5 de dezembro de 2011

Qual o projeto da ‘esquerda’ na igreja?

Os que se entendem como ‘esquerda’ na igreja têm um projeto de igreja ou ao menos sonham com um novo projeto de igreja? Ou apenas sobrevivem dentro do projeto ‘oficial’ que é controlado pelo pensamento e prática de direita? Os que se entendem como ‘esquerda’ na igreja estão isolados ou estão organizados para discutir e procurar um novo projeto de igreja? Cadê a organização da ‘esquerda’ na igreja? A PPL ou a APPI são parte do projeto da ‘esquerda’ da igreja? Ou a ‘esquerda’ está tão atomizada que nem tem mais um espaço organizado para se reunir, discutir e sonhar? Qual o espaço da ‘esquerda’ na IECLB? A ‘esquerda’ está ocupando de forma organizada algum espaço na igreja que seja digno de nota? Ou há vários espaços que a ‘esquerda’ ocupa na igreja? Estes espaços estão articulados entre si ou estão soltos e seus participantes também? A PPL surgiu nos anos 80 como o espaço da ‘esquerda’ na igreja à procura de um projeto de igreja em oposição da direita que se articulava no Encontrão como um dos espaços deles. A direita além do Encontrão tinha outros espaços não articulados nacionalmente que eram os espaços de poder da instituição DE, RE e Conselho Diretor, além dos setores de trabalho: JE, OASE, Legião, OGA, que eram também disputados e ocupados em parte pela ‘esquerda’. Nos anos 80 e início dos anos 90 havia uma procura de um projeto de igreja por isso surgem a PPL, Encontrão, Comunhão Martim Lutero. Estes grupos disputavam a hegemonia na igreja e eram para a direção da igreja um problema a ser controlado ou cooptado por encontros com a direção e por projetos financeiros que a direção aprovava ou não. Estes três grupos caminham na procura de um projeto de igreja em direções diferentes, às vezes opostas. Nos anos 90 começou a acontecer a fragmentação da ‘esquerda’ e muitos da assim chamada ‘esquerda’ foram cooptados pelo neoliberalismo, que é apenas um modelo do capitalismo com o objetivo de se apropriar de uma quantidade cada vez maior de capital concentrado em menos mãos, mas com um impacto propagandístico fenomenal eficientíssimo. Frente este impacto ideológico a ‘esquerda’ não estava preparada e boa parte sucumbiu, outra se fragmentou por total falta de clareza teológica e alguns sobreviveram participando dos espaços na luta do movimento popular. As paróquias, normalmente controladas por pessoas de direita, sempre tiveram um controle rígido sobre os/as pastores/as no que diz respeito à sua participação dos espaços de luta do movimento popular, sindical e partidário. Usar a linguagem do movimento popular ou participar dele era um risco permanente para os/as pastores/as, como continua sendo. A maioria da ‘esquerda’ era apenas festiva ou oportunista e abandonou o barco nas primeiras ondas fortes provocadas pela ideologia do capital neoliberal. Os que sobreviveram à propaganda e investida neoliberal estão esparramados e sem clareza para onde ir, pois os espaços que a ‘esquerda’ tinha foram minados e enfraquecidos pela propaganda ideológica do capital e pelas leis repressivas internas da igreja. A direção da igreja não gosta deste termo: ‘leis repressivas’, mas este foi o efeito real do TAM e da Avaliação periódica. Houve um retrocesso e um acuamento entre os/as pastores/as por causa desta legislação que se juntou nos anos 2000 com a falta de vagas nas paróquias, aliado ao fato da total falta de organização entre os/as pastores/as com a APPI fragilizada. Ainda estamos vivendo este período de desmotivação e acuamento por falta de um projeto claro de igreja, tanto por parte do Encontrão como da PPL e de outros setores de ‘esquerda’ desarticulados. Muitos ainda hoje se consideram de ‘esquerda’ mas os espaços havidos foram esvaziados e fragmentados, mesmo tendo sobrevivido à onda neoliberal. Sobrou o ‘sobreviva quem puder’ porque ‘é tempo mau’, como diz o profeta Amós 5.13: “Portanto, o que for prudente guardará, então, silêncio, porque é tempo mau”. Continuamos neste ‘tempo mau’ mesmo o neoliberalismo tendo mostrado ser frágil e mentiroso. Fomos derrotados no campo teológico em duas frentes: por falta de clareza teórica marxista, por não sabermos ler a realidade corretamente (tanto eclesial como da realidade do país), e por falta de clareza teológica, por não sabermos ler e interpretar a Bíblia corretamente dentro da conjuntura vivida, apesar de uma grande maioria participar do CEBI. Sobre a leitura libertadora da confessionalidade luterana há um vácuo grande, temos apenas um pequeno grupo se ocupando com o estudo dos textos de Lutero, que é muito contestado na igreja, mais por falta de conhecimento de causa, pois se lê e se estuda muito pouco sobre a confessionalidade luterana. Não daria para dizer que a maioria deste grupo se considera de “esquerda”, tem alguns que se encaixam neste perfil. A assim chamada “esquerda” nunca se ocupou muito com a leitura de Lutero e segue a leitura tradicional e oficial do luteranismo, revelando assim o seu conservadorismo.
O desafio agora é reunir e unir a ‘esquerda’ para elaborar um projeto de igreja dentro da atual conjuntura eclesial e econômica do Brasil e do mundo. O movimento popular continua em descenso e por isso é tão difícil juntar a ‘esquerda’ fragmentada. Temos que começar a reagir frente esta conjuntura eclesial, nacional e internacional. Vejo que o nosso papel como igreja é combater o capital no campo que é nosso: o teológico. Vamos bombardear o campo inimigo com a argumentação teológica e bíblica, assim como o capital nos bombardeia com a sua propaganda dizendo que não há outra proposta além do capitalismo. A Ditadura do Pensamento Único para legitimar e reproduzir a Ditadura do Capital diz que não há outra forma de organizar a vida de toda a sociedade além do capitalismo. A isto nós respondemos: há outra proposta de organizar a vida e a sociedade e esta proposta é o Reino de Deus. Nesta direção aponta o texto a seguir no intuito de tentar achar um espaço para implantar a idéia e viabilizá-la que é a de reunir a ‘esquerda’ na igreja em um novo espaço para construir em conjunto um projeto de igreja para a IECLB a partir de uma teologia não conformadora com este século.
