21 de novembro de 2011

Os Grundrisse de Karl Marx

Abaixo alguns artigos publicados na Página do IHU sobre o livro: "Grundrisse" de Marx publicado pela Boitempo Editorial

Os Grundrisse. O que são?
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (em português: Elementos fundamentais para a crítica da economia política, conhecido simplesmente como Grundrisse) é um manuscrito de Karl Marx, completado em 1858. A publicação póstuma em 1941 foi organizada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo de Berlim e Moscou (na época da URSS).
Por: Redação
Muito comentada por autores de todo o mundo, não foi lançado por muitos países, nem em muitas línguas. A primeira tradução para o português foi lançada no Brasil em agosto de 2011, pela Boitempo Editorial e pela Editora da UFRJ. Trata-se de rascunhos escritos, que, reorganizados, dariam origem aos livros de O Capital. Curiosamente, Marx não recomendava sua publicação, pois quando os escrevera não estava bem de saúde e achava que isso teria prejudicado o estilo. Alguns trechos foram retirados, outros foram acrescentados, quando da edição de O Capital. Esses volumosos rascunhos, organizados em cadernos, foram analisados posteriormente em Gênese e Estrutura do Capital de Marx, de Roman Rosdolsky (Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 624p.), que atestou que alguns conteúdos foram descartados ou tiveram sua formulação alterada, ao passarem para os planos de O Capital. Um exemplo é o capítulo sobre Formações econômicas pré-capitalistas (Formen die der Kapitalistiscllen Produktion vorhergehtl).
Sobre "Formações econômicas pré-capitalistas"
O texto é pequeno (cerca de 130 páginas), mas muito interessante por abordar os sistemas anteriores ao capitalismo, do nascimento da propriedade, da propriedade comum à propriedade pública (apenas posteriormente sinônimo de propriedade estatal) e propriedade privada (no começo dependente de outros tipos de propriedade ou de itens em comum como o sistema de irrigação). Antes do capitalismo, a defesa das propriedades era baseada em argumentos que não da Economia Política, sendo apoiados em convenções religiosas, entre aristocratas, etc.

A subordinação ao trabalho e ao capital
Os Grundrisse, do ponto de vista didático, são a primeira tentativa de Marx de sistematizar a sua crítica da economia política, defende Mario Duayer
Por: Graziela Wolfart
Mario Duayer é um dos tradutores e supervisor da tradução dos Grundrisse encabeçada pela Boitempo Editorial neste ano. Ele concedeu a entrevista que se segue por telefone para a IHU On-Line, analisando tais textos de Marx e refletindo sobre sua contribuição para o cenário contemporâneo. Para ele, “a atualidade da obra de Marx se dá justamente por ser uma crítica ontológica. Nesse nosso mundo – na moderna sociedade capitalista –, que não tem futuro, que aboliu o tempo e o espaço, mas que experimenta crises tremendas, os Grundrisse nos permitem pensar no nosso tempo e no nosso futuro, em como podemos desmontar essa sociedade que emerge na história espontaneamente, que produzimos e reproduzimos permanentemente em nossas práticas cotidianas e que, aparentemente, de modo algum pode nos satisfazer, seja do ponto de vista das nossas relações humanas, seja das nossas relações com a natureza”. Em sua opinião, “a obra de Marx, na verdade, representa um momento privilegiado da autorreflexão da humanidade sobre suas circunstâncias, sobre sua história”.
Mario Duayer tem doutorado pela University of Manchester (UK). Professor titular aposentado da Universidade Federal Fluminense, atualmente é professor visitante do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Crítica da Economia Política, atuando principalmente nos seguintes temas: ontologia, Marx, teoria social crítica, filosofia da ciência, metodologia da análise econômica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Do ponto de vista mais didático, o senhor pode explicar brevemente o que são os Grundrisse? De que tratam esses textos?
Mario Duayer – Como indiquei na apresentação do livro, os Grundrisse são uma espécie de obra intermediária, dos primeiros escritos de Marx, na juventude, para a sua obra madura, notadamente, O Capital. Os Grundrisse, do ponto de vista didático, são a primeira tentativa de Marx de sistematizar a sua crítica da economia política. É o primeiro esforço dele depois de estudar economia e de fazer uma crítica da economia política que é, na verdade, uma crítica das relações capitalistas. Nesse sentido, eles são o primeiro rascunho da crítica que posteriormente aparece, consolidada em O Capital. São a primeira tentativa de construir uma figuração da sociedade capitalista, distinta figuração corrente, gerada e requerida pelas relações capitalistas. Nesse sentido, pode-se afirmar que Marx elabora o que se pode denominar de crítica negativa – especificamente, crítica da economia política. Ele não toma os economistas políticos como interlocutores com o propósito de criar uma teoria econômica alternativa, supostamente melhor e, por isso, mais adequada para gerenciar essa sociedade. Ao contrário desse tipo de crítica, própria da ciência econômica, que toma a realidade tal como ela se apresenta e se atribui o papel de administrá-la, a crítica de Marx procura mostrar que a estrutura e a dinâmica da economia regida pelo capital escravizam crescentemente os sujeitos à lógica do seu produto, a saber, produção de valor e, portanto, sempre produção de mais valor, processo infinito de acumulação de capital. Produção crescente e crescentemente estranhada dos sujeitos.
Por se tratar de uma crítica ontológica – e crítica efetiva tem de ser crítica ontológica –, a teoria social de Marx consiste em outra figuração da realidade, oferece outra ontologia, representa uma crítica ontológica às nossas ideias correntes, conformes às relações sociais burguesas, sejam elas do cotidiano ou da ciência.
IHU On-Line – Qual a atualidade dessa intuição de Marx? Em que sentido esses textos ajudam a entender o nosso tempo e em que medida podem ajudar a vislumbrar uma alternativa ao capitalismo nos dias hoje?
Mario Duayer – A atualidade da teoria marxiana resulta justamente de seu caráter ontológicoa. Nesse nosso mundo – a vida social sob o capital – que não tem futuro, que aboliu o tempo e o espaço, mas que tem crises tremendas, abole essa abolição e nos permite pensar no nosso tempo e no nosso futuro, em como podemos desmontar essa sociedade que construímos espontaneamente, sem nenhum tipo de plano ou deliberação, que emergiue na história, que reproduzimos permanentemente com nossas práticas e que parece se mover diretamente para a tragédia que sua dinâmica anuncia, seja do ponto de vista das nossas relações humanas, sejas das nossas relações com a natureza. Diria, portanto, que aí reside a atualidade do pensamento de Marx. Derrida , que, como se sabe, não era um filósofo marxista, sustentou que “não há futuro sem Marx”. Ainda que concordando com Ahmad, para quem o Marx evocado por Derrida é um Marx muito particular, talvez se possa dizer que a afirmação categórica de Derrida subentenda que a humanidade não tem futuro sem a autoreflexão sobre suas circunstâncias, sobre sua história, representada pela obra marxiana.
IHU On-Line – Onde se localiza os Grundrisse no contexto da obra de Marx? Qual a importância do estudo dos Grundrisse para se entender O capital?
Mario Duayer – Já se disse que Marx só tem obras incompletas e que talvez sua única obra completa sejam os Grundrisse, precisamente no sentido de que ali Marx oferece os elementos e as categorias básicas para que se possa entender, em sua totalidade, as relações sociais presididas pelo capital, sua dinâmica e as possibilidades que abre para um futuro possível. A desvantagem dos Grundrisse é que não são estruturados como O Capital. Do ponto de vista metodológico, em O Capital a descrição e a exposição do objeto vão sendo feitas sem nenhum pressuposto, a não ser a circulação de mercadoria generalizada, ponto de partida da análise, e daí Marx vai expondo e reconstruindo o objeto em toda a sua complexidade. Os Grundrisse não possuem essa estrutura já acabada. Por outro lado, e por isso mesmo, apresentam riquíssimas digressões que não estão presentes em O Capital.
IHU On-Line – O que está nos Grundrisse, mas que não entrou em O Capital?
Mario Duayer – Por exemplo, as formações econômicas pré-capitalistas não aparecem em O Capital, ainda que possam ser insinuadas em algumas partes.
IHU On-Line – Quais são os principais elementos da crítica de Marx à economia política presentes nos Grundrisse?
Mario Duayer – O principal elemento da crítica é a descrição do objeto em sua estrutura e dinâmica. É mostrar que o mundo que nós construímos, na verdade, nos subordina. Nós estamos sempre sujeitos à dinâmica do nosso produto; é o que Marx denomina de estranhamento. Em grande parte das interpretações marxistas costuma-se destacar quase exclusivamente o papel fundamental da exploração dos trabalhadores na teoria marxiana. É claro que não se pode negar a exploração, mas, do meu ponto de vista, o elemento fundamental na crítica da economia política de Marx é o caráter estranhado do nosso produto, do resultado da nossa prática: uma sociedade que funciona fora de nós, estranha, e que nos subordina com sua dinâmica enlouquecida, sempre para cima, mais, mais e mais, e o sentido do “mais” está perdido para nós. Nós nos organizamos nessa sociedade trocando coisas, vendendo e comprando. A nossa sociabilidade se arma reduzindo-nos meramente a trabalhadores, sujeitos cuja relação social consiste em trocar o produto de seus trabalhos. Vivemos para trabalhar e só podemos viver se trabalhamos, mas o sentido do nosso trabalho está perdido para nós, pois o sentido é o sentido do capital, de nosso trabalho passado estranhado de nós. O produto de nosso trabalho passado como capital implica uma produção sempre crescente, de um sentido cada vez mais questionável e duvidoso, seja do ponto de vista humano ou ecológico.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4213&secao=381

O capitalismo confrontado com outras formas possíveis de vida
Anselm Jappe faz um retorno a Karl Marx, confrontando os Grundrisse e O Capital. E afirma: “o capitalismo absolutamente não corresponde a uma ‘natureza humana’ e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro”
Por: Graziela Wolfart | Tradução de Benno Dischinger
“A visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente (...) nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que ‘natural’ e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como ‘parêntese na história da humanidade’. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história”. Quem faz esta reflexão é o filósofo e ensaísta alemão Anselm Jappe, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Em sua visão, “Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão”. E conclui: “a contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho”.
Anselm Jappe realizou seus estudos na Itália e na França. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As aventuras da mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da revista “EXIT – Crítica do Capitalismo para o Século XXI – com Marx para além de Marx”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir da leitura dos Grundrisse, quais são os elementos fundamentais que Marx usa para sua crítica à economia política?
Anselm Jappe – Marx escreveu os Grundrisse em 1857-1858, em poucos meses, em meio a uma crise econômica que ele acreditava ser a crise definitiva do capitalismo. Foram necessários depois outros dez anos e muitos estudos suplementares para desenvolver O Capital. Segundo certa ortodoxia marxista, para a qual O Capital constitui o ponto de chegada de toda a reflexão de Marx, os Grundrisse não são senão um esboço, um trabalho preparativo e imperfeito, motivo pelo qual foram publicados somente em 1939, em Moscou. A partir de 1968, os Grundrisse foram traduzidos ao inglês, francês, italiano e espanhol e, no âmbito da “nova esquerda”, afirmava-se depois que talvez esse manuscrito contivesse uma versão superior da crítica da economia política, porque menos “cientificista”, “economicista” e “dogmática”.
Na verdade, nenhum dos dois pontos de vista se justifica. No que se refere à crítica marxista da economia política, muitas de suas categorias fundamentais começam somente a articular-se durante a elaboração dos Grundrisse e não encontram uma formulação definitiva antes da segunda redação d’O Capital, em 1873: sobretudo a teoria do valor e do dinheiro. A dupla natureza do trabalho - abstrata e concreta – mal e mal começa a aparecer nos Grundrisse. Ali Marx ainda não distingue claramente entre valor e valor de troca, nem sequer, sempre de modo rigoroso, ente valor e preço. Tudo isso tem sido indagado com extrema nitidez por Roman Rosdolsky em seu Gênese e estrutura do capital de Marx (Rio de Janeiro: Contraponto, 2001), publicado em 1967 e cuja tradução curiosamente saiu no Brasil dez anos antes dos próprios Grundrisse. Além disso, falta nos Grundrisse o conceito de fetichismo da mercadoria. É, portanto, errado opor (como o faz, por exemplo, Karl Korsch ) um jovem Marx revolucionário a um velho Marx d’O Capital, que se teria limitado a observar com distância científica um processo determinístico. Na verdade, a natureza destrutiva do trabalho abstrato e da sociedade baseada sobre o mesmo é descrita de modo pleno principalmente no primeiro capítulo do Capital – e uma crítica verdadeiramente radical deve começar daqui.
IHU On-Line – O que está nos Grundrisse, mas que não entrou em O Capital?
Anselm Jappe – Os Grundrisse contêm alguns desenvolvimentos extremamente interessantes que faltam quase de todo n’O Capital. Há algum tempo se discute bastante sobre o assim chamado “Fragmento sobre as máquinas”, contido nos Grundrisse, onde Marx prevê que um dia a produção altamente “tecnologizada” não será mais mensurável em termos de valor, isto é, de tempo de trabalho despendido. Mas pode-se interpretar essa passagem de modos muito diversos: para os pós-operaristas , ele anuncia a generalização do general intellect, de uma intelectualidade difusa como força produtiva que fará sumir as relações de produção capitalista e emergir uma nova classe produtiva. Para a “crítica do valor ”, pelo contrário, trata-se de um ulterior elemento da crise do capitalismo que atingiu os seus limites internos por causa das tecnologias que diminuem a produção de valor, o qual só é criado pelo trabalho vivo.
IHU On-Line – Como eram os sistemas anteriores ao capitalismo?
Anselm Jappe – Esta é outra particularidade dos Grundrisse: a maior atenção que Marx concede aí às “formas de produção que precedem as capitalistas”, como se chama um dos seus capítulos mais famosos (e mais elaborados), com frequência publicado à parte. Marx analisa aí as comunidades antigas (antes das Gemeinschaft, “comunidades”), e ele utiliza a palavra Gemeinwesen, literalmente a “essência-comum” da terra e dos outros recursos, bem como a evolução gradual dessas sociedades em direção à propriedade privada individual durante a Antiguidade. Esta análise é importante, porque n’O Capital Marx fala quase exclusivamente da instauração do capitalismo a partir do século XVI, e não de quanto o precedeu. Marx, sem idealizar essas comunidades e sem falar em geral de “comunismo originário”, põe, todavia, em relevo que durante uma grande parte da história da humanidade a produção e reprodução da vida se desenvolveram sem se basear sobre o valor e sobre a mercadoria, sem trabalho abstrato e sem dinheiro que se valoriza comprando força-trabalho. Nessas sociedades, a sociabilidade – o elo social – residia na produção e não era algo que se lhe acrescentava post festum, como acontece na sociedade da mercadoria, onde o produto se desdobra em produto útil e em portador de valor, o qual se torna a única mediação entre os produtores, de outra forma isolados. Os indivíduos pertenciam organicamente à sua comunidade e não eram produtores através da troca dos seus produtos. Marx considera, por outro lado, o abandono de tais formas de comunidade como uma etapa historicamente necessária em direção ao desenvolvimento de uma individualidade mais rica.
IHU On-Line – Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor afirmou que “o capitalismo é um parêntese na história da humanidade”. Em que sentido a obra de Marx, especialmente os Grundrisse, contribui para esse pensamento?
Anselm Jappe – Talvez sejamos hoje mais céticos no que se refere a esta presumida “missão civilizadora do capital”. Mas, a visão marxiana do capitalismo como formação histórica que se instaura somente após uma longa história precedente, a qual se baseava sobre princípios completamente diversos – visão que, como já foi dito, é mais nítida nos Grundrisse do que n’O Capital –, nos permite efetivamente captar a singularidade do capitalismo. Esse é bem outra coisa do que “natural” e não é o resultado final de um desenvolvimento histórico que tendesse a isso desde sempre como à sua realização perfeita – este tem sido o ponto de vista do Iluminismo quando fazia a apologia do capitalismo. É nesse sentido que se pode falar do capitalismo como “parêntese na história da humanidade”. Não, por certo, como um incidente passageiro após o qual se poderia retomar um decurso substancialmente benévolo da história. É bem possível que após esse “parêntese” restem somente ruínas. Mas o capitalismo absolutamente não corresponde a uma “natureza humana” e constitui, antes, uma violenta ruptura com as formas de sociabilidade que têm reinado por muitíssimo tempo no mundo inteiro. Além disso, a visão que Marx tem das sociedades pré-capitalistas parece até mesmo bastante negativa. Ele as associa em geral à guerra e à competição em torno dos recursos. Esse pensamento deve ser integrado com a constatação de Marcel Mauss , segundo o qual a “cadeia do dom” constitui uma “rocha eterna” da sociabilidade humana. Em todo o caso, Marx demonstrou que mesmo as categorias mais basilares do capitalismo, como o trabalho, o valor e a mercadoria, são categorias históricas, e não eternas. Assim como vieram ao mundo, podem também ser superadas um dia. Mas se isso vai acontecer, como e o que as substituirá, é outra questão.
O conceito de comunidade
Em geral, o conceito de comunidade desempenha um papel maior nos Grundrisse do que n’O Capital, também como termo de comparação para captar a atomização social que comporta o capitalismo.
“Das Geld ist damit unmittelbar zugleich das reale Gemeinwesen, insofern es die allgemeine Substanz des Bestehens für alle ist und zugleich das gemenschaftliche Produkt aller. Im Geld ist aber, wie wier gesehen haben, das Gemeinwesen zugleich blosse Abstraktion, blose äusserliche, Zufällige Sache für den einzelnen” (p 152)
ou
“in der bürgerlichen Gesellschaft steht der Arbeiter z. B. Rein objektlos, subjektiv dar: aber die Sache, die ihm gegenübersteht, ist das wahre Gemeinwesen nun geworden, das er zu verspeisen sucht und von dem er verspeist wird” (p. 404).
[Trad.: “Dessa forma, o dinheiro é ao mesmo tempo imediatamente o real ser comum, enquanto ele é para todos a substância universal da subsistência e simultaneamente o produto comunitário de todos. Porém no dinheiro, como vimos, o ser comum é ao mesmo tempo mera abstração, coisa simplesmente externa, casual para o indivíduo” (p.152)
ou
“na sociedade burguesa o trabalhador se encontra, p.ex., sem objeto, subjetivamente: mas a coisa, que está diante dele, se tornou agora o verdadeiro ser comum¸ que ele procura consumir e pelo qual ele é consumido” (p. 404)].
Aqui, como em outras passagens, o dinheiro aparece como forma falsa e alienada da comunidade humana, do Gemeinwesen – que ele remete ao Gattungswesen, ao “ser genérico” dos escritos jovens de Marx, demonstrando assim a posição intermediária dos Grundrisse entre obras jovens (“filosóficas” e antropológicas) e tardias (de crítica da economia política) de Marx. Mais do que n’O Capital, o capitalismo é aqui denunciado na base de um confronto com possíveis outras formas de vida. Nas sociedades antigas, diz Marx, a riqueza não era jamais um fim em si mesmo, mas servia para criar bons cidadãos. Característica do capitalismo é, ao invés, a tendência ao crescimento infinito – e nos Grundrisse, Marx a deduz do próprio conceito de valor, de sua estrutura de base: “Als quantitativ bestimmte Summe, beschränkte Summe, ist es auch nur beschränkter Repräsentant des allgemeinen Reichtums [...] Als Reichtum festgehalten, als allgemeine Form des Reichtums, als Wert, der als Wert gilt, ist es also der beständige Trieb, über seine quantitative Schranke fortzugehen: endloser Prozess” (p. 196)
[Trad.: “Como soma quantitativamente determinada, soma delimitada, ele também é somente um limitado representante da riqueza global [...] Considerado como riqueza, como forma comum da riqueza, como valor que vale como valor, ele também é o impulso constante de ultrapassar seu limite quantitativo: processo interminável” (p. 196)].
IHU On-Line – Em que medida a dialética de Hegel influenciou para que Marx mudasse o texto dos Grundrisse e chegasse à obra O Capital?
Anselm Jappe – Os Grundrisse estão repletos de intuições fulgurantes, com frequência expressas numa linguagem ao mesmo tempo poética e filosófica que deriva da retomada de conceitos hegelianos. Após as críticas que o jovem Marx dirige a Hegel por ter dado uma descrição invertida do mundo, acusando-o de partir do abstrato em vez de iniciar do concreto, Marx retoma nos Grundrisse muitos conceitos hegelianos, mas dessa vez antes como descrição fiel de um mundo realmente invertido, no qual o abstrato realmente domina o concreto. Marx deduz aqui as características do capitalismo – o trabalho, o capitalista – do conceito de capital (um exemplo: “Die Tendenz, den Weltmarkt zu schaffen, ist unmittelbar im Begriff des Kapitalis gegeben” [Trad: A tendência de criar o mercado mundial está contida imediatamente no conceito do capital] (p. 321): um procedimento que podia desconcertar os marxistas tradicionais por seu aparente “idealismo”, mas que também pode ser lido como uma descrição do caráter “realmente metafísico” do capitalismo, onde o trabalho concreto serve somente para exprimir o trabalho abstrato e cuja forma basilar é a mercadoria, que Marx chama “sensível-suprassensível”. Finalmente, a insistência de Marx nas formas comunitárias das sociedades pré-capitalistas e no fato de que o mercado capitalista constitui um desenvolvimento tardio é importante também para seu desmentido daquilo que se chama, hoje, “individualismo metodológico” nas ciências sociais. Enquanto a economia política de Smith e de Ricardo já partia das ações dos atores individuais que se encontram no mercado, Marx parte resolutamente do seguinte princípio: “Die Gesellschaft besteht nicht aus Individuen, sondern drückt die Summe der Beziehungen, Verhältnisse aus, worin diese Individuen zueiander stehen” [Trad: “A sociedade não consiste de indivíduos, porém expressa a soma das relações, nas quais esses indivíduos se defrontam reciprocamente”] (p. 189). Isso também significa que não é a vontade subjetiva dos capitalistas que cria o capitalismo, mas é a ação anônima do valor: “Der Wert tritt als Subjekt auf” [“O valor aparece como sujeito”] (p. 231). É importante sublinhá-lo porque no primeiro capítulo d’O Capital, Marx introduz somente algumas poucas mercadorias que se trocam e deduz as relações mais complexas desta “célula germinal”. Semelhante procedimento, devido a motivos de exposição, poderia induzir ao erro de pensar que Marx põe igualmente na base de suas análises os comportamentos de atores individuais e isolados; os Grundrisse demonstram, se houver necessidade disso, que não é assim. O marxismo universitário fez, pelo contrário, muitas concessões em nome da “cientificidade” ao individualismo metodológico, sobretudo ao marginalismo na economia.
IHU On-Line – Qual a principal contribuição dos Grundrisse e da obra de Marx, como um todo, para entendermos nosso tempo, principalmente o mundo do trabalho?
Anselm Jappe – A contribuição que podem dar os Grundrisse para compreender o mundo de hoje é a mesma de toda a crítica da economia política de Marx: ir a fundo na compreensão das convulsões atuais e ver que as injustiças sociais, as distribuições desiguais dos recursos, os desastres financeiros, as catástrofes ecológicas e a anomia social são elas próprias a expressão de uma crise mais vasta e profunda, a expressão de uma sociedade na qual a atividade social não é regulada conscientemente, mas depende das mediações fetichistas e autonomizadas do valor e das mercadorias, do dinheiro e do trabalho. E nos Grundrisse se alude, mais do que nas outras grandes obras marxianas, ao fato de que não se sairá do capitalismo sem recriar alguma forma de “comunidade”. E é sempre nos Grundrisse que Marx anuncia claramente (no final da terceira parte) que o capitalismo está condenado a desmoronar precisamente por causa do desenvolvimento das forças produtivas que o põe em movimento. Sua “profecia” levou muito tempo para se realizar – mas talvez estejamos assistindo atualmente a esta passagem histórica.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4214&secao=381

“O capitalismo é um parêntese na história da humanidade”
Para o filósofo alemão Anselm Jappe, o capitalismo é um parêntese na história da humanidade, e não um destino inexorável. Já estamos observando seu colapso, garante. Teoria da multidão, de Hardt e Negri, é marxismo ortodoxo com “verniz pop”, além de impostura intelectual
Por: Márcia Junges | Tradução de Vanise Dreshn
O capitalismo não é uma “realização necessária de toda a história”, mas apenas um “parêntese” nela. A ideia é do ensaísta alemão Anselm Jappe, que, em entrevista exclusiva, concedida pessoalmente à IHU On-Line, afirmou haver uma ontologização do capitalismo tanto por parte do pensamento burguês quanto por parte da dita esquerda. Esse valor “não tem um estatuto ontológico verdadeiro, mas pretende tê-lo”, como se o capitalismo fosse uma metafísica realizada. Segundo ele, inclusive os críticos do capitalismo não o fazem verdadeiramente, pois “se limitam a criticar o liberalismo, propondo como alternativa um capitalismo mais mitigado”. Jappe assegura que já observamos sinais de colapso desse sistema, e a crise econômico-financeira mundial é um deles: “O capitalismo vai terminar, e já estamos observando esse fim. Não é algo que irá acontecer de um dia para o outro, mas os sinais de esgotamento são visíveis”. Isso só vem a confirmar “o que a crítica do valor já havia dito há 20 anos”, acentua.
Jappe dá detalhes sobre a crítica que faz, junto com Robert Kurz, à teoria de multidão de Michael Hardt e Toni Negri. Em sua opinião, eles não pensam uma saída do capitalismo, e inclusive entendem o valor como algo positivo. O “negrismo”, dispara, é um marxismo tradicional com verniz pop, e uma “impostura intelectual”. Entretanto, a teoria faz sucesso porque tece “lisonjas a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática”. Outro equívoco, assinala, é a equiparação errônea que esses autores fazem entre o conceito de trabalho abstrato e trabalho imaterial.
Momentos antes de proferir a conferência Crise, Crítica Radical e Emancipação Humana, proferida no IHU Ideias de 01-10-2009, Jappe conversou com a IHU On-Line. O grupo Crítica Radical, de Fortaleza, apoiou o evento. Filósofo e ensaísta nascido na Alemanha, realizou seus estudos na Itália e França, onde vive atualmente. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As Aventuras da Mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da Revista “EXIT – Crítica do Capitalismo para o Século XXI – com Marx para além de Marx”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que afirma que o capitalismo é apenas um parêntese na história humana?
Anselm Jappe – Trata-se de uma formulação polêmica, porque o capitalismo existe há, no mínimo, 200 anos nos países desenvolvidos como Inglaterra. Há antecedentes do capitalismo na época da Renascença, remontando ao século XIV. Disse que o capitalismo é um parêntese na história para fazer uma objeção à apologia atual que o vê como uma realização necessária de toda a história. Critico a ideia de que a humanidade e a evolução avançam para algo melhor, e que o capitalismo seria uma espécie de apogeu da humanidade, uma forma de sociedade e de economia que vai permanecer para sempre. Muitas vezes, as apologias do capitalismo são feitas apresentando a democracia como uma forma finalmente encontrada para o convívio dos seres humanos. Assistimos, então, a uma espécie de ontologização do capitalismo. Isso consiste em dizer que pode haver diferentes modelos de capitalismo, mas ele se mantém no mesmo enquadramento do valor, do dinheiro, da democracia e do Estado. Não é apenas o pensamento burguês, mas boa parte também do pensamento que se proclama ser de esquerda, que se converteu a essa ontologização do capitalismo, incapaz de imaginar algo diferente.
Com todas as mudanças propostas, pensam, mesmo assim, se permanecerá numa lógica capitalista ou se não volta a se cair na barbárie e no caos. Muitos daqueles que criticam o capitalismo hoje (como os altermundialistas e associações como a ATTAC e todas aquelas pessoas que se encontram na cúpula do Fórum Social de Porto Alegre) não o criticam verdadeiramente, porque se limitam a criticar o liberalismo, propondo, como alternativa, um capitalismo mais mitigado.
Em oposição a essa eternização do capitalismo é que falo de um parêntese, dizendo que esse sistema foi o rompimento absoluto com todas as sociedades pré-capitalistas. O capitalismo não é apenas uma sociedade entre outras, constitui-se a fratura mais fundamental da história da humanidade, principalmente porque introduziu um dinamismo e uma orientação que estavam ausentes nas sociedades precedentes, que eram mais estáticas.
O capitalismo não é um destino inevitável
A partir disso, uma das principais características do capitalismo é a resistência ao fato de que a atividade social se entenda como trabalho, e o trabalho como valor, e o valor como dinheiro. Então, tudo isso não é natural, histórico e eterno. Tudo isso veio ao mundo com o capitalismo. Aliás, essa não é uma afirmação de Marx, somente. Há estudos de Marcel Mauss e Karl Polanyi que mostraram o caráter radicalmente diferente das sociedades antes do capitalismo. Não estou falando apenas em sociedade etnológica, como Polanyi demonstrou que, no século XVII, havia lógicas sociais bem diferentes, ou como Thompson demonstrou em sua obra clássica, A formação da classe trabalhadora na Inglaterra (Rio de Janeiro: Paz e Terra, volumes I, II e III).
Tudo isso permite demonstrar os diferentes pontos de vista, não somente marxistas, de que o traço fundamental do capitalismo não é algo natural do ser humano, mas pertence apenas a uma fase determinada da história humana. Deste ponto de vista, podemos dizer que o capitalismo é apenas uma fase da humanidade, e assim como veio ao mundo, pode, também, desaparecer. É claro que não quero dizer que o capitalismo seja um simples “incidente” depois do qual se podem mudar muitas coisas. Essa expressão mostra, simplesmente, que o capitalismo não é, necessariamente, um destino inevitável.
E quando falo em parêntese, não significa que havia uma espécie de sociedade feliz, e o capitalismo chegou como uma “erupção do mal”, e que esse parêntese vai se fechar para reencontrar uma espécie de felicidade. Isso seria muito bom, mas não é o que acontece. O capitalismo vai terminar, e já estamos observando esse fim. Não é algo que irá acontecer de um dia para o outro, mas os sinais de esgotamento são visíveis.
IHU On-Line - Quais são os principais impactos da crise econômico-financeira atual no capitalismo, na política, no trabalho? Esse sistema está ameaçado com tal cenário mundial?
Anselm Jappe – De fato, a crise do ano passado confirmou o que a crítica do valor já havia dito há 20 anos. É claro que a crise financeira não é a causa da crise do capitalismo, mas, bem pelo contrário, a financeirização foi apenas uma maneira do capitalismo continuar vivendo, principalmente, através do endividamento contínuo. A crise financeira não era, simplesmente, devida à cupidez dos bancos ou especulação que roubava dos trabalhadores, mas se deu, essencialmente, a emergência da verdadeira realidade de hoje, ou seja, o esgotamento do valor, a sua saturação. Graças ao desenvolvimento tecnológico, se usa cada vez menos a força de trabalho para a produção de mercadorias. E menos força de trabalho significa, também, menos valor e mais dificuldade para acumular capital na produção do real. É por isso que o capital vai se refugiar na especulação para ficar no capital fictício.
Retorno da financeirização
Com a crise, há uma espécie de retorno na financeirização. Essa financeirização é uma remissão da crise, e não a sua causa. Ao contrário, é um modo de esconder e ocultar essa crise. Muitas empresas ou estados que já deveriam ter decretado falência há muito tempo, simplesmente continuam existindo, acrescentando, a cada ano, mais um zero a seus números.
Com a verdadeira crise que começa a emergir em plena luz do dia, há um grande aumento do desemprego na Europa. Agora se diz que ela passou, e que a economia está sendo retomada. Contudo, fora alguns ciclos que continuam possíveis, há uma “retomada” pelo fato de que são queimadas reservas de um modo nunca visto antes.
Para compreender isso, devemos prestar atenção em determinados fatos precisos. Na França, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o patrimônio acumulado dos franceses diminuiu de forma significativa. Até mesmo as classes médias, que podiam cobrir suas despesas, começam a vender seus bens imobiliários não apenas para investir, mas para saldar compromissos. Cada família está endividada em, pelo menos, 15 mil euros. Praticamente toda a Itália tem de trabalhar quase que gratuitamente para poder reembolsar essa dívida.
Nos EUA, a situação é ainda mais extrema. Quando falamos em bancos e que o governo intervenha, permanecemos, ainda, numa esfera larga das finanças. Entretanto, o que pode acontecer é uma reação em cadeia, porque sabemos que todas as dívidas irão criar uma espécie de corrente. Há um verdadeiro risco de que todas essas correntes se rompam e haja um grande pânico.
Até aqui, as instituições conseguiram evitar esse pânico. Muitas vezes, elas se vangloriam em ter aprendido a lição com o que houve em 1929 e que agora sabem administrar a crise, mas, na verdade, não há nenhuma solução estrutural, nenhum novo modelo de acumulação e nenhuma indústria que utilize de forma maciça a força de trabalho. Evita-se a crise, simplesmente, oferecendo cada vez mais crédito. No final das contas, é o mesmo que acontece com quem bebeu e acorda de ressaca, e soluciona o problema bebendo ainda mais. Isso pode funcionar por um período imediato, mas não pode ser uma solução a longo prazo.
IHU On-Line - O valor alcançou uma ontologização em nossa sociedade? Em caso positivo, como podemos falar em fim da metafísica se o valor atingiu esse status ontológico?
Anselm Jappe – O valor não tem um estatuto ontológico verdadeiro, mas pretende tê-lo. Pretende-se que toda estrutura tenha um valor que possa ser trocado no mercado, mas, na verdade, essa é uma ilusão coletiva. Ultimamente, existem análises do capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas como uma espécie de metafísica realizada. A modernidade gosta muito de se apresentar como uma espécie de secularização, pensa ser muito superior às religiões antigas. A religião foi abandonada, e, em seu lugar, se adotou a “metafísica do real” ou, ainda, a “metafísica realizada”. Marx chamou a mercadoria de ser sensível e suprassensível. A mercadoria, o seu fetichismo, é uma forma de religião, não no sentido banal, de se dar importância demais à mercadoria, mas no sentido que as mercadorias e seus movimentos, o que chamamos de mercado, podem ter estabelecido uma dominação impessoal em nossas sociedades, porque esquecemos que fomos nós que criamos essas mercadorias e suas leis. Foi por isso que Marx falou do fetichismo da mercadoria já a partir de 1842, e tomou esse termo já na Crítica à religião. Ele se referia aos modernos, que se achavam tão modernos, e que, na verdade, não são muito diferentes daquilo que chamamos de selvagens. Há a projeção de um poder coletivo sobre um ser que é considerado como sendo independente desse poder humano. Por isso que podemos estabelecer uma relação entre a teoria do fetichismo de Marx com a teoria antropológica do fetichismo como encontramos em Émile Durkheim .
IHU On-Line - Você e Kurz contestam a teoria do Império e Multidão, de Hardt e Negri . Quais são os principais aspectos dessa crítica?
Anselm Jappe – A teoria da multidão, de Hardt e Negri nada mais é do que uma versão pós-moderna do marxismo mais tradicional, baseada na ideia de que a força de trabalho enquanto tal já está fora da relação capitalista, e que o capitalismo não é senão uma espécie de apropriação do que os operários criam. Na verdade, enquanto portadores de um metabolismo com a natureza, como diz Marx. Para o marxismo tradicional, foram os operários industriais que garantiram esse metabolismo. Negri simplesmente substituiu o operário industrial pelo operário imaterial, ou “informático”, ou aquele que trabalha na cultura. Na verdade, ele e Hardt não conseguem nem mesmo pensar uma saída do capitalismo. Pelo contrário. Falam de autovalorização da multidão. Inclusive entendem o valor como um valor positivo. Eles querem simplesmente liberar a produção em relação a essa espécie de parasitismo de uma classe que não trabalha e controla os meios de produção.
Esse é o marxismo mais tradicional que temos, pintado com outras cores ou com outro verniz, um verniz mais pop. Negri e Hardt utilizam o conceito de trabalho abstrato mas não entendem absolutamente nada desse conceito em Marx, considerando-o que é igual ao trabalho imaterial. Então, todo o “negrismo” pode ser qualificado como uma impostura intelectual. Mas tem sucesso porque lisonjeia a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática, por exemplo. Há relações totalmente acríticas com o conteúdo da vida capitalista. Eles dão um tom positivo a tudo que tem a ver com a “cultura capitalista”, com as formas de sujeito, da dissolução dos antigos vínculos.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2863&secao=310
"Grundrisse" de Marx. Um outro paradigma teórico para os desafios contemporâneos. Uma entrevista especial com Jorge Paiva
Na semana passada foi feito o pré-lançamento do livro As aventuras da mercadoria de Anselm Jappe. O livro foi apresentado por Jorge Paiva que faz parte do grupo Crítica Radical, de Fortaleza, que conta com a parceria, além de Anselm Jappe, de Robert Kurz, e outros estudiosos da crise da sociedade contemporânea.
IHU On-Line conversou com Jorge Paiva nas dependências do Instituto Humanitas Unisinos na última quarta-feira. Na entrevista que segue, ele fala sobre sua trajetória de vida, sobre como chegou até Marx e sobre a proposta de um novo paradigma teórico para vencermos os desafios atuais. Trata-se de formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional, a partir da leitura da obra de Karl Marx intitulada Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, conhecidos simplesmente, como Grundrisse.
Para saber mais sobre esta obra fundamental de Karl Marx, confira o livro Gênese e estrutura de "O Capital"" de Karl Marx de Roman Rosdolsky, publicado pela Editora Contraponto, Rio de Janeiro, em 2001. 624p. O livro foi traduzido por César Benjamin, candidato a vice-presidente pelo P-Sol. Uma resenha do livro elaborada por Carlos Nelson Coutinho pode ser consultada na página http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=8

Outrossim, publicamos um artigo escrito por Anselm Jappe na edição número 184 da IHU On-Line, de 12 de junho de 2006, sobre as idéias centrais do livro que está sendo lançado em português.
A seguir publicamos trechos da entrevista com Jorge Paiva.
Depois de narrar a sua trajetória política, sua ativa participação na UNE no final dos anos 1960, Jorge Paiva comenta a ativa participação na eleição e no mandato de Maria Luíza Fontenele como prefeita de Fortaleza, eleita pelo Partido dos Trabalhadores. Ele narra:
"Em 1988, depois da administração da Maria Luíza na prefeitura de Fortaleza, nós acabamos expulsos do PT. Foi o primeiro grupo a ser expulso do Partido. De uma certa forma, nós agradecemos, porque isso nos levou à grande descoberta. Talvez nós fôssemos portadores de algo "maligno" e fomos atrás para descobrir o que era isso. E descobrimos. Fizemos uma descoberta teórica, que é um pouco o assunto do livro de Jappe e da palestra ministrada aqui na Unisinos, que eu considero de uma profundidade, de uma fundamentação muito grande e muito atual. Nós vínhamos de uma experiência no campo do marxismo e nos deparamos com um rascunho, que chamamos de os Grundrisse. São três volumes, que nós não conhecíamos. Vínhamos de uma experiência, e estávamos procurando respostas. Houve a queda do muro de Berlim, da União Soviética.
Uma nova e surpreendente leitura de Marx
A nossa relação com a esquerda era muito conflituosa, por causa desse processo de luta, de ter uma atitude ética, um compromisso muito forte com o movimento social, e isso nos levava a choques com essas opiniões. Então descobrimos um trecho muito especial de os Grundrisse. Foi a página 227, do segundo volume, que nos levou a uma leitura de Marx que nós não conhecíamos e com a qual ficamos surpresos. Fomos atrás para rastrear aquilo, ver o que era, de onde vinha. Ficamos tão entusiasmados com a descoberta que, se já éramos meio "doidos", ficamos um pouco mais. Começamos a reler as obras marxistas. Particularmente O Capital, porque os Grundrisse são o rascunho de O Capital. Esse rascunho só foi publicado em 1939 e em 1953, em poucos exemplares. E a edição em espanhol, uma raridade muito grande, chegou em nossas mãos. Descobrimos que aquela parte não tinha sido incorporada na obra de Marx. E iniciamos uma densa discussão teórica para descobrir porque não foi.
A nova leitura e a natureza da crise atual
Nessa comparação, descobrimos algumas pessoas interessantes em uma pesquisa de bibliografia. Ao detectar um novo fio de meada, completamente diferente, com uma abordagem fantástica, começamos a perceber que aquela nova leitura tinha muito a ver com a natureza da crise atual. Nós tínhamos uma atuação nos metalúrgicos e começaram a chegar em Fortaleza tornos eletrônicos. Em uma fábrica com 100, 200 funcionários, um torno substituía 20, 30, 40 torneiros. Produzia muito melhor, mais rápido, mais barato e não fazia greve. Nosso cabedal anterior não sabia explicar isso. Como a empresa substitui, tira a mão de obra da qual vem o valor, da qual eles têm o lucro, e continuam tendo lucro recorrendo à máquina. Quem explica isso? O trecho era exatamente esse.
Um andaime que exige um novo prédio
Depois dessa pesquisa, nosso espanto foi muito grande. Começamos a contatar pessoas na USP, no Rio e Janeiro, que conhecíamos da militância anterior, para saber da procedência disso, porque nós queríamos divulgar, reproduzir. Foi quando aconteceu um fato interessante, inesquecível. Ao encontrar com alguns renomados marxistas, com muita empolgação diante do que tínhamos descoberto, nós ouvimos: "calma, vocês estão diante de um andaime. Quando a pessoa constrói um prédio, o andaime é jogado de lado. O prédio é mais importante". Nós argumentamos com eles dizendo que o andaime estava exigindo um outro prédio, que aquele prédio não correspondia mais à atualidade. Foi um choque de opiniões.
Começa o grupo coeso
Depois de várias conversas, descobrimos alguns pesquisadores no mundo, como o autor do livro As aventuras da mercadoria, Anselm Jappe, da Itália, Robert Kurz, da Alemanha, e Roswita Scholz, a esposa dele. Também descobrimos, nos Estados Unidos, um outro professor chamado Moishe Postone, que tinha publicado um livro já em 1978, com base nos Grundrisse. Depois desse movimento, decidimos fazer um seminário em Fortaleza, em 2000, trazendo essas pessoas. Foi um seminário muito concorrido. Nossos visitantes ficaram assustados com a grande dimensão e o sabor da descoberta. Eles queriam saber como nós tínhamos chegado àquilo, e nós também queríamos saber como eles tinham chegado. Então, havia um ponto de vista muito comum que deu fruto e que continua até hoje. Depois disso, fizemos mais 4 ou 5 seminários. Todos os anos eles voltam a Fortaleza e a gente se encontra. Em agosto, na Bienal do Livro, devemos encontrá-los novamente.
IHU On-Line - Como está a situação do grupo Krisis?
Jorge Paiva - O grupo inicial, na Alemanha, chamava-se Krisis. Eles tiveram problemas de leituras diferenciadas e romperam. Robert Kurz e Roswita com alguns outros fundaram o Exit. Na época, antes da briga, eles nos ajudaram em uma campanha em Fortaleza para fazermos a sede do nosso grupo, chamado Crítica Radical. Eles organizaram uma campanha financeira na Europa, conseguiram uma coleta substanciosa, e nos mandaram em torno de R$ 30 mil para comprarmos a sede para o grupo. A relação com eles foi profunda mesmo. Houve o racha e Robert Kurz foi afastado da redação junto com Roswita. Evidentemente, nós não concordamos com a expulsão de pessoas. Já bastava a expulsão que tinha acontecido com a gente.
Uma nova reformulação teórica
No momento, estamos aguardando o contato com o grupo que ficou no Krisis, para conversar mais, amadurecer e ver o que podemos fazer. Estamos apostando hoje na possibilidade de juntar essas pessoas. Em Porto Alegre, há um outro grupo, o Fim da Linha. Em São Paulo já existe outro grupo no Departamento de Geografia da USP. No Rio de Janeiro também há um grupo, e em Belo Horizonte está começando, além do grupo de Fortaleza. Então, a discussão está se disseminando, crescendo, avançando. E eu tenho notado um entusiasmo muito grande das pessoas com essa nova formulação teórica. Posso usar uma expressão que talvez soe um pouco estranha, muito pretensiosa, mas trata-se, objetivamente, de um novo paradigma teórico que está no ar. Eu considero que temos uma reformulação nova capaz de responder aos desafios que estamos enfrentando.
IHU On-Line - Qual é a contribuição brasileira para essa discussão?
Jorge Paiva - Essa nova concepção teórica contraria a formulação teórica dos agrupamentos de maneira geral no País. É uma formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional. Ela descobre duas leituras de Marx. Uma leitura que está sustentada na luta de classes, na política, no Estado, na ditadura, no proletariado, na revolução socialista. E a outra é a crítica radical do valor, do fetichismo, da mercadoria, do trabalho, do Estado, do mercado, do dinheiro. Portanto, é uma fundamentação teórica que busca uma relação social distinta da distribuição. De um lado, temos uma discussão que se caracteriza muito na distribuição das mercadorias. Ela está em torno do resultado da natureza da crise, da própria crise do valor. É uma discussão que, em última instância, por mais radical que ela seja, moderniza o sistema.
Uma crítica às categorias
Do outro lado, temos uma crítica categorial. É uma crítica às categorias fundantes do capitalismo, portanto, muito mais profunda. O próprio Marx considerava essa parte a mais difícil da obra dele. Eu, inclusive, fui aconselhado a não começar por esse caminho. Mas é nele que está a riqueza. Essa contradição não está resolvida pela maioria dos grupos marxistas do Brasil. A natureza da crise é exatamente a crise categorial, das categorias do capitalismo. Para os marxistas tradicionais soa como se estivéssemos questionando a teoria da gravidade. Porque essas categorias são consideradas ontológicas, naturais. Não se discute isso. Quando questionamos essas categorias, o edifício treme.
A crise do valor
Por exemplo, uma coisa muito rica nessa discussão é entendermos que o valor tem sexo, que o capitalismo tem sexo. E que a entrada da modernidade deu, no capitalismo, um papel diferente ao homem e à mulher. E que, portanto, o patriarcado anterior se reforçou no capitalismo. Então, as mulheres ficaram subalternas, "o homem manda", exatamente porque também o valor deslocou isso. Então, como a crise atual é uma crise do valor, ela também ocasiona a "crise do macho". Como ela leva a essa "crise do macho", ela pode despertar nas mulheres um papel diferente. Evidentemente que aí há um problema, porque o movimento feminista não pode pedir só oportunidade de ser igual ao homem. Tem que pensar num movimento que supere, porque o "macho" é um valor dessa sociedade em crise. Isso abre uma perspectiva nova.
Do ponto de vista do pós-modernismo é algo ainda maior, porque o pós-moderno é um pensamento que, em função da crise anterior, fragmentou a teoria. Na crítica que ele faz ao marxismo ele o fragmenta. No entanto, como ele não faz da crítica a crítica às categorias, ele se desarma perante isso, porque, para pegarmos a natureza da crise hoje, temos que ter uma visão de conjunto do sistema. Mesmo porque o capitalismo não está aqui ou lá. Ele é global, ele é "one world". Então, temos que fazer uma vista geral desse processo. Assim, começamos a perceber que essas formulações teóricas deixam a desejar. Parece que o futuro está com essa concepção teórica nova. Pelo menos estamos sentindo isso.
IHU On-Line O que quer dizer a expressão "crítica radical do valor" a que o senhor se refere no comentário sobre o livro de Jappe?
Jorge Paiva - O livro é algo novo, inusitado em termos de edições brasileiras. Ele analisa esse aspecto da crítica radical do valor a partir de Marx, e vai estudar, portanto, a dupla natureza da mercadoria. Ele mostra como isso é fundamental no sentido do trabalho, do dinheiro. Aponta que isso está em crise e que uma abstração real comanda a nossa vida. É algo que está nas nossas costas, portanto não é a leitura do conflito de classe que nos permite ver o mundo, é exatamente captar essa abstração real. Essa é uma expressão em contradição: como uma abstração pode ser real? Ele vai aprofundar e provar isso, de forma acessível, didática e bonita, trazendo tudo para a realidade do trabalho, da política, mostrando as insuficiências da crise do Estado, do mercado, do dinheiro.
A crítica ao trabalho
Jappe vai fundo na crítica ao trabalho. Ele dimensiona e localiza etimologicamente como o trabalho era entendido como uma relação de servidão, dependência, indo na raiz da palavra trabalho. Tudo isso para dizer que o trabalho foi imposto, que as armas entraram nos regimes absolutistas para que as pessoas fossem deslocadas do campo para se congregarem nas fábricas e isso possibilitou um processo de expansão do sistema muito grande. Era uma dinâmica quase que absoluta, porque não tinha obstáculo que o sistema não superasse. As iniciativas revolucionárias que aconteceram no período da expansão do capitalismo acabaram derrotadas porque fizeram a tomada de poder, tomaram o aparelho do Estado e mantiveram as categorias do capitalismo. O que é a foice e o martelo? Trabalho.
A natureza da crise
A novidade é que, enquanto o sistema sofria o processo de expansão, os obstáculos foram derrubados. Hoje o limite não está vindo das iniciativas revolucionárias. Está vindo internamente ao sistema. Quando o sistema tira o trabalho, ao substituir pela microeletrônica, ele serra o galho onde ele está sentado. Daí vem a natureza da crise. Para superar essa crise, é preciso pensar em uma relação social nova, que não esteja mais baseada nessas categorias. E daí "a coisa pega", porque o sujeito, que somos nós, frutos desse processo, não queremos "largar o osso". Queremos continuar, ver se há possibilidades de melhorar, já que não é possível que a situação piore. Mas está piorando, cada dia que passa piora, e temos que pensar em uma saída para superar isso com uma certa urgência.
IHU On-Line - De que forma pode se fazer uma "crítica radical" às categorias fundantes do capitalismo como valor, trabalho, mercadoria, dinheiro, Estado, política, democracia e nação?
Jorge Paiva - Isso não é algo fácil, porque a crise é também uma crise do sujeito, da pessoa humana. Nós temos nas nossas cabeças camadas geológicas muito grandes, que advém inclusive do período primitivo, pré-moderno e do capitalismo. Essas camadas se formaram e se assentaram com base no que chamamos de relações fetichistas. E a relação fetichista da mercadoria casou com isso. Quando um homem sai do processo da primeira natureza e entra na situação da segunda natureza, as relações históricas são relações fetichistas. Não são relações de classes, de poder. Elas, pelo contrário, estão subordinadas ao fetiche. O fetiche moderno é o fetiche do dinheiro, da mercadoria. Como a crise atinge essas categorias, a pessoa que está com essa formação entra em crise, porque ela quer manter uma situação que não tem mais condições de se manter. Então começamos a ver aberrações sociais das mais variadas, porque há uma incorporação dessa lógica, que está enraizada nas nossas cabeças. Aprendemos e só sabemos fazer, só conhecemos isso.
É preciso pensar na superação do sujeito
Então, ao entrar em contato com outras pessoas, ao pensar em uma outra possibilidade, essa lógica vem em primeiro plano. Estabelecer uma crítica radical para pensar na superação disso não basta pensar apenas na superação das categorias. É preciso pensar em uma superação do próprio sujeito, portanto, da própria pessoa da qual fomos construídos e criados, organizados. Essa tarefa é difícil. Por outro lado, o universo das pessoas em termos de atuação social se dá exatamente em como se distribuem essas categorias. Então, apela-se para o Estado, pois é o Estado que deve harmonizar isso, a pessoa quer um emprego, porque depende do trabalho, porque com o trabalho ela compra as mercadorias, e esse encontro se dá no mercado. A atuação da pessoa é política, porque o cidadão é a pessoa que atua, que reivindica direitos, que vota.
Não basta apelar para o Estado, para o mercado. Não basta ter trabalho, porque amanhã a pessoa pode estar desempregada. Somos forçados a pensar em uma situação nova. A dificuldade da crítica radical, nesse particular, é organizar um novo movimento social, radical, transnacional, e pensar um tipo de relação social que não seja mais mediada pela troca. Isso é difícil, porque fomos educados na troca, mas por outro lado, ou nós fazemos isso ou então vamos sucumbir com o sistema. O atual sujeito está no Titanic e no convés está tocando a banda. Ele quer que a banda continue tocando, não quer abandonar o barco.
IHU On-Line - O que devemos aproveitar de Marx e por que é necessário ir além dele?
Jorge Paiva - Marx foi a pessoa que, na época dele, um tanto quanto único, infelizmente, captou esse problema das categorias. Marx pegou o capitalismo nascente, se desenvolvendo, ainda muito jovem, com muita força e impetuosidade. E ele como observador e estudioso, e em um local privilegiado como a Inglaterra, conseguiu captar essa questão das categoriais. Marx separa algumas mercadorias, descobre que a mercadoria é a célula germinal. No estudo da comparação de duas mercadorias, ele percebe que, de um lado e de outro da equação, tem algo em comum, que é o valor e que quem mede isso é o tempo de trabalho. As pessoas não sabem, mas fazem isso. E ao perceber isso, ele foi capaz de prospectar para vários anos depois dele a possibilidade dessa categoria e dessa relação social entrar em crise.
Marx não viveu isso, pelo contrário. A época dele foi a época da expansão do sistema. Por isso, a leitura da luta de classes acabou predominando. Esse tesouro ficou escondido e essa responsabilidade ele transferiu para nós hoje, no sentido de irmos além dele. E só é possível ir além dele se subirmos nos ombros dele, exatamente nessa ótica, que é uma ótica abandonada pela esquerda, que acha que a luta de classe é a que dá conta da natureza da crise. E nós estamos convencidos de que não dá, não é possível enfrentar a complexidade do mundo hoje com um tipo de análise que é capenga, que não está bem fundamentada, que explica elementos secundários, mas superficiais.
IHU On-Line E qual a contribuição de Debord, com "A sociedade do espetáculo"?
Jorge Paiva - Debord foi alguém da turma de 1968 que resgatou esse problema da mercadoria. O espetáculo, para ele, é o desenvolvimento do processo da mercadoria. O desenvolvimento do capital é tanto que vira imagem. Essa é a contribuição de Debord. Ele traz isso no seu livro, A Sociedade do Espetáculo. Ele fala das implicações disso, diz que a sociedade da atualidade (dele, sendo que o livro saiu em 1967) é essa sociedade do espetáculo e ao provar isso, ele abre na época algo inusitado, porque foram raras as pessoas que fizeram isso. O grande valor de Debord está exatamente nisso. Talvez por causa disso ele tenha sido tão maltratado pela esquerda e pela direita: porque foi um inovador. A nossa tradução brasileira veio quase 30 anos depois, em 1997.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=3115

Os 'Grundrisse': uma mina para ajudar a descortinar o século XXI
Para Ricardo Antunes, os Grundrisse contribuem para se entender as relações entre ciência, tecnologia e trabalho, de tal modo que a ciência e a técnica não eliminam o trabalho na geração do valor do capitalismo
Por: Graziela Wolfart
Na concepção do sociólogo e professor da Unicamp, Ricardo Antunes, os textos de Marx ressurgem com força no momento atual por vários motivos. Um deles “é a crise profunda que o capitalismo e, em termos mais precisos, o sistema de capital se encontram hoje. E segundo, porque junto a essa crise, e tendo claras conexões com ela, surgem as lutas sociais ampliadas em várias parte do mundo, o que permite uma certa retomada positiva da obra de Marx”. Ao analisar os Grundrisse, Antunes afirma, na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, que Marx vai mostrar, em 1857-1858 (ano em que escreveu seus cadernos), “que se a ciência se desenvolvesse de modo livre, se o progresso tecnocientífico não fosse limitado, plasmado por relações sociais moldadas pelo capital, nós podíamos chegar a uma situação em que o trabalhador seria um simples vigia e supervisor do processo de produção. De tal modo que o trabalho seria cada vez menor, cada vez menos extenuante, cada vez mais autoconstituinte e, portanto, seria um trabalho cada vez mais livre, autônomo, autodeterminado”. E percebe que a obra é publicada no Brasil “talvez no melhor momento da conjuntura mundial das últimas décadas. Desde 1968 não tínhamos lutas sociais em escala global tão amplamente difundidas. Isso marca um cenário mundial muito rico para o século XXI”.
Ricardo Antunes é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo. Realizou pós-doutorado na University of Sussex e obteve o título de Livre Docência pela Universidade Estadual de Campinas, onde hoje é professor. É autor de Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010), Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (São Paulo: Boitempo Editorial, 2009), entre outros títulos. Ele acaba de lançar O continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Didaticamente falando, o que são os Grundrisse e como entender que tenham sido traduzidos somente agora?
Ricardo Antunes – Os Grundrisse são anotações e estudos que Marx fez entre 1857 e 1858 e se constituem em verdadeira mina, pistas, notas, indicações que depois vão aparecer em uma exposição mais sistemática e volumosa na sua obra maior e monumental: O Capital. A riqueza maior dos Grundrisse está no fato de que esse livro traz várias indicações, muitas das quais não foram incluídas depois em O Capital. Esses cadernos, por condensarem uma primeira síntese de pesquisa, constituem um material primoroso. Eles estão sendo publicados agora no Brasil por uma deficiência de não termos conseguido consolidar, ao longo das décadas passadas, uma linha de traduções de autores clássicos, dos quais Marx está certamente no começo da fila. Felizmente nos últimos anos a editora Boitempo vem fazendo um trabalho primoroso no sentido de recuperar várias obras de Marx, que ou não estavam publicadas em edição brasileira ou estavam, mas carecendo de revisões, reelaborações. O Brasil tardiamente supre essa lacuna. Claro que os textos de Marx ressurgem com força por vários motivos. Um deles é a crise profunda que o capitalismo e, em termos mais precisos, o sistema de capital se encontram hoje. E segundo, porque junto a essa crise, e tendo claras conexões com ela, surgem as lutas sociais ampliadas em várias parte do mundo, o que permite uma certa retomada positiva da obra de Marx.
IHU On-Line – Qual a atualidade dessa intuição de Marx presente nos Grundrisse? Em que sentido esses textos ajudam a entender o mundo hoje?
Ricardo Antunes – É muito mais do que intuição. Marx tem anotações e reflexões que são calcadas em uma reflexão científica muito profunda. Ele era frequentador assíduo do museu britânico, onde por décadas ficou estudando, lendo, pesquisando, investigando sobre o capital. São sínteses de um processo reflexivo em curso, ainda que elaboradas pelo próprio autor para sua pesquisa, diferentemente de O Capital, que tem uma linha de exposição, como é o caso do volume 1. Os volumes 2 e 3 foram publicados depois da morte de Marx e foram finalizados por Engels . O que os Grundrisse têm de inspirador é o seguinte: a primeira pista importante é a conhecida introdução escrita em 1857, onde Marx fala do processo de produção do capital e esse processo enfeixa um movimento que passa da produção ao consumo, tendo a distribuição, a circulação ou a troca como elementos de mediação. Isso é muito importante, porque a concepção de produção para Marx é ampla. A constatação que ele faz nesse capítulo é de que não há produção sem consumo, nem consumo sem produção, ou seja, o processo de constituição do capital, ao mesmo tempo em que gera o mais valor, gera o processo de criação do trabalho excedente. Mas a geração do mais valor na produção só tem a sua efetivação finalizada na esfera do consumo. De tal modo que o capital é um sistema totalizante que abarca um amplo leque em que, por exemplo, podemos ver as alienações, as fetichizações e os estranhamentos na esfera da produção e as alienações, os estranhamentos e as fetichizações também na esfera do consumo. E uma não é separada da outra. São momentos distintos de um mesmo processo.
A base em evidências empíricas
Aqui está embutido um segundo elemento muito importante da análise marxiana. Mesmo quando Marx analisa processos particulares, ele busca sempre análises a partir de casos concretos, evidências empíricas, buscando sempre compreender este movimento da totalidade, que é uma categoria vital do seu método. Uma terceira pista dos Grundrisse pode ser encontrada nesa mesma introdução a que estou me referindo, que consta na presente edição brasileira, que é um item chamado “método na economia política” e que é excepcional. São poucas páginas, mas aqui Marx indica, primeiramente, que o segredo da ciência que ele está constituindo é capturar, apreender as formas da matéria, as formas de ser, os movimentos do real. De tal modo que esse percurso metodológico tem uma fundamentação ontológica. Isso quer dizer que é preciso compreender o concreto nas suas múltiplas determinações. É o ser, em sua concretude, que deve ser apreendido idealmente. O real existe independente da capacidade que os investigadores tenham de apreendê-lo ou não. Por isso Marx vai dizer que o real é o concreto pensado, concebido. Mas a prova de fogo de qualquer análise é a reflexão feita, esta elaboração do concreto no pensamento, sendo ou não expressão da realidade. Esse é um preceito ontológico e indica um ponto fundamental de Marx, que já foi apresentado com ênfase no século XX por Lukács . Esse preceito fundamental é de que Marx é o verdadeiro fundador de uma ontologia materialista e dialética, cujo precursor mais apurado foi Hegel , mas que oscilava entre a materialidade e a idealidade. A consequência disso é que, nos Grundrisse, o trabalho se torna uma categoria central. E Marx dá suas pistas sobre o trabalho. Ele faz longas digressões sobre o trabalho e a ciência, o trabalho e o desenvolvimento científico, a constituição do maquinário, das forças produtivas, do que ele chamava general intellect, este “intelectual coletivo”, que resulta de uma força produtiva potente dada pela conjugação entre a força de trabalho e o avanço tecnocientífico. Marx vai mostrar, em 1857-1858, que se a ciência se desenvolvesse de modo livre, se o progresso tecnocientífico não fosse limitado, plasmado por relações sociais moldadas pelo capital, nós podíamos chegar a uma situação em que o trabalhador seria um simples vigia e supervisor do processo de produção. De tal modo que o trabalho seria cada vez menor, cada vez menos extenuante, cada vez mais autoconstituinte e, portanto, seria um trabalho cada vez mais livre, autônomo, autodeterminado. Mas o mesmo Marx dirá o seguinte: como na sociedade movida pelo capital a técnica e a ciência não são livres, mas plasmadas por relações de produção capitalista que, ao mesmo tempo, as incentiva e as tolhe, a ciência não pode romper os liames do capital. Isso faz com que essa abstração de Marx, de imaginar um trabalho cada vez mais livre, só pode ocorrer quando as relações sociais de produção capitalistas voarem pelos ares, explodirem. Os Grundrisse são uma mina para se entender as relações entre ciência, tecnologia e trabalho, de tal modo que a ciência e a técnica não eliminam o trabalho na geração do valor do capitalismo.
IHU On-Line – Qual a especificidade ou a novidade dos Grundrisse em relação à concepção de Marx sobre o trabalho?
Ricardo Antunes – Marx foi o primeiro autor que, com densidade, superou o que chamo de uma visão pendular do trabalho, como positividade e negatividade. Marx superou essa visão porque partiu de Hegel, dando um salto. Ele foi o primeiro a perceber que há uma dialética do trabalho. Isso significa que o trabalho, ao mesmo tempo, é criação e servidão. Esse é um movimento contraditório que existe no próprio âmago do trabalho, o que depende do modo de vida e do modo de produção das coisas. Cada período histórico tem um movimento do trabalho; a escravidão teve um, a Idade Média teve outro, e o capitalismo marca um momento muito típico do trabalho, deixando de ser prevalentemente produtor de coisas úteis. Isso continua, mas se torna secundário, porque o trabalho se torna prevalentemente produtor, gerador de mercadoria, riqueza e mais valor, em particular a mercadoria força de trabalho. Por exemplo, nos Grundrisse Marx dá pistas sobre o que ele chama, em inglês, de work e de labor. E é esse o duplo movimento contraditório do trabalho. Quando ele fala no work, está se referindo ao trabalho que tem dimensões de criação, de um trabalho que gera coisas úteis e, ao mesmo tempo, socialmente falando, é autoconstituinte do processo de hominização do homem. Por outro lado, ele mostra que o trabalho, sobre o capitalismo, é, por excelência, labor: sofrimento, alienação, estranhamento, fetichização.
A questão da emancipação
Os Grundrisse trazem pistas e mais pistas sobre tantas questões e a questão da emancipação aparece de forma muito rica. O avanço das forças produtivas capitalistas e o avanço tecnocientífico criaram, pela primeira vez, as bases socioeconômicas que podem possibilitar a emancipação humano-social. Mas, ao mesmo tempo em que o capitalismo criou as bases socioeconômicas da emancipação, ele é, em si e por si, o sistema da unilateralização, do constrangimento, das alienações, das reificações e dos estranhamentos. O sistema do capital, e em particular o capitalismo, cria as possibilidades para a emancipação, mas é, ao mesmo tempo, um impulsionar do ser humano a sua unilateralização. Se o trabalho é fetichizado e estranhado, como posso ter uma vida fora do trabalho livre e emancipada? È uma impossibilidade ontológica. Marx mostra que o capitalismo impossibilita qualquer efetivação plena de um indivíduo livre dentro e fora do trabalho. Dessa forma, os Grundrisse são uma mina para nos ajudar a descortinar o século XXI. Claro que esse é um desafio dos intelectuais críticos do século XXI, especialmente das lutas sociais que estamos vendo explodir em intensidade global como não víamos há muito tempo. Os Grundrisse são parte desse cenário e é publicado no Brasil talvez no melhor momento da conjuntura mundial das últimas décadas. Desde 1968 não tínhamos lutas sociais em escala global tão amplamente difundidas. Isso marca um cenário mundial muito rico para o século XXI.
IHU On-Line – Os Grundrisse podem contribuir para pensarmos uma alternativa ao capitalismo nos dias hoje?
Ricardo Antunes – O principal desafio do marxismo hoje é duplo: primeiro, é desvendar o mundo atual. Por volta de 15 ou 20 anos atrás estávamos na onda pós-moderna de que o marxismo tinha acabado, de que Marx estava morto, sepultado, não tinha mais nada a nos oferecer. Nós adentramos em uma fase de crise estrutural profunda do capital que rejuvenesceu e “ressuscitou” a obra de Marx. Então, o primeiro desafio dos marxistas é compreender o século XXI, o nosso entorno. A obra de Marx, em seu conjunto, é fortemente inspiradora para uma alternativa para além do capital. Mas os Grundrisse têm a particularidade de serem anotações, indicações, textos inconclusos, que percebiam embriões de tendência no século XIX que hoje estão plenamente desenvolvidas. Por exemplo, a questão da ciência e da técnica e suas conexões com o trabalho. Essa obra é mais um ingrediente importante para esse decisivo processo de redescobrimento de Marx, que nos auxilia diante dos desafios radicais do século XXI.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4215&secao=381

O capitalismo como um processo de acumulação
Emir Sader defende que a proposta de transformação do mundo está articulada na visão do marxismo, que perde a sua essência ao se transformar em “um exercício acadêmico, crítico, especializado, desvinculado da prática política”, explica
Por: Graziela Wolfart
“Muito mais do que O Capital, os Grundrisse constituem uma reflexão mais abrangente no sentido de que aborda temas econômicos mais amplos, temas históricos, políticos, culturais e sociológicos. O livro traz elementos para uma reflexão sobre a evolução histórica da humanidade em esferas muito diferenciadas. É uma obra monumental para o conhecimento da história e do capitalismo do mundo contemporâneo”. A definição é do professor e filósofo Emir Sader. Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, ele declara que vários aspectos podem ser tomados a partir dos Grundrisse. Um deles é de que “o capitalismo é um modelo de acumulação, feito para acumular e não para produzir. O capitalismo é o sistema que mais transformou a história da humanidade e as sociedades humanas em menos tempo”. E continua: “o capitalismo financeiro não é aquele que financia a produção, o consumo, a tecnologia; é um capitalismo financeiro que vive da especulação, da compra e venda de papéis. Esse é um elemento fundamental para entender o capitalismo contemporâneo. Chegou-se a uma fase financeira que, conforme análises, é sempre a fase final. É uma fase de não retorno, de sedentarismo, de esgotamento do modelo, que é claramente o caso do capitalismo”. Para Sader, os Grundrisse constituem um “festival de reflexões de colocações em prática do método de Marx. É um exemplo claro de uma aplicação da dialética às distintas circunstâncias e esferas do conhecimento e da prática humana”.
Emir Sader graduou-se em Filosofia, cursou o mestrado em Filosofia Política e doutorou-se em Ciências Políticas, pela Universidade de São Paulo – USP. Na instituição, foi professor de política e filosofia. Também foi docente da Universidade de Campinas – Unicamp e da Universidade do Chile. Professor aposentado da USP e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia, Sader dirige o Laboratório de Políticas Públicas – LPP, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em contexto de crise econômica e financeira mundial, em que sentido a leitura dos Grundrisse e da obra de Marx como um todo pode contribuir para pensarmos sobre os rumos do capitalismo?
Emir Sader – Vários aspectos podem ser tomados a partir dos Grundrisse. Um deles é de que o capitalismo é um modelo de acumulação, feito para acumular e não para produzir. O capitalismo é o sistema que mais transformou a história da humanidade e as sociedades humanas em menos tempo. A construção urbana, por exemplo, praticamente é produção do capitalismo. A sociedade industrial também. Mas acaba-se associando indevidamente a ideia de acumulação com a ideia de produção. Marx, no terceiro volume de O Capital, e nos Grundrisse muito mais, afirma que o capitalismo é um processo de acumulação. Se precisar passar pela produção, ele passa. No entanto, trata-se de uma contradição profunda, porque não existe acumulação financeira sem haver processo produtivo. Porém, é um desvio essencial. A própria crise atual do capitalismo começou com uma crise financeira, porque na época neoliberal o capital financeiro é hegemônico. Todo o grande conglomerado tem suas estruturas produtivas, mas na sua cabeça tem uma estrutura financeira. O capitalismo financeiro não é aquele que financia a produção, o consumo, a tecnologia; é um capitalismo financeiro que vive da especulação, da compra e venda de papéis. Esse é um elemento fundamental para entender o capitalismo contemporâneo.
O esgotamento do modelo capitalista
Chegou-se a uma fase financeira que, conforme análises, é sempre a fase final. É uma fase de não retorno, de sedentarismo, de esgotamento do modelo, que é claramente o caso do capitalismo. O boom econômico que acabou desembocando nessa crise atual foi o boom imobiliário, financiado de maneira virtual, fajuta, por pirâmides financeiras, sem fundamento na produção real. De repente desmoronou, caiu. O caso dos Estados Unidos e da Espanha é mais significativo. Significa que aquele elemento estrutural do capitalismo, que está muito presente nos Grundrisse, é aquele de que o capital produz e não distribui renda para consumir o que produziu – então suas crises são sempre de superprodução e subconsumo, ou seja, são o desequilíbrio entre produção e consumo. E daí vem a fase que agora aparece de forma escandalosa: sobra produção, mas em vez de distribuir renda, as pessoas são mandadas embora, aumenta-se o desemprego e cortam-se os custos de políticas sociais, intensificando ainda mais a crise e desequilibrando a produção e o consumo. O momento da crise é de irracionalidade. A desregulamentação que o neoliberalismo promoveu fez com que houvesse uma brutal e gigantesca transferência de investimentos, de renda do setor produtivo para o setor especulativo, que é onde se ganha mais. A especulação financeira é uma espécie de câncer que o capitalismo criou em seu seio.
IHU On-Line – O que faz dos Grundrisse um patrimônio das ciências humanas?
Emir Sader – Muito mais do que O Capital, os Grundrisse constituem uma reflexão mais abrangente no sentido de que aborda temas econômicos mais amplos, temas históricos, políticos, culturais e sociológicos. O livro traz elementos para uma reflexão sobre a evolução histórica da humanidade em esferas muito diferenciadas. É uma obra monumental para o conhecimento da história e do capitalismo do mundo contemporâneo.
IHU On-Line – O que os Grundrisse revelam sobre o método de trabalho de Marx?
Emir Sader – Ele reflete sobre o método de trabalho ao qual Marx já tinha chegado e coloca em prática. Refiro-me a todo aquele caminho de descoberta de que a realidade não é compreensível aos olhos, ou como ele mesmo diz: se o mundo fosse compreensível empiricamente a ciência seria desnecessária. Trata-se de todo esse processo de desconstrução da positividade imediata do mundo, para depois voltar a compreendê-lo como síntese concreta de múltiplas determinações. Os Grundrisse é um festival de reflexões de colocações em prática do método de Marx. É um exemplo claro de uma aplicação da dialética às distintas circunstâncias e esferas do conhecimento e da prática humana.
IHU On-Line – Como o contexto histórico e político em que Marx vivia contribui para a compreensão de seus escritos, principalmente os Grundrisse?
Emir Sader – Com razão, o pano de fundo da compreensão das obras de Marx é o conjunto de obras de Eric Hobsbawm sobre as “eras”. A obra de Marx tem uma perdurabilidade impressionante. É feita para entender a história humana, mas muito contrastivamente voltada para a compreensão do capitalismo. Os Grundrisse permitem aprofundar essa compreensão de que, de alguma maneira, o capitalismo conspira contra ele mesmo. Marx viveu essa contradição profundamente, por ser um teórico e um militante político. Os Grundrisse remetem sempre a tudo o que Marx tomou como a contemporaneidade: o processo de acumulação, a revolução comercial e industrial e os limites disso em relação à luta de classes, bem como o surgimento do proletariado e a construção das alternativas ao capitalismo.
IHU On-Line – Qual a importância de Marx ser um ativista revolucionário, além de pensador revolucionário, para o sucesso de sua obra?
Emir Sader – Marx não pretende elaborar mais uma visão de mundo. É um projeto que nasce da compreensão real das contradições do processo histórico e tem, em si, a ideia de transformação do mundo. É totalmente absurdo aos olhos de Marx (e deveria ser aos nossos olhos também!) marxistas acadêmicos, universitários, críticos, críticos, críticos. Não tem sentido, não tem realidade, não tem verdade em um marxismo apenas crítico. Marx fazia crítica como compreensão das veias do processo histórico e político concreto para articular com uma alternativa. O marxismo tem articulado, em sua visão, a proposta de transformação do mundo. Ele perde a sua essência ao se transformar em um exercício acadêmico, crítico, especializado, desvinculado da prática política. Marx só é o monstro que foi e continua sendo porque ele bebia nas fontes concretas do processo histórico e da sua própria prática política.
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"Grundrisse" de Marx. Um outro paradigma teórico para os desafios contemporâneos
Jorge Paiva fala sobre a proposta de um novo paradigma teórico para vencermos os desafios atuais. Trata-se de formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional, a partir da leitura da obra de Karl Marx intitulada Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, conhecidos simplesmente, como Grundrisse
Por: Graziela Wolfart
Republicamos, a seguir, uma entrevista concedida por Jorge Paiva à IHU On-Line, originalmente publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 19-06-2006, ocasião em que Paiva esteve na Unisinos, fazendo a apresentação do livro As aventuras da mercadoria, de Anselm Jappe. “A natureza da crise é exatamente a crise categorial, das categorias do capitalismo. Para os marxistas tradicionais soa como se estivéssemos questionando a teoria da gravidade. Porque essas categorias são consideradas ontológicas, naturais. Não se discute isso. Quando questionamos essas categorias, o edifício treme”, afirma.
Jorge Paiva faz parte do grupo Crítica Radical, de Fortaleza-CE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a contribuição brasileira para essa discussão sobre os Grundrisse?
Jorge Paiva - Essa nova concepção teórica contraria a formulação teórica dos agrupamentos de maneira geral no país. É uma formulação teórica nova, que vai fundo na crítica ao marxismo tradicional. Ela descobre duas leituras de Marx. Uma leitura que está sustentada na luta de classes, na política, no Estado, na ditadura, no proletariado, na revolução socialista. E a outra é a crítica radical do valor, do fetichismo, da mercadoria, do trabalho, do Estado, do mercado, do dinheiro. Portanto, é uma fundamentação teórica que busca uma relação social distinta da distribuição. De um lado, temos uma discussão que se caracteriza muito na distribuição das mercadorias. Ela está em torno do resultado da natureza da crise, da própria crise do valor. É uma discussão que, em última instância, por mais radical que ela seja, moderniza o sistema.
Uma crítica às categorias
Do outro lado, temos uma crítica categorial. É uma crítica às categorias fundantes do capitalismo, portanto, muito mais profunda. O próprio Marx considerava essa parte a mais difícil da obra dele. Eu, inclusive, fui aconselhado a não começar por esse caminho. Mas é nele que está a riqueza. Essa contradição não está resolvida pela maioria dos grupos marxistas do Brasil. A natureza da crise é exatamente a crise categorial, das categorias do capitalismo. Para os marxistas tradicionais soa como se estivéssemos questionando a teoria da gravidade. Porque essas categorias são consideradas ontológicas, naturais. Não se discute isso. Quando questionamos essas categorias, o edifício treme.
A crise do valor
Por exemplo, uma coisa muito rica nessa discussão é entendermos que o valor tem sexo, que o capitalismo tem sexo. E que a entrada da modernidade deu, no capitalismo, um papel diferente ao homem e à mulher. E que, portanto, o patriarcado anterior se reforçou no capitalismo. Então, as mulheres ficaram subalternas, "o homem manda", exatamente porque também o valor deslocou isso. Então, como a crise atual é uma crise do valor, ela também ocasiona a "crise do macho". Como ela leva a essa "crise do macho", ela pode despertar nas mulheres um papel diferente. Evidentemente que aí há um problema, porque o movimento feminista não pode pedir só oportunidade de ser igual ao homem. Tem que pensar num movimento que supere, porque o "macho" é um valor dessa sociedade em crise. Isso abre uma perspectiva nova.
Do ponto de vista do pós-modernismo é algo ainda maior, porque o pós-moderno é um pensamento que, em função da crise anterior, fragmentou a teoria. Na crítica que ele faz ao marxismo ele o fragmenta. No entanto, como ele não faz da crítica a crítica às categorias, ele se desarma perante isso, porque, para pegarmos a natureza da crise hoje, temos que ter uma visão de conjunto do sistema. Mesmo porque o capitalismo não está aqui ou lá. Ele é global, ele é "one world". Então, temos que fazer uma vista geral desse processo. Assim, começamos a perceber que essas formulações teóricas deixam a desejar. Parece que o futuro está com essa concepção teórica nova. Pelo menos estamos sentindo isso.
IHU On-Line O que quer dizer a expressão "crítica radical do valor" a que o senhor se refere no comentário sobre o livro de Jappe?
Jorge Paiva - O livro é algo novo, inusitado em termos de edições brasileiras. Ele analisa esse aspecto da crítica radical do valor a partir de Marx, e vai estudar, portanto, a dupla natureza da mercadoria. Ele mostra como isso é fundamental no sentido do trabalho, do dinheiro. Aponta que isso está em crise e que uma abstração real comanda a nossa vida. É algo que está nas nossas costas, portanto não é a leitura do conflito de classe que nos permite ver o mundo, é exatamente captar essa abstração real. Essa é uma expressão em contradição: como uma abstração pode ser real? Ele vai aprofundar e provar isso, de forma acessível, didática e bonita, trazendo tudo para a realidade do trabalho, da política, mostrando as insuficiências da crise do Estado, do mercado, do dinheiro.
A crítica ao trabalho
Jappe vai fundo na crítica ao trabalho. Ele dimensiona e localiza etimologicamente como o trabalho era entendido como uma relação de servidão, dependência, indo na raiz da palavra trabalho. Tudo isso para dizer que o trabalho foi imposto, que as armas entraram nos regimes absolutistas para que as pessoas fossem deslocadas do campo para se congregarem nas fábricas e isso possibilitou um processo de expansão do sistema muito grande. Era uma dinâmica quase que absoluta, porque não tinha obstáculo que o sistema não superasse. As iniciativas revolucionárias que aconteceram no período da expansão do capitalismo acabaram derrotadas porque fizeram a tomada de poder, tomaram o aparelho do Estado e mantiveram as categorias do capitalismo. O que é a foice e o martelo? Trabalho.
A natureza da crise
A novidade é que, enquanto o sistema sofria o processo de expansão, os obstáculos foram derrubados. Hoje o limite não está vindo das iniciativas revolucionárias. Está vindo internamente ao sistema. Quando o sistema tira o trabalho, ao substituir pela microeletrônica, ele serra o galho onde ele está sentado. Daí vem a natureza da crise. Para superar essa crise, é preciso pensar em uma relação social nova, que não esteja mais baseada nessas categorias. E daí "a coisa pega", porque o sujeito, que somos nós, frutos desse processo, não queremos "largar o osso". Queremos continuar, ver se há possibilidades de melhorar, já que não é possível que a situação piore. Mas está piorando, cada dia que passa piora, e temos que pensar em uma saída para superar isso com uma certa urgência.
IHU On-Line - De que forma pode se fazer uma "crítica radical" às categorias fundantes do capitalismo como valor, trabalho, mercadoria, dinheiro, Estado, política, democracia e nação?
Jorge Paiva - Isso não é algo fácil, porque a crise é também uma crise do sujeito, da pessoa humana. Nós temos nas nossas cabeças camadas geológicas muito grandes, que advém inclusive do período primitivo, pré-moderno e do capitalismo. Essas camadas se formaram e se assentaram com base no que chamamos de relações fetichistas. E a relação fetichista da mercadoria casou com isso. Quando um homem sai do processo da primeira natureza e entra na situação da segunda natureza, as relações históricas são relações fetichistas. Não são relações de classes, de poder. Elas, pelo contrário, estão subordinadas ao fetiche. O fetiche moderno é o fetiche do dinheiro, da mercadoria. Como a crise atinge essas categorias, a pessoa que está com essa formação entra em crise, porque ela quer manter uma situação que não tem mais condições de se manter. Então começamos a ver aberrações sociais das mais variadas, porque há uma incorporação dessa lógica, que está enraizada nas nossas cabeças. Aprendemos e só sabemos fazer, só conhecemos isso.
É preciso pensar na superação do sujeito
Então, ao entrar em contato com outras pessoas, ao pensar em uma outra possibilidade, essa lógica vem em primeiro plano. Estabelecer uma crítica radical para pensar na superação disso não basta pensar apenas na superação das categorias. É preciso pensar em uma superação do próprio sujeito, portanto, da própria pessoa da qual fomos construídos e criados, organizados. Essa tarefa é difícil. Por outro lado, o universo das pessoas em termos de atuação social se dá exatamente em como se distribuem essas categorias. Então, apela-se para o Estado, pois é o Estado que deve harmonizar isso, a pessoa quer um emprego, porque depende do trabalho, porque com o trabalho ela compra as mercadorias, e esse encontro se dá no mercado. A atuação da pessoa é política, porque o cidadão é a pessoa que atua, que reivindica direitos, que vota.
Não basta apelar para o Estado, para o mercado. Não basta ter trabalho, porque amanhã a pessoa pode estar desempregada. Somos forçados a pensar em uma situação nova. A dificuldade da crítica radical, nesse particular, é organizar um novo movimento social, radical, transnacional, e pensar um tipo de relação social que não seja mais mediada pela troca. Isso é difícil, porque fomos educados na troca, mas por outro lado, ou nós fazemos isso ou então vamos sucumbir com o sistema. O atual sujeito está no Titanic e no convés está tocando a banda. Ele quer que a banda continue tocando, não quer abandonar o barco.
IHU On-Line - O que devemos aproveitar de Marx e por que é necessário ir além dele?
Jorge Paiva - Marx foi a pessoa que, na época dele, um tanto quanto único, infelizmente, captou esse problema das categorias. Marx pegou o capitalismo nascente, se desenvolvendo, ainda muito jovem, com muita força e impetuosidade. E ele como observador e estudioso, e em um local privilegiado como a Inglaterra, conseguiu captar essa questão das categoriais. Marx separa algumas mercadorias, descobre que a mercadoria é a célula germinal. No estudo da comparação de duas mercadorias, ele percebe que, de um lado e de outro da equação, tem algo em comum, que é o valor e que quem mede isso é o tempo de trabalho. As pessoas não sabem, mas fazem isso. E ao perceber isso, ele foi capaz de prospectar para vários anos depois dele a possibilidade dessa categoria e dessa relação social entrar em crise.

Marx não viveu isso, pelo contrário. A época dele foi a época da expansão do sistema. Por isso, a leitura da luta de classes acabou predominando. Esse tesouro ficou escondido e essa responsabilidade ele transferiu para nós hoje, no sentido de irmos além dele. E só é possível ir além dele se subirmos nos ombros dele, exatamente nessa ótica, que é uma ótica abandonada pela esquerda, que acha que a luta de classe é a que dá conta da natureza da crise. E nós estamos convencidos de que não dá, não é possível enfrentar a complexidade do mundo hoje com um tipo de análise que é capenga, que não está bem fundamentada, que explica elementos secundários, mas superficiais.
IHU On-Line E qual a contribuição de Debord, com "A sociedade do espetáculo"?
Jorge Paiva - Debord foi alguém da turma de 1968 que resgatou esse problema da mercadoria. O espetáculo, para ele, é o desenvolvimento do processo da mercadoria. O desenvolvimento do capital é tanto que vira imagem. Essa é a contribuição de Debord. Ele traz isso no seu livro, A Sociedade do Espetáculo. Ele fala das implicações disso, diz que a sociedade da atualidade (dele, sendo que o livro saiu em 1967) é essa sociedade do espetáculo e ao provar isso, ele abre na época algo inusitado, porque foram raras as pessoas que fizeram isso. O grande valor de Debord está exatamente nisso. Talvez por causa disso ele tenha sido tão maltratado pela esquerda e pela direita: porque foi um inovador. A nossa tradução brasileira veio quase 30 anos depois, em 1997.
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