"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8.32)
3 de dezembro de 2012
Entrevista inédita de Paulo Freire
(dada à jornalista Marta Luz da Rádio Juazeiro, BA - Dia 24/04/1983 – Programa “Juazeiro Panorama”)
Enviada para mim pelo Ranulfo Peloso do CEPIS e a compartilho com vocês
Marta – Paulo, o que é “método Paulo Freire” de educação?
Paulo Freire - Marta, antes de ensaiar uma resposta, que não é nada fácil de ser dada, a essa sua pergunta com a qual, em todo mundo, sempre começo uma conversa, gostaria de agradecer a você, à rádio que você representa e a seus companheiros de trabalho nessa rádio, essa possibilidade que me dão de entrar nas casas dos ouvintes e levar a eles o meu “boa noite” e de levar a eles, e também a elas, quem sabe, algumas interrogações, algumas dúvidas, no campo geral da educação, no campo da compreensão do ser humano... Depois deste “muito obrigado” que deixo aqui, com muita sinceridade, tentarei responder à sua pergunta primeira.
Talvez, eu devesse dizer a você que, apesar da insistência com que muita gente, há muito tempo, vem falando, no Brasil, de “método Paulo Freire”, até não me agrada muito isso. Mas, isto é um fato e, tenho que discutir os fatos. Apesar da insistência com que se fala nesta história do chamado “método Paulo Freire”, tenho a impressão, Marta, com talvez um pouco de imodéstia, que se trata muito mais de uma certa compreensão geral da educação, de uma maneira de praticar a educação, do que propriamente de um método. Claro, que nessa compreensão geral da educação que tem a ver com uma prática coincidente com essa compreensão geral, há um método, entende? Quer dizer, no fundo, o método cabe aí dentro, está aí dentro. Por isso, disse que, talvez, eu fique pouco humilde ao dizer que a questão vai mais além do método, para alcançar uma própria compreensão da educação.
Quer dizer, que diabo é isso de educação para mim? Como é que eu vejo a educação, enquanto educador que também é educando, enquanto professor que também é aluno? Então, com tua licença, e refaço a pergunta (apesar de considerar que tua pergunta é correta, pois, é por aí que, em geral, se começa uma conversa comigo) eu diria, Marta, que há um sem-número de aspectos, um sem-número de temperos, nessa compreensão de educação que venho defendendo, e propondo, e praticando. Mas, ficaria com o que acho que é interessante dizer aos que me ouvem, agora.
Esse elemento que gostaria de sublinhar, de chamar a atenção, nessa compreensão e prática da educação que defendo, é o da l i b e r d a d e do educando, é o da l i b e r d a d e do educador. É o respeito, portanto, que o educador deve impor a si mesmo, do respeito ao educando para que ele também possa se respeitar. É o respeito ao educando, no sentido de que o educando vá se construindo como gente, em lugar de ir se reprimindo e virando coisa. A educação deveria ser exatamente isso: uma prática, uma experiência de criação e recriação da própria vida. A educação tem muito a ver com a poesia, por isso, a educação é um pouco de arte também, a Educação é essa constante busca de criar.
Veja você, a responsabilidade que a gente tem, enquanto educador. É que a gente está diante de outro ser e a nossa arte de criar e recriar tem a ver com o outro ser! Só que eu não tenho o direito de eu recriar a ti, se tu és minha educanda. Esse é o papel que te cabe: o papel de te refazer, com a minha ajuda. Mas, ao mesmo tempo, com que te ajudo como educador e tu como educanda, a que tu te faças e refaças, ao ajudar que tu te refaças, tu me ajudas a que eu me refaça também. Então, é esse aspecto que acho fundamental, de como entendo a educação. Às vezes, me espanto de como me entendem mal, como me colocam como uma espécie de “demônio misterioso”! É o que eu gostaria de dizer respondendo à tua pergunta. Talvez tenha me estendido muito; mas, era uma maneira de precisar, até sinteticamente, e dizer a ti como me vejo como educador mais do que como “metodólogo”.
Marta – De modo geral, a educação, segundo as suas palavras, deprime. O que é que é educação que deprime? Traduza concretamente.