O projeto do capitalismo mantém sua dominação sobre toda a sociedade via capital e via ideologia/teologia. No capitalismo a ideologia se mistura com a teologia e vice versa. A teologia do deus capital se mistura com a teologia do Deus Javé transformando-se em ideologia que legitima a dinâmica mortífera e diabólica do capital. A teologia do Deus Javé encarnado no camponês palestino sem terra e sem teto Jesus de Nazaré tem um papel fundamental no combate ao capitalismo (que a Bíblia chama de “o mundo”) deixando claro que o Evangelho de Jesus Cristo propõe o Reino de Deus como contraproposta, hoje, ao capitalismo, dizendo que há outra proposta frente ao capitalismo que é o Reino de Deus. Além disso, hoje o Evangelho do Reino de Deus (Lc 4.43, 8.1, 16.16), proclamado pelo Deus da classe camponesa do AT que agora, a partir do tempo do NT, radicalizou a sua postura em que ele mesmo se fez pessoa em Jesus de Nazaré na classe camponesa palestina, sempre aponta para a construção de uma nova sociedade, hoje, não capitalista. Esta é a não conformação com este século, no dizer de Paulo em Rm 12.2, que faz parte da essência do Evangelho de Jesus Cristo (Mc 1.15) porque propõe uma nova forma de organizar a sociedade, que é o Reino de Deus. A salvação se dá neste contexto de luta contra o mundo, pois se a salvação já nos foi dada de graça pela fé não temos nada a temer nem a morte, pois temos como promessa a ressurreição do corpo e a vida eterna. A fé na ressurreição do corpo anima para a luta (2 Co 11.23-33) contra o projeto do diabo encarnado no capitalismo (Ap 18 - onde tudo é mercadoria, também almas humanas). Ap 18.4: “Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus flagelos” lembra para não nos conformarmos com este século sob o risco de cumplicidade com o sistema opressivo dominante. Este tem sido o nosso maior desafio: deixar de ser cúmplice do sistema de morte que é o capitalismo. Esta é a espiritualidade do Reino de Deus, contestação profética, que assume a cruz como conseqüência automática de sua prática teológica. Esta espiritualidade da “palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus”, 1 Co 1.18.
A essência da igreja é ser revolucionária, pois propõe o Reino de Deus frente ao reino do mundo, hoje o capitalismo. Esta essência foi esvaziada historicamente pela teologia da salvação individual fora da construção de um projeto coletivo que é o Reino de Deus, que é construído pelo próprio Deus, sendo nós seus convidados especiais neste processo de construção a partir do batismo e da fé. A salvação por graça e fé leva a pessoa a participar da construção do Reino de Deus que é um projeto coletivo e dentro deste a salvação meramente individual não tem espaço, muito pelo contrário esvazia o projeto coletivo da construção do Reino de Deus. No dizer de Lutero: “Fé e amor constituem todo o ser de um cristão. A fé recebe, o amor dá. A fé leva a pessoa a Deus, o amor o leva às pessoas. Através da fé, recebe os benefícios de Deus, através do amor, leva benefícios às pessoas” e “As obras exteriores são apenas sinais da fé interior. As obras não fazem a pessoa crente, porém revelam que sou crente, e testemunha que a fé dentro de mim é certa”. As obras, no caso, são a luta contra o capitalismo no processo de participação na construção do Reino de Deus que é o projeto de Deus contra o projeto do mundo, o capitalismo. A teologia da salvação individual via experiência de conversão com data e hora marcada desvinculada de um compromisso inerente ao batismo para com a construção do Reino de Deus, que sempre aponta para a construção de uma nova sociedade igualitária e não classista, compreende as obras como ação individual de ajuda humanitária que não põe em cheque o sistema capitalista que cria a desumanidade entre as pessoas produzindo vítimas que são acolhidas pela minha ação diaconal individual ou comunitária.
A teologia da salvação individual fora de um projeto coletivo revolucionário de construção do Reino de Deus tem ajudado o sistema de dominação a alienar e afastar os cristãos do processo de luta contra o projeto de dominação político-econômico-cultural-ideológico-teológico imposto pelo sistema deste mundo, hoje, o capitalismo.
Temos que estudar melhor e nos aprofundar nesta questão da salvação como parte de um processo coletivo da construção do Reino de Deus (Mt 1.21; Zc 8.7; Dn 12.1; Sl 18.27; Sl 28.9; 2 Sm 22.28). O termo Reino de Deus pressupõe uma construção coletiva para uma vida de comunhão fraterna em coletividade. Temos que estudar melhor esta questão da salvação, pois até agora o conceito de salvação só tem ajudado o processo de dominação desde a Conquista onde se salvava a ‘alma’ do indivíduo indígena ou negro e se legitimava a opressão econômica, como nos mostra o falar do jesuíta Nóbrega de 1558 legitimando a exploração da mão de obra escrava indígena no Brasil quando escreveu ao rei de Portugal:
“... Se S.A. os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer estender aos cristãos por a terra dentro e repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outras partes de terras novas ... Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa e terão serviços de avassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta terra porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata”. (Darcy Ribeiro. O povo brasileiro) Aqui o papel da igreja é o papel do diabo e este mesmo papel a igreja continua a reproduzir hoje. São momentos distintos da evolução do capitalismo, mas a conseqüência é a mesma: legitimar o capital e sua reprodução a partir da salvação individual das almas, pois o corpo pertence aos senhores capitalistas para ser explorado até a morte. Quem defende o capitalismo defende esta prática secular de espoliação baseado na exploração da mão de obra e da natureza. O capitalismo é tão predador que está acabando com os dois: com a mão de obra e com os recursos da natureza, pois acha que os dois são infinitos. Esta é a sua autodestruição junto com a humanidade; o Planeta Terra vai sobreviver ao capitalismo e à humanidade, assim como ele existiu antes de haver humanidade.
