29 de setembro de 2012

Qual a idéia (teologia) dominante na Igreja (qualquer Igreja cristã)?




As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. Por exemplo, numa época e num país em que o poder monárquico, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pela dominação, onde portanto a dominação está dividida, aparece como ideia dominante a doutrina da separação dos poderes, enunciada então como uma "lei eterna". Karl Marx. A Ideologia Alemã.

A questão de saber se cabe ao pensar humano uma verdade objetiva - não é uma questão da teoria, mas sim uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensar. A controvérsia acerca da realidade ou não realidade do pensar - que está isolada da práxis - é uma questão puramente escolástica. 2ª Tese - Teses sobre Feuerbach. Karl Marx.

"Quando o povo está encurralado pelo Estado colonial, a Igreja Católica não aparece. Mas quando o povo encurrala o Estado colonial, o padre aparece, rezando pelos dirigentes. Eu vivi isso como dirigente sindical". Evo Morales

Diz no noticiário sobre os últimos acontecimentos no Paraguai: Até mesmo a Igreja Católica – ao menos a Igreja hierárquica – lugar do qual saiu Lugo, o abandonou. Um dia após a sua deposição, a Igreja Católica paraguaia já considerava Lugo uma página virada. O Vaticano foi o primeiro Estado a reconhecer o novo governo. No dia seguinte após a sua posse o novo presidente, Federico Franco, foi a uma missa campal na Praça das Armas, na capital Assunção, e recebeu a comunhão. O núncio apostólico foi o primeiro embaixador estrangeiro a se encontrar com Franco no dia 23 de junho, dia seguinte à destituição de Lugo, e a foto do encontro foi amplamente divulgada mundo afora, enquanto os países sul-americanos condenavam o golpe parlamentar.

"Aborreceis na porta ao que vos repreende e abominais o que fala sinceramente. Portanto, visto que pisais o pobre e dele exigis tributo de trigo, não habitareis nas casas de pedras lavradas que tendes edificado; nem bebereis do vinho das vides desejáveis que tendes plantado. Porque sei serem muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados; afligis o justo, tomais suborno e rejeitais os necessitados na porta. Portanto, o que for prudente guardará, então, silêncio, porque é tempo mau." Amós 5.10-13

Parafraseando Amós eu diria: Aborreceis na reunião do presbitério o/a pastor/a que vos repreende porque sonegais parte do Dízimo e abominais o que vos chama justamente de corruptos porque roubais a Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, visto que explorais os trabalhadores a tal forma de terem LER e ficarem impossibilitados para qualquer trabalho por causa do ritmo de trabalho à eles impostos nos frigoríficos, indústrias e escritórios, não habitareis nas mansões que tendes edificado; nem bebereis o champanha importado da França nas festas do Ano Novo porque o povo trabalhador explorado, a partir da fé em Jesus Cristo, vai se levantar contra vós e construir uma nova sociedade de iguais e solidária: o Reino de Deus. Então o tempo mau terá passado. Aleluia!

Qual a idéia (teologia) dominante na Igreja (qualquer Igreja cristã)?
É a idéia da classe economicamente dominante que impõe a sua ideologia, sua teologia, e sua prática de Igreja na Comunidade. Quando o Evangelho se opõe à isto aquele que o prega é expulso da comunidade, se for leigo é marginalizado (porque leigo não dá para expulsar assim no mais), se for pastor/a é expulso no período da Avaliação ou da renovação do TAM, com outros argumentos é claro, às vezes até claramente pelos argumentos das idéias da classe economicamente dominante na sociedade porque o sujeito não se sujeitou às determinações teológicas/ideológicas e práticas da classe economicamente dominante, pois ameaçou o capital e a sua reprodução material e imaterial pela pregação do Evangelho de Jesus Cristo.

A idéia dominante na comunidade normalmente não vem do Evangelho de Jesus Cristo, cuja mensagem central é o Reino de Deus (que propõe a construção de uma nova sociedade de irmãos e de irmãs, sem classes sociais, portanto, uma sociedade não capitalista), mas vem da dinâmica do capital, que produz o seu jeito de pensar e o impõe, normalmente de forma velada, à toda a sociedade como sendo a idéia produzida por toda a sociedade e como sendo a única explicação da realidade. Isto se chama de Ditadura do Pensamento Único que é usada para legitimar a reprodução da Ditadura do Capital. Politicamente vivemos numa democracia burguesa à serviço da Ditadura do Capital, portanto, vivemos numa democracia de fachada, que obviamente é melhor que a Ditadura civil-militar de 64. Vivemos no Estado de Direito do Capital que vai abocanhar em 2013 o total de 42% do orçamento da União, que são os juros e encargos da dívida interna e externa (mais 52,2 bilhões de reais do PAC e Minha Casa Minha Vida, para a educação sobram 38 bilhões de reais e 29,9 bilhões para o Brasil sem Miséria), melhorou porque neste ano foram 47%.

Nós cristãos e cristãs batizados/as em nome da Trindade temos outra explicação da realidade vivida neste mundo a partir do Evangelho de Jesus Cristo. Este Evangelho diz que há outra proposta de organização da vida e da sociedade, além da vigente, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. O Reino de Deus é de Deus e não do mundo. O Reino de Deus vem para fazer oposição ao reino do mundo e não só isto, mas para acabar com o jeito de organizar a vida e a sociedade que o mundo propõe, no entanto a maioria das pessoas da comunidade cristã defende primeiro o reino do mundo em detrimento do Reino de Deus. Não conseguem entender que o reino do mundo, hoje o capitalismo, é inimigo do Reino de Deus que Jesus Cristo veio para instaurar em nome de Deus, como diz em Lc 4.43. Na verdade em Jesus Cristo, um camponês palestino marginalizado sem terra e sem teto, o próprio Deus fez uma opção de classe para instaurar o Reino de Deus. Deus em Jesus de Nazaré optou pela classe camponesa oprimida e explorada pelo sistema econômico vigente para mudar radicalmente esta organização social naquilo que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Deus não se fez pessoa na classe camponesa em Jesus de Nazaré para legitimar e reproduzir o modo de produção vigente no Império Romano, mas para construir uma nova forma de organização social onde as pessoas são irmãs e iguais. Por isso as pessoas na igreja se chamam de irmãs porque querem construir uma nova sociedade de irmãos e irmãs (esta é a nova criatura da qual fala Paulo 2 Co 5.17: "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas".), portanto iguais o que requer que os meios de produção esteja sob o controle de toda a sociedade o que obviamente requer uma sociedade sem classes sociais e evidentemente sem Estado. "As coisas antigas" das quais Paulo fala é o velho Modo de Produção Escravista predominante no Império Romano. "Estar em Cristo" é começar na prática a viver nesta nova sociedade que é o Reino de Deus que para ser instaurado luta contra "as coisas antigas", o modo de produção baseado em classes sociais antagônicas e em permanente luta, que no tempo de Paulo era o Modo de Produção Escravista e hoje é o Modo de Produção Capitalista, que igualmente está baseado me classes sociais antagônicas em luta permanente. O Reino de Deus pressupõe uma sociedade sem classes sociais, por isso os que lutam contra esta sociedade de classes já de forma antecipada se chamam de irmãos para mostrar onde querem chegar: numa sociedade igualitária. Ao menos na igreja já experimentamos com antecedência o que o Reino de Deus quer ser em sua plenitude e o ponto alto disto é a Ceia do Senhor onde partilhamos comida e bebida com todos os que crêem para mostrar como vai ser esta nova sociedade com as novas criaturas em Cristo. Aí que a Teologia do Reino de Deus entra em choque com a Ideologia capitalista que permeia as idéias e as teologias da comunidade. Por isso é fundamental para a burguesia controlar a máquina eclesiástica, vai que algum/a pastor/a se mete à besta e começa a falar que o capitalismo é um instrumento que o diabo usa para tentar impedir a construção do Reino de Deus! Aí como é que fica! O capitalismo fica deslegitimado e desmoralizado! Pau na pastorada que se metem à besta!

