O livro: "As Raízes da Pobreza e da Fome no Brasil" foi publicado pela Editora Sinodal em 1990 em preparação à Assembléia da FLM em Curitiba em 1990. Rui Bernhard e Huberto Kirchheim foram os coordenadores. Copio aqui a Apresentação e a Introdução e o início do Capítulo 1
O livro se divide e 4 capítulos:
1. As massas ignoradas
2. As massas manipuladas
3. As massas dispensadas
4. As massas arrochadas
APRESENTAÇÃO
Por proposta de ORSA (Office for Research and Social Action) do Departamento de Serviço Mundial da Federação Luterana Mundial (FLM), o Conselho Diretor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) aprovou a idéia de elaborar um documento com o título As Raízes da Pobreza e da Fome no Brasil. Com a elaboração desse documento a FLM quer atingir três objetivos:
1. Oferecer às comunidades da IECLB um documento de estudo sobre a realidade em que atuam.
2. Apresentar um pouco da realidade brasileira aos hóspedes/delegados da Assembléia da FLM em Curitiba.
3. Ajudar a comunidade luterana a compreender que confessar a fé no trino Deus nos leva a detectar e eliminar as causas da falta de vida digna e justa para a maior parte da humanidade.
INTRODUÇÃO
Sinto-me honrado por ter sido solicitado a fazer a introdução para o relatório do estudo sobre As Causas da Pobreza e da Fome no Brasil. Este estudo foi realizado pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Embora a IECLB tenha lançado mão do conhecimento especializado de alguns consultores ecumênicos locais, como o Dr. Marcos Arruda, este estudo foi inteiramente controlado pela Igreja do Brasil, que é sua proprietária. É por esta razão que temos que congratular a IECLB por cumprir com êxito as expectativas da Sexta Assembléia da Federação Luterana Mundial (FLM), realizada em 1977 em Dar es Salaam, que "afirmou a necessidade de mudanças radicais nos sistemas econômicos do mundo como um passo essencial rumo à consecução da paz". Essa Assembléia recomendou ainda que "sejam realizados estudos, em consulta com as igrejas-membros, sobre as causas fundamentais da injustiça social e econômica". Este estudo não foi feito pelo Office for Research and Social Action (ORSA) do Departamento de Serviço Mundial da FLM. A IECLB realizou a pesquisa em consulta com ORSA.
A vantagem da pesquisa participatória e interdisciplinar é que se torna mais fácil direcioná-la para paróquias locais. As Raízes da Pobreza e da Fome no Brasil é feito conscientemente a partir da perspectiva das massas pobres e ignoradas. Ele não só focaliza como a maioria da população brasileira tem sido oprimida e alienada, mas também revela como as massas resistiram e como estão organizando agora o "contrapoder". É neste sentido que este estudo não pode servir de estudo de caso para a América Latina como um todo.
O relatório da pesquisa é um raio X do Brasil contemporâneo à luz do passado e é corroborado por exemplos concretos extraídos da vida cotidiana no Brasil. A pesquisa vê com olhos muito críticos o papel das igrejas na construção do movimento popular e da democracia participativa. É interessante para o/a leitor/a observar a capacidade da Igreja de examinar-se criticamente. A análise das causas fundamentais da injustiça econômica e social é abordada a partir de uma perspectiva mais "dialética" e "estrutural" contemporânea do que a partir de um ângulo histórico.
Somos gratos a todos os indivíduos e grupos que participaram deste estudo. Um subtítulo do capítulo I é "O Luxo e o Lixo na Terra de Santa Cruz". Esse subtema perpassa o estudo todo e é de fato um dos principais objetivos por trás do engajamento das igrejas no trabalho relativo à injustiça sócio-econômica e política. É de se esperar que muitas igrejas aprendam não só do conteúdo deste relatório, mas também das excelentes ferramentas de pesquisa utilizadas de modo muito eficaz pela IECLB.
Dr. Sibusiso M. Bengu
Office for Research and Social Action
Federação Luterana Mundial
Genebra, 8 de novembro de 1989
AS MASSAS IGNORADAS
Sai do lixo a nobreza
Euforia que consome
Se ficar o rato pega
Se cair urubu come.
(Joãozinho Trinta, "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia", 1989)
O luxo e o lixo na Terra de Santa Cruz
Em Brasília, a tão cantada "capital da esperança", sempre causou estranheza, pelo menos aos mais sensíveis, a situação dos candangos. Eram eles, afinal, os construtores da "gigantesca obra de interesse nacional" - como foi festejada - da sonhada "nova Lisboa", de que já falavam os habitantes do Brasil Colonial.
Juscelino Kubitscheck prometera não esquecer aqueles trabalhadores, que chamara de "amigos". Mas o fato é que os candangos foram esquecidos. Brasília, afinal, não era para eles. Para a gente simples, que juntara e cimentara as pedras da capital, existiam as vilas da miséria, sem infra-estrutura e sem condições de vida digna, como Ceilândia, Tabatinga e outras.
Repetia-se, mais uma vez, a estranha justiça brasileira - discriminatória, marginalizante e excludente - que divide o povo desta terra desde 1500: de um lado, os senhores, as sinhás, os proprietários, os de cima, a elite, enfim, aqueles que tudo merecem. Do outro, os escravos, as mucamas, os peões, os de baixo, a massa - os que merecem, quando muito, algumas migalhas.
A história de Brasília ilustra o profundo dualismo que caracteriza a sociedade brasileira. Se é verdade que o Brasil é hoje a sétima ou oitava economia do mundo ocidental, também é verdade o que nos revelam os indicadores sociais: boa parte da população brasileira vive em condições de miserável marginalidade, seja no mundo rural, seja na periferia das grandes cidades.
Em nenhum país do mundo - nem na Índia - são mais aberrantes os contrastes sociais: 15% das famílias brasileiras, com rendimento per capita de até um quarto do salário mínimo, vivem em estado de miséria; 35% das famílias, com rendimento de até meio salário mínimo (incluídas as precedentes), vivem em estado de miséria ou estrita pobreza. Esse estado corresponde à condição de 41% dos brasileiros. Das pessoas que trabalham, 65,1% recebem remuneração mensal de até um salário mínimo; somente 10% ganham mais de três salários mínimos.
Em suma: a pobreza e a fome no Brasil têm origem política, isto é, resultam da vontade humana - ou da falta de vontade. As causas da fome dependem da forma de organização da sociedade brasileira, dos mecanismos que decidem sobre a distribuição das riquezas produzidas, da relação de força dos atores, indivíduos e grupos que fazem a história do país e dela participam. A fome no Brasil foi e está sendo gerada por uma estrutura política que enriquece alguns e empobrece muitos.
Mas isto não é novidade. Logo após o descobrimento, o branco europeu aqui chegava, investia o seu capital na terra fértil, recrutava a força de trabalho escrava - índia ou negra - e passava a produzir o que tinha mercado garantido na metrópole. Esse caráter da organização social brasileira se manteve durante séculos e ainda se mantém. A fazenda é a instituição modeladora da sociedade. Em torno dela e a partir do seu modelo, organiza-se todo o sistema sócio-político do país. Ainda que a industrialização mais recente tenha tornado a sociedade mais complexa, o modelo de fazenda permanece como instituição formadora fundamental. O sistema deu origem à sociedade brasileira e, apesar de obsoleto, determinou, durante quatro séculos, a ordenação da vida nacional, no caso do açúcar, do cacau, do gado, do algodão e, mais recentemente, da soja, da laranja e do álcool. A fazenda desalojou - como continua acontecendo nas novas áreas de colonização da região amazônica - o indígena, depois o posseiro. E substituiu a força de trabalho escrava por trabalhadores remunerados com salários baixíssimos.
Como os senhores - que viviam em grandes e luxuosas casas, enquanto a massa escrava se amontoava nas senzalas miseráveis como bestas de carga - a classe dominante de nossos dias edifica os centros luxuosos das cidades, enquanto a massa trabalhadora incha as periferias miseráveis. Como os senhores, que usavam o voto de cabresto para legitimar o mandato dos seus representantes, o poder econômico elege os representantes da elite. O modelo perpassa a sociedade brasileira e cria a ideologia que o justifica. A camada senhorial considera-se merecedora da sua condição de privilegiada e a camada oprimida, introjetando a ideologia dominante, aceita a sua condição, considerando-a uma espécie de mal inevitável.
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