Paulo – É claro que não é toda educação a que deprime; não é toda educação a que redime. É preciso ver que educação é. Digo que é preciso que, nós os educadores, sempre nos perguntemos: a serviço de quem nós estamos? A serviço de que nós estamos? Como educador, estou trabalhando a serviço de que? O que é que eu quero? Qual é o meu sonho? Claro que meu sonho que é um sonho de liberdade, que é um sonho de criatividade, um sonho de aventura, um sonho de risco... Esse sonho não pode ser viabilizado, possibilitado, através de uma educação que reprime, de uma educação que amesquinha. E que educação é essa? É exatamente a educação que domestica, é a educação através da qual o educador exerce um poder arbitrário de “possuir” a pessoa do educando, nos seus mínimos pormenores.
O educando não pode escolher o livro que deve ler, porque “o educador é que sabe”. O educando em casa, p. ex., o filho não tem o direito de escolher a melhor hora de estudar (como eu dizia, ontem à noite). Veja bem, Marta, eu não estou propondo que o educador se omita, seja ele pai, ou seja ela mãe, que desapareça, entende? Mas o que não é possível é que a presença do educador, no processo educativo, se agigante de tal maneira, se exacerbe de tal maneira, que a presença do educando, ou melhor, que o educando vire sombra do educador. Isso é um absurdo! Se minha presença, na minha casa ou na universidade, diante dos meus alunos, é uma presença de gigante arbitrário, todo-poderoso, mandão, como a gente tem no mundo tantos exemplos, o que seria da presença dos meus filhos em casa? E o que seria da presença dos estudantes que trabalham comigo, na universidade? Essas presenças teriam desaparecido e, em lugar delas, eu teria sombras pequeninhas de mim! Ora, essa seria uma educação deprimente, uma educação diminuidora da pessoa humana.
Pelo contrário, o educador que trabalha em favor da pessoa é exatamente o educador que fica porque some, entende? Talvez precise explicar um pouco melhor ao ouvinte, em casa, porque isso é uma coisa meio doida dizer: como é que esse cara pode ficar se ele sumiu? O que quero dizer com "sumiu" não é sumir fisicamente, ir embora, fechar a porta, desaparecer. Eu como pai, nunca desertei de minha casa. Mas, acontece que só pude permanecer na minha casa, porque fui capaz de aprender a transformar a minha presença, não numa presença diminuidora da presença de meus filhos. E é a isso que estou chamando de sumir para poder ficar.
Ao contrário, o pai que insiste em ficar é o pai que termina desaparecendo. Ele insiste tanto em ficar, ele sublinha, ele exacerba tanto sua presença que ela termina sendo rejeitada, afetiva e moralmente, pelo filho ou pelo educando. Eu não sei se te esclareceu. É claro, que essa temática é muito bonita, não é? Eu acho que tu percebes, imediatamente, porque tu (neste mínimo de tempo que tenho conversado contigo), me parece, que és uma mulher com sensibilidade poética. E, portanto, és capaz de perceber, e perceber o que significa "sair pra ficar". Porque o poeta é uma presença que não se impõe. A presença do poeta é uma presença que acalenta, que desafia e que desvela, mas que não molesta e que não se superpõe à presença de quem ama a poesia. Acho que tu és muito isto. Então, podes entender o discurso de uma pedagogia de liberdade.
Marta – É. Pelo menos, amo e muito! Mas, Paulo, durante esta semana, no seu encontro com a comunidade Juazeirense, você enfocou, de maneira muito forte, o tema "autoritarismo". E o fez, diga-se de passagem, de maneira luminosa. Por que esse tema? Qual a razão de sua escolha? O que é que é isso?