Estou defendendo a pastorada à qualquer custo? Não, estou denunciando apenas as dinâmicas que o capitalismo usa para se reproduzir e que nós por causa de nossa ignorância (no sentido de ignorar, não saber) não percebemos porque nunca fomos desafiados (ou temos medo) a estudar o capitalismo. Estudamos teologia, mas não estudamos o mundo no qual esta teologia vai ser vivida e pregada. Se lêssemos Lucas corretamente veríamos que ele faz no início dos capítulos 2 e 3 uma breve análise de conjuntura para mostrar em que realidade Javé se fez sua opção de classe num camponês sem terra. Além do mais Jesus de Nazaré, o Deus encarnado na classe camponesa, convive por trinta anos com estes camponeses até começar a pregar o Evangelho do Reino de Deus. Por que? Para entender bem a realidade na qual e para a qual vai evangelizar. Como acontece isto na IECLB? A pastorada é enviada para uma paróquia sem explicação nenhuma e se vire, pressupondo-se que conheça a realidade desta paróquia e do país Brasil. Parece-me que somente a simples leitura do Evangelho não nos ajuda a entender as coisas porque nem este aprendemos a ler direito, porque aprendemos a não ver as coisas concretas que nele se diz. Precisamos de outros instrumentos para nos ensinar como se deve ler a realidade. Por isso precisamos aprender o método de leitura da realidade que Marx desenvolveu que revela como o capitalismo funciona para podermos entendê-lo e combatê-lo. A igreja normalmente não quer nem saber do método de leitura da realidade que Marx desenvolveu porque esta leitura vai mostrar que a igreja normalmente está do lado errado no processo histórico da construção do Reino de Deus, está normalmente do lado do diabo, que defende a reprodução do capitalismo, o reino do mundo, e não do lado de Deus, que defende a construção do Reino de Deus, uma nova sociedade não classista e igualitária. Nós vamos entender melhor o Evangelho e a realidade na medida em que fizermos, como Deus fez em Jesus de Nazaré, uma opção de classe. Pois vemos o mundo a partir de onde temos os pés fincados, por isso Jesus nasceu na estrebaria (local de trabalho, de vida e reprodução de vida do camponês) e não no palácio do rei Herodes, como os magos achavam. Por que? Porque desde pequenos somos ensinados a não ver as coisas como elas são. Achamos que conhecemos a realidade. Normalmente não conhecemos nenhuma das duas realidades, nem da comunidade nem do país. E para dentro desta realidade que não conhecemos queremos pregar o Evangelho achando que as pessoas vivem nas nuvens fora da realidade de luta de classes que há na sociedade. Para começar nem reconhecemos que há luta de classes na sociedade e muito menos na igreja. Um membro uma vez disse ao pastor: 'Vocês pastores não tem a mínima idéia de como nós membros pensamos'. Não fazemos análise da realidade e com isso erramos em nossa prática, pois não conhecemos a realidade na qual somos enviados para pregar o Evangelho do Reino de Deus. Análise errada, prática errada. Aí o que acontece? Os presbíteros que são raposas velhas e que controlam a paróquia há mais de 20 anos dão a linha de nossa prática e com isso determinam nossa teologia, que por, às vezes, ser parca não percebe o engodo em que fomos metidos. E porque somos medrosos ficamos quietos e fazemos de conta que não está acontecendo nada quando descobrimos que somos paus mandados a serviço do capital. Parece como na guerra: matar e deixar matar para sobreviver.
Isto me lembra que no final dos anos 80 no ex-DE Uruguai conseguiu-se articular as eleições dos presbitérios que não tinham tendência de direita e quase havíamos alijado as raposas velhas da ARENA do poder, mas aí vieram os anos 90 e o endireitamento teológico e quando voltei em 2002 ao que sobrou do DE Uruguai, agora Sínodo Uruguai, vi com espanto que as velhas raposas da ARENA dos anos 80 que haviam sido afastadas via articulação nas paróquias, estavam todas de volta e continuam hoje firmes nas paróquias e no Sínodo. Falta de clareza teológica dá nisso. Lênin diria: 'Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário'. Ou melhoramos e clareamos a nossa teologia ou não avançaremos como Igreja. Em outras palavras estou dizendo: quem dá a linha teológica nas paróquias é a ex-ARENA (em alguns lugares o PMDB ou PT arenizado), agora travestida de muitas outras cores. Estes que no tempo da ditadura denunciavam seus pastores para o Dops ou os expulsavam da paróquia por não apoiarem a ditadura. Como canta o Cazuza: 'Meus inimigos estão no poder'. Isto nos mostra que temos muita formação teológica, não neutra, pela frente para fazer para que a teologia do Evangelho do Reino de Deus dê a linha ao trabalho paroquial.
Em se falando de ingenuidade (teológica), ou nem tanto, lembro de um membro que veio da igreja católica, e foi um luterano de berço, que deu o seu testemunho no Dia Sinodal da Igreja no ano passado; é de chorar. A colegada precisa se informar melhor sobre a história dos membros que são chamados para darem seu testemunho. É bom perguntar por aí para as pessoas quem é quem que a gente descobre muita coisa torta que parece estar reta. Pessoas de Palmitos que conheciam esta pessoa tiraram sarro do fato. Nós somos facilmente enrolados, por sermos ingênuos e por não fazermos uma leitura correta da realidade erramos na prática. Teoria fraca, prática fraca. Teoria errada, prática errada. Análise errada, prática errada. Quem erra na análise, erra na prática.
Quem defende as idéias da classe economicamente dominante na comunidade? Normalmente são os próprios trabalhadores empobrecidos e embrutecidos pela dinâmica da reprodução do capital que formam o presbitério da comunidade juntamente com a pequena burguesia. Os grandes capitalistas nem se dignam a fazer parte do presbitério, eles tem mais o que fazer para reproduzir o capital. São a pequena burguesia local e pessoas da classe trabalhadora explorada (camponeses e operários) que representam as idéias e concepções de mundo dos capitalistas no presbitério da comunidade e defendem estas idéias como sendo as únicas possíveis e como se fossem suas se esquecendo que o Evangelho de Jesus Cristo propõe idéias e práticas teológicas opostas aos do capitalismo.
Como fazer com que o Evangelho de Jesus Cristo seja a idéia/teologia dominante na comunidade? Chegamos ao cúmulo de ter que fazer esta pergunta.

