7 de fevereiro de 2012

O Cristão

Lendo a trilogia de Eduardo Galeano: Memória do Fogo composta por: 'Os Nascimentos', 'As Caras e as Máscaras' e 'O Século do Vento', (você pode encontrar estes livros a bons preços na página do http://www.estantevirtual.com.br/ que reúne 3000 sebos de todo Brasil) que conta a história latina americana de uma forma esplêndida, encontrei esta história no segundo volume. Ela conta, sem rodeios, mas de forma artisticamente bela (que não expressa beleza alguma, mas a realidade terrível e cruel), como é o cristão dentro do sistema capitalista, ontem e hoje. Sugiro ler também do mesmo autor: "Espelhos", que no mesmo estilo fala da história universal.

"1753
Rio Serra Leoa
CANTEMOS LOUVORES AO SENHOR
A revelação de Deus aconteceu à luz dos relâmpagos. O capitão John Newton converteu-se ao cristianismo numa noite de blasfêmias e bebedeira, quando uma súbita tempestade esteve a ponto de jogar seu barco nas profundezas do oceano. Desde então, é um eleito do Senhor. A cada entardecer, prega um sermão. Reza antes de cada refeição e começa cada jornada cantando salmos que a marujada repete roucamente em coro. No fim de cada viagem, paga em Liverpool uma cerimônia especial de ação de graças ao Altíssimo.
Enquanto espera a chegada de um carregamento na foz do rio Serra Leoa, o capitão Newton espanta medos e mosquitos e roga a Deus que proteja a nave African e todos os seus tripulantes, e que chegue intacta à Jamaica a mercadoria que se dispõe a embarcar.
O capitão Newton e seus numerosos colegas praticam o comércio triangular entre a Inglaterra, a África e as Antilhas. De Liverpool embarcam tecidos, aguardentes, fuzis e facas que são trocados por homens, mulheres e crianças na costa africana. Os barcos apontam a proa em direção às ilhas do Caribe, e lá trocam os escravos por açúcar, melado, algodão e fumo que levam para Liverpool, a fim de reiniciar o ciclo.
Em suas horas de ócio, o capitão contribui para a sagrada liturgia compondo hinos. Essa noite, trancado em seu camarote, começa a escrever um novo hino, enquanto espera uma caravana de escravos que está atrasada, porque alguns deles quiseram se matar comendo barro, pelo caminho. Já tem título. O hino vai se chamar: Como soa doce o nome de Jesus. Os primeiros versos nascem, e o capitão cantarola possíveis melodias embaixo do lampião cúmplice que balança."

Ouvi falar que nos anos 60-70 havia uma empresa de um alemão luterano ou de um descendente de alemães exportadora de jacarandá em Vitória, no Espírito Santo, que começava a semana com um culto em sua empresa em semelhança ao nosso capitão inglês. Esta empresa junto com outras (entre as quais a empresa do Rainor Grecco, que é o mais famoso) acabou com o jacarandá no Espírito Santo e na Bahia.

Quando li este relato do Eduardo Galeano me lembrei da história do V. S., que era de Cunha Porã e agora mora em Brusque e trabalha na fábrica de fogões Fischer. Os donos devem ser luteranos; suponho, pelo nome. Ele me contou a sua história no ARJ - Acampamento Repartir Juntos que aconteceu em Palmitos no final de janeiro de 2012.

Ele trabalha há cinco anos nesta indústria fazendo uma peça. Para fazer esta peça ele tem que ficar numa posição imprópria para a saúde de sua coluna. Ele pediu já há um ano para fazer outro trabalho na fábrica por causa de dores nas costas, mas o supervisor não o deslocou para outra função. Hoje ele está enconstado pelo INSS com um deslocamento numa vértebra da coluna, por causa da má postura no trabalho. Terá de fazer nova perícia médica no INSS e não sabe o que será, pois não consegue mais trabalhar no fabrico daquela peça e provavelmente em outras que exigem posição de pé. Ficou permanentemente lesado física e emocionalmente. Aos 42 anos inválido para um trabalho saudável. Vai ter que mudar de profissão (se conseguir) ou de emprego e arcar até o final de sua vida com as dores na coluna. Quem paga este sofrimento? Este sofrimento tem preço? A saúde tem preço?

