesmo que ainda
estejam dispersos. O futuro está aí, é tarefa de todos, começando pelos jovens.
No Brasil, há neste momento seis milhões de estudantes universitários. Dois
milhões, são de famílias pobres - são pobres os que ganham menos de três salários
mínimos, porque com menos disso não se pode viver decentemente. E qual é a
presença do clero? Pouquíssima. Alguns religiosos. Das dioceses? Nada. E ali
está o futuro. São os jovens que estão descobrindo o mundo. Há alguns que
entram no mundo das drogas, que se corrompem, mas é a minoria. O conjunto são
pessoas que querem fazer algo na vida. Se não conhecem o Evangelho não vão
viver como cristãos. É preciso explicar, mas não com cursos de teologia;
explicar fazendo, participando de atividades que são realmente serviços aos
pobres. Isso é possível fazer.
Tarefa da teologia. Será preciso mudar um pouquinho: menos acadêmico, mais orientado para o mundo exterior... com todos os que não estão mais na rede de influxo da Igreja. E uma teologia que se possa ler, sem ter formação escolástica, porque antes se não se tinha formação aristotélica não se podia entender nada dessa teologia tradicional. Bom, a filosofia aristotélica morreu; os filósofos do século XX a enterraram. Agora, temos liberdade para ver no mundo como nos abrimos.
Tarefa da teologia. Será preciso mudar um pouquinho: menos acadêmico, mais orientado para o mundo exterior... com todos os que não estão mais na rede de influxo da Igreja. E uma teologia que se possa ler, sem ter formação escolástica, porque antes se não se tinha formação aristotélica não se podia entender nada dessa teologia tradicional. Bom, a filosofia aristotélica morreu; os filósofos do século XX a enterraram. Agora, temos liberdade para ver no mundo como nos abrimos.
[Conferência transcrita por Enrique A. Orellanae no dia 14-11-2010].
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