Este é o desafio, também na construção de um Projeto de Igreja para a IECLB.
Se o/a pastor/a disser claramente que o Evangelho de Jesus Cristo se opõe ao capitalismo, pois propõe outra forma de organizar a vida e a sociedade: o Reino de Deus, ele/a resistirá por quanto tempo nesta comunidade e quem o/a defenderá? As leis da estrutura da IECLB e ela própria defenderão este/a pastor/a que prega pura e retamente o Evangelho e como o/a defenderá?
É a paróquia que escolhe o/a pastor/a e é a paróquia que o demite. A Igreja já elaborou algumas leis para regularizar isto, pois normalmente os/as pastores/as eram (e continuam sendo volta e meia) demitidos/as de forma irregular. Hoje a paróquia já tem que levar o pedido de exoneração ao Conselho Sinodal e esperar o parecer deste, mas normalmente a situação fica tão tensa que a sugestão ao pastor/a é: não tem mais clima, cai fora. A forma mais moderna agora, com a Reestruturação neoliberal, é esperar a renovação do TAM e aí não se precisa justificar nada, apenas se diz que terminou o Termo de Atividade Ministerial - TAM, muito obrigado e tchau. Soube que as últimas vítimas da dupla dinâmica: TAM e Avaliação, foram os nossos colegas de Portão, RS, certamente salvaram muito poucas almas, não foram santos o suficiente e não se encaixaram nas normas de produtividade exigidas pela pequena burguesia que controla ao aparato eclesiástico.

"É na práxis que o ser humano tem de provar a verdade", diz Marx. E a práxis na Igreja tem sido pressionar o/a pastor/a para que não pregue contra o capitalismo; simplesmente não deve abordar o tema. Não abordar o tema é legitimá-lo, pois o capitalismo é o oposto do Reino de Deus, por ser o reino do mundo, portanto instrumento do diabo. O que o capitalismo produz de injustiça e exploração sobre a classe trabalhadora mostra que ele não pode ser igual ao Reino de Deus e nem ser da vontade de Deus. Por exemplo: tudo o que se produziu de riquezas nos anos de 2009 e 2010 nos USA o 1% mais rico da população ficou com 93% do total de riquezas produzidas e os outros 99% da população ficaram com os 7% restante, diz a Revista Veja de 15 de agosto de 2012. 58% dos estadunidenses concordam como sendo justo que os ricos acumulem esta riqueza; no Brasil são 48% os que concordam que é justo os ricos terem a riqueza que tem. Segundo dados de 2004, no Brasil, os 10% mais ricos concentram em bens e riquezas, do total, 75% e os 25% restantes ficam com os 90% da população. Há algo mais escandaloso que isto? Tanto no que diz respeito à acumulação da riqueza como no jeito de pensar da população à respeito do processo de enriquecimento. Este é o papel da ideologia da classe economicamente dominante: legitimar a realidade do capital e esconder esta realidade que faz parte da luta de classes. A Igreja sempre tem uma postura como se estivesse acima da luta de classes que há na sociedade, pior, nela se diz que não existe a luta de classes nem na sociedade e muito menos dentro dela mesma. Diabólica ilusão! Não podemos mexer nos interesses da classe capitalista e de seus aliados, e a classe trabalhadora, como é que fica? Bem, esta que se vire! A gente faz de conta que não existem classes sociais em nossa sociedade e muito menos na igreja, pois todos somos irmãos e iguais na igreja. Se pessoas da classe trabalhadora são expulsas de suas casas para poderem ser construídos os estádios para a Copa ou para as Olimpíadas, paciência; se camponeses, mesmo de nossas comunidades, são expulsos pelas barragens, paciência; se os/as operários/as da Sadia, Marfrig, Aurora, etc. em cinco anos de trabalho tem LER, paciência; se trabalhadores são escravizados nas fazendas do agronegócio mesmo no oeste catarinense, paciência. Como Igreja a gente não fala disto e por isso isto não existe; nem na TV aparece, então não existe. Se uma comunidade nossa é atingida por alguma barragem então a única preocupação tem que ser se a igreja e o pavilhão vão ser indenizados o resto não é conosco, pensa-se, mesmo não o dizendo. A gente até defende os atingidos teoricamente porque a sua expulsão vai atingir também o orçamento da nossa paróquia e com isto a Contribuição vai aumentar para todos.

Lembro, como exemplo, a divisão da África feita em 1885 em Berlim onde o rei Leopoldo II da Bélgica tornou o Congo sua propriedade particular e dizimou a metade da população pelo assassinato e superexploração do trabalho, principalmente, na colheita da borracha. Os missionários cristãos durante a maior parte deste tempo não diziam nada e não denunciavam este genocídio (morreram 10 milhões de pessoas, o massacre foi maior que o Holocausto nazista) porque estavam apenas interessados em batizar os nativos e assim salvar a sua alma. Como disse uma irmã missionária: "As crianças mortas pelos soldados agora estão salvas no céu e são anjinhos que vão rezar pelo rei". Se dissessem algo sobre este genocídio seriam expulsos do Congo e não teriam a oportunidade de salvar as almas deste povo "pagão". Só que ninguém se lembrou de que quem deveria ser evangelizado era o rei Leopoldo II e seus funcionários belgas que tinham práticas assassinas pagãs. O que de qualquer forma não teria adiantado, pois Deus também enviou Moisés ao Faraó e este não se converteu porque a sua prática econômica não o permitira. Os capitalistas, por mais que ouçam o Evangelho, não se converterão porque a sua prática econômica não o permite. O máximo que farão (e é o que estão fazendo há séculos) é redimensionar o Evangelho para que este se adapte às demandas do capital, por isso precisam controlar a Igreja através da pequena burguesia e trabalhadores alienados. A Igreja estava interessada em salvar as almas enquanto isso o capitalismo estava matando literalmente os corpos do povo congolês. A Igreja simplesmente calou e com isto legitimou a dinâmica do capital. Assim é hoje. O Reino de Deus quer mudar a sociedade e a Igreja. Se a Igreja não mudar ela será contra esta nova sociedade que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Historicamente sabemos que a Igreja sempre foi contra qualquer movimento que queria mudar a sociedade em bases igualitárias. A luta da Igreja e do Estado contra os chamados Movimentos Heréticos mostra isto. O Movimento Luterano (que era herético segundo o ponto de vista da Igreja Oficial) escapou do extermínio por causa da conjuntura da época. Recomendo ler o livro da editora Expressão Popular: A História do Socialismo e das Lutas Sociais de Max Beer, que começa com Moisés, passa pelos primeiros cristãos, pelas experiências igualitárias gregas, romanas e pelos movimentos cristãos igualitários (chamados de heréticos) da Idade Média até o início do século 20.
Aí é que entra a Igreja, como legitimadora desta realidade de superexploração do povo trabalhador, não falando desta realidade. A melhor forma de legitimar o capital é não falar da desumanidade e da diabolicidade dele.

