Vi o filme “Carne e Osso” que fala sobre as condições de trabalho dos operários e das operárias nos frigoríficos de gado e frango e me lembrei que no pastorado também temos algo parecido. Os operários nos frigoríficos trabalham extenuadamente em ritmo acelerado e repetitivo as suas 8 horas e ficam doentes e inválidos para o trabalho por isso. Nós pastores/as trabalhamos de 10 a 14 horas diárias, não num ritmo semelhante aos operários/as dos frigoríficos, mas nunca trabalhamos o suficiente. Nos sábados e domingos são dois cultos por turno e tem que sair correndo pelas estradas estreitas e cuidar para não sofrer acidente, pois não pode chegar atrasado ao próximo culto que acontece 30 minutos após o primeiro.
Vendo este filme me dei conta de nosso turno de trabalho e do nosso ritmo de trabalho e de não termos 8 horas fixas de trabalho e depois descanso. Trabalha-se muitas semanas durante 7 dias e não se pode reclamar porque afinal somos vocacionados para o trabalho pastoral. Pastor não é uma profissão, é uma vocação. Como é vocação tem que trabalhar dobrado e sem reclamar. Diz-se que nós fazemos a nossa agenda, o que é verdade e também não.
Nunca falamos muito disso porque fica feio reclamar do estresse e da sobrecarga de trabalho, pois o pastorado é a nossa vocação. O povo e a diretoria da comunidade não querem saber quantas horas trabalhamos durante o dia. Temos 3 turnos diários: manhã, tarde e noite. Não existe esta história de hora extra e trabalho noturno e por isso não temos carteira assinada pelas leis da CLT, para que se possa explorar melhor os Operários da Fé. Basear-se pela CLT aumenta os custos da paróquia. Quer-se custos baixos e muito trabalho, como é de praxe numa sociedade capitalista. Falar do excesso de trabalho parece coisa de pastor preguiçoso. Ser preguiçoso é coisa feia no meio de uma sociedade movida pela Ideologia do Trabalho. Quem é pastor/a sabe de como as comunidades tratam os/as zeladores/as e qual é o salário deles/as. Se a igreja não tivesse nos anos 60 imposto um salário base para o/a pastor/a receberíamos salário parecido de zelador. As comunidades se escandalizam quando o zelado entra na justiça pedindo os direitos trabalhistas e sempre ganha. Por que sempre ganha? Por que a comunidade paga um salário justo e respeita as leis trabalhistas? Não me parece. Os membros que são agricultores sempre reclamam do preço da soja, do leite e do milho e os operários dos baixos salários, mas quando eles deveriam pagar um salário justo para o/a zelador/a não o fazem. Reproduzem o pensamento capitalista de patrão explorador. Nos últimos anos as comunidades começaram a assinar a carteira de trabalho do zelador, antes nem isto faziam. Coloco isto para deixar claro qual a mentalidade reinante em nossas comunidades cristãs.
Pastor/a tem que falar da vida familiar e cuidar da vida familiar do povo, mas não tem vida familiar. Eu não vi meus filhos crescer; de repente estavam grandes e de repente já tenho um neto. Como pode? O tempo passou tão depressa, nem vi passar.
Em 1978, em 1º julho, comecei a trabalhar na Paróquia de Cunha Porã. Havia ali 13 comunidades e 11 pontos de pregação o que dava 9 a 10 cultos por fim de semana (sexta à noite um, sábado pela manhã 2 e 2 à tarde; domingo pela manhã 2 e à tarde 2 e às vezes ainda um no domingo à noite e no sábado à noite tinha grupo de JE na cidade), além de atender 4 grupos de OASE, 7 grupos de jovens e 9 grupos de estudo bíblico, aulas de ensino religioso na escola e as demais coisas que se faz numa paróquia, além de fazer o trabalho da secretaria, pois no começo não tinha secretária e ainda acompanhava as lutas dos sem terra, luta sindical, do movimento dos atingidos por barragens, da CPT da Diocese de Chapecó e dos estudos bíblicos no grupo do CEBI, participava uma vez ao ano dos encontros de estudos da realidade em Araras, RJ, coordenados pelo Baeske, as Conferências de Obreiros eram mensais e sempre de dois dias além de se acompanhar as atividades distritais, ajudei na criação da PPL além de ajudar na elaboração do material do ensino confirmatório, que era um trabalho coletivo do Distrito Uruguai, e imprimir este material no sótão da casa paroquial de Cunha Porã até altas horas da madrugada ajudado por um colega vizinho. Isto me dava o privilégio de a cada ano, em outubro ou novembro, baixar no hospital totalmente estressado. Eu era jovem e achava isto normal. Nunca alguém veio me perguntar se estava trabalhando demais ou de menos, afinal eu era pago para fazer e não para reclamar e muito menos para pensar. Afinal as coisas deveriam ser feitas, isso que havia leitores para celebrar cultos de leitura porque eu não conseguir dar a volta sozinho e não precisava dar ensino confirmatório. Cada comunidade tinha 2 cultos ao mês e o ponto de pregação 1 culto ao mês. E mesmo assim na comunidade de Vera Cruz, na assembléia, sempre tinha alguém que pedia que o pastor desse o ensino confirmatório, que isso seria tão bonito. Imagine, mais 13 grupos de ensino confirmatório do 1º e 2º anos! Trabalhando de segunda à sexta de manhã e pela tarde não daria conta nem do ensino confirmatório; isto mostra que o povo da comunidade só conhece a sua comunidade e, além disso, não existe mais nada. Antes de mim o Silvio Meincke e o Milton Schwantes trabalhavam em Cunha Porã nestas condições e hoje trabalham nesta paróquia 3 pastores, já melhorou. Este ritmo de trabalho não era apenas o meu os demais pastores e pastoras na época no Distrito Uruguai tinham o mesmo ritmo.
Como não analisamos a nossa vida e a vida da igreja pelo lado da luta de classes não podemos falar das condições de trabalho extenuantes a que os Operários da Fé estão sujeitos. De repente ouve-se que o pastor se divorciou. É aquele escândalo na comunidade. Como pode o pastor se divorciar, ele tem que dar o exemplo de vida familiar! Que vida familiar com 10 a 14 horas de trabalho diário, muitas vezes até na segunda feira? O membro chega à casa pastoral na segunda feira dizendo: Pois é, já que eu vim para a cidade aproveito para falar com o pastor. O pastor o recebe sorrindo, dizendo: Vamos entrar. E o pior é que quando um dia não tinha uma jornada de 3 períodos (manhã, tarde e noite) a gente se sentia como peixe fora d’água e com consciência suja de preguiçoso.
Outros abandonam o pastorado para abrir um negócio qualquer ou vão lecionar numa universidade, pois a igreja pagou o seu mestrado ou o doutorado. Menos horas de trabalho, mais salário e menos cobranças.
Não temos esteira de produção como os operários dos frigoríficos e nem precisamos fazer 90 a 120 cortes por minuto, mas temos agendas cheias de reuniões, visitas, etc. e se o pastor ainda não visitou aquele doente, que ele nem sabia que estava doente, vem reclamação: Estive no hospital e o pastor não me visitou. Mas não se animem muito, pois nos anos 90 quando o neoliberalismo estava em alta vários presbíteros do Distrito e depois do Sínodo falavam em implantar o Programa da Qualidade Total na igreja, como havia nas empresas capitalistas, para que se pudesse avaliar a produtividade da pastorada. O TAM e a Avaliação são o resultado desta mentalidade. É claro: nuca se diz isto e nunca vai se admitir isto.
Quando o pastor corta grama na segunda feira na frente da casa passa o membro e diz: Trabalhando pastor! Pois trabalho de pastor não é trabalho; só sai andando de carro para cima e para baixo. Me lembro que o Pastor Hans Trein contou um caso de um agricultor lá pelos fundões do Mato Grosso que dizia que vida de pastor era um luxo viajando para cima e para baixo. Aí o Hans o convidou a ir junto numa viagem de uma semana pelo Mato Grosso afora. O coitado na primeira hora já pôs o bucho para fora chacoalhando no toyotão pelas estradas de chão a fora e nunca mais falou da vida boa que o pastor leva.
