29 de novembro de 2011

Resoluções Políticas da IV Assembleia Nacional da Consulta Popular

Aqui podem ler, para terem um gostinho do texto, a parte da FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA do texto editado em livro das Resoluções Políticas da IV Assembleia Nacional da Consulta Popular

Aqui vai o endereço para fazer os pedidos da “Cartilha 21 – Resoluções Políticas – IV Assembleia Nacional”

Consulta Popular
Rua da Abolição, 227 – 2º Andar
01319-010 – São Paulo/São Paulo
Pedidos do livro: secretarianacional@consultapopular.org.br
Telefone: (11) 3104-6746

SUMÁRIO
IV ASSEMBLEIA NACIONAL DA CONSULTA POPULAR “CARLOS MARIGHELLA”
HISTÓRICO DA CONSULTA POPULAR
SOMOS A CONSULTA POPULAR
Nascimento e consolidação de um campo político
De 1999 a 2000 Importantes construções internas e externas
A atualidade dos Cinco Compromissos do Projeto Popular
Expressão Popular – 10 anos na batalha das ideias
2001 a 2003: Intensas atividades em tempos de refluxo e fragmentação
2004 a 2010 A Retomada da Consulta como instrumento Político
FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
I. O povo brasileiro
II. A formação do Estado Escravista Moderno no Brasil
III. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil
IV. O capitalismo Brasileiro nos últimos 30 anos
V. Atual desenvolvimento do capitalismo no Brasil e na América Latina: Mudanças e desafios
VI. Imperialismo
APROFUNDAMENTO DA ESTRATÉGIA
I. O que é estratégia?
II. Como se constrói a estratégia?
III. É possível uma Revolução no Brasil?
IV. Qual é a característica desta Revolução?
V. Qual a questão central da Revolução?
VI. Quais são os seus prováveis desafios?
VII. Se a Revolução é Socialista por que falar em tarefas nacionais, democráticas e populares?
VIII. Qual a tarefa central dos revolucionários?
IX. Mas afinal, o que é o Projeto Popular?
X. Como construir o programa do Projeto Popular?
XI. O que é poder popular?
XII. E qual é via da Revolução?
XIII. O que é o Socialismo?
XIV. Quais as medidas e condições necessárias para construção do socialismo?
XV. Qual a diferença entre socialismo e comunismo?
XVI. Como se definem as classes sociais?
XVII. Qual o sujeito principal da revolução?
XVII. E seus aliados?
XIX. E os setores médios?
XX. Qual estágio de consciência e quais as tarefas do proletariado nesta conjuntura?
NOSSA TÁTICA
I. O que é a tática?
II. Como se determina a tática?
III. Como entender a atual crise capitalista?
IV. Quais os impactos e como o governo Brasileiro enfrentou a atual crise capitalista?
V. Qual a caracterização deste período histórico para a luta de classes?
VI. O que significou a vitoria de Lula neste contexto?
VII. Quais as características dos 8 anos do Governo Lula?
VIII. Como se comportou a classe dominante brasileira neste período?
IX. E as eleições de 2010?
X. E as perspectivas para o governo Dilma?
XI. Qual a nossa posição sobre o conceito de desenvolvimento?
XII. Como as forças populares se posicionaram diante desta conjuntura?
XIII. E a nossa posição diante desta conjuntura?
XIV. Qual o centro da Nossa Tática?
XV. Quais os passos necessários para implementação desta tática?
XVI. Qual a agenda da classe dominante nesta conjuntura?
XVII. Quais são os nossos desafios para a construção do Projeto Popular?
XVIII. Qual a agenda de lutas unitárias do Projeto Popular?
FRENTES E BANDEIRAS PRIORITÁRIAS
I. Movimento Operário e Sindical
II. Feminismo
III. Questão negra
IV. Juventude e Movimento Estudantil
V. Questão Ambiental, Energia e Petróleo
Energia e o nosso modelo para o mundo
VI. Saúde
VII. Capitalismo e homofobia
VIII. Democratização da Comunicação
IX. Campo
X. Assembleia Popular e lutas populares
XI. A ALBA como Instrumento de Integração Popular Continental

FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA
A realidade brasileira exige a curada atenção e incansável estudo. “E como realidade objetiva, tomada por ponto de partida, requer a análise histórica aprofundada de suas grandes características.”
(Carlos Marighella – Porque resisti à prisão)

I. O povo brasileiro
“O povo brasileiro tem uma longa experiência no combate permanente que trava com as classes dominantes, visando obter o triunfo da democracia (não a democracia burguesa formal, mas aquela que mais de perto diz respeito à realidade econômico-social) e, simultaneamente, objetivando chegar ao aniquilamento do imperialismo e do latifúndio.”