Hoje o grosso da Igreja Cristã cala frente a escandalosa concentração da renda e da terra (onde 1,9% dos proprietários controlam 51% de todas as terras agriculturáveis do país - 228 milhões de hectares estão improdutivos, subutilizados e abaixo dos critérios de produtividade de 1975), a Igreja cala frente o massacre que acontece nos frigoríficos da carne, onde um trabalhador após 5 a 10 anos fica permanentemente inválido para o trabalho por causa da LER e com dores horríveis até o fim de sua vida (isto é realidade em nosso Sínodo Uruguai onde a Sadia recolheu aos cofres do INSS de 2003 a 2007 o total de 30 milhões de reais e em contrapartida o INSS gastou com a Sadia 170 milhões de reais devido ao custeio de aposentadorias precoces e auxílio doença de seus operários. O povo brasileiro, via INSS, gastou 140 milhões de reais para Sadia continuar matando seus trabalhadores de tanto trabalhar). "Cortar tarifa (da energia elétrica) é bom, mas é preciso ver como fazer isso para manter a integridade do lucro das empresas", diz Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás, ao comentar sobre a ação do governo Dilma em baixar a tarifa da energia elétrica. O fundamental no capitalismo é a "integridade do lucro das empresas" e não a integridade da vida humana dos atingidos pelas barragens que dão este lucro às empresas de energia elétrica. Sobre a violência que representa a expulsão dos camponeses ribeirinhos por causa dos empreendimentos das barragens nenhuma palavra, mas somente um repúdio ao fato destas empresas de energia elétrica terem o seu sagrado lucro reduzido um pouquinho e por isso já se fala em despedir milhares de empregados para poderem garantir a mesma margem de lucro, fazendo com que a peonada que sobrou trabalhe mais. Só para se ter uma idéia do lucro destas empresas lembro da CPFL que em 2009 teve um lucro de 1,3 bilhão de reais e em 2010 a Tractebel Energia lucrou 1,2 bilhões de reais e a Eletrobrás no mesmo ano lucrou 2,2 bilhões de reais. Isto não é coisa de Deus, é coisa do diabo. Por isso temos que dizer em alto e bom tom: O capitalismo é um instrumento que o diabo usa para tentar impedir a construção do Reino de Deus. Assim, a nossa tarefa é lutar contra o capitalismo, pois assim estaremos lutando contra o diabo e seus aliados na comunidade. A Igreja cristã que deveria organizar estes trabalhadores em conjunto com os sindicatos não o faz e assim age como os missionários no passado no Congo: 'não enxergamos nenhum massacre'. Enquanto isso, como Igreja, estamos apenas preocupados em "construir e animar comunidade", enquanto que a "matéria prima" desta comunidade é massacrada pelo capital industrial e do agronegócio com suas sementes transgências aliadas aos venenos que geram a cada ano mais 75 mil novos casos de câncer. A Igreja para não causar "confusão na comunidade" não clareia a luta de classes da sociedade e faz de conta que vivemos numa harmonia social. Não dá para mostrar o "câncer social", pois a pequena burguesia que controla a comunidade fica alarmada, pois isto ameaça e revela a imoralidade do lucro dos capitalistas e assim produz e reproduz este "câncer social" em aliança à dinâmica do grande capital, que todos chamam pelo nome pomposo de "Progresso e Desenvolvimento".

Outro espaço que nós obreiros/as deixamos para os outros, principalmente aos pentecostais fisiologistas, é a luta político partidária. São poucos os/as pastores/as que se candidatam para cargos eletivos, vereador, prefeito, deputado, senador. Por que? Porque as comunidades que tem uma formação teológica reduzida, por culpa da própria Igreja que não tem coragem de falar o que deveria falar, não permitem isto, com raras exceções. É bom lembrar que o ex-pastor presidente Kunert foi vereador e por isso, não só por isso, foi um bom pastor presidente em sua época, comparado com os outros. Quando a Igreja faz formação procura fazer formação "neutra", que de neutra não tem nada. Diz-se: Não podemos dizer como o mundo funciona porque o povo se assusta e nós espantamos o povo com a verdade. Aí preferimos contar estorinhas e fábulas e colhemos o que temos aí: a Reestruturação neolibral que é o projeto de igreja da pequena burguesia que acima de tudo quer defender o projeto do capital e adaptar o Evangelho às necessidades da reprodução do capital. Políticos da IECLB há muitos e em todos os partidos, a esmagadora maioria faz parte dos partidos que defendem o capitalismo. Políticos da IECLB de posturas de esquerda há poucos por causa de nossa formação teológica de direita que temos na Igreja. Não que seja de orientação de direita consciente e programada, mas é a tal formação "neutra" que acaba conduzindo para a direita porque não é claramente posicionada em favor da classe trabalhadora explorada pelo capital. Por que? Porque quem dá a linha teológica na comunidade é a direita (os capitalistas e seus representantes advindos da classe trabalhadora alienada) e não são os/as obreiros/as como diz no Regimento Interno da IECLB; obviamente há exceções. Se voltasse a ditadura hoje você veria com muita clareza quem a apoiaria. Mas a ditadura (civil-militar) está, no momento, em "stand by" porque o capitalismo vai bem obrigado, só se sentiu ameaçado em Honduras e no Paraguai. Quando a Ditadura do Capital se sentir ameaçada ela vem com tudo, sempre foi assim. Não se iludam. Ela produz dez Iraques e Afeganistãos se for necessário. Já fez isto no passado, porque não o faria novamente. Quem nos pendurará no pau de arara serão nossos atuais 'companheiros aliados' no governo e seus aliados e porta vozes na comunidade. Está na hora de termos um projeto claro de formação teológica para o nosso povo, sem meias verdades e subterfúgios ideológicos mal ditos e não expressos, que só favorecem a exploração e a opressão de nosso povo. Fazemos de conta que a nossa formação teológica, nos cursos que a Igreja oferece, não está perpassada por ideologia alguma, o que é demagogia pura e escamoteada. Fazemos de conta que estamos contentando gregos e troianos, mas na verdade estamos contentando o diabo. A Teologia da Cruz não escamoteia e esconde coisa alguma ela mostra como funciona a luta de classes e como é a realidade do mundo onde manda o 'príncipe do mundo' (Jo 12.31; 14.30; 16.11). Martin Luther diz na Tese 21 da Demonstração das Teses Debatidas no Capítulo de Heidelberg: "O teólogo da glória afirma ser bom o que é mau, e mau o que é bom; o teólogo da cruz diz as coisas como elas são". Mas, ao que parece Teologia da Cruz é coisa lá do Lutero, não coisa da IECLB. Aqui vale o jeitinho brasileiro de sobreviver e este nada tem a ver com a Teologia da Cruz, tem a ver com a teologia da glória e da prosperidade. Uma Igreja que não consegue nem garantir a sua visibilidade externa via vestes litúrgicas e liturgia (que são normas básicas da Igreja, estou aqui novamente defendendo a estrutura) para ser reconhecida externamente como IECLB, como vai querer garantir uma Teologia da Cruz que enfrenta o 'príncipe deste mundo' de frente que usa o capital como seu mais forte instrumento de dominação real e ideológica?

O que a colegada diz? Ninguém lê os teus textos porque são muito extensos. Faça um resumo. Parece colegial que em vez de ler o livro, para aprender alguma coisa, procura seu resumo na internet para apresentá-lo na aula e acha que é muito esperto porque conseguiu enganar a professora. Vai ser um eterno alienado. Creio que a maioria da colegada não lê nada que vai além de três parágrafos e por isso estamos onde estamos como Igreja.

O Projeto de Igreja que queremos elaborar para a IECLB no Sínodo Uruguai vai fazer de conta que a luta de classes não existe ou vai enfrentar ela? Vai fazer de conta que não há luta de classes na Igreja ou vai clarear ela? Que ideologia/teologia tem este presbitério que sonega parte do Dízimo que deveria ser enviado ao Sínodo e ainda ameaça o/a pastor/a que quer por ordem na corrupção? Que teologia, a não ser a do deus capital, permite e legitima a corrupção dentro da Igreja como algo normal, pois é assim a dinâmica do capital? O Projeto de Igreja para o Sínodo Uruguai vai olhar toda a realidade em que vive o nosso povo ou vai apenas se preocupar em salvar a 'alma' deste povo (como os missionários no Congo no século 19, enquanto 10 milhões de pessoas eram massacradas pelos soldados nativos do rei Leopoldo II); se for isso: onde fica a vida abundante de Jo 10.10 que Jesus Cristo veio trazer?