Como esta produção está sendo feita, não interessa. Os capitalistas querem apenas saber de produção, pois é no processo da produção da mercadoria que se constrói o lucro pelo tempo de trabalho não pago. O capitalista paga apenas o Trabalho Necessário, que é o salário, valor mínimo para o peão poder comer, se vestir e morar. O capitalista não paga o Trabalho Excedente, que é o tempo de trabalho realizado acima do valor do seu salário que fica com o capitalista. Este é o lucro do capitalista. Portanto a origem do lucro, do capital, está no roubo. O salário esconde este processo de produção do capital. O peão ao ser empregado pensa apenas no salário e não faz o cálculo de quanto ele produz por mês e de quanto tempo necessita para produzir o seu próprio salário, pois não é o patrão que paga o seu salário. O próprio peão com o seu trabalho paga o seu salário e os devidos encargos sociais. O tempo que o peão trabalha acima destes valores (salário e encargos sociais) é o lucro do patrão; que outra coisa não é do que roubar este valor do peão. Não pagar por todo o trabalho feito é o mesmo que roubar o valor deste trabalho. O salário que o peão recebe não corresponde a tudo o que ele produziu. O salário é apenas parte do valor que produziu. O peão trabalha para produzir o seu salário e encargos sociais de uma a duas semanas e o resto do mês ele trabalha de graça. Este tempo em que trabalha de graça forma o lucro do patrão.

Quem nos lembra disso é o Vinícius de Morais em seu poema 'O Operário em Construção':
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

Voltando à questão do V.S. que certamente vai ter que procurar outro emprego, lembro que isto de mudar de emprego e de profissão, no dizer do senador vitalício italiano e primeiro-ministro cristão, Mario Monti, que o emprego fixo acabou e que os jovens têm que se habituar a trocar de emprego ou até mesmo de país, se for o caso, para exercer um trabalho novo e diferente. "E ademais, que monotonia! - exclamou Mario Monti. "É muito mais bonito, mudar e aceitar novos desafios". Que o diga o V.S. de Brusque com a coluna rebentada, que é o custo do capital do seu patrão. Que monotonia, estar com o emprego de senador garantido até o fim da vida com alto salário e suas devidas mordomias senatoriais! Que monotonia! Parasita hipócrita! Pimenta nos olhos dos outros é colírio.

Este é o mesmo papo furado, que escutei muitas vezes, de muitos empresários cristãos convertidos falando da vida boa de seus peões, dizendo:
"Estes é que tem uma vida boa. Não precisam se preocupar depois de sair do serviço, tem um fim de semana de folga, além das férias. Os empresários, por sua vez, têm vida atribulada e sofrida e por isso não conseguem dormir descansados à noite pensando de como irão arranjar dinheiro para pagar os peões no fim do mês".

Lembrando novamente, não é o patrão que paga o salário, é o próprio peão que com o seu trabalho produz o seu salário e os encargos sociais.
Ouvi esta conversa de empresário muitas vezes e por fim comecei a lhes sugerir que trocassem de papéis e de funções: que entregassem toda a empresa para os peões administrar e eles, os empresários, virariam tranqüilos, afortunados e descansados peões, com os salários e o ritmo de trabalho correspondentes à estes, é claro. Adivinhe a resposta! Bando de hipócritas! A hipocrisia é um lado forte dos cristãos convertidos, além do farisaismo.

Este papo é semelhante àquele em que os empresários dizem que tem que pagar muitos impostos a cada mês. Um dia destes ouvi a resposta para esta conversa fiada de, nada menos e nada mais, do que do assessor informal e especial do governo Lula, o Antônio Delfim Netto (que cá entre nós: entende do assunto), que disse com todas as letras que empresário não paga impostos, apenas os recolhe, que é bem outra coisa. Quem paga impostos neste país são somente os consumidores, quer dizer o povão. Ponto final. Quando digo isto para os empresários eles silenciam e alguns ainda tentam gaguejar algo inteligível, pois sabem muito bem como esta história dos impostos funciona. É pura choradeira sem vergonha. Pura sem-vergonhice hipócrita! É que eles gostariam de ficar com esta parcela que cabe aos impostos recolhidos (que felizmente não podem ser sonegados) para aumentar o seu lucro. Por isso as lágrimas de crocodilo!

Junto tudo isto aos relatos da imprensa sobre os trabalhadores nos frigoríficos de aves e bovinos pelo Brasil afora. Sempre lembro do relato de Vilma Fátima Favero, “encostada” aos 42 anos, trabalhava na Seara de Sidrolândia, no interior do Mato Grosso do Sul, como “ajudante agropecuária”.
“A gente separa os pintos, põe na caixa, vacina, forma o lote e põe no caminhão. Cada trabalhador coloca milhares de pintos por hora nas caixas. Cada caixa tem cem aves. Tinha gente que não agüentava e desmaiava, pois muitas vezes se varava a noite. Começava às duas da tarde e largava por volta da meia noite. Muitas vezes passava do horário, pois eram 130 mil pintos e apenas quatro pessoas para sexar. Se alguém faltava era pior, o trabalho acumulava para ser dividido entre quem se encontrava. O ritmo aumentava ainda mais, insuportável”.
Hoje ela tem tendinite e cinco hérnias de disco por causa do trabalho repetitivo e extenuante. Está permanentemente inválida para qualquer trabalho e está permanentemente com dores até o final de sua vida. Este é o preço do progresso capitalista pago somente pelos peões.

Técnica coordenadora de Saúde do Trabalho da Fundacentro em São Paulo, Thais Helena Carvalho Barreira lembra que o trabalho nos frigoríficos avícolas contém praticamente tudo o que os compêndios médicos colocam como caldo de cultura para o aparecimento das LER/DORT: “repetitividade, força, postura inadequada, frio, umidade, pressão, atrito, problemas no mobiliário”. Thaís lembra que, além do imenso custo humano e social que representa a continuidade da atual situação, há também um enorme custo econômico para a sociedade e para o Estado, que acaba pagando, através da Previdência, por males causados pelas práticas daninhas destas empresas.

“Para se tornarem competitivas internacionalmente, e exportarem quatro milhões de toneladas, as empresas estão provocando enfermidades em larga escala devido à altíssima repetitividade e freqüência dos movimentos ao longo da jornada. Assim é que após 1995 começou a aparecer o adoecimento em larga escala de punhos, braços, cotovelos e ombros. Sem descanso, pelo ritmo intenso a que estão sendo submetidas, as articulações são danificadas” diz Paulo Serro, auditor fiscal de Santa Catarina.

"Temos de mostrar à sociedade o que está ocorrendo com os trabalhadores nos frigoríficos, os crimes sem castigo que estão sendo cometidos de forma indiscriminada. Quando se fala em aquisição de empresas, fusão, se pega dinheiro público, recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, do BNDES, sem que o governo garanta nenhuma contrapartida social. Assim, enquanto enriquecem, estas empresas espalham a dor, com lesões muitas vezes irreversíveis, mutilações, e mandam o trabalhador para a Previdência. Isso precisa acabar", diz o Presidente da Contac/CUT, Siderlei de Oliveira.

Os donos e acionistas destas empresas também, em sua maioria, são cristãos 'convertidos' como o nosso capitão inglês mercador de escravos. Assim vivem os cristãos capitalistas 'convertidos'. Convertidos ao capitalismo e não à fé cristã baseada na prática proposta pelo Evangelho do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus Cristo. A ética cristã não se mistura com a ética capitalista, que é: não ter ética, mas ao que parece os cristãos conseguem misturar o imisturável.

Isto tudo nos remete aos cristãos capitalistas e escravocratas latifundiários do agronegócio, que de acordo com dados do Ministério do Trabalho, entre 2005 e 2011, foram libertados cerca de 30 mil trabalhadores em condições de escravidão no país. Boa parte do agronegócio, além de escravocrata, é assassino de índios, ambientalistas, sem terra e quilombolas Em 2011 (até o dia 29 de dezembro de 2011), foram libertadas 2.271 pessoas, em 158 operações em 320 estabelecimentos. 294 empresas estão na lista suja do trabalho escravo que a CNA, da senadora cristã Cátia Abreu, quer extinguir a sua publicação. Imaginem, cristãos convertidos estarem publicamente na lista suja dos que mantém trabalho escravo em suas fazendas. Publicamente ninguém é escravocrata neste país, como também publicamente ninguém é contra a Reforma Agrária. O PEC n° 438 do trabalho escravo está desde 2001 no Congresso Nacional e não é votado. Por que será que ele não é votado? Nós sabemos por que. Porque muitos deputados e senadores tiveram sua campanha financiada por empresas do agronegócio escravocrata e quase todo o resto apóia esta prática, não publicamente, é claro.

No entanto, na esfera do privado a coisa é bem outra. Aposto que a esmagadora maioria dos donos destas empresas do agronegócio escravocrata no ramo da cana, da agropecuária e da madeira é cristã, do tipo ''convertido". Convertidos do tipo que a Rede Record mostra em suas propagandas 'cristãs': "Estive mal porque estive longe de Deus, me converti e agora estou rico. Agora estou rico porque Deus está comigo, pois Deus só está com os ricos". "Os pobres são pobres porque estão longe de Deus!', dizem os teólogos da teologia da prosperidade. Para esta teologia o ser pobre é uma maldição de Deus. Não é exatamente isto que Jesus fala em Mt 5 e Lc 6.20: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus". Como o Jesus de Nazaré, o Deus encarnado, que era pobre, marginalizado, migrante, sem terra e sem teto se encaixa nesta teologia? A Religião cristã sempre se tem prestado à legitimar a opressão capitalista. No entanto, o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo não legitima nenhum sistema opressor. Por isso a igreja (em minúsculo) transformou o Evangelho em Religião, pois a função da Religião é legitimar o sistema econômico opressor vigente. O Evangelho, por sua vez, propõe a subversão do sistema opressor dominante. Por isso Jesus foi crucificado como subversivo, como nos conta Lc 23.2,5. Assim sendo, todo cristão, que se baseia no Evangelho, é um subversivo. Aquele cristão que se baseia na Religião Cristã é um mantenedor e legitimador da opressão. A função da Religião é transformar o Evangelho de Jesus Cristo em Religião. A função da Religião é neutralizar e anular o Evangelho.

Como será que o governador tucano cristão de São Paulo e sua obediente polícia trataria este Jesus sem teto em Pinheirinho? A justiça classista em vez de despejar o Naji Nahas como proprietário (quer dizer desapropriar o terreno por ser caloteiro) de seu terreno no Pinheirinho pelos impostos devidos e não recolhidos, despeja os sem teto. Não estavam os dois fora da lei? Como a lei penaliza apenas a parte pobre dos fora da lei? É que a justiça é cega e depende de quem a conduz. Certamente este juiz também se considera cristão convertido e 'neutro' na luta de classes existente na sociedade. Ajoelhar-se-iam, o governador e sua obediente polícia, diante deste Jesus sem teto para adorá-lo ou Ele teria que se ajoelhar diante de sua polícia que o trataria à porretada como o seu colega governador Pilatos o fez?

"Os direitos dos credores da massa falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição. O principal deles está inscrito logo no art. 1º, III, que indica a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Esse valor permeia toda a ordem jurídica e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes. Outro princípio constitucional foi afrontado: o da função social da propriedade. É verdade que a Constituição garante o direito de propriedade. Mas toda vez que o faz, estabelece a restrição: a propriedade deve cumprir sua função social". Escreve José Osório de Azevedo Jr., desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo

Como será que está a relação destes empresários 'cristãos convertidos' com os seus empregados, que os tornaram ricos? Tem até uma associação internacional de empresários cristãos convertidos que se reúne periodicamente para comer bem e rezar para "que chegue intacta à Jamaica a mercadoria que se dispõe a embarcar", assim como o fez o nosso capitão inglês em seu navio negreiro. Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno - “A Adhonep é uma associação mundial de homens de negócio, profissionais liberais, autoridades civis e militares que se reúnem durante jantares ou almoços para compartilhar experiências narradas por um leigo que, apesar de possuir dinheiro, teve sua vida transformada por Jesus”, no dizer do industrial Custódio Rangel Pires, presidente nacional e internacional da associação. Quanto tempo os seus empregados trabalham de graça para que o patrão 'convertido' possa ter seu sagrado lucro e assim perpetuar o capitalismo, achando que está perpetuando a fé cristã?

Quantas perguntas, diria Brecht, a partir de seu poema:
PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída —
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões.

O que precisamos mostrar sempre de novo é que a ideologia capitalista se traveste de fé cristã. Por isso os cristãos não conseguem enxergar a diferença entre fé cristã e ideologia capitalista. Cada sistema econômico procura transformar o Evangelho de Jesus Cristo em Religião para se legitimar e se perpetuar. Por isso os cristãos que assumem a prática econômica do sistema econômico vigente acham que isto é prática cristã. No escravismo pós Constantino foi assim, no feudalismo foi assim, no capitalismo é assim. Por isso os cristãos acionistas e donos de empresas não têm a menor sensibilidade para com os seus trabalhadores; se ficam doentes por causa do processo produtivo insalubre ou intensivo os capitalistas simplesmente os descartam. Por que? Porque para o capitalismo trabalhador é apenas uma mercadoria, é coisa, para se produzir o que interessa: o lucro. O capitalista cristão convertido assume esta prática, pois o que interessa é o lucro, que é tido como bênção de Deus. Tiago 5.4-6 é muito claro frente isso: "Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra; tendes vivido nos prazeres; tendes engordado o vosso coração, em dia de matança; tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência". Tiago diz que a riqueza é podre porque foi adquirida na base da fraude, do roubo, em cima da matança dos trabalhadores. Literalmente é isso. Acaba-se com a saúde do trabalhador para garantir a riqueza pessoal do empresário. Tiago desmente esta história hipócrita de que riqueza é bênção de Deus, mas ela é na verdade um roubo porque parte do salário "foi retido com fraude". É a condenação do mais valor, do lucro, que surge do roubo puro e simples. Nem precisamos da leitura de Marx para descobrir que a riqueza é coisa podre. Tiago 5.2 diz: "As vossas riquezas estão corruptas". Tiago vai na mesma linha do profeta Miquéias 3.2-3: "Os que aborreceis o bem e amais o mal; e deles arrancais a pele e a carne de cima dos seus ossos; que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão?" Todo sistema econômico opressor é antropofágico. O capitalismo também o é, pois consome a vida dos trabalhadores no processo produtivo. Boa parte dos trabalhadores aos 40 anos já estão impossibilitados permanentemente ao trabalho produtivo. Trabalham ainda porque precisam, senão morrerão de fome, pois quem tem problemas de coluna o INSS dificilmente aposenta por invalidez, pois a esmagadora maioria da peonada se encaixa nisso. Arrastam-se em dores permanentes ou em depressão profunda até seus últimos dias de vida.

O sistema econômico opressor é suicida, pois mata quem o mantém. O escravismo matava seus trabalhadores de tanto trabalhar e o capitalismo faz o mesmo. A forma de descarte é diferente, mas o método é o mesmo. No escravismo o trabalhador morria simplesmente de exaustão ou de doença advinda do excesso de trabalho e má alimentação. No capitalismo o Estado via impostos que a classe trabalhadora paga sustenta o descartado, via INSS, e assim o capitalista está de consciência limpa, pois não lhe cabe nenhuma responsabilidade de cuidar dos descartados; isto é obrigação do Estado com o dinheiro do próprio trabalhador e não do capitalista. O capitalista vai dizer: "Mas eu também recolhi a parte patronal do INSS", recolheu, mas quem gerou este valor foi o trabalhador. Não saiu do trabalho do patrão, saiu do trabalho do peão. Assim, o Estado é um instrumento à serviço da classe capitalista, por isso ela faz de tudo para controlá-lo: golpe de estado, tortura e assassinato se for preciso. A história recente da América Latina mostra isto muito claramente. O Estado ditatorial brasileiro assassinou 436 pessoas, o argentino 30 mil, o guatemalteco 200 mil, e assim por diante.

Por isso: todo rico é ladrão ou filho de ladrão (Mt 19), dizia o patriarca João Crisóstomo (bispo de Constantinopla, falecido em 407 A.D., que em 402 foi deposto e exilado para a aldeia de Cucusa, fronteira com a Armênia, acusado de não coadunar os interesses da Igreja com as do Império.). Dá para entender.
Almeida Garret pergunta: “E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário