Saudades de
1964
02/01/2013
Leandro
Fortes, via CartaCapital
Em 1º de
março de 2010, uma reunião de milionários em luxuoso hotel de São Paulo foi
festejada pela mídia nacional como o início de uma nova etapa na luta da
civilização ocidental contra o ateísmo comunista e a subversão dos valores
cristãos. Autodenominado 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, o evento
teve como anfitriões três dos maiores grupos de mídia nacional: Roberto Civita,
dono da Editora Abril, Otávio Frias Filho, da Folha de S.Paulo, e Roberto
Irineu Marinho, da Globo.
O evento, que
cobrou dos participantes uma taxa de R$500,00, foi uma das primeiras
manifestações do Instituto Millenium, organização muito semelhante ao Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), um dos fomentadores do golpe de 1964.
Como o Ipes de quase 50 anos atrás, o Millenium funda seus princípios na
liberdade dos mercados e no medo do “avanço do comunismo”, hoje personificado
nos movimentos bolivarianos de Hugo Chavez, Rafael Correa e Evo Morales. Muitos
de seus integrantes atuais engrossaram as marchas da família nos anos 60 e sustentaram
a ditadura. Outros tantos, mais jovens, construíram carreiras, principalmente
na mídia, e ganharam dinheiro com um discurso tosco de criminalização da
esquerda, dos movimentos sociais, de minorias e contra qualquer política
social, do Bolsa Família às cotas nas universidades.
Madureira: o
principal jornalista da turma.
Há muitos
comediantes no grupo. No seminário de 2010, o “democrata” Arnaldo Jabor
arrancou aplausos da plateia ao bradar: “A questão é como impedir politicamente
o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?”
Isso, como? A resposta é tão clara como a pergunta: com um golpe. No mesmo
evento brilhou Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta. Como se verá ao
longo deste texto, há um traço comum entre vários “especialistas” do Millenium:
muitos se declaram ex-comunistas, ex-esquerdistas, em uma tentativa de provar
que suas afirmações são fruto de uma experiência real e não da mais tacanha
origem conservadora. Madureira não foge à regra: “Sou forjado no pior partido
político que o Brasil já teve”, anunciou o “arrependido”, em referência ao
Partido Comunista Brasileiro (PCB), o velho Partidão. Após a autoimolação, o
piadista atacou, ao se referir ao governo do PT de então: “Eu conheço todos
esses caras que estão no poder, eram os caras que não estudavam.” Eis o nível.
O símbolo do
Millenium é um círculo de sigmas, a letra grega da bandeira integralista,
aquela turma no Brasil que apoiou os nazistas. Jabor e Madureira estão
perfilados em uma extensa lista de colaboradores no site da entidade, quase
todos assíduos frequentadores das páginas de opinião dos principais jornais e
de programas na tevê e no rádio. Montado sob a tutela do suprassumo do
pensamento conservador nacional e financiado por grandes empresas, o instituto
vende a imagem de um refinado clube do pensamento liberal, uma cidadela contra
a barbárie. Mas a crítica primária e o discurso em uníssono de seus integrantes
têm pouco a oferecer além de uma narrativa obscura da política, da economia e
da cultura nacional. Replica, às vezes com contornos acadêmicos, as mesmas
ideias que emanam do carcomido auditório do Clube Militar, espaço de recreação
dos oficiais de pijama.
Meio empresa,
meio quartel, o Millenium funciona sob uma impressionante estrutura hierárquica
comandada e financiada por medalhões da indústria. Baseia-se na disseminação
massiva de uma ideia central, o liberalismo econômico ortodoxo, e os conceitos
de livre mercado e propriedade privada. Tudo bem se fosse só isso. No fundo, o
discurso liberal esconde um frequente flerte com o moralismo udenista, o
discurso golpista e a desqualificação do debate público. Criado em 2005 com o
curioso nome de “Instituto da Realidade”, transformou-se em Millenium em
dezembro de 2009 após ser qualificado como Organização Social de Interesse
Público (Oscip) pelo Ministério da Justiça. Bem a tempo de se integrar de corpo
e alma à campanha de José Serra, do PSDB, nas eleições presidenciais de 2010.
Em pouco tempo, aparelhado por um batalhão de “especialistas”, virou um bunker
antiesquerda e principal irradiador do ódio de classe e do ressentimento
eleitoral dedicado até hoje ao ex-presidente Lula.
Lamounier: O
figurino dos anos 1960 no século 21.
O batalhão de
“especialistas” conta com 180 profissionais de diversas áreas, entre eles, o
jornalista José Nêumanne Pinto, o historiador Roberto DaMatta e o economista
Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado Privatize Já. A obra é um libelo
privatizante feito sob encomenda para se contrapor ao livro A Privataria
Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr., sobre as privatizações nos governos
de Fernando Henrique Cardoso que beneficiaram Serra e seus familiares. E não há
um único dos senhores envolvidos com as privatizações dos anos de 1990 que hoje
não nade em dinheiro.
Os “especialistas”
são todos, curiosamente, brancos. Talvez por conta da adesão furiosa da
agremiação aos manifestantes anticotas raciais. A tropa é comandada pelo
jornalista Eurípedes Alcântara, diretor de redação da revista Veja, publicação
onde, semanalmente, o Millenium vê seus evangelhos e autos de fé renovados.
Alcântara é um dos dois titulares do Conselho Editorial da entidade. O outro é
Antônio Carlos Pereira, editorialista de O Estado de S.Paulo.
Alcântara e
Pereira não são presenças aleatórias, tampouco foram nomeados por filtros da
meritocracia, conceito caríssimo ao instituto. A dupla de jornalistas
representa dois dos quatro conglomerados de mídia que formam a bússola
ideológica da entidade, a Editora Abril e o Grupo Estado. Os demais são as
Organizações Globo e a Rede Brasil Sul (RBS).
O Millenium
possui uma direção administrativa formada por dez integrantes, entre os quais
destaca-se a diretora-executiva Priscila Barbosa Pereira Pinto. Embora seja a
principal executiva de um instituto que tem entre suas maiores bandeiras a
defesa da liberdade de imprensa e de expressão – e à livre circulação de ideias
–, Priscila Pinto não se mostrou muito disposta a fornecer informações a
CartaCapital. A executiva recusou-se a explicar o formidável organograma que
inclui uma enorme gama de empresas e empresários.
Entre os
“mantenedores e parceiros”, responsáveis pelo suporte financeiro do instituto,
estão empresas como a Gerdau, a Localiza (maior locadora de veículos do País) e
a Statoil, companhia norueguesa de petróleo. No “grupo máster” aparece a
Suzano, gigante nacional de produção de papel e celulose. No chamado “grupo de
apoio” estão a RBS, o Estadão e o Grupo Meio & Mensagem.
Há ainda uma
lista de 25 doadores permanentes, entre os quais, se incluem o vice-presidente
das Organizações Globo, João Roberto Marinho, o ex-presidente do Banco Central
Armínio Fraga e o presidente da Coteminas, Josué Gomes da Silva, filho do
falecido empresário José Alencar da Silva, vice-presidente da República nos
dois mandatos de Lula. O organograma do clube da reação possui também uma
“câmara de fundadores e curadores” (22 integrantes, entre eles o ex-presidente
do Banco Central Gustavo Franco e o jornalista Pedro Bial), uma “câmara de
mantenedores” (14 pessoas) e uma “câmara de instituições” com nove membros.
Gente demais para uma simples instituição sem fins lucrativos.
Uma das
atividades fundamentais é a cooptação, via concessão de bolsas de estudo no
Exterior, de jovens jornalistas brasileiros. Esse trabalho não é feito
diretamente pelo instituto, mas por um de seus agregados, o Instituto Ling,
mantido pelo empresário William Ling, dono da Petropar, gigante do setor de
petroquímicos. Endereçado a profissionais com idades entre 24 e 30 anos, o
programa “Jornalista de Visão” concede bolsas de mestrado ou especialização em
universidades dos Estados Unidos e da Europa a funcionários dos grupos de mídia
ligados ao Millenium.
Em 2010,
quando o programa se iniciou, cinco jornalistas foram escolhidos, um de cada
representante da mídia vinculada ao Millenium: Época (Globo), Veja (Abril), O
Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e Zero Hora (RBS). Em 2011, à exceção de um
repórter do jornal A Tarde, da Bahia, o critério de escolha se manteve. Os
agraciados foram da Época (2), Estadão (1), Folha (2), Zero Hora (1) e revista
Galileu (1), da Editora Globo. Neste ano foram contemplados três jornalistas do
Estadão, dois da Folha, um da rádio CBN (Globo), um da Veja, um do jornal O
Globo e um da revista Capital Aberto, especializada em mercado de capitais.
Para ser
escolhido, segundo as diretrizes apresentadas pelo Instituto Ling, o
interessado não deve ser filiado a partidos políticos e demonstrar “capacidade
de liderança, independência e espírito crítico”. Os aprovados são apresentados
durante um café da manhã na entidade, na primeira semana de agosto, e são
obrigados a fazer uma espécie de juramento: prometer trabalhar “pelo
fortalecimento da imprensa no Brasil, defendendo os valores de independência,
democracia, economia de mercado, Estado de Direito e liberdade”.
Mainardi: sua
covardia o levou a se esconder em Veneza.
O Millenium
investe ainda em palestras, lançamentos de livros e debates abertos ao público,
quase sempre voltados para assuntos econômicos e para a discussão tão obsessiva
quanto inútil sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Todo ano,
por exemplo, o Millenium promove o “Dia da Liberdade de Impostos” e organiza os
debates “Democracia e Liberdade de Expressão”. Entre os astros especialmente
convidados para esses eventos estão Marcelo Tas, da Band, e Diogo Mainardi e
Reinaldo Azevedo, ambos de Veja. Humoristas jornalistas. Ou vice-versa.
O que toda
essa gente faz e quanto cada um doa individualmente é mantido em segredo.
Apesar da insistência de CartaCapital, a diretora-executiva Priscila Pinto
mandou informar, via assessoria de imprensa, que não iria fornecer as
informações requisitadas pela reportagem. Limitou-se a enviar nota oficial com
um resumo da longa apresentação reproduzida na página eletrônica do Millenium
sobre a missão do instituto. Entre eles, listado na rubrica “código de
valores”, consta a premissa da transparência, voltada para “possibilidade de
fiscalização pela sociedade civil e imprensa”. Valores, como se vê, bem
flexíveis.
Josué Gomes e
Gerdau também não atenderam aos pedidos de entrevista. O silêncio impede, no
caso do primeiro, que se entenda o motivo de ele contribuir com um instituto
cuja maioria dos integrantes sistematicamente atacou o governo do qual seu pai
não só participou como foi um dos mais firmes defensores. E se ele é contra,
por exemplo, a redução dos juros brasileiros a níveis civilizados. O industrial
José Alencar passou os oito anos no governo a reclamar das taxas cobradas no
Brasil. A turma do Millenium, ao contrário, brada contra o “intervencionismo
estatal” na queda de braço entre o Palácio do Planalto e os bancos pela queda
nos spreads cobrados dos consumidores finais.
No caso de
Gerdau, seria interessante saber se o empresário, integrante da câmara de
gestão federal, concorda com a tese de que a tentativa de redução no preço de
energia é uma “intervenção descabida” do Estado, tese defendida pelo instituto
que ele financia. Gerdau e Josué se perfilam, de forma consciente ou não, ao
Movimento Endireita Brasil, defensor de teses esdrúxulas como a de que os
militares golpistas de 1964 eram todos de esquerda.
O que há de
transparência no Millenium não vem do espírito democrático de seus diretores,
mas de uma obrigação legal comum a todas as ONGs certificadas pelo Ministério
da Justiça. Essas entidades são obrigadas a disponibilizar ao público os dados
administrativos e informações contábeis atualizadas. A direção do instituto se
negou a informar à revista os valores pagos individualmente pelos doadores,
assim como não quis discriminar o tamanho dos aportes financeiros feitos pelas
empresas associadas.
A
contabilidade disponível no Ministério da Justiça, contudo, revela a pujança da
receita da entidade, uma média de R$1 milhão nos últimos dois anos. Em três
anos de funcionamento auditados pelo governo (2009, 2010 e 2011), o Millenium
deu prejuízos em dois deles.
Em 2009,
quando foi certificado pelo Ministério da Justiça, o instituto conseguiu
arrecadar R$595,2 mil, 51% dos quais oriundos de doadores pessoas físicas e os
demais 49% de recursos vindos de empresas privadas. Havia então quatro
funcionários remunerados, embora a direção do Millenium não revele quem sejam,
nem muito menos quanto recebem do instituto. Naquele ano, a entidade fechou as
contas com prejuízo de R$8,9 mil.
Em 2010,
graças à adesão maciça de empresários e doadores antipetistas em geral, a
arrecadação do Millenium praticamente dobrou. A receita no ano eleitoral foi de
R$1 milhão, dos quais 65% vieram de doações de empresas privadas. O número de
funcionários remunerados quase dobrou, de quatro para sete, e as contas
fecharam no azul, com superávit de R$153,9 mil.
Segundo as
informações referentes ao exercício de 2011, a arrecadação do Millenium caiu
pouco (R$951,9 mil) e se manteve na mesma relação porcentual de doadores (65%
de empresas privadas, 35% de doações de pessoas físicas). O problema foi fechar
as contas. No ano passado, a entidade amargou um prejuízo de R$76,6 mil,
mixaria para o volume de recursos reunidos em torno dos patrocinadores e
mantenedores. Apenas com verbas publicitárias repassadas pelo governo federal,
a turma midiática do Millenium faturou no ano passado R$112,7 milhões.
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