É na práxis que a Igreja vai mostrar se é ou não evangélica (segundo o Evangelho do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus Cristo, o Deus encarnado na classe camponesa palestina que foi assassinado na cruz, no processo da luta de classes da época, pela Religião e pelo Estado à serviço do sistema econômico escravista romano). A Cruz de Cristo mostra a luta de classes dos tempos bíblicos (por isso na maioria das igrejas da IECLB não tem um crucifixo para que se possa esconder a luta de classes e os crucificados de hoje pelo capital) e nós hoje fazemos de conta que não há luta de classes nem na sociedade e nem na Igreja, santa ingenuidade (!) ou apenas fazemos de conta que não sabemos disto porque isto mostraria as feridas abertas pelo capital em nossa própria comunidade eclesial?
Um dia teremos que estudar e falar mais aprofundadamente das "Feridas abertas da nossa Igreja", como diria Eduardo Galeano.

28 de setembro de 2012

Os OGM estão novamente no banco dos réus



Um estudo francês constata um número maior de tumores e uma mortalidade mais elevada em ratos alimentados com milho geneticamente modificado da Monsanto.

A reportagem é de Marc Mennessier e está publicada no jornal francês Le Figaro, 19-09-2012. A tradução é do Cepat.

As imagens dão motivos para medo: os ratos alimentados com um milho transgênico, largamente utilizado na ração animal há ao menos 10 anos, desenvolveram tumores monstruosos, alguns do tamanho de bolas de pingue-pongue. O fígado e os rins desses infelizes roedores também apresentam graves lesões (necroses, congestões...) e sua mortalidade é duas a três vezes maior.

Estes são os resultados “alarmantes”, segundo seus autores, de um estudo que deverá ser publicado na revista Food and Chemical toxicology e também no Le Nouvel Observateur com o título: “Sim, os OGM são venenos!”. O estudo reaviva os debates sobre a periculosidade real ou presumida dos organismos geneticamente modificados, num contexto em que a França tenta, no momento sem sucesso, proibir essas cultura na Europa.

Sob a responsabilidade de Gilles-Éric Séralini, professor de biologia molecular na Universidade de Caen, os autores desse estudo acompanharam durante dois anos nada menos que 200 ratos que eles distribuíram em nove grupos de 20 indivíduos cada. O objetivo era testar os efeitos de um regime alimentar contendo três doses (11%, 22% e 33% da ração total) de milho transgênico NK603 da Monsanto, que foi tratado ou não com Roundup, herbicida também produzido pela Monsanto ao qual esse milho é resistente. Enfim, três outros grupos de roedores foram alimentados com água que continha doses de herbicidas próximas daquelas comparadas aos animais indicadores alimentados com uma variedade não transgênica, muito próxima (mas não idêntica ou isógena) do NK603 e que não recebeu Roundup.

Os resultados mostram uma taxa de mortalidade mais alta e frequente entre os animais expostos ao OGM e/ou ao herbicida. “Uma vez o período médio de sobrevivência transcorrido, as mortes foram atribuídas ao envelhecimento”, escrevem os autores. Depois deste período, 30% dos machos e 20% das fêmeas do lote indicador morreram espontaneamente”. Mas entre os animais alimentados com OGM, essas proporções chegam “até a 50% para os machos e 70% para as fêmeas”. Segundo este estudo, os tumores mamários, muito significativos, são mais frequentes em todos os grupos expostos ao milho transgênico e/ou ao herbicida, mas as diferenças não são sempre significativas no plano estatístico. Ao contrário, as lesões do fígado são muito mais comuns (de 2,5 a 5,5 vezes maiores), especialmente entres os machos, comparados ao grupo indicador. O aumento é igualmente muito acentuado, mas em proporções menores para as patologias renais.

“Em nosso estudo, os tumores se desenvolveram consideravelmente mais rápidos que no grupo controlado, mesmo se a maioria delas foi observada após 18 meses”, prosseguem os autores. O que é relativamente tardio para animais cuja esperança de vida é no máximo três anos. “Os primeiros tumores grandes detectados apareceram entre o 4 e o 7 mês, respectivamente entre os machos e as fêmeas, o que mostra a inadequação dos testes padrões de 90 dias utilizados para avaliar as culturas OGM e a toxicidade alimentares”, notam ainda os autores.

Avaliação de longo prazo

Segundo Séralini, o milho NK603 até agora só foi testado num período de três meses e é primeira vez que o Roundup é avaliado num longo prazo com seus coadjuvantes. “O crime é que isso não foi testado antes, que as autoridades sanitárias não tenham exigido testes mais longos, ao passo que os OGM já estão sendo comercializados há 15 anos no mundo”, acusa ele.

As reações evidentemente não se fazem esperar. Desde ontem ao meio-dia, os ministros da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde fizeram saber, num comunicado, que eles vão acionar “imediatamente” a Agência Nacional de Segurança Sanitária (Anses) para averiguar os fatos. Segundo eles, o governo francês está próximo, “em função da opinião da Anses”, de pedir a Bruxelas para que suspenda “urgentemente a autorização de importação na União Europeia do milho NK603”. “Caso os novos fatos científicos forem demonstrados, tiraremos as consequências”, garantiu Frédéric Vincent, porta-voz da Comissão Europeia da Saúde, ao indicar que a Agência Europeia de Segurança Alimentar (Aesa) vai se apropriar do dossiê.

Por enquanto, os cientistas contatados pelo Le Figaro compartilham seu ceticismo em relação ao estudo. “Faltam dados numéricos sobre os tumores e análises bioquímicas, mas também sobre o regime alimentar e o histórico do tronco dos ratos utilizados”, nota o toxicólogo Gérard Pascal. Além disso, contrariamente ao que afirma Séralini, numerosos estudos de longo prazo foram realizados em ratos e animais de criação (vacas leiteiras, suínos, carneiros, aves...) alimentados com OGM. Nenhum deles mostrou diferenças significativas...

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/514042-os-ogm-estao-novamente-no-banco-dos-reus

Mercado sem desenvolvimento: a causa da crise.




Artigo inédito de Karl Marx

O texto abaixo é um dos achados do projeto Mega – Marx-Engels GesamtAusgabe, que, a partir dos arquivos de Karl Marx, está organizando a sua imensa obra ainda inédita: 114 volumes, o último dos quais será publicado em 2020.

Para entender em que mundo vivemos e viveremos, este artigo jamais lido do Capital, parece ter sido escrito hoje.

O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 08-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A enorme quantidade e variedade de mercadorias disponíveis no mercado não dependem apenas da quantidade e da variedade de produtos, mas são, em parte, determinadas pela entidade da parte de produtos produzidos como mercadorias, que deverão, portanto, ser inseridos no mercado para a venda na qualidade de mercadorias.

A grandeza dessa parte das mercadorias vai depender, por sua vez, do grau de desenvolvimento do modo de produção capitalista que produz os seus próprios produtos apenas como mercadorias, e do grau em que tal modo de produção domina em todas as esferas da produção.