Paulo - Acho que essa também é uma excelente pergunta. Por que esse tema? Por que, em lugar disso, não falei da minha própria experiência geral da educação? Por que é que não falei sobre "métodos e processos na educação?" Por que é que falei sobre isso, sobre educação e autoritarismo? Educação e liberdade? Foi de propósito, Marta, porque não há coisa gratuita, entende? A educação, como dizia ontem, também não é uma prática neutra do "deixa como está para ver como é que fica". Falei sobre o autoritarismo porque, como brasileiro, a mim me dói, profundamente, que a gente pouco faça para dar um mínimo de contribuição no processo histórico brasileiro que independe da minha vida e da tua, enquanto indivíduos. Porque a vida do País, e a alma dele, são maiores do que a nossa vida e a nossa alma. Porque a nossa vida e a nossa alma se constituem na vida do País inteiro, da nossa comunidade brasileira. Acho que a gente faz pouco, contribui pouco para o processo de real participação democrática do povo brasileiro, na sua história. É preciso que a gente viva mesmo a democracia. Que a gente acredite nela.
Mas, no Brasil (coisa incrível!), a gente vê, (não quero nem fazer citações pessoais; não por medo, mas por uma questão até de método de trabalho). Mas, repara, Marta, como essa falta da sensibilidade democrática que é, portanto, autoritária, ocorre entre nós, diariamente. Veja como certos homens públicos, de responsabilidade nacional histórica indiscutível, que no seu discurso revelam uma tal insensibilidade pela liberdade do povo, pelo direito que o povo tem de manifestar-se e de escolher - tal discurso revela uma certa malquerença com a liberdade. Uma certa indisposição como se a liberdade fosse um inseto daninho, que faz mal ao cara, mas o cara fala em nome dela, entende? Isso é que é um negócio tremendo.
Veja: tenho ouvido tanto e lido tanto, declarações antes do meu exílio, durante meu exílio, depois da minha volta, homens de responsabilidades enormes, neste País, “fazer beicinho”, com raiva de um resultado de eleição. E declarar que o povo não pode eleger seus prefeitos porque vota mal, porque vota errado! Mas, que autoridade tenho pra dizer que o povo esta votando errado, sô?! Quando o povo do Rio de Janeiro elegeu o líder Juruna, houve gente de muita responsabilidade no Brasil, que disse também que o povo votou mal, não soube votar, que isso é um desperdício. Mas que direito tenho de dizer que votar no Juruna é um desperdício? Que votar no Timóteo é um desperdício?
Essa afirmação, em primeiro lugar, me parece profundamente elitista, afirmação de gente da elite, realmente. E a elite tem uma raiva danada da massa popular, tem um ódio! Uma coisa que me dá susto é a raiva que a elite tem da massa popular brasileira. E porque é elitista, essa inteligência do fato é profundamente autoritária. Então, ontem, minha preocupação quando coloquei, quando me perguntei sobre o que falar, em Juazeiro, achei que devia falar sobre autoritarismo. E sem fazer referências pessoais a ninguém, como você viu, ontem eu não fiz, a não ser me referir genericamente, em tese, ao professor, ao pai, ao político, ao bispo, ao sacerdote. Mas, não a este professor, a este pai, a este sacerdote, a este bispo, a tal político. Como brasileiro, não é só um direito que tenho, mas é um dever que tenho.
É evidente que por isso mesmo, como não sou autoritário, não faço um discurso autoritário contra o autoritarismo. Porque há também isso. Há quem faça discursos autoritários contra o autoritarismo. Acho, Marta, que um dos temas, no Brasil, tão importante quanto outros temas, é esse do autoritarismo. Acho que tanto quanto a gente possa, deve dizer algo sempre sobre isso, sem raivas, sem ódios, nada disso. Meu problema não é estar aqui zangado com a ou b, é tentar uma análise objetiva de um fenômeno do qual nós todos fazemos parte. Como brasileiro, também tive meus momentos autoritários na minha adolescência, na minha juventude. Eu precisei aprender disso tudo, tive, no fundo, que fazer uma opção que confirmei numa prática. E é por isso que, como professor, ainda que eu seja, que eu fosse desafiado pelos estudantes para virar autoritário, não aceitaria o desafio.