Uma pastora que trabalha junto com outra pastora numa paróquia de três pastorados (um está vago) e as duas tem que dar conta do trabalho de três falou na diretoria que estava estressada e alguém da diretoria disse: Duvido que você trabalha mais que eu! Significa: Não queremos saber se está arrebentada ou não, vire-se e fique quieta! Vai trabalhar vagabundo! Sei também que tem diretorias que tem sensibilidade para a questão da jornada de trabalho da pastorada. Em Xingu a diretoria ficava preocupada com o excesso de trabalho do pastor, mas fazer o que? O número de comunidades não diminuía e as distâncias também não ficavam menores e a pobreza do povo também não diminuía. Ali a paróquia atende 7 municípios e não tem dinheiro para pôr mais um obreiro. Só tem uma saída: se rebentar. E se o pastor trabalha com o movimento sindical e popular vem o povo da MEUC e o querem mandar embora porque o missionário da MEUC não faz isto, então o pastor da IECLB também não pode fazer isto: apoiar as lutas por justiça do povo oprimido. Não querem nem saber se você já está arrebentado de tanto correr. Afinal, você é pago para fazer e falar o que o povo da direita quer ver e ouvir.
Aí a pastorada está estressada, desanimada, desmotivada e ainda tem que se cuidar para a avaliação não pegar feio depois de três anos (sempre tem alguma coisa que você não conseguiu fazer e sempre tem alguém que não gostou de alguma coisa de que você fez ou não fez, mesmo que você não diga que o capitalismo é coisa do diabo), pois o TAM não vai ser renovado e a igreja se admira e se pergunta: Por que a pastorada não faz campanha de vocações. Também não se deve dizer que as leis do TAM e Avaliação são leis repressivas, isto é uma palavra muito feia! Imagina, não existe repressão na igreja. Na igreja tudo é feito a partir do amor, do respeito e da compreensão. Na igreja também não existe esta coisa chamada de luta de classes porque a igreja vive numa redoma de cristal apartada da realidade do mundo capitalista. A igreja toda se baseia só no Evangelho e esta questão da Ideologia da Classe Dominante nem existe como mecanismo de reprodução do capitalismo. Luta de classes, isto nem existe mais na sociedade! Isso era coisa dos anos 80. Só maluco fala destas coisas ou comunista. Vai trabalhar vagabundo!
Pois é, pastor falar do ritmo de trabalho e da jornada de trabalho é coisa muito feia; não somos CLT e nem sindicalizados. Temos apenas uma coisa chamada APPI, da qual a maioria da pastorada não faz parte porque ela não consegue solucionar os problemas que temos. A pastorada acaba acomodada esperando que alguém outro resolva a sua situação. Coitado! Ninguém vai resolver nossos problemas além de nós mesmos colocarmos os pés na estrada e nos organizarmos na APPI, na Conferência de Obreiros, na Assembléia Sinodal e no Concílio da Igreja, além de fazermos grupos de estudo de teologia onde também podemos discutir as nossas questões. Mas como em nossa cabeça vivemos num mundo harmônico e não num mundo movido pela luta de classes não conseguimos nos organizar e cada um se arrebenta sozinho. Quanto mais sozinho, mais vai trabalhar, mais vai ser fiscalizado, mais vão exigir dele, mais vai se arrebentar e mais vai ser pressionado pela direita a falar o que ela quer ouvir e baubaus a pregação pura e reta do Evangelho! As leis repressivas (TAM, Avaliação), que foram feitas para nos acuar e amedrontar para não falarmos o que tem que ser falado, não vão se mudar sozinhas a não ser que comecemos a pressionar a direção da igreja e olha que o momento é oportuno.
O ser Pastor é uma vocação e o vocacionado tem que trabalhar 24 horas por dia sem reclamar. O único problema é que pastor/a é também um ser humano que se cansa e se estressa e se a coisa não mudar ele salta fora, como muitos já fizeram. Mas pastor/a não pode falar disso porque é pago para trabalhar e não para reclamar e nem para pensar. É muito feio escrever sobre as (más) condições de trabalho dos Operários da Fé. Que vergonha! Logo agora que faltam pastores na igreja! Só pode ser coisa deste boca aberta do ...!
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