Deriva daí um grande desequilíbrio no intercâmbio entre países capitalistas desenvolvidos, como a Inglaterra, por exemplo, e países como a Índia ou a China. Esse desequilíbrio é uma das causas da crise.

Causa totalmente negligenciada pelos burros que se contentam em estudar a fase do intercâmbio de um produto por outro produto e que esquecem que o produto não é, portanto, em caso algum, mercadoria intercambiável enquanto tal. Isso constitui também a pedra no sapato que leva os ingleses, dentre outros, a querer subverter o modo de produção tradicional existente na China, na Índia etc., para transformá-lo em uma produção de mercadorias e, em particular, em uma produção baseada na divisão internacional do traba-lho (ou seja, na forma de produção capitalista).

Eles conseguem, em parte, esse intento, por exemplo, quando prejudicam os fiadores de lã ou de algodão vendendo seus produtos a um preço inferior ou arruinar o seu modo de produção tradicional, que não é capaz de competir com o modo de produção capitalista ou com o modo capitalista de inserir as mercadorias no mercado.

Embora o capital produtivo, por sua própria natureza, esteja disponível no mercado, isto é, oferecido à venda, o capitalista pode (por um período de tempo longo ou curto, de acordo com a natureza das mercado-rias) mantê-lo longe do mercado se as condições não lhe forem favoráveis ou com o fim de especular, ou outro. O capitalista pode subtrair o capital produtivo do mercado das mercadorias, mas, em um momento posterior, será obrigado a reinseri-lo. Isso não tem efeitos sobre a definição do conceito, mas é importante para a observação da concorrência.

A esfera da circulação das mercadorias, o mercado, é, enquanto tal, diferente também fisicamente da esfera da produção, exatamente como são diferentes temporalmente o processo de circulação e o efetivo pro-cesso de produção. As mercadorias agora prontas ficam depositadas nos armazéns e nos depósitos dos capitalistas que as produziram (exceto no caso de serem vendidas diretamente), quase sempre só de modo passa-geiro, antes de serem expedidas para outros mercados.

Para as mercadorias, trata-se de uma estação de preparação a partir da qual serão inseridas na efetiva esfera de circulação, exatamente como os fatores da produção disponíveis permanecem à espera, em uma fase preparatória, antes de serem transportados para o efetivo processo de produção.

A distância física entre os mercados (considerados do ponto de vista da sua localização) e o lugar do processo de produção das mercadorias dentro de um mesmo país, e sucessivamente fora dele, constitui um elemento importante, porque é justamente a produção capitalista que faz com que, para uma boa parte dos seus produtos, o mercado seja constituído pelo mercado mundial. (As mercadorias também podem ser adquiridas para serem retiradas imediatamente do mercado, mas esse elemento deveria ser examinado em outros lugares, assim como a menção anterior às mercadorias que os produtores mantêm longe do mercado).

Consequentemente, é preciso que o mercado se expanda continuamente. Além disso, em todas as es-feras individuais da produção, todo capitalista produz de acordo com o capital que lhe é oferecido, indepen-dentemente do que fizerem os outros capitalistas. No entanto, não será o seu produto, mas sim o produto total do capital investido nessa particular esfera de produção que irá constituir o capital produtivo, que oferece à venda esta e qualquer outra esfera individual de produção.

É um dado empírico que, embora a dilatação da produção capitalista leve a um incremento, a uma multiplicação do número de esferas de produção, ou seja, de esferas de investimento do capital, nos países de produção capitalista avançada, essa variação jamais mantêm o mesmo ritmo que o acúmulo do próprio capital.

Contra o estrago do liberalismo, recuperar o Marx filósofo




O filósofo francês Dany-Robert Dufour refletiu sobre as mutações que esvaziaram o sujeito contemporâneo de narrativas fundadoras. Essa ausência é, para ele, um dos elementos da imoralidade liberal que rege o mundo hoje. Seu trabalho como filósofo crítico do liberalismo culmina agora em um livro que pergunta: que indivíduo surgirá depois do liberalismo? Talvez seja o caso, defende, de recuperar o Max filósofo, que defendia a realização total do indivíduo fora dos circuitos mercantis.

Eduardo Febbro - Direto de Paris

Alguns já o veem terminado, outros a ponto de cair no abismo, ou em pleno ocaso, ou em vias de extinção. Outros analistas estimam o contrário e afirmam que, embora o liberalismo esteja atravessando uma série crise, seu modelo está muito longe do fim. Apesar das crises e de suas consequências, o liberalismo segue de pé, produzindo seu lote insensato de lucros e desigualdades, suas políticas de ajuste, sua irrenunciável impunidade. No entanto, ainda que siga vivo, a crise expôs como nunca seus mecanismos perversos e, sobretudo, colocou no centro da cena não já o sistema econômico no qual se articula, mas sim o tipo de indivíduo que o neoliberalismo terminou por criar: hedonista, egoísta, consumista, frívolo, obcecado pelos objetos e pela imagem fashion que emana dele.

A trilogia da modernidade liberal é muito simples: produzir, consumir, enriquecer. O filósofo francês Dany-Robert Dufour refletiu sobre as mutações pós-modernas que esvaziaram o sujeito contemporâneo de narrativas fundadoras. Essa ausência é, para o filósofo, um dos elementos da imoralidade liberal que rege o mundo contemporâneo. Seu trabalho como filósofo crítico do liberalismo se desenvolveu em livros como “Le Divin Marché” (O Divino Mercado) e culmina agora em um apaixonante livro que coloca uma pergunta que poucos se fazem: como será o indivíduo que surgirá depois do liberalismo?

Dany-Robert Dufour não só lança mais uma diatribe sobre o sistema liberal, mas explora os conteúdos sobre os quais pode-se refundar a humanidade depois desse pugilato planetário do despojo e da estafa que é o ultra-liberalismo. Mas a humanidade não se funda no automatismo, mas sim através dos indivíduos. Seu livro, “L’individu qui vient...après le libéralisme” (O indivíduo que vem...depois do liberalismo) explora o transtorno liberal do passado e esboça os contornos de um novo indivíduo ao qual o filósofo define como “simpático”, ou seja, abertos aos outros que também o constituem.

O liberalismo, que se apresentou como salvador da humanidade, terminou levando a o ser um humano a um caminho sem saída. Você considera o fim desse modelo e se pergunta sobre qual tipo de ser humano surgirá depois do ultra-liberalismo?

Dany-Robert Dufour: No século passado conhecemos dois grandes caminhos sem saída históricos: o nazismo e o stalinismo. De alguma maneira e entre aspas, depois da Segunda Guerra Mundial fomos liberados desses dois cami-nhos sem saída pelo liberalismo. Mas essa liberação terminou sendo uma nova alienação. Em suas formas atuais, ou seja, ultra e neoliberal, o liberalismo se plasma como um novo totalitarismo porque pretende gerir o conjunto das relações sociais. Nada deve escapar à ditadura dos mercados e isso converte o liberalismo em um novo totalitarismo que segue os dois anteriores. É então um novo caminho sem saída histórico. O liberalismo explorou o ser humano.