1. O território brasileiro foi ocupado, ao longo de aproximadamente 40 mil anos, por povos que vieram da Ásia e aqui se reproduziram em agrupamentos sociais, clãs familiares e tribos que se constituíram como povos originários. Eles povoaram quase todo o território, em especial a região litorânea e margens dos rios, e viveram durante esses anos todos sob a formação socioeconômica do comunismo primitivo. Alguns se mantiveram nômades, outros se consolidaram em territórios definitivos. Em 1500 havia aproximadamente 5 milhões de nativos, divididos em aproximadamente 300 povos diferentes, com culturas distintas.
2. A conquista do território brasileiro pelos portugueses, no século XVI, expressou um confronto entre duas formações sociais diferentes: a sociedade feudal ibero-lusitana, pioneira do mercantilismo, diante da sociedade tribal e comunista primitiva dos povos indígenas. Ao encontrar aqui os povos originários, o colonizador europeu estabeleceu tensas relações marcadas pelo conflito e pela luta entre as duas forças que tinham interesses opostos.
3. Ao longo de quase quatro séculos, o projeto de exploração das terras brasileiras pelo conquistador europeu trouxe aprisionados da África aproximadamente 7 milhões de africanos. Como resultado das práticas desumanas e escravistas do modelo invasor, em meados do século 19, a população estimada em todo o território brasileiro era de 5 milhões, dos quais a metade constituída por trabalhadores escravizados.
4. Num contexto de constante conflito social e enfrentamento se formou um povo novo a partir dos grupos humanos que o co¬lonizador português (mestiço) encontrou neste território (povos originários) ou transplantou para cá (africanos). O povo brasileiro se constituiu, portanto, na contradição e na luta contra o projeto de dominação do conquistador europeu. Compreendemos as caracte¬rísticas fundamentais desse contingente humano filho da modernidade. Vimos que ele é também um povo-nação, reconhecendo-se como tal, falando uma mesma língua e habitando um território bem definido.
5. Ao mesmo tempo em que se aprofundava a escravidão, multiplicavam-se os levantes e enfrentamentos. Nossas revoltas foram intensas e marcaram cada momento de nossa história. A violência e a postura genocida dos invasores europeus constituem uma característica marcante no processo de formação da sociedade brasileira. É este o legado que a classe dominante tem para oferecer ao povo brasileiro: o esmagamento de nossa identidade, o massacre de nossas raízes históricas.
6. Portanto, a memória coletiva de nosso povo traz a marca da lembrança de uma repressão implacável a que foram submetidos todos aqueles que foram à ação e tiveram iniciativa de lutar. Esse é um elemento forte e presente em nosso imaginário coletivo. Não podemos desconsiderá-lo na construção de uma estratégia transformadora. Exatamente por isso é fundamental identificar onde residem nossas energias.
7. Apesar de tanta opressão e de enfrentarmos constantemente a tentativa de eliminação da nossa identidade, o povo brasileiro construiu uma cultura rica, criativa e potente. Uma cultura de síntese que nos permite recordar quem somos. Uma cultura que representa a potência e a energia que constroem nossa identidade e autoestima.
8. Contemporaneamente, nosso povo é portador das raízes do Brasil, um patrimônio cultural que se manifesta cotidianamente nos hábitos, costumes, tradições, artes e manifestações de rebeldia frente à exploração da classe dominante. Uma cultura que é nossa razão de existir.
9. Resgatar a importância do conceito de povo brasileiro não significa negar a divisão da nossa sociedade em classes sociais como elemento central de nosso processo histórico. Ao contrário, ao falar em povo brasileiro, estamos reforçando a compreensão de que nossas classes dominantes sempre privilegiaram compartilhar, de forma associada e subordinada, com as classes dominantes internacionais, a pilhagem de nossas imensas riquezas e a exploração do nosso povo. Ou seja, jamais tiveram interesse em construir um projeto de nação que não fosse apenas uma mera caricatura. Nosso povo, que sempre contou apenas com sua força de trabalho, expressa nas suas lutas o melhor da tradição proletária. Nossa identidade, valores e cultura se unem à tradição revolucionária da classe trabalhadora de todo o mundo. Pátria e nação somente adquirem sentido num Projeto Popular e concebidas a partir do processo histórico de nosso povo não se contrapõem ao internacionalismo proletário.
10. Compreender o conceito de povo brasileiro não é uma questão secundária. Esse conceito é central para a formulação de um Projeto Popular para o Brasil. Além disso, representa, por si só, uma demarcação com a cultura eurocêntrica que vem permeando nosso pensamento de esquerda. Partimos do povo brasileiro, razão e sentido de nossa luta.
11. Debruçados em ampla visão da nossa formação histórica, nos percebemos como um povo que ainda está no começo de sua própria história e cuja identidade – por sua gênese e sua trajetória – não se pode basear em etnia, religião, vocação imperial, xenofobias ou vontade de isolar-se.
12. Historicamente, a classe dominante brasileira sufocou e não permitiu o direcionamento das potencialidades do nosso povo para a construção do Brasil nação-para-si. Eis porque falamos em uma crise de destino de uma nação inacabada, de uma crise de destino do povo brasileiro enquanto necessidade de viver-para-si. Completar esse processo, ou ainda, na linguagem de Caio Prado, realizar a Revolução Brasileira nos impõe uma dura luta pelo poder político na sociedade brasileira.

II. A formação do Estado escravista moderno no Brasil
“Não ficar de joelhos, que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação devem
ser obrigados a ser livres, quando as algemas forem quebradas.”
(Carlos Marighella – Rondó da Liberdade)