Marta – Certo. Paulo, retomando o 1º. e o 2º. degrau de nossa escalada aqui, ou continuando, apóseste 2º. que trata do autoritarismo, quero lhe fazer uma pergunta. Uma pergunta assim bem tipo detalhe, uma indagação: aqui pelo Nordeste, pelo nosso Nordeste, no meu e no seu Nordeste, existem aqui e acolá, algumas escolas que costumam adotar o sistema, o método de, p. ex., tirar pontos de uma aluna, numa nota obtida em prova, em trabalho de pesquisa, por conta do comportamento, da disciplina. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isto. O que é que você acha e porque acha assim?
Paulo - Marta, acho um absurdo isso. E vou dizer por acho. Vamos discutir, em termos muito concreto, o exemplo concreto que você colocou muito concretamente. Mas, minha resposta quero que seja concreta também, como tua pergunta. Vamos admitir que eu trabalhasse com um grupo de 20 estudantes e, um dia lá, os estudantes devem, por uma questão do próprio processo acadêmico (estou me referindo ao caso universitário, mas é a mesma coisa), e que eles devem me apresentar um tema. Um texto que eu sugeri, que escrevessem e me trouxeram. Vamos admitir que, no dia mesmo em que os estudantes me entregaram o texto, um deles, no próprio seminário, foi grosseiro com o seu colega e até mesmo comigo. Não houve isso, é um caso hipotético. Aí, levo os textos dos estudantes pra casa, sei quem são, conheço o trabalho de todo mundo porque tem seus nomes... E, lá pelas tantas, me deparo com o texto do moço que foi grosseirão com o seu companheiro, que foi pouco cortês comigo também e que apresenta um trabalho excelente. E aí, digo a mim mesmo: bem vou dar 6 a este rapaz. Ele merecia 10, mas vou dar 6 porque ele foi grosseiro, hoje. Ora, que direito eu teria de fazer isso?
O moço escreveu um texto ao qual eu devo dar uma nota; devo julgar o trabalho do moço e não a conduta que ele teve. Esse negócio de julgar a conduta que ele teve lá e atribuir uma nota, diminuir a nota do trabalho científico que realizou, é um absurdo! Não tem o que ver uma coisa com a outra, isso é um ato autoritário, arbitrário. O que pode haver é o seguinte: o que eu posso fazer, se houver inclusive necessidade para isso, é repreender o moço, é chamar a atenção do moço, certo? Agora, diminuir a nota que o trabalho dele merece porque ele foi grosseiro com o colega, não, não! Se acho absurdo isto no nível da universidade, isso é absurdo no nível da escola primária, também.
Marta: Certo, deu pra entender. Paulo Freire, exílio! Uma palavra bela, pelo menos do pondo de vista poético. Parece-me que sua vivência é grandiosa! Pelo menos, na literatura, a gente percebe que é grande a riqueza daqueles que a tiveram; em termos de obras, de poemas, de pinturas, de música... O Prêmio Nobel do ano passado que o diga. Fale-nos um pouco sobre isto. Qual a riqueza maior que você traz do exílio?
Paulo - Olhe, eu não seria capaz, Marta, de dizer qual a riqueza maior, mas seria capaz de falar alguma dessas riquezas, de te falar, uma dessas riquezas que o exílio me proporcionou. Sem que eu seja masoquista, sem que eu goste de sofrer, foi a riqueza de aprender a conviver com minha saudade, não deixar que a saudade virasse nostalgia. Porque guando a saudade vira nostalgia, tu te infernas. O que aconteceu comigo é que cuidei da minha saudade; tratei bem dela. Como tratei bem da minha saudade, tratei bem da minha saudade, tratando bem das minhas marcas. Das marcas da minha cultura que meu povo me deu.
Tratei bem da minha saudade porque aprendi, fora e longe do Brasil, diariamente,a tero Brasil como uma pré-ocupação e um cuidado enorme. A convivência com a saudade que virou uma saudade mansa: bem comportada, educada; uma saudade que não choramingava, uma saudade que dormia direito. Então, essa coisa é uma das riquezas que o exílio me ensinou.
A outra coisa que o exílio também me ensinou, e dela eu falei um pouco ontem, noutra perspectiva, foi a de cultivar uma paciência impaciente. Eu tinha profunda paciência por estar longe do Brasil, mas, ao mesmo tempo, minha paciência me envolvia e me amaciava a saudade; a impaciência por voltar alimentava também a saudade. Não sei se está claro isto. De um lado, a paciência me ajudava a ter uma saudade mansa do Brasil. Do outro, a impaciência da volta me ajudava a saudade de continuar a existir e, portanto, a que eu não me esquecesse de mim mesmo, isto é, do Brasil. Esse foi um outro imenso ensinamento de riqueza que a gente cultivou no exílio.
Outra riqueza que o exílio também nos deu a nós, a mim, a minha mulher, a meus filhos, foi a de que a cultura não se trata com juízos de valor. Em outras palavras: aprendemos, no exílio, que não há nenhuma forma de ser, de povo nenhum, que seja superior ou inferior a outra. Nós, os brasileiros, somos tão formidáveis e tão deficientes quanto os suíços são eficientes, competentes e maus também. Quer dizer: não há uma forma de cultura que seja melhor que a outra. E toda vez que uma cultura de um grupo social de um país se pretenda superior a outra, ela tende a uma postura autoritária e totalitária. Isto nós aprendemos também. Aprendemos, no Chile, a viver diferentemente do Brasil e não superior ou inferiormente. Aprendemos nos Estados Unidos, quando fui professor de universidades e morei lá, com meus filhos. Aprendemos a compreender as formas de ser dos Estados Unidos com relação a nós. Não são nem melhor nem pior que nós. Aprendemos na Europa, vivendo na Suíça, em Genebra, uma cidade linda que parece um cartão postal. Aprendemos a compreender o suíço na sua frieza, na sua distância, mas isso não significa, de jeito nenhum, que pelo fato de ser frio afetivamente distante, que não é gente. Aprendemos na África, aprendemos na Ásia, no mundo, afinal.
A andarilhagem a que o exílio me levou, me ensinou profundamente a ser de novo. No fundo, eu nunca deixei de ser. E a própria saudade do Brasil que aprendi a amaciar, jamais me fez triste. Eu e minha família jamais fomos infelizes no exilio. E até quando nós não admitíamos a hipótese de poder voltar porque, durante muito tempo do exílio, nunca mantivemos ou nunca tivemos a ilusão da volta. Nós pensávamos que os filhos voltariam, mas nós não. Então, quando deu pra voltar, foi uma maravilha, entende? Você não imagina, Marta, quando, no dia em que deu pra voltar eu não pude ficar mais, de jeito nenhum, na Europa: Então....
Marta - ... a paciência ficou impaciente demais...
Paulo - Ficou demais, você disse muito bem. Nesse momento, a impaciência ganhou, realmente, da paciência... Eu peguei o avião e vim embora com a Elza. Ficou um filho, ficou uma filha, uma filha que se casou. Ficou um filho que, se estivesse aqui, poderia até dar um presente a ti, ao povo que nos escuta, porque ele é um grande violonista clássico. É professor hoje, na Suíça, com 26 anos - rapaz excelente! Ele teve que ficar lá; ele não tem ainda condição de voltar para o Brasil, como professor de violão clássico, como concertista. Mas ele vem todo ano ao Brasil. Ele diz “Papai, eu não aguento”! Então, a brasilidade em nós, jamais se acabou. No fundo, Marta, minha recificidade explica a minha pernambucanidade; assim como minha pernambucanidade explica a minha brasilidade, a minha brasilidade explica a minha latinoamericanidade e a minha latinoamericanidade me faz um homem do mundo. Isso o exílio me ensinou. E tu não imaginas como o exílio me trouxe, de novo, ao Recife, às raízes do Recife: Capibaribe, Capiberibe... Aquela coisa linda do Manuel Bandeira que vinhas recitando tão excelentemente, gostosamente, no carro.
Marta - Paulo, acho que o Brasil tem que estar louvando mil vezes, milhões, bilhões a Deus por tua volta. Mas, conversando, de novo, com relação a Juazeiro, lhe pergunto: você voltou, seu método refloresceu, refloresce – Aleluia! - a diocese de Juazeiro está ensejando um trabalho seu com 20 monitores, na perspectiva de uma educação libertadora... você acredita nisso aqui?
Paulo - Acredito, Marta. Onde quer que haja gente, onde quer que haja mulher e homem, acredito que se possa fazer alguma coisa. Para mim o importante é fazer. Eu não posso é deixar para amanhã o que devo fazer hoje. E é porisso que, às vezes, me canso; porque, em geral, atendo aos chamados. Não porque me ache “bonzinho”! Tenho horror a esta palavra. Não sou bonzinho, de jeito nenhum. Mas, é porque acho que tenho um compromisso, como nós todos temos. Afinal, existir é comprometer-se. O que a gente não pode, Marta, e sobre isso vou conversar bem, amanhã possivelmente, com D. Jose – o que a gente não pode é pensar, ou melhor, é animar ou embalar-nos em sonhos muito idealistas, que saiam do real.
É claro, que nossa vinda agora, é muito mais uma vinda exploratória de trabalho. Temos passado esses dias todos e tenho achado uma coisa fantástica, pra mim, pra Elza, como oportunidade de crescimento. Como oportunidade de reconhecer o conhecido. Tem sido uma beleza! Passamos de 9 da manhã ao meio dia, de 2 às 6, discutindo, debatendo, analisando, problema por problema. E os problemas são sempre postos a nós por eles, problemas da prática deles. O cara diz: "Olhe, Paulo, trabalho tal... certa vez, em certo momento... aí, tenho tal problema... Como confrontar esse problema? Então, tento compreender, teoricamente, o problema concreto que vem da prática. E, ao fazer isto, a gente vai,de certa forma, capacitando e recapacitando os quadros que estão ai. Isso não significa, porém, que amanhã, que depois de amanhã, segunda-feira-que-vem, a equipe que esta aí possa realizar um esforço de capacitação de outros quadros a um nível que satisfaça à própria equipe. Mas, Marta, “só se aprende fazendo”. Então, o que vou dizer ao D. José e a eles, quando me despedir, é que não tenham medo de começar a fazer. E no caso deles, aliás, o que já- fazem. Acho que há trabalhos aí fantásticos, independentemente de mim. Há trabalhos ai excelentes que revelam, inclusive, uma dadivosidade enorme por parte da equipe de jovens com quem estou trabalhando.
Marta - Paulo Freire, a gente até se esquece que é jornalista e ficaria o dia inteiro ouvindo você. Mas, tempo em rádio é muito importante e vou lhe fazer, agora, uma última pergunta. Entre os seus livros, extraordinários, há um que chama a atenção - "Pedagogia do 0primido". Por que essa ênfase assim tão forte no oprimido, no que diz respeitoà pedagogia?
Paulo - Pelo seguinte, Marta: porque nesse livro que escrevi em 1968...Bem, é bom, na resposta a ti, agora, contar um pouquinho da história desse livro. Depois, não tenho dúvida nenhuma, que terás que pegar esse papo todo que eu estou tendo. Serás obrigada a fazer uma montagem porque talvez não disponhas de tempo, da própria rádio, de meter esse papo tão grande que estou tendo aqui contigo. E não fico triste, de jeito nenhum. Só pediria que guardasses esse papo porque acho que, no fundo, fico contente de saber que estou vivo, que estarei vivo em Juazeiro, mesmo depois de morto, com essa VOZ que fica aqui.
Mas, bem... um pouco, rapidamente, a história desse livro. Escrevi esse livro, a partir de minha prática, a partir da minha experiência, no Brasil; escrevi já no exilio, no Chile, em 1968. Escrevi esse livro em 15 dias, os três primeiros capítulos do livro escrevi, em 15 dias. De noite trabalhava, até 3 horas da manhã e depois ia dormir; a Elza levantava e lia. Lia o que eu tinha escrito e, às vezes, me acordava e dizia rindo: “Paulo, depois desse livro, o novo exílio talvez seja na lua”. Eu ria muito com as advertências dela. Por isso que,na dedicatória, digo que ela é minha primeira ouvinte - primeira ouvinte! Estou falando no rádio – ela é a minha primeira leitora.
Escrevi esse livro, e uma das intenções ao escrever esse livro era mostrar que os oprimidos precisam de uma pedagogia sua, que não estou propondo que seja esta que escrevi, entende? Escrevi sobre isso. Eu dizia que essa pedagogia tem que ser forjada por ele, oprimido, e não pelo opressor, independentemente da boa vontade individual do opressor, independe disso! O opressor não pode fazer a pedagogia do oprimido, como o oprimido não pode fazer a pedagogia do opressor. Pedagogia do opressor quem faz é o opressor mesmo. Como a pedagogia do oprimido tem que ser feita por ele. E tem que ser feita, elaborada, reelaborada, na prática da sua libertação. Você me diria: mas, Paulo, e qual é o papel teu, o papel meu, o papel de outro que, não sendo opressor, também não é oprimido?
Aí, eu diria: no ato de forjar esta pedagogia, essa pedagogia é forjada pelo oprimido e por aqueles e aquelas que aderem a ele. Por isso, é que falo, na própria "Pedagogia do Oprimido", usando uma linguagem que também reflete minha marca cristã, que para você, que não sendo participante originariamente da classe ou do grupo social oprimido... para que você participe dele, adira a ele, em certo sentido, você tem que fazer a verdadeira Páscoa. Quer dizer, você tem que fazer a Passagem, você tem que fazer a Travessia. Essa Travessia implica em que tu tenhas que morrer um pouco, pra renascer diferentemente. Essa coisa, na verdade, é baitamente difícil, entende? Eu não vim pr'aqui, feito os fariseus, bater com a mão no peito edizer: "eu sou o pedagogo dos oprimidos”, de jeito nenhum. Humildemente digo: sou um, entre outros educadores, que se afligem com a situação dos oprimidos. E que tento fazer um mínimo de cumprimento de uma tarefa, certo?
Marta: Deixe uma mensagem para os educadores de Juazeiro e Petrolina.
Paulo - Muito bem. Comecei esse papo com Marta que me agradou muito. Sem querer te deixar numa felicidade falsa porque é coisa que não gosto, quero te dizer que “poxa”! Afinal de contas, na medida mesmo que esse livro “Pedagogia do Oprimido", está traduzido em 17 línguas, no mundo todo, significa que há uma quantidade grande da humanidade que me lê. Ás vezes, fico pensando, viu Marta, que esse troço não me deixa besta, dejeito nenhum, pelo contrário, aumenta é o sentido da minha responsabilidade.
Quer dizer, na medida em que esse livro está em 17 idiomas, esses 17 idiomas cobrem o mundo. Acontece que faz 10 anos ou 13 que esse livro se reproduz em 17 línguas. Então, no mínimo, são 800 mil, um milhão, um milhão e quinhentos mil pessoas andam lendo isso. E quando ando e peregrino, por esses pedaços de mundo, tenho sido muito entrevistado. Ora pra jornal, ora para rádio e ora para televisão, constantemente. Sem falar nas entrevistas de Universidades que guardam, nos seus arquivos 3 horas de papos comigopra arquivo, pra estudo, tudo. Mas, uma coisa que quero te dizer é que nesse papo contigo foi um dos mais gostosos que eu tive. Assim que me deixa, que me deixou em paz; foi assim uma espécie de repouso para mim.
Comecei agradecendo, sinceramente, ao fato de você me trazer e, através da rádio, falar com um sem-número de gente que não conheço e que possivelmentenão vou ver, mas que me ouve. Termino agradecendo, pessoalmente, o próprio papo que me ofereceste; o próprio momento dessa conversa que tu me ofereceste. E, ao fazer esse agradecimento,montado nesse agradecimento, diria a meus colegas e minhas colegas professoras e professores dessa áreaque a emissora cobre - professoras primárias, professoras leigas, professoras que não passaram pela escola normal... não importa. Minhas colegas e meus colegas educadores, deixo aqui a todos um grande abraço. Mas, um abraço não formal, um abraço de Esperança. De Esperança em que, apesar de tudo, e quando nada seja favorável, sequer a ter Esperança, que a gente e, portanto, eles também continuem a ter.
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