O historiador húngaro Karl Polanyi, em um livro publicado depois da Segunda Guerra Mundial, demonstrou como, antes, a economia estava incluída em uma série de relações sociais, políticas, culturais, etc. Mas, com a irrupção do liberalismo, a economia saiu desse círculo de relações para converter-se no ente que procurou dominar todos os demais. Dessa forma, todas as economias humanas caem sob a lei liberal, ou seja, a lei do proveito onde tudo deve ser rentável, incluindo as atividades que antes não estavam sob o mandato do rentável.

Por exemplo, neste momento eu e você estamos conversando, mas não buscamos rentabilidade e sim a produção de sentido. Neste momento estamos em uma economia discursiva. Mas hoje, até a economia discursiva está sujeita ao “quem ganha mais”. Cada uma das economias humanas está sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a economia política, daí o derretimento da política. O político só existe hoje para seguir o econômico. A crise que atravessa a Europa mostra que, quanto mais ela se aprofunda, mais a política deixa a gestão nas mãos da economia. A política abdicou ante a economia e esta tomou o poder. Os circuitos econômicos e financeiros se apoderaram da política, A crise é, por conseguinte, geral.

O título de seu livro, “O homem que vem depois do liberalismo”, implica a dupla ideia de uma fase triunfal e de um fim do liberalismo...

DRD: Paradoxalmente, no momento de seu triunfo absoluto o liberalismo dá sinais de cansaço. Nos damos conta de que nada funciona e as pessoas vão tomando consciência desta falha e têm uma reação de incredulidade. Os mer-cados se propuseram a ser uma espécie de remédio para todos os males. Você tem um problema? Pois então recorra ao Mercado e este aportará a riqueza absoluta e a solução dos problemas. Mas agora nos damos conta de que o mercado acarreta devastações.

Assim, vemos como esse remédio que devia nos fornecer a riqueza infinita não traz senão miséria, pobreza, devastação. O capitalismo produz riqueza global, sim, mas ela é pessimamente repartida. Sabemos que há 20, 30 anos, as desigualdades têm aumentado pelo planeta. A riqueza global do capitalismo despoja de seus direitos a milhões de indivíduos: os direitos sociais, o direito à educação, à saúde, em suma, todos esses direitos conquistados com as lutas sociais estão sendo tragados pelo liberalismo. O liberalismo foi como uma religião cheia de promessas. Nos prometeu a riqueza infinita graças a seu operador, o Divino Mercado. Mas não cumpriu a promessa.

Em sua crítica filosófica ao liberalismo, você destaca um dos principais estragos produzidos pelo pensamento liberal: os indivíduos estão submetidos aos objetos, não aos seus semelhantes; ao outro. A relação em si, a sensualidade, foi substituída pelo objeto.

DRD: As relações entre os indivíduos passam ao segundo plano. O primeiro é ocupado pela relação com o objeto. Essa é a lógica do mercado: o mercado pode a cada momento agitar diante de nós o objeto capaz de satisfazer todos nossos apetites. Pode ser um objeto manufaturado, um serviço e até um fantasma construído pelas indústrias culturais. Estamos em um sistema de relações que privilegia o objeto antes do sujeito. Isso cria uma nova alienação, uma espécie de vício com os objetos. Esse novo totalitarismo que é o liberalismo coloca nas mãos dos indivíduos os elementos para que se oprimam a si mesmos através dos objetos. O liberalismo nos deixa a liberdade de alienarmos a nós mesmos.

Você situa o princípio da crise nos anos 80 através da restauração do que você chama de o relato de Adam Smith. Você cita uma de suas frases mais espantosas: para escravizar um homem é preciso dirigir-se ao seu egoísmo e não a sua humanidade.

DRD: Adam Smith remonta ao século XVIII e sua moral egoísta se expandiu um século e meio depois com a globali-zação do mercado no mundo. De fato, Smith demorou tanto porque houve outra mensagem paralela, outro Século das Luzes, que foi o do transcendentalismo alemão.

Ao contrário das Luzes de Smith, as alemãs propunham a regulação moral, a regulação transcendental. Essa regula-ção podia se manifestar na vida prática através da construção de formas como as do Estado a fim de regular os interesses privados. A partir do Século das Luzes, há duas forças que se manifestam: Adam Smith e Kant. Esses dois campos filosóficos coexistiram de maneira conflitiva ao longo da modernidade, ou seja, através de dois séculos. Mas, em um determinado momento, o transcendentalismo alemão perdeu força e deu lugar ao liberalismo inglês, o qual adquiriu uma forma ultra-liberal. Pode-se datar esse fenômeno a partir do início dos anos 80. Há inclusive uma marca histórica que remonta ao momento em que Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, chegam ao poder a instalam a liberdade econômica sem regulação. Essa ausência de regulação destruiu imediatamente as convenções sociais, ou seja, os pactos entre indivíduos.

Daí provém a trilogia “produzir, consumir, enriquecer”. Você chama essa trilogia de pleonexía.

DRD: O termo “pleonexía” é encontrado na República de Platão e quer dizer “sempre ter mais”. A República grega, a Polis, foi construída sobre a proibição da pleonexía. Pode-se dizer então que, até o século XVIII, toda uma parte do Ocidente funcionou com base nessa proibição e se liberou dela nos anos 80. A partir daí se liberou a avidez mundial, a avidez dos mercados e dos banqueiros. Lembre o discurso pronunciado por Alan Greenspan (ex-presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos) ante à Comissão norteamericana depois da crise de 2008. Greenspan disse: “pensava que a avidez dos banqueiros era a melhor regulação possível. Agora, me dou conta de que isso não funciona mais e não sei por quê”. Greenspan confessou assim que o que dirige as coisas é a liberação da pleonexía. E já sabemos para onde isso conduz.

Chegamos agora ao depois, ao hipotético ser humano de depois do liberalismo. Você o enxerga sob os traços de um indivíduo simpático. Que sentido tem o termo simpático neste contexto?

DRD: Ninguém é bom ao nascer como pensava Rousseau, nem tampouco mau como pensava Hobbes. O que po-demos fazer é ajudar as pessoas a serem simpáticas, ou seja, a não pensarem somente em si mesmas e a pensarem que, para viver com o próximo, é preciso contar com ele. O outro está em mim, as imagens dos outros estão em mim e me constituem como sujeito. A própria ideia de um indivíduo egoísta é sem sentido porque isso obriga a que nos esquecer de que o indivíduo está constituído por partes do outro. E quando falo de um indivíduo simpático não emprego o termo em sua acepção mais comum, alguém simplesmente simpático, digamos. Não, trata-se do sentido que a palavra tinha no século XVIII, onde a simpatia era a presença do outro em mim. Necessito então da presença do outro em mim e o outro precisa de minha presença nele para que possamos constituir um espaço onde cada um seja um indivíduo aberto ao outro. Eu cuido do outro como o outro cuida de mim. Isso é um indivíduo simpático.

Sigamos com a simpatia, mas sobre que bases se constrói o indivíduo que vem depois do liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o ócio, a solidariedade, outra ideia de mercado?

DRD: Neste livro fiz um inventário das narrativas antigas: a narrativa do logos, da evasão da alma dos gregos, a narrativa sobre a consideração do outro nos monoteísmos. Dei-me conta de que em ambos narrativas havia coisas interessantes e também aterradoras. Por exemplo, a opressão das mulheres no patriarcado monoteísta equivale à opressão da metade da humanidade. Por acaso queremos repetir essa experiência? Certamente que não.