13. A chegada invasora dos colonizadores europeus ao nosso território, em 1500, está diretamente relacionada à necessidade de formação e expansão do mercado mundial. A colonização do território brasileiro não foi, portanto, um fato isolado ou mero produto do acaso. Faz parte de uma totalidade diretamente ligada ao crescimento do comércio mundial de mercadorias impulsionado pelo movimento de expansão marítima dos países da Europa. As navegações eram financiadas por comerciantes, ávidos pelas altas taxas de lucro desse nascente comércio.
14. Para atender a essas necessidades, as monarquias absolutistas europeias se somaram à burguesia nascente da época e usaram seu poderio militar para transformar os territórios invadidos – Ásia, África e América – em colônias comerciais sob seu controle político, jurídico e econômico. Nosso território foi dominado e se transformou numa colônia de Portugal. As riquezas naturais e os povos que aqui viviam passam a ser dominados pelos interesses de Portugal. Tais interesses buscaram: a) subordinar o povo e transformá-lo em mão de obra passível de exploração; b) usar o território, as riquezas e essa mão de obra para produção de bens necessários à metrópole.
15. Fornecer produtos primários e, assim, complementar a economia da metrópole portuguesa objetivando fortalecer seu peso no lucrativo mercado mundial em formação. Foi essa função que coube ao Brasil na divisão internacional do trabalho. A diversidade de bens naturais, clima quente e úmido e terras de boa qualidade contribuíram para potencializar o modelo agroexportador.
16. O sistema político-econômico que caracterizou a formação social brasileira nesse período foi fundado na escravização da força de trabalho dos povos originários e, principalmente, na escravi¬zação da força de trabalho africana que potencializava o lucrativo tráfico de escravos que, durante muito tempo, foi a atividade mais lucrativa do território.
17. Nascemos, dessa forma, como uma colônia de exploração. Para sustentar o empreendimento colonizador, o território brasileiro e as sociedades que ele abrigava precisaram ser completamente direcionados para atender aos interesses de Portugal. Tudo o que existia – a natureza e as pessoas – foi instrumentalizado para fins mercantis, tendo como horizonte o mercado mundial em formação. Nossa exploração econômica foi planejada, com cuidadosa escolha dos produtos rentáveis e das tecnologias mais avançadas da época. Gigantescos recursos foram mobilizados nas principais praças financeiras da Europa. O ambiente natural preexistente foi adaptado ao projeto colonizador com a substituição das florestas de espécies nativas pela nova geometria das plantações de espécies transplantadas, associada à extração e queima de madeira, em um enorme entorno, para produzir energia.
18. O movimento histórico da colonização moderna, e o Brasil como parte dele, constituiu um mecanismo de acumulação originária (ou primitiva) do capital que estabeleceu as bases, ao longo do tempo, para a formação e desenvolvimento do modo de produção capitalista na Europa e do capitalismo dependente nas colônias de exploração. Tudo estava voltado para o lucro e para a acumulação primitiva de capitais.
19. Por acumulação primitiva de capital na formação social brasileira concebemos as atividades que representam processos de acumulação do capital através dos diversos mecanismos ainda não essencialmente capitalistas, ou seja, ainda não fundados na produção de mais-valia mediante exploração do trabalho assalariado livre.
20. Constatamos, por um lado, um modelo de produção sustentado nos grandes ciclos agrícolas – curiosamente vindos de fora e enviados para fora – como o cultivo da cana-de-açúcar, do algodão e a implantação da pecuária. E, por outro lado, pela exploração e extração das riquezas naturais como ouro, diamante e prata aqui encontrados. Esse modelo se sustentava dentro das regras do pacto colonial imposto pela metrópole portuguesa: os plantadores escravistas eram contemplados com um mercado de consumo direcionado para seus produtos agrícolas e da intermediação de alguma potência europeia para conseguir outros mercados, já os mercadores europeus eram contemplados com um mercado destinado para os produtos europeus que eles comercializavam.
21. Esse modelo agroexportador era dinamizado pelo sistema plantation que possuía as seguintes características: a) concessão de grandes extensões de território para a produção em larga escala de gêneros comerciais destinados à comercialização no mercado mundial; b) utilização das mais modernas técnicas de exploração agrícola; c) utilização da mão de obra escravizada para o trabalho nas minas, na agricultura e nos serviços domésticos da “casa-grande” e da vida urbanizada.
22. As classes sociais que expressaram o antagonismo estrutural desse período histórico de nossa formação social eram: por um lado, o escravo rural, o escravo doméstico e o escravo artesão. A ampla maioria da sociedade era composta por essas três classes sociais. Por outro, constata-se o fazendeiro escravista, o mercador de escravos, o rentista escravista urbano (aluga escravos artesãos) e o proprietário de escravos domésticos. No entanto, as classes sociais fundamentais e que, portanto, expressam a contradição fundamental da sociedade são o fazendeiro escravista e o escravo rural. Os povos originários foram cada vez mais encurralados para o interior do país e tendo sua existência cada vez mais ameaçada na medida em que se afirmava pela força do projeto do colonizador. Constatam-se também os mestiços, que sobreviviam com qualquer trabalho, em especial relacionados com serviços. Importante ressaltar o papel dos jesuítas, a serviço da Igreja Católica, na “domesticação” dos indígenas e na disseminação do catolicismo como religião dominante na sociedade brasileira. Identificamos também os funcionários provenientes de Portugal, que vinham contribuir na composição do corpo burocrático do aparelho de Estado.
23. O pacto colonial vai entrar em crise e romper-se a partir do momento em que: a) o monopólio comercial da metrópole entra em contradição com os interesses da nova classe dominante europeia, particularmente a burguesia industrial inglesa, que precisava de muitos mercados consumidores para seus produtos, matérias-primas e alimentos a baixo custo; b) o mercado da metrópole passou a não conseguir absorver a totalidade dos produtos coloniais e a classe dominante metropolitana não mais conseguia distribuí-los nas condições favoráveis.
24. No caso brasileiro, fatos como a abertura dos portos (1808), a independência política (1822), a extinção do tráfico de escravos africanos (1850) contribuíram para a constituição do capitalismo em nosso país. O avanço da acumulação primitiva de capital foi favorecido por um processo que se expressou na formação de um Estado nacional que unificou regras de comércio que beneficiaram a burguesia mercantil; no fim da intermediação parasitária do mono¬pólio do comercio português; desenvolvimento de uma burocracia estatal; numa receita de impostos própria do país.
25. Na segunda metade do século 19, já pressentindo o fim do trabalho escravizado e preocupada com suas consequências, a Coroa Imperial fez ampla campanha na Europa para atrair mão de obra de camponeses pobres. Migraram para o Brasil, entre 1875 e 1914, 1,6 milhões de camponeses pobres, para, intencionalmente, substituir os 2 milhões de trabalhadores escravizados. Por outro lado, o Império brasileiro promulgou a Lei nº 601, de 1850, que introduzia a propriedade privada da terra, em substituição ao sistema de concessão de uso, transformando-a em mercadoria e liberando-a como objeto de compra, venda e reserva de valor.
26. No final do século 19, instalou-se a crise do modelo escravo¬crata. Contribuíram para essa crise: a) as revoltas dos trabalhadores escravizados que fugiam e formavam os quilombos, causando grandes prejuízos às fazendas; b) pressão internacional do império inglês, que combateu o tráfico de trabalhadores escravizados da África; c) e o próprio desenvolvimento do capitalismo industrial na Europa, assentado sobre a exploração do trabalho assalariado fabril, como principal fonte de acumulação de riquezas. Com o fim legal da escravidão em 1888, o modelo atingiu sua crise terminal.

III. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil
27. No final do século 19 e início do século 20, constatamos uma transição marcada por um conjunto de transformações econômicas e políticas que lançou as bases para o avanço do capitalismo no Brasil. O conteúdo fundamental dessa transição reside, portanto, na abolição da escravatura em 1888, na proclamação da República em 1889 e na Constituição Republicana de 1891.
28. Essa transição que consolidou o avanço do capitalismo no Brasil foi hegemonizada pelo setor agrário-exportador apoiado em formas camponesas dependentes que continham aspectos pré-capitalistas amplamente disseminados. Surgia então uma nova aliança de classes entre a velha oligarquia rural, a nascente burguesia industrial, e os capitalistas industriais de capital internacional que vieram dos Estados Unidos e da Europa implantar suas fábricas, em busca de mão de obra barata.
29. A implantação da indústria no Brasil, realizada tardiamente em relação à revolução industrial inglesa – meados do século 18 – foi resultado de investimentos de três formas básicas de capital. Primeiro, a transformação do capital da oligarquia rural, originário das exportações agrícolas, que foram investidos em fábricas. Segundo, o Estado brasileiro utilizou uma grande parte dos recursos públicos para realizar investimentos nos transportes e na indústria, seja na indústria básica, como a siderurgia, seja na indústria de bens de consumo, associado a capitalistas privados. E, terceiro, foram os capitalistas estrangeiros que trouxeram suas indústrias e investiram sozinhos ou associados a outros capitalistas, como acima descrito.
30. Nos anos 20, a contração da demanda externa do café e a queda dos preços internacionais favoreceram a crise do modelo agrário-exportador e de seu padrão de financiamento externo. Esse contexto foi acompanhado de crise política e cisões no seio das oligarquias agrárias, que possibilitaram o êxito do movimen¬to político-militar de 1930 liderado por Getúlio Vargas. Sem a participação popular diretamente nesse processo de mudanças, constitui-se a partir desse momento um rearranjo do bloco de poder no qual nenhuma fração da classe dominante do período anterior foi totalmente excluída. A burguesia industrial, mesmo tendo uma posição conservadora frente ao movimento político-militar de 1930, foi quem mais se beneficiou. Iniciava-se um novo ciclo de acumulação capitalista no qual o Estado teve uma participação fundamental como agente indutor da industrialização e do desenvolvimento nacional.
31. De novo, a expansão da indústria no Brasil obedeceu a uma lógica dialética de associação subordinada dos interesses dos capitalistas brasileiros com o capitalismo internacional, que já se encontrava em sua fase imperialista. Isso fez com que nossa industrialização fosse dependente. As empresas transnacionais vinham ao Brasil como uma necessidade para seguir ampliando seus mercados, em busca de mão de obra barata, para depois reexportar seus produtos para a metrópole e obter assim maiores taxas de lucro. E transferiam também, para as fábricas no Brasil, as máquinas e ferramentas (capital constante) já obsoletos tecnologicamente em seus países e já amortizados nos processos produtivos anteriores. Essas máquinas usadas entravam como investimento estrangeiro e geravam uma dívida externa das filiais, resultando em mais uma forma de transferir riquezas às suas matrizes, por meio do pagamento desses empréstimos.
32. Nesse novo modelo de produção, o polo central de acumulação capitalista passou a ser a indústria. Ou seja, a exploração do trabalho operário e a ampliação do mercado local de bens e serviços. Assim, a agricultura passou a se subordinar a esse polo hegemônico de acumulação do capital. A indústria passou a produzir os insumos para a agricultura, gerou um mercado interno de alimentos formado pela nascente classe operária fabril e pelo desenvolvimento da urbanização acelerada da sociedade brasileira.
33. Para que essa aliança estratégica entre a indústria e a agricultura fosse viabilizada e formasse um mercado interno forte e estável que potencializasse o consumo das classes populares (como ocorreu nos países centrais do capitalismo nos séculos XIX e XX), teria que ter ocorrido um processo de reforma agrária fundado na implantação da agroindústria. Essa aliança proporcionaria um ganho de produtividade maior para a indústria brasileira, assim como possibilitaria agregar valor às matérias-primas produzidas no campo. No entanto, a burguesia brasileira, sócia menor e subordinada ao imperialismo, não priorizou a construção de um mercado interno forte e estável. Ao contrário, combateu qualquer possibilidade de reforma agrária em nosso país. Ao fazer essa opção, a classe dominante brasileira estimulava o êxodo rural, reforçava o exército industrial de reserva nos centros urbanos e, assim, rebaixava o valor da força de trabalho. Constitui-se um descompasso entre o desenvolvimento da indústria e a nossa agricultura. Nossa “vocação agrícola” subordinada ao mercado externo continuou e contribuiu para que nossa industrialização assumisse um caráter dependente.
34. Por outro lado, a partir da década de 1950, por influência das transnacionais europeias e estadunidenses, passou-se a adotar a chamada “revolução verde”, que significava a adoção de técnicas agrícolas totalmente dependentes da indústria de agrotóxicos, de fertilizantes químicos e da mecanização no processo produtivo agrícola, aumentando ainda mais a dependência da agricultura em relação aos insumos produzidos pela indústria, como se esses insumos fossem fundamentais para o aumento da produtividade física das lavouras e do trabalho na agricultura. De fato, eles logra¬ram aumentar em muito a produtividade da agricultura, mas isso não significa que eram as únicas formas possíveis de aumentar a produtividade da lavoura e do trabalho.
35. No período de transição do modelo agroexportador para a industrialização dependente, o processo de mudanças no mundo do trabalho fabril e agrícola havia levado ao surgimento de duas novas classes sociais no Brasil. Nas cidades, desenvolveu-se, de forma vertiginosa, a classe operária. E, no campo, tivemos o nascimento da classe social dos proletários rurais, que passaram a viver do trabalho assalariado, assim como surgiu o campesinato como uma nova classe social. Os camponeses brasileiros se conforma-ram a partir de duas vertentes. De um lado, os camponeses pobres migrantes da Europa, que compraram parcelas de terra do Estado, ou se associaram aos fazendeiros do café e da cana, reproduzindo-se como camponeses parceiros, no regime chamado de colonato. E, de outro lado, de Minas Gerais para o Norte, se consolidaram os camponeses originários dos mestiços, que, não tendo direito a comprar terra, embrenhavam-se sertão adentro, interiorizando-se, e, por isso, receberam o apelido original de “sertanejos”. E lá, sem serem proprietários das terras, mas ocupando terras públicas, se dedicavam à agricultura de subsistência e se reproduziam como camponeses, com trabalho familiar, vendendo os excedentes nas feiras e mercados locais.
36. Ao longo do século 20, o processo capitalista industrial to¬mou conta da agricultura brasileira e formou então uma sociedade rural mais complexa, formada basicamente pelas seguintes classes sociais: os grandes proprietários de terra, que acumularam grandes extensões de terra, desde a lei de 1850. Essa burguesia agrária proprietária foi alcunhada de fazendeiros, latifundiários e oligarquia rural. Esse segmento representa, hoje, ao redor de 30 mil famílias. Em seguida, formou-se uma pequena burguesia agrária, moder¬nizada pela industrialização e totalmente dependente do mercado capitalista, formada pelos médios proprietários de terra, de áreas entre 100 e 1000 hectares. Esse segmento representa ao redor de 300 mil famílias. Depois, temos os camponeses em geral, os pequenos proprietários de terra, ou arrendatários abastados, com menos de 100 hectares. Eles representam hoje ao redor de 5 milhões de famílias. Um estudo sociológico mais apurado pode detectar que, entre eles, há camponeses abastados, medianos e há camponeses pobres, semiproletários, e que o processo capitalista os marginaliza e os expulsa sistematicamente para as cidades. Temos também a classes dos camponeses mais pobres, despossuídos de terra, que em geral trabalham nas terras da burguesia e pequena burguesia agrária. São os chamados sem-terras, que vivem como posseiros pobres, arrendatários, meeiros, filhos adultos de camponeses pobres. Representam um contingente de 4 milhões de famílias. E, finalmente, temos o proletariado rural, formado pelos trabalhadores assalariados na agricultura, alguns de forma permanente, outros de forma temporária, combinando sua condição de camponeses sem terra e com pouca terra com a condição de assalariados temporários.
37. Na década de 1960, o modelo de industrialização dependente (substituição de importações) enfrentou sua primeira crise cíclica. Caíram os níveis de produção e emprego. A inflação alcançou níveis elevados. Gerou-se um processo de debate na sociedade e, ao mesmo tempo, um processo de mobilização de massas. Esse clima de crise e mobilização das massas populares foi beneficiado por um contexto internacional de uma correlação de forças favorável às classes trabalhadoras de todo o mundo, que havia produzido processos revolucionários e anticapitalistas em vários países da periferia do capitalismo. Havia um clima internacional de mudanças gerado pela ofensiva da classe trabalhadora e dos povos oprimidos, que levaram a revoltas populares e vitórias na China (1949) na Guerra do Vietnã (1950-1975), nos processos de libertação nacional das colônias africanas durante o período de 1960-1975. E, na América Latina, também havia um ascenso dos movimentos de massa, com teses revolucionárias, que levaram a revoltas populares na Bolívia (1950-1954) Guatemala (1954), Cuba (1956-1959), República Dominicana (1963-1964) e em outros países.
38. Esse contexto nacional e internacional produziu, no período de 1960, um amplo debate na sociedade e agitação nas classes trabalhadoras sobre a saída para a crise brasileira. Por um lado, os nacionalistas com viés anti-imperialista inspirados nas propostas da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e o Caribe), argumentavam que o modelo agroexportador e os mecanismos concentradores de renda, principalmente a estrutura fundiária, estavam na origem da perda de dinamismo do desenvolvimento brasileiro. Por isso, para a economia superar a crise era necessário desenvolver a industrialização de bens de consumo, interiorizando as fábricas, mas combinando com distribuição de renda e reforma agrária, para ampliar o mercado consumidor nacional. Nesse sentido, era fundamental que o Estado viabilizasse as reformas de base. Por outro, os economistas liberais argumentavam que a retomada do cresci¬mento seria resultado da atuação da iniciativa privada em condições econômicas favoráveis, que seriam criadas pelos próprios fatores do mercado e não pela intervenção “danosa” do Estado. Importante também destacar o posicionamento dos setores da esquerda, que reivindicavam a teoria da dependência de viés marxista que expres¬savam propostas mais socializantes. E, finalmente, nesse embate, as classes dominantes brasileiras consolidaram sua aliança com o capital estrangeiro, em especial dos Estados Unidos, articularam-se com as Forças Armadas e aplicaram um golpe de Estado, que resultou num regime militar durante o período de 1964-1984.
39. Durante a ditadura militar, o capital internacional fez grandes investimentos na infraestrutura econômica e social do país, na construção de estradas, portos, e também nas indústrias, gerando então um novo ciclo de crescimento econômico. Mas, como consequência do aprofundamento da subordinação da nossa economia ao imperialismo, resultou num maior domínio das empresas transnacionais nos setores mais lucrativos da economia e numa enorme dívida externa, que saltou de 3 bilhões para 100 bilhões de dólares em apenas 15 anos. O capital internacional encontrou, então, uma nova forma de explorar nossa sociedade como um todo. Não era apenas por meio dos baixos salários pagos à mão de obra nas fábricas, mas, agora, se exigia que o governo transferisse para o exterior, em especial aos bancos privados e públicos, em nome de toda a sociedade, vultosos recursos na forma de pagamento de juros, amortizações e royalties para as empresas transnacionais.
40. No início dos anos de 1980, o modelo de industrialização dependente entra em crise. Surge o desemprego estrutural, que passa a marginalizar enormes contingentes de trabalhadores, acima de 15% da população economicamente ativa, e, portanto, bem acima das taxas naturais de exército industrial de reserva (ao redor de 6% da PEA), que faziam parte da lógica de funcionamento do capitalismo industrial. As dívidas externa e interna se multiplicam, tanto para o setor público, quanto para as empresas capitalistas. Muitas empresas quebram.
41. A crise do modelo de industrialização dependente gerou uma rearticulação de classe e a gestação de uma nova aliança das classes dominantes, agora subordinadas ao capital internacional. Com um agravante: nessa etapa, o capital internacional está hegemonizado pelo capital financeiro. Portanto, na década de 1990, as classes dominantes brasileiras aceitaram a subordinação da eco¬nomia brasileira ao capital internacional financeiro. Esse controle do capital internacional se aprofundou e se ampliou por meio dos bancos internacionais, das empresas transnacionais, dos acordos internacionais, dos organismos controlados pelo capital internacional, como Banco Mundial, FMI, Organização Mundial do Comércio, e das Bolsas de Valores e de Mercadorias instaladas nos países centrais. Ao conteúdo dessa nova aliança chamou-se “neoliberalismo”.
42. Esse novo patamar de acumulação do capital internacional subordinou a economia brasileira e se apoderou das principais empresas estatais e privadas. Desnacionalizaram os principais setores estratégicos, da indústria, do comércio e serviços. E passaram também a controlar a agricultura brasileira.
43. O Estado brasileiro é parte e instrumento do poder das classes dominantes para viabilizar e garantir seu processo de acumulação de capital e suas elevadas taxas de exploração e lucro. Nesses cinco séculos e, mais ainda, a partir do século 20, percebe-se o papel fundamental do Estado brasileiro na construção das bases materiais necessárias para a acumulação e concentração de riquezas pela classe dominante.
44. O Estado brasileiro não se restringe a normatizar as regras do processo de desenvolvimento capitalista; ele utilizou sempre seu poder concentrador de capital, de aglutinador da mais-valia social, arrecadada da população por meio dos impostos, para repassar parte desses recursos como capital financeiro para as empresas. Repassa na forma de financiamento subsidiado para investimentos, utilizando-se do sistema bancário público, Banco do Brasil, BNDES, BNB, Sudene, assim como o Estado foi o gestor da transferência de renda nacional para o capital internacional a partir da década de 1970, no pagamento da dívida externa. E, a partir da década de 1990, o Estado se transformou no principal fiador e viabilizador desse modelo.
45. Finalmente, o capitalismo brasileiro carrega as marcas e as especificidades típicas de uma formação social constituída enquanto colônia de exploração a serviço da acumulação primitiva de capital. Aqui, o processo de desenvolvimento do capitalismo não passou por algumas reformas clássicas das revoluções burguesas que foram aplicadas nos países do centro do capitalismo fundamentais para dinamizar a acumulação de capital. Essas reformas passam pela democratização da propriedade no campo, pelo planejamento e estruturação adequada dos centros urbanos, pelo desenvolvimen¬to industrial soberano, pela estabilidade continuada de liberdades democráticas e a garantia e efetivação de direitos sociais básicos. Esses elementos históricos de nossa formação estão associados à emergência de uma burguesia débil, sócia menor e dependente do imperialismo. Uma burguesia incapaz de levar esse conjunto de reformas à frente e consolidar um projeto de nação. São esses os fatores históricos que atualizam o capitalismo brasileiro enquanto capitalismo dependente.
46. O processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, ao longo desses anos, gerou em nosso território as consequências naturais de sua lógica de funcionamento, que é o desenvolvimento desigual, excludente, porém, combinado. Assim, o capital tomou conta de todas as formas de produção na sociedade brasileira, em to¬dos os setores de bens e serviços e em todas as regiões. No entanto, a natureza do processo de desenvolvimento das forças produtivas, as taxas de exploração e de lucro são diferenciadas.
47. O desenvolvimento desigual e combinado da acumulação de capital demonstra que no capitalismo é impossível generalizar, em todos os países, direitos sociais e democráticos, soberania política e econômica, bem-estar social etc. Isso porque a desigualdade social, assim como a desigualdade entre as nações, é inerente à lógica do capital. Somente o internacionalismo proletário existente em realidades nacionais e concretas, expresso na luta de todos os povos oprimidos, pode levar à frente essas bandeiras numa caminhada em que o horizonte é o fim da exploração do homem pelo homem.
IV. O capitalismo brasileiro nos últimos 30 anos
48. As décadas de 1990 e 2000 apresentaram importantes modificações no capitalismo brasileiro, ainda não incorporadas devidamente em nossas formulações.
49. O movimento de crescimento do exército industrial de reserva brasileiro nas últimas décadas, manifesto no aumento da chamada População Economicamente Ativa, em termos absolutos e em relação à População em Idade Ativa (razão conhecida como taxa de participação), sugere que passamos por um período his¬tórico de elevação da massa de mais-valia produzida em nossa economia.
50. Concomitante ao aumento do exército industrial de reserva, presenciamos a elevação do nível de desemprego na década de 1990 e um amplo processo de reestruturação produtiva perpetrada pelo capital, contribuindo para a elevação da taxa de mais-valia e para a disseminação da informalidade e das formas de trabalho precarizadas.
51. A elevação da massa e da taxa de mais-valia no capitalismo brasileiro das ultimas décadas recorreu ao enquadramento do movimento sindical em uma dinâmica compatível, valendo-se, dentre outras práticas, da perseguição direta aos sindicatos (cujo marco foi a greve dos petroleiros de 1995), da criação de entidades diretamente alinhadas ao patronato (Força Sindical) e do atrelamento das entidades classistas ao aparelho de Estado (reconhecimento das centrais sindicais para divisão do imposto sindical).
52. Este movimento da produção da mais-valia foi a base sob a qual se assentou a mudança na correlação de forças na luta de classes brasileira, tanto na consolidação da hegemonia burguesa nas ultimas décadas, como no descenso dos movimentos de massa.
53. Pela ótica do capital, três mudanças foram de extrema relevância. A primeira foi a intensificação da integração brasileira ao mercado mundial imperialista, seja no âmbito da produção, com o aumento do volume de capital estrangeiro em nosso espaço econômico na modalidade de investimento direto, no da realização, com o aumento do volume e valor das exportações e importações, e no do capital fictício, com a presença de bancos e investidores internacionais no sistema financeiro nacional. Chama ainda a atenção um importante processo vinculado à integração brasileira ao mercado mundial: o gradual aumento da importância das relações comerciais e de investimento com o capitalismo chinês, um dos grandes fatores responsáveis pelo aumento da importância das commodities agrícolas, minerais e energéticas na pauta de exportação brasileira.
54. A segunda mudança sob a ótica do capital diz respeito às frações da burguesia interna. Na década de 1990, consolida-se uma fração ligada à prestação de serviços antes de responsabilidade estatal (planos de saúde e de previdência, educação e segurança privadas etc.), junto a uma brutal transferência de propriedade de capital, antes sob controle estatal, para o grande capital local e internacional durante os processos de privatização, consolidando-os economicamente e desdobrando-se na expansão de empresas ou blocos locais de capitais para outros países, trazendo para nossa realidade a exportação de capitais na forma de multinacionais de origem local. Com isso, o bloco no poder sofre uma modificação da década de 1990 para a de 2000, ampliando a coalizão hegemônica das frações financeiras/capital internacional/agronegócio para incluir o grande capital industrial, ampliação esta respaldada em diferenças importantes no escopo da política econômica1 do período. (1 Grosso modo, enquanto a década de 1990 foi marcada pelo regime de metas de inflação com elevados juros reais, câmbio flutuante com livre mobilidade de capitais e superavit primários em meio ao aumento do estoque de dívida pública, na década de 2000 foram adicionadas a esta lista a expansão da concessão de crédito bancário, no geral, e do BNDES para o grande capital, em particular.)
55. A terceira mudança diz respeito ao ritmo de acumulação de capital, baixíssimo na década de 1990 e que sofre uma aceleração na de 2000, contribuindo não só para uma reversão no nível do desemprego e consequentemente na queda da remuneração da força de trabalho, marcantes na década de 1990, mas constituindo uma das bases materiais do amplo referencial que as massas possuem na figura de Lula, o chamado Lulismo, ao lado da expansão do crédito direto ao consumidor, ambos contribuindo para um período de expansão acelerada do consumo e dos investimentos.
V. Atual desenvolvimento do capitalismo no Brasil e na América Latina: mudanças e desafios
56. A convergência de três fatores históricos favoreceu o início de um movimento de mudanças políticas e econômicas na América Latina. São eles: a) a mobilização popular contra as traumáticas experiências dos governos neoliberais; b) o acúmulo de frentes de batalha contra os Estados Unidos (Iraque, Afeganistão e as possibilidades do Irã e da Coreia do Norte); c) por fim, a manifestação da crise econômica no coração da economia estadunidense abre espaço para que os países dependentes diversifiquem seus parceiros comerciais. A consequência disso é que o imperialismo abre um flanco que vem sendo aproveitado pelas nações latino-americanas, tanto no campo político quanto no campo econômico, que poderá significar um acúmulo de forças importante para o avanço das forças populares. Desde o final da década 90, os povos latino-americanos vêm reagindo ao neoliberalismo e construindo, gradativamente, uma agenda pós-neoliberal fundada na integração autônoma dessas nações.
57. Nesse processo, a constituição de governos progressistas na América Latina possibilitou iniciativas que se chocam com os interesses do imperialismo, dentre elas destacamos a ALBA (Aliança Bolivariana para a América), que supera a concepção de integração como algo meramente econômico e propõe uma integração entre os povos com sua cultura e economia direcionada para os interesses da classe trabalhadora. Outra iniciativa fundamental é a UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), que tem se destacado pelo avanço no campo da integração política constituindo-se num espaço autônomo frente a OEA (Organização dos Estados Americanos), que tradicionalmente é submissa aos interesses do imperialismo.
58. Dentro desse mesmo movimento de mudanças, estão em curso nos países latino-americanos políticas macroeconômicas de cunho desenvolvimentista que variam suas características depen¬dendo do país. Em países como Venezuela, Bolívia e Equador o desenvolvimentismo está articulado com um conjunto de reformas estruturais (estatização de setores estratégicos da economia, reforma agrária, democratização dos meios de comunicação, participação popular etc.). Essa aliança entre desenvolvimentismo e reformas estruturais divide a sociedade, gera conflitos de classe e educa política e ideologicamente as massas. Formou-se um ambiente propício para que a mobilização popular reivindique o socialismo como alternativa real. A evolução desse processo poderá gerar um impasse político em que a questão do poder e do socialismo poderá surgir como força histórica concreta. Já países como Brasil, Argentina e Uruguai aplicam políticas desenvolvimentistas de cunho conservador, sem reformas estruturais. A ausência das reformas estruturais não politiza a sociedade e contribui para desmobilizar as forças populares. Ao mesmo tempo, países como o Chile, a Colômbia e o Peru ainda estão presos à agenda neoliberal.
59. É diante desse cenário que está se constituindo um novo quadro da luta de classes nos países dependentes.
60. Vivemos um momento histórico em que o capitalismo passa por uma crise estrutural. As características centrais desse período de crise estrutural se expressam: a) no intervalo de tempo cada vez mais curto entre as crises cíclicas de superprodução; b) no baixo crescimento econômico da economia mundial em curso como uma tendência que permanecerá durante muitos anos, particularmente, nos países centrais do capitalismo; c) na crise fiscal dos países cen¬trais do capitalismo; d) no aumento sem precedentes da destruição e degradação da natureza.
61. O entrelaçamento da esfera produtiva com a esfera financeira fez com que os primeiros sintomas da crise de superprodução em curso se apresentassem no setor financeiro. No entanto, já são notórios os impactos da crise no setor produtivo, principalmente nos países centrais, onde crescem os níveis de desemprego. Para sair desse cenário, a crise da União Europeia tem demonstrado que a receita dos governos é a mesma de sempre: volumosos subsídios financeiros para os grandes capitalistas e corte de gastos nas áreas sociais.
62. A crise atinge centralmente a economia estadunidense marcada pelos constantes e baixos índices de crescimento econômico e pelo aumento do desemprego. Como resposta a esse cenário, o governo Obama utiliza o mecanismo de transferir a crise para os países dependentes através da desvalorização do dólar frente às outras moedas nacionais e através dos investimentos no complexo industrial-militar potencializado pelos conflitos militares do império no Iraque, Afeganistão e a manutenção de bases militares pelo mundo.
63. Os países dependentes certamente sentirão cada vez mais os impactos da crise na medida em que o modelo agroexportador que dinamiza essas economias for afetado pela diminuição da procura por produtos primários e pela queda dos preços desses produtos no mercado mundial. A desvalorização do dólar imposta pela política econômica estadunidense ao restante do mundo prejudica processos de industrialização em curso nos países da periferia do capitalismo, pois facilita a importação de produtos industrializados e de algumas matérias-primas, diminui a capacidade de competição da indústria e enfraquece o mercado interno. O aprofundamento desse cenário reduzirá o crescimento econômico desses países e aumentará a sangria de seus orçamentos por suas dívidas públicas.
64. Portanto, a crise econômica em curso, que se mostrará profunda e prolongada, colocará a América Latina num dilema: as políticas macroeconômicas desenvolvimentistas aplicadas atual¬mente se mostrarão insuficientes pelo fato de que as mesmas ainda estão articuladas com o rentismo financeiro, que é parte da crise e absorve boa parte da mais-valia social dos países dependentes. Diante disso, os estados nacionais latino-americanos vão se deparar com o desafio de regulamentar seus sistemas financeiros, controlar os fluxos de capitais e proteger os setores estratégicos da economia. Caso contrário, aplicarão as velhas receitas ortodoxas de ajuste fiscal que penalizam a classe trabalhadora.
65. Diante do aprofundamento da crise, será tarefa das forças populares acumular forças suficientes para apresentar uma alternativa real de poder através de um projeto de mudanças estruturais (democráticas e populares) na sociedade. Essa agenda possibilita a polarização política das forças sociais e favorece a construção das condições objetivas e subjetivas que colocam a questão da conquista do poder do estado na ordem do dia. Num cenário como esse, a mobilização de massas é o caminho para apresentar o socialismo como superação da crise civilizatória provocada pelas mazelas intrínsecas à natureza do capitalismo.

VI. Imperialismo
“Penso que os revolucionários brasileiros têm o dever de buscar unificar suas forças. Sem tal unidade, nosso povo não pode libertar-se do domínio do imperialismo norte-americano.”
(Carlos Marighella – Carta ao Almirante Aragão)

66. Reafirmamos o imperialismo enquanto o principal inimigo da humanidade, entendido não enquanto um ente externo, mas como uma estrutura e uma relação fundamental do sistema de dominação capitalista em escala internacional. Em momentos de crise, as ações imperialistas se intensificam, com a retomada de políticas neoliberais e a busca por recursos naturais e energéticos, novos mercados e novas maneiras de ampliar a exploração dos trabalhadores em todo o mundo.
67. Observamos a América Latina hoje enquanto um cenário de disputa hegemônica, que se dá na base de três projetos em disputa: o primeiro é o projeto imperialista, caracterizado por sua nova ofen¬siva econômico-militar e o apoio de governos de direita; o segundo gira em torno dos países que compõe o MERCOSUL, liderados pelo Brasil, e caracterizados por uma política neodesenvolvimentista no âmbito interno e no foco das relações Sul-Sul no âmbito externo, sem o esforço de romper as relações com o imperialismo; e o terceiro projeto, que nos apresenta uma forma de resistência ao imperialismo e ao neoliberalismo, buscando a integração regional enquanto forma de luta, representada na Aliança Bolivariana Para os Povos de Nossa América (ALBA).

Nenhum comentário:

Postar um comentário