O jesuíta Anchieta constata, trinta anos depois, em 1587, o resultado desta política real e eclesial:
“... nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca. Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros da Guiné e muito poucos da terra e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu”. (Darcy Ribeiro. O povo brasileiro) É a idéia de que os recursos naturais são infinitos como também a mão de obra, mas o capitalismo vai acabar com os dois, com o apoio explícito da igreja de Jesus Cristo, que veio para salvar os dois: as pessoas e a natureza.
É a evangelização da boa nova da morte. É o mesmo processo capitalista de hoje que acontece nos frigoríficos onde os trabalhadores e trabalhadoras agüentam no máximo 10 anos e estão permanentemente incapacitados para o trabalho por causa do trabalho repetitivo em ritmo acelerado. Quando o trabalhador ou trabalhadora fica doente e incapacitado para o trabalho é despedido. No caso dos escravos, eles trabalhavam até a morte e duravam entre 15 a 20 anos. Os “escravos livres” dos frigoríficos de hoje só duram entre 5 a 10 anos e estão inválidos permanentemente para qualquer trabalho e tem que viver até a morte com dores horríveis. É a tortura da classe trabalhadora durante o processo produtivo assim como Jesus Cristo foi torturado até a morte na cruz por se opor a todo sistema opressivo. O documentário: Carne e Osso, mostra isso. Mudou pouca coisa entre o escravismo e o capitalismo. O que não mudou é o apoio irrestrito da igreja cristã a estes sistemas de morte. Por isso é cada vez mais importante deixarmos visível o crucifixo em nossas igrejas, coisa rara na IECLB. Há muita oposição por parte de pastores/as e leigos/as em colocar o crucifixo na parede ou no altar de nossas igrejas. Durante anos, para se opor ao catolicismo, nas igrejas da IECLB se colocou apenas a cruz vazia como símbolo da ressurreição (dentro da compreensão popular da ressurreição da alma) esquecendo que antes da Páscoa vem a Sexta-feira Santa e que sem cruz não há ressurreição. O crucifixo é a denúncia da classe trabalhadora crucificada no processo produtivo para gerar o capital. A confissão de fé que Paulo nos repassa em 1 Co 15.3-4 fala da cruz e da ressurreição de Jesus Cristo como base de nossa fé. Omitir a cruz é entrar pelo caminho da teologia da glória, criticada por Lutero. Omitir a cruz é ocultar os crucificados de hoje pelo capital. Não colocar o crucifixo na igreja é legitimar a opressão capitalista que literalmente mutila e mata o povo pelo excesso de trabalho. Até esquecemos que a base da teologia luterana é a Teologia da Cruz e que na pintura de Lukas Cranach no altar da igreja em Wittenberg Lutero aponta, não para a cruz vazia, mas para o crucifixo (o Cristo crucificado que derramou seu sangue por nós que lembra a Ceia do Senhor que por sua vez lembra o projeto da nova sociedade baseado na igualdade, na comunhão e na partilha que é o Reino de Deus).
O jesuíta Cardim registra a mortandade da população indígena que vinha ocorrendo e diante da qual ele próprio se espanta: "Eram tantos os dessa casta que parecia impossível poderem-se extinguir, porém os portugueses lhes têm dado tal pressa que quase todos são mortos e lhes têm tal medo, que despovoam a costa e fogem pelo sertão adentro até trezentas a quatrocentas léguas". (Cardim. Tratados de terra e gente do Brasil, 1584) O escravismo no Brasil, como forma de permitir a acumulação primitiva do capitalismo, matava a sua mão de obra de tanto trabalhar e o capitalismo de hoje (é mais humano) apenas a aleija e faz o Estado sustentar esta mão de obra inválida pela previdência social. É tão humano como era a proposta do presidente Bush que propôs humanizar a tortura em Guantánamo. Privatizar o lucro e socializar os custos é a ordem do capital; é o que a atual crise internacional também nos mostra. O capital repassa à toda a sociedade os custos da exploração. Um levantamento realizado pelo sindicado dos trabalhadores das empresas frigoríficas do estado de Santa Catarina demonstrou que a Sadia contribuiu com 30 milhões ao INSS (que na verdade é o dinheiro dos próprios trabalhadores gerado pelo seu trabalho exaustivo e degradante), no período de 2003 a 2007, e que, em contrapartida, o INSS desembolsou 170 milhões, no mesmo período, em benefício previdenciário, seja como afastamento do trabalho, aposentadoria por invalidez, etc. Faça o cálculo do déficit.
A sociedade que segue o deus capital é assim, como nos conta a história da Vilma Fátima Favero, “encostada” aos 42 anos, trabalhava na Seara de Sidrolândia, no interior do Mato Grosso do Sul, como “ajudante agropecuária”. Ela conta: “A gente separa os pintos, põe na caixa, vacina, forma o lote e põe no caminhão. Cada trabalhador coloca milhares de pintos por hora nas caixas. Cada caixa tem cem aves. Tinha gente que não agüentava e desmaiava, pois muitas vezes se varava a noite. Começava às duas da tarde e largava por volta da meia noite. Muitas vezes passava do horário, pois eram 130 mil pintos e apenas quatro pessoas para sexar. Se alguém faltava era pior, o trabalho acumulava para ser dividido entre quem se encontrava. O ritmo aumentava ainda mais, insuportável”. Hoje tem tendinite e cinco hérnias de disco por causa do trabalho repetitivo e extenuante e está incapacitada permanentemente para qualquer trabalho. No escravismo o sistema matava de tanto trabalhar, hoje, no capitalismo o sistema apenas deixa a pessoa aleijada. O que mudou? O sistema capitalista é o que o Paulo Maluf disse sobre o estupro seguido de assassinato: “Estupra, mas não mata”. O capitalismo é isto: estupra, mas não mata, normalmente, pois quando se sente ameaçado mata sem pestanejar, depois de estuprar.
O próprio Bartolomeu de las Casas para defender e salvar os povos originários das Américas da escravidão e da extinção defendia como opção a escravidão dos povos africanos. Era a opção desesperada a ser tomada entre dois massacres, ele escolheu para legitimar ou contrapor o menor em números, se é que dá para falar assim. É o dilema que nos fala o livro “A escolha de Sofia” escrito por William Styron, onde a Sofia escolhe a filha para ir ao crematório nazista para salvar o filho que é morto do mesmo depois. É o próprio trabalhador que se sente culpado pelo seu desemprego, pela sua pobreza e pela sua invalidez permanente. O capitalismo mata e culpa o trabalhador de sua própria morte.
Nós hoje ainda estamos dentro da mesma teologia da Conquista da salvação individual desvinculada do processo coletivo da construção do Reino de Deus como nova sociedade proposta por Jesus frente à sociedade opressora vigente, pois o Reino de Deus já começou (e vai se completar plenamente apenas no dia da volta de Cristo no dia do Juízo Final) e por isso a pessoa salva por graça e fé em nosso Senhor Jesus Cristo se insere automaticamente no processo coletivo da construção do Reino de Deus acolhendo as vítimas do sistema como nova prática desta nova sociedade que Jesus chama de Reino de Deus (Mt 25.31-46). Enquanto nós não nos desfazermos desta teologia da salvação individual dentro do processo de opressão sem pô-lo em cheque estaremos trabalhando contra o Reino de Deus. Jesus pela sua prática teológica pôs em cheque o sistema de dominação deste mundo (é o que nos relatam Lc 23.2,5; Jo 11.47-54) e por isso foi crucificado. O resultado do Evangelho do Reino de Deus foi a organização da comunidade primitiva que ensaiou uma forma coletiva de viver a vida, que fracassou por causa da esperança da volta imediata de Cristo, e não construiu um modelo de produção coletivo a partir da coletivização dos meios de produção que fizeram. No entanto, a igreja primitiva foi construída pelos fracos: escravos, estrangeiros, mulheres, sem terra. A comunidade primitiva foi construída pelos que “Até à presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos” (1 Co 4.11-13) e “Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1 Co 1.26-29). Qual a prática da igreja cristã de hoje em reduzir a nada as coisas que são, o capitalismo? Isto parece que não faz parte da teologia da igreja cristã. A igreja cristã não quer reduzir a nada o que é porque foi cooptada pelo que é: o capitalismo. Nisto consiste a sua heresia: em se conformar com este século (Rm 12.2) e se deixar contaminar por este mundo, se deixar moldar pelo projeto do capital (Tg 1.27) praticando a idolatria: adorando Jesus Cristo na forma do deus capital. As cédulas do nosso dinheiro mostram isto na frase: Deus seja louvado. Que Deus? Jesus Cristo ou o capital? Ou o Jesus Cristo transformado e metamorfoseado no deus capital para legitimar a sua proposta de sociedade? Cada deus, dalso ou verdadeiro, tem o seu projeto. A Trindade: Deus Pai, Deus Jesus Cristo e Deus Espírito Santo tem o Reino de Deus como seu projeto e a divindade trinitária: dinheiro, mercadoria e capital, têm o capitalismo como seu projeto. Ou a igreja segue um ou segue ao outro, pois “Não podeis servir a Deus e às riquezas” ao mesmo tempo diz Jesus Cristo em Mt 6.24. No entanto, a igreja cristã faz o impossível ser possível: procura seguir os dois ao mesmo tempo, o que evidentemente não é possível. Desta forma segue apenas e de fato ao deus capital dizendo estar seguindo a Jesus Cristo. Mas, “pelos seus frutos os conhecereis”, Mt 7.20.
A nossa teologia não pressupõe a luta contra o sistema capitalista para construir a organização coletiva de uma nova sociedade a partir da fé em Jesus Cristo. Aí está a nossa heresia. A compreensão da salvação meramente individual sem compromisso de participar da construção coletiva desta nova sociedade não capitalista que é o Reino de Deus, como resposta da salvação que nos foi dada de graça pela fé, é uma heresia teológica. Jesus dizia que pelos seus frutos os conhecereis (Mt 7.16). A prática normal de uma pessoa cristã não pressupõe a luta por uma nova sociedade não capitalista, mas, pelo contrário, tem sido uma prática de cimentar a realidade da opressão capitalista, participando, quando pode, dessa exploração. Capitalismo e Cristianismo tem se tornado sinônimo. Por que? Porque o Evangelho virou Religião. A função da Religião sempre foi a de cimentar a opressão de classe. Salomão construiu o Templo de Jerusalém (1 Rs 5) para salvar o novo modo de produção, o Tributário, diante da proposta ainda presente do modo de produção Tribal que ainda havia dentro das tribos camponesas israelitas. A sociedade construída nas montanhas da Palestina pelos escravos fugidos e camponeses palestinos agregados na caminhada não contemplava um templo, mas apenas uma tenda (Nm 27.1-11) como o Evangelho de Jo 1.14 propõe de novo com Jesus Cristo. Skenoo em Jo 1.14 significa: armou tenda entre nós, armou tabernáculo entre nós, não templo, porque o templo é e sempre foi um instrumento do Estado para legitimar e perpetuar a sociedade de classes. Por isso o Templo de Jerusalém foi construído pelo Estado e por isso Jesus o quis destruir para reconstruí-lo em seu corpo, como o Deus presente no meio de seu povo liberto da opressão em vida e da opressão da própria morte. Deus se fez pessoa em Jesus de Nazaré, na classe camponesa, para desestabilizar o poder opressor da classe que controla a economia e o Estado via prática teológica libertadora, por isso o Templo e o Estado crucificaram-no. O cristianismo virou templo e deixou de ser tabernáculo, que era o espaço do poder popular cidadão da fé, da luta pelos direitos, pela terra (Nm 27.1-11) e contra o Estado (Js 6-8) em direção da construção de uma nova sociedade igualitária, não classista, onde os meios de produção pertencem ao coletivo.
Como vamos enfrentar, como ‘esquerda’ na igreja, este projeto teológico que legitima o sistema dominante?
A teologia é a nossa arma para combater o capitalismo, como sendo o projeto do diabo, que quer impedir a construção desta nova sociedade não capitalista que é o Reino de Deus.
Se a teologia é esta arma então temos que estudar melhor a teologia do ponto de vista da Bíblia que nos mostra um Deus (Dt 6.21-23; Êx 3) que a partir da luta de classes (que é o motor da história) organiza a classe oprimida, contra o sistema opressivo viabilizado pelas forças organizadas no Estado, e a leva para fora da opressão para a construção, sob a orientação de Javé, de uma nova sociedade não classista nas montanhas da Palestina.
A igreja reproduz o capitalismo pela individualização: cada um por si – isolado – pela prática econômica, pela compreensão da fé da salvação individual e conversão individual desvinculada do processo de luta por transformações que o Reino de Deus requer na sociedade, pela não organização de classe, pelo isolamento social.
Romper o isolacionismo é a proposta do Evangelho que cria coisa nova, a comunidade de fé. Diferente da comunidade étnica como era o conceito do povo de Israel e diferente de como os romanos encaminham sua comunidade dividida em classes sociais excludentes entre si. A comunidade de fé é a nova proposta de como as pessoas batizadas encaminham na prática a construção do Reino de Deus. O que reúne a comunidade é a fé em Jesus Cristo e não a classe social como era a prática dos grupos sociais no império romano. Apesar de que a maioria dos participantes desta nova comunidade era das classes excluídas: escravos, plebe e não cidadãos. A comunidade cristã é co-participante da construção do Reino de Deus junto com o movimento popular, movimento popular específico (negros, mulheres e povos originários), sindical e partidos políticos legítimos e autênticos, pela sua prática de luta, da classe trabalhadora. Este é um conceito ainda não assimilado pela igreja, porque é um conceito que rompe com o isolacionismo criado pela salvação individual e que mostra as rachaduras de nossa sociedade que devem ser enfrentados pela igreja. Este conceito não é aceito porque propõe uma aliança entre as vítimas do sistema capitalista na luta contra o sistema em direção à proposta do Reino de Deus. Este conceito mostra que vivemos numa sociedade classista e desigual que não fecha com as propostas do Evangelho. Este conceito nos obriga a romper com o capitalismo e com isto se evidencia as rachaduras dentro da própria igreja que é perpassada pela luta de classes, coisa não admitida pela própria estrutura da igreja. A ideologia eclesial sempre nos mostrou que na igreja somos todos iguais, algo totalmente irreal, pois os ‘mais iguais’ é que tem o poder de mando na igreja. A igreja sempre foi usada para negar a sociedade de classes em que vivemos e a luta de classes que há na sociedade para impedir que a classe oprimida assuma a direção da sociedade e da própria igreja. A igreja sempre foi um instrumento usado pela burguesia para impedir a revolução na sociedade para que se possa acabar com a sociedade dividida em classes sociais antagônicas e com interesses irreconciliáveis. Por isso a igreja não pode admitir que há luta de classes e classes sociais em permanente confronto. O máximo que a igreja admite é que haja ricos, remediados e pobres porque isto aparece na Bíblia. Agora como os ricos ficam ricos e como os pobres são tornados pobres isto não se explica. Sabemos que isto não é nenhum mistério. Basta estudar como funciona o capitalismo e se descobrirá isto. Estudar na comunidade cristã como funciona o capitalismo e a luta de classes na sociedade? Você está louco, isto não se faz! Por que não se faz? Porque a igreja é um instrumento usado pela classe economicamente dominante, que também controla o aparato do Estado, para perpetuar o capitalismo. Essa história do Reino de Deus ser uma nova sociedade sem classes sociais e não capitalista é no mínimo perigoso, para não dizer: subversivo. O rompimento do Evangelho com a cultura judaico-romana é via comunidade multicultural. A posição de Pedro diz que para ser cristão a pessoa tem que ser judia primeiro choca com a posição de Paulo que entendeu o Evangelho dizendo que pelo batismo se passa direto para ser cristão, não precisando passar pela fé e cultura judaica. Cristo liberta da Lei, pois a salvação é de graça pela fé em Jesus Cristo que empurra para a luta e para a resistência contra o sistema opressor vigente, como diz Paulo em 1 Ts 2.2; 2 Co 11.23-28, o que traz perseguição como diz em 2 Tm 3.12: "Ora todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos", conferir 2 Tm 3.10-13. A piedade evangélica é revolucionária em sua essência e não contra-revolucionária, alienante e conformadora com este século como tem sido a prática da igreja. A igreja para lutar contra o capitalismo tem que se autodestruir para nascer de novo num novo formato que opta pela classe oprimida como Javé o fez no AT e NT. É o que diz em João 12.24: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto”. Isto sempre foi interpretado como ação do indivíduo e nunca compreendido como ação estrutural. O indivíduo, dentro do conceito de salvação individual, pode mudar, a igreja não, isto seria um novo conceito de salvação que passa pela luta coletiva em direção ao Reino de Deus. Este conceito é muito perigoso porque pressupõe a mudança de toda sociedade. Isto é revolução e revolução não pode. Como não pode? Ressurreição do corpo não é revolução da morte em vida? Revolução é violência. A atual situação no capitalismo não é violência? A violência da luta de classes? A revolução do Reino de Deus se faz exatamente para acabar com a violência exercida de uma classe sobre a outra, da luta de classes, para que haja paz numa sociedade sem classes em constante confronto. A proposta do Reino de Deus quer exatamente acabar com a violência da luta de classes e isto só acontece quando não há mais classes sociais. Uma sociedade sem classes sociais é a comunidade de Jesus Cristo em sua essência, baseada na partilha, na comunhão, no amor e onde Deus dá a orientação para toda a sociedade e não o capital, como é hoje. Onde Javé é Deus sobre toda a sociedade e determina a vida de toda a sociedade. Aí nós voltamos ao problema principal que é o primeiro mandamento: adorar a Javé ou o capital. O que nós queremos é adorar o bezerro de ouro como se fosse Javé, prevalecendo a teologia do bezerro de ouro, é claro. A igreja quer fazer o que não dá para fazer: viabilizar o projeto de Javé e o projeto do capital ao mesmo tempo. Sabemos que isto não dá para fazer. Quando falo em igreja digo que são as pessoas das comunidades. Se esta igreja não morrer não tem jeito. Nós teremos que morrer junto com esta igreja para que haja uma nova igreja: a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, una e ecumênica que tem como base a teologia da cruz. Pois o diabo, encarnado no capitalismo, não vai deixar barato!


Dilma na Justiça Militar. A foto foi tirada em novembro de 1970, quando a hoje presidente da República tinha 22 anos. Após 22 dias de tortura, ela respondia a um interrogatório na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro. Ao fundo, os oficiais que a interrogavam sobre sua participação na luta armada escondem o rosto com a mão. O diabo não gosta de mostrar a cara. Quando falo que o diabo não vai deixar barato falo disto: Repressão pura e simples contra os que crêem em Jesus Cristo. A igreja que vai morrer vai ressurgir assim: no banco dos réus do sistema deste mundo acusada de subversão e de alta traição. É o que Jesus Cristo diz em Lc 9.23: “Dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”.
O cristianismo rompe com a velha sociedade (pois cria a nova criatura segundo diz Paulo em 2 Co 5.17) criando a nova sociedade onde se socializa os meios de produção, na época apenas para o consumo (At 2 e 4) por causa da esperança da volta imediata de Cristo, e socializa a dor e se procura acabar com a miséria via prática diacônica.
Eusébio escreve sobre a prática diaconal da comunidade cristã durante a grande peste no tempo do imperador Maximinus Daza:
“Eles se revelavam aos pagãos em plena luz do dia; pois os cristãos eram os únicos que em meio a tão grande sofrimento mostravam o seu sentimento e seu amor às pessoas através de seus atos. Alguns trabalhavam dia após dia com o cuidado e com o enterro dos cadáveres (havia inúmeros pelos quais ninguém mais se importava), outros reuniam pela cidade afora os que estavam sofrendo por causa da fome num lugar só e distribuíam entre todos pão. Quando isto foi divulgado, se glorificava o Deus dos cristãos e reconheciam que somente estes eram os verdadeiros religiosos e piedosos porque eles mostraram isto pelos seus atos.”
O cristianismo dá a cidadania aos não cidadãos, como diz Paulo em Ef 2.19: “Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus”. A fé cristã rompe com este século classista e cria uma sociedade sem classes: a eklesia, que reúne escravos, sem terra, mulheres e estrangeiros. E Paulo mostra que quando esta sociedade sem classes é rompida começam os problemas como nos conta 1 Co 11.17-21: “Nisto, porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais não para melhor, e sim para pior. Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio. Porque até mesmo importa que haja partidos entre vós, para que também os aprovados se tornem conhecidos em vosso meio. Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague.” Quando os escravos chegavam para a Ceia do Senhor os livres já haviam comido tudo e estavam de porre.
A fé cristã rompe o isolacionismo judaico (somente nós somos o povo de Deus e por isso somente nós seremos salvos – Mt 15.21-28) para construir o internacionalismo multicultural (Gn 11; Gl 3.28: Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.) pela fé em Jesus Cristo. O Evangelho do Reino de Deus rompe com o isolacionismo – individualismo – para a proposta do coletivo, do comunitário. O batismo integra nova proposta de convivência e de desobediência civil em não adorar o Estado como deus - César não é deus! O Estado legitimador da opressão não é deus!
A igreja hoje rompe com o Evangelho quando prega a salvação individual isolado da proposta do coletivo, desvinculado da mensagem central de Jesus: o Reino de Deus que aponta para a construção coletiva da nova sociedade, hoje, não capitalista. Fé sem obras é morta diz em Tiago 2.26. Que obras? A construção do coletivo a partir do acolhimento das vítimas do sistema, como diz Mt 25 e em Tg 1.27 a comunidade é construída a partir da prática do acolhimento das viúvas e órfãos e junto a isso a não contaminação do mundo romano escravista classista. Paulo diz isto também em 1 Co 1.27-28: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são”.
A proposta da igreja é a construção da comunidade, do coletivo, mas prega a salvação individual e com isto descontrói seu discurso e a comunidade virou apenas uma Associação Cultural e Recreativa com fins Religiosos. O veneno da pregação da salvação individual corrói e destrói a proposta da construção da comunidade de Jesus Cristo para um individualismo como prática de fé. A mentalidade capitalista não permite a construção da comunidade cristã que aponta para o novo que é o Reino de Deus que rompe com o capital. Predominando o capital se esvazia o Evangelho do Reino de Deus. A prática da contaminação pelo mundo, do qual nos alerta Tg 1.27, neutraliza a proposta do Evangelho. A igreja se torna o elemento contra-revolucionário do Reino de Deus, pois reforça o capitalismo pela pregação da salvação individual desvinculada de uma prática revolucionária (Mc 1.15 – arrependei-vos e crede no evangelho). A igreja prega Jesus e não prega a pregação deste: o Reino de Deus, e com isto desmonta a proposta de Jesus Cristo. O sistema dominante neste mundo é muito sábio em anular qualquer contraproposta.
Jesus Cristo pregou o Evangelho do Reino de Deus e nós pregamos apenas a Jesus Cristo e com isto desmontamos a pregação de Jesus Cristo do Reino de Deus que é revolucionária. A essência do Evangelho do Reino de Deus é revolucionária porque propõe uma nova sociedade, hoje, não capitalista. A pregação apenas de que Jesus Cristo é Deus esquecendo de sua pregação central sobre o Reino de Deus brota da luta contra os deuses pagãos em Roma, na Europa e na América. Se firma o Deus Jesus Cristo frente os deuses romanos, germanos, celtas e indígenas: astecas, incas, guaranis, e se esquece de falar da pregação central de Jesus Cristo que é o Reino de Deus que propõe uma nova sociedade construída em cima do coletivo, a comunidade cristã essencialmente revolucionária, que se contrapõe ao sistema vigente, independente da época.
Para a igreja sobrou a proposta da comunidade, mas esvaziada da proposta revolucionária, do coletivo do Reino de Deus que propõe uma nova sociedade não capitalista. A construção original de comunidade é revolucionária frente a proposta greco-romana classista e escravista. A comunidade cristã rompe com a sociedade de classes, pois na comunidade não tem classes sociais, são iguais, pois todos e todas são irmãos e irmãs na fé. Onde há irmãos não há classes sociais, pois na comunidade todos são tornados iguais pelo batismo e pela fé em Jesus Cristo. A comunidade cristã constrói uma nova sociedade igualitária frente a sociedade classista escravista romana.
Os cristãos primitivos promoviam o resgate de presos e escravos que são comprados para serem libertados. Um relato do ano 100 feito por Clemente romano diz: “Conhecemos muitos dentre nós que se entregam às cadeias (da escravidão) para libertar outros. Não poucos se entregam como escravos e, com o preço da venda, dão alimento a outros”. Parece que isto não foram ações de comunidades, mas de ações individuais de pessoas. É uma luta contra a escravidão se tornando escravo por puro amor. É dando a sua vida para libertar o outro.
Tertuliano diz: “A preocupação pelos desamparados, que nós praticamos, nossa atividade de amor, se transformou em uma característica para nós entre nossos oponentes”. O imperador Juliano quer corrigir a política do seu antecessor Constantino, protetor do cristianismo, recomenda que as autoridades locais criem centros de assistência social e hospedagem como um dique contra a avassaladora penetração do cristianismo em meios populares.
O bispo Dionisius escreve sobre o período da peste em Alexandria em 259 d.C.: “A maioria de nossos irmãos não poupavam, por grande amor ao próximo, a sua própria pessoa e permaneciam unidos e firmes. Sem medo visitavam os doentes, os serviam com muita dedicação, cuidavam deles por amor à Cristo e morriam alegres com eles. Sim, muitos morriam após terem curado os outros e terem transplantado a sua morte para si mesmo. Desta forma morreram os mais nobres de nossos irmãos, alguns presbíteros, diáconos e leigos muito considerados. Entre os pagãos acontecia exatamente o contrário. Eles expulsavam de si os que começavam a ficar doentes, fugiam do caminho mais caro e atiravam os moribundos na rua e deixavam os mortos sem enterro.” O cristianismo cresce pela propaganda dos beneficiados e não pelo trabalho dos bispos ou presbíteros; a propaganda de boca em boca pelos beneficiados é que propaga a fé cristã.
Hoje a comunidade cristã está inserida no sistema do capital pela pregação da salvação individual desvinculada da proposta da participação na construção, a partir da fé em Jesus Cristo, desta nova sociedade não capitalista que é o Reino de Deus. Pior ainda é a teologia da prosperidade que abertamente legitima o capital pela promessa do enriquecimento. Lembrando que Jesus não fala muito bem do enriquecimento, segundo Mt 19.
Temos que destruir esta teologia oficial da igreja cristã da salvação individual numa comunidade que não quer a revolução do Reino de Deus, que parte do arrependimento e da fé no evangelho, conforme Mc 1.15. Temos que destruir a estrutura das comunidades atuais que não são revolucionárias do Reino de Deus. Vivemos numa comunidade que não vive e não prega a pregação de Jesus Cristo: o Reino de Deus. Destruímos a essência do Evangelho de Jesus Cristo que é o Reino de Deus que é uma nova sociedade não capitalista que a comunidade oficial da igreja não admite sob hipótese alguma. Jesus Cristo foi crucificado por causa de sua vivência e de sua pregação do Evangelho do Reino de Deus, pois ameaçava a sociedade vigente como nos fala Jo 11.47-48: “Então, os principais sacerdotes e os fariseus convocaram o Sinédrio; e disseram: Que estamos fazendo, uma vez que este homem opera muitos sinais? Se o deixarmos assim, todos crerão nele; depois, virão os romanos e tomarão não só o nosso lugar, mas a própria nação”.
Quem pregar o Reino de Deus como uma proposta de nova sociedade não capitalista é expulso da comunidade, pois não se permite a pregação da essência do Evangelho: o Reino de Deus, mas apenas o Jesus desencarnado e legitimador do mundo que ele veio para mudar pela construção coletiva do Reino de Deus, que é uma sociedade coletiva, igualitária, portanto não classista, e automaticamente sem Estado, pois o Estado é um instrumento da sociedade classista para reprimir e explorar a classe subalterna, hoje, a classe trabalhadora. Por isso as propostas conciliares da IECLB dos anos 80 não foram implementadas, pois a função da teologia oficial é legitimar e reproduzir a ideologia do capital; mesmo sendo estas propostas teologia oficial, esta é a contradição. Por serem perigosas e ameaçadoras ao capital não foram encaminhadas e nem implementadas pela direção da igreja. Só para lembrar de parte da mensagem do Concílio Geral de 1982: “assumir e defender com responsabilidade evangélica as reivindicações dos movimentos sociais, fazendo um trabalho de base com associações de bairros, atingidos por barragens, colonos sem terra, bóias-frias, sindicatos, proteção ambiental, além de inúmeras outras formas de atuação onde o amor de Deus quer se tornar vivo e real entre as pessoas”. Isto é ou não é uma ameaça ao capital? Por isso esta proposta de ação missionária deve ser esquecida. Missão para a igreja é apenas aumentar o número de fiéis e não participar junto com o movimento popular, sindical e político partidário da construção do Reino de Deus que propõe uma nova sociedade anticapitalista.
O Evangelho da Cruz de Cristo pressupõe a ruptura. A ressurreição é a ruptura com a opressão do sistema e seu Estado: é desfazer o que o Estado fez. O Estado ordenou a morte e Deus rompeu esta lei de morte e a própria morte com a ressurreição de Jesus Cristo. Por isso Ap 13 fala que a besta (imperador, representante do Estado) recebeu seu poder do dragão: o diabo. João no Apocalipse deixa claro que o Estado opressor é instrumento do diabo, pois legitima o sistema econômico classista. Toda a sociedade de classes é coisa do diabo, portanto o capitalismo é instrumento do diabo para tentar impedir a construção do Reino de Deus. Quando Mc 1.15 diz: arrependei-vos – isto quer dizer ruptura com a prática de vida do sistema no qual se vive e - crer no evangelho - é a nova orientação prática de vida construída a partir da ruptura exigida pelo Evangelho. Crer no Evangelho é não crer mais na teologia do Templo de Jerusalém e nem na teologia dos deuses romanos. Crer no Evangelho é ruptura teológica que produz uma nova prática teológica que por sua vez produz uma nova prática social, pois a função da teologia não é apenas explicar Deus, mas é apontar para a participação na construção desta nova sociedade que Deus quer que seja construída, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. “E o Verbo se fez carne”, quer dizer que Deus se fez ação dentro da luta de classes que havia na sociedade palestina optando em tomar partido na e a partir da classe camponesa. Deus não é neutro dentro da luta de classes que há na sociedade. Ele sempre se coloca ao lado e a favor da classe oprimida para organizá-la a acabar com a sociedade de classes. A burguesia na igreja sempre prega a neutralidade necessária da igreja para que ela não opte em se colocar contra a burguesia. E em se dizendo neutra ela deixa de ser neutra, pois não defende os fracos e oprimidos pelo capital.
O Reino de Deus está próximo diz Mc 1.15 que pressupõe esta Metodologia:
Prática – arrependei-vos da velha prática do mundo
Teoria – crede no evangelho e não no Templo e nos deuses romanos e no Estado divinizado
Prática – produz a nova criatura com uma nova prática, a do Reino de Deus, que é a nova sociedade sem classes e igualitária onde os meios de produção não são mais propriedade privada, mas são colocados à serviço do coletivo (At 2 e 4).
Teologia da Prosperidade e Teologia da Salvação Individual não pressupõe ruptura com o sistema deste mundo, no máximo produz a ruptura da ética individual: deixo de beber e de ir na zona.
Ressurreição é ruptura com a determinação legal do sistema repressivo do Estado que legitima o sistema econômico. Fé que traz salvação tem que ter ruptura – prática de ruptura com o sistema vigente para construir um novo sistema que Jesus chama de reino de Deus que constrói a sociedade sem classes, igualitária e sem Estado.
A igreja oficial não requer e nem prega a fé que pressupõe a ruptura com o sistema econômico e seu sistema político-ideológico/teológico de dominação como nos mostra o Êxodo: sai da situação de opressão e constrói uma nova sociedade sem classes, sem estado e sem templo nas montanhas da Palestina. A ressurreição é ruptura por excelência com o sistema que produz a morte e com a própria morte (1 Co 15.19-28) e produz uma nova prática social e eclesial: a comunidade cristã, onde todos são irmãos que praticam a diaconia (Tg 1.27), esta é a nova criatura (2 Co 5.17) que brota da fé. Tg 1.27 diz que a diaconia está junto com a ruptura de não se contaminar com o sistema do mundo. Não basta apenas praticar diaconia, mas ela precisa ser feita porque o mundo constrói as vítimas que a diaconia acolhe e por isso este mundo tem que ser mudado. Este não poderá ser mudado se nos deixarmos moldar por ele, nos deixando contaminar pela sua proposta de vida que diminui a vida. A diaconia tem que cortar o mal pela raiz: mudar o mundo e sua dinâmica que produz as vítimas que a comunidade acolhe. Se deixar moldar pelo mundo é ajudar a produzir as vítimas que a comunidade acolhe pela sua prática diacônica. Salvação por graça e fé requer e leva à oposição automática ao sistema deste mundo porque nós propomos o Reino de Deus como opção frente ao reino do mundo, pois a salvação provém da proposta do Reino de Deus e não do reino do mundo. A fé em Jesus Cristo salva, o capitalismo não salva. No entanto, a comunidade vive como se o capitalismo salvasse.
A prática eclesial hoje é de conformação com este século que é exatamente o oposto da proposta do Evangelho do Reino de Deus. O máximo que a igreja permite é a ruptura da prática ética-cultural e individual. “Eu me converti” (que é heresia, pois é o Evangelho que me converte. A conversão vem de fora de mim, como também a salvação. Se eu me converto então isto é obra minha e não preciso mais de Jesus para obter minha salvação.) e deixei de beber, de fumar e de ir na zona, mas continuo a reproduzir ou a legitimar a prática espoliativa econômica do capitalismo. Isto é incoerência. Pela minha conversão individual desvinculado de qualquer compromisso de luta coletiva contra o sistema do mundo sou recompensado pela minha compreensão de fé e conversão com o enriquecimento individual. É uma conversão moral e ética sem moral e sem ética porque o capitalismo não tem ética. A ética do capitalismo é não ter ética, pois a essência do capitalismo está na exploração e depredação da mão de obra e da natureza.
A prática de conformação com este século presente na comunidade é: apoiar a construção das grandes barragens que dão lucro ao capital à custa dos camponeses que são expulsos de suas terras; a comunidade cristã não apóia a Reforma Agrária; a comunidade não apóia o movimento popular que se propõe o que o Reino de Deus propõe: construir uma nova sociedade não capitalista, sem classes sociais, igualitária e sem Estado, pois o Estado pressupõe a existência de classes sociais antagônicas; a comunidade normalmente não abre seu espaço físico para o movimento popular se reunir para estudar e se organizar; a comunidade aceita ou pede dinheiro do Estado para construir ou reformar seus prédios e com isto é cooptado por este século; a comunidade apóia o capitalismo na sua essência e não admite a crítica e prática contra o sistema.
Temos que nos encontrar para discutir tudo isto e muito mais como ‘esquerda’ na igreja.
Por isso proponho um encontro de dois dias em 2012 ou 2013 que reunirá quem se considera de ‘esquerda’ na IECLB e quer participar da construção de um novo projeto de igreja na IECLB.

Nenhum comentário:

Postar um comentário