Outro exemplo: no logos, para que haja uma classe de homens livres na sociedade é preciso que haja uma classe oprimida e escravizada. Queremos repetir isso? Não. Refundar nossa civilização após os três caminhos sem saída que foram o nazismo, o estalinismo e o liberalismo requer uma refundação sobre bases sólidas. Por isso realizei o inventário, para ver o que podíamos recuperar e o que não, quando do passado podia nos servir e quanto não. A segunda consideração diz respeito aquilo que poderia ajudar o indivíduo a ser simpático, ao invés de egoísta. Neste contexto, a ideia da reconstrução do político, de uma nova forma do Estado que não esteja dedicado a conservar os interesses econômicos, mas sim a preservar os interesses coletivos, é central.

Qual é, então, a grande narrativa que poderia nos salvar?

DRD: Deixamos no caminho as grandes narrativas de antes e acreditamos cada vez menos na grande narrativa do mercado. Estamos a espera de algo que una o indivíduo, ou seja, uma grande narrativa. Eu proponho a narrativa de um indivíduo que deixou de ser egoísta, que não seja tampouco o indivíduo coletivo do estalinismo, nem tampouco o indivíduo mergulhado na ideia de uma raça que se crê superior, como no nazismo e no fascismo. Trata-se de uma narrativa alternativa a tudo isso, uma narrativa que persiste no fundo da civilização.

Creio que o valor da civilização ocidental radica no fato de ter coloca o acento na individuação, ou seja, na ideia da criação de um indivíduo capaz de pensar e agir por si mesmo. Não é para esquecer a noção de indivíduo, mas sim reconstruí-la. Contrariamente ao que se diz, não creio que nossas sociedades sejam individualistas, não, nossas sociedades são lamentavelmente egoístas. Isso me faz pensar que há muita margem de existência ao indivíduo como tal, que há muitas coisas dele que não conhecemos.

Temos que fazer o indivíduo existir fora dos valores do mercado. O indivíduo do estalinismo foi dissolvido na massa do coletivismo; o indivíduo do nazismo e do fascismo foi dissolvido na raça, o indivíduo do liberalismo foi dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é um escravo de suas paixões e de suas pulsões. Devemos nos elevar desse caminho sem saída liberal parar recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se totalmente.

Há textos filosóficos de Karl Marx que não são muito conhecidos e nos quais Marx queria a realização total do indivíduo fora dos circuitos mercantis: no amor, na relação com os outros, na amizade, na arte. Poder criar o máximo a partir das disposições de cada um. Talvez seja o caso de recuperar esse relato do Marx filósofo e esquecer o do Marx marxista.

25 de setembro de 2012

“Nossos sonhos não cabem no capitalismo”



Para Fernando Meirelles, reconstrução da política exige superar lógicas que associam felicidade e sucesso a consumo e acumulação sem fim

Entrevista a Inês Castilho


Avançou de modo notável, nos últimos anos, a sensação de que o peso do poder econômico está desfigurando a democracia, a ponto de levá-la ao colapso. Um número crescente de pensadores, ativistas, cidadãos comuns dá-se conta de fenômenos como a mercantilização das eleições e a institucionalização do tráfico de influência. Envolvidos em disputas eleitorais cada vez mais caras, partidos e governantes comprometem-se profundamente com os interesses de grupos empresariais que nutrem suas campanhas políticas.

O dinheiro oferecido pelos financiadores é visto como um investimento e cobrado ao longo de cada dia de mandato. Com tal intensidade que muitos já não creem que seja possível adotar políticas contrárias aos interesses do poder econômico associado à política; e que mesmo decisões simples e de bom senso elementar – como a reconstrução de uma malha ferroviária no Brasil, ou a instalação de redes de ciclovias eficazes nas cidades – não saem do papel. Mas, se o diagnóstico é conhecido, as alternativas rareiam. Como excluir da política o Poder Corruptor?

O cineasta Fernando Meirelles formulou uma hipótese provocadora, em entrevista que concedeu à jornalista Inês Castilho, condutora da série de diálogos sobre Política Cidadã, produzida pelo Instituto de Pesquisas Ideafix, por solicitação do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Suas respostas sugerem que uma nova política e um novo sistema econômico virão juntos. Ou seja, o que vivemos é o desgaste geral de nossas formas de socialização – um conjunto de relações que envolve produção de bens e serviços, formas de decisão coletiva, hierarquias concretas e simbólicas. Para superá-las será necessário levar muito adiante certas transformações culturais que já estão se dando.

Meirelles destaca a tensão entre política institucional (restrita aos “gabinetes e restaurantes”) e o intenso desejo de participação da sociedade (“sou muito mais convocado, como cidadão, que cinco anos atrás”). Ele lembra que não se trata apenas de discurso: atitudes transformadoras estão se multiplicando em todo o mundo. No entanto, esbarram em obstáculos estruturais: “a lógica do dinheiro é produzir sempre mais” e a dos políticos “esgota-se em mandatos de quatro anos”. Nenhum poder importa-se com as “perspectivas de longo prazo”, necessárias para preservar a vida.

Caberá à própria sociedade, conclui Meirelles, estabelecer uma ruptura. Não se trata da velha fórmula de tomada do poder de Estado – mas da “dificílima e demorada transformação das nossas vidas”. Só a empreenderemos, no entanto, se soubermos que se trata de construir um novo sistema: “a lógica do capitalismo (…) poderia fazer algum sentido (…) num mundo que não é mais o nosso”. A superação desta lógica implicará, entre outros passos, “valorizar bens não-materiais: educação, esporte, cultura, ciência – atividades humanas que não consomem o planeta e preenchem mais a alma que a busca desesperada pela reposição de bens”.

A entrevista completa de Fernando Meirelles, que abre nossa série, vem a seguir. Na próxima semana, a seção recebe o economista Ricardo Abramovay. (A.M.)

Qual sua percepção sobre a participação política do brasileiro?

A política no Brasil ainda é feita muito nos gabinetes e restaurantes, tem um quê de futebol, o interesse pelo jogo de poder entre os partidos vem antes do debate das ideias. Isso é muito frustrante para quem tenta acompanhar nossos homens públicos. A boa notícia é que, com o crescimento das redes sociais, a participação popular também tende a crescer e o processo político, a ficar mais transparente. A mobilização popular pela Ficha Limpa e contra o Código Florestal demonstraram que a população começa a ter mais peso nas decisões do país.

Que temas você acha que mobilizam a sociedade brasileira, hoje?

A falta de transparência dos partidos e do governo vem mobilizando a sociedade, já não é tão fácil ser corrupto, hoje. A preocupação com questões ambientais também mostra ser um forte tema para a moblização social. Isso já havia sido sentido com a expressiva votação que teve a Marina Silva na última eleição à presidência e foi reforçado agora, no processo de votação e veto parcial do Código Florestal, que contou com abaixo-assinado de 2 milhões de pessoas. Isso entre outras manifestações, incluindo a criação de sites especializados, transmissão ao vivo do congresso etc.

Que formas o cidadão comum tem de atuar politicamente?

Passei anos sem receber nenhum abaixo-assinado, agora semanalmente sou chamado a me posicionar sobre os mais diferentes temas, internos e externos. Sinto-me hoje muito mais convocado, como cidadão, do que cinco anos atrás, e estimula saber que muitos desses movimentos populares estão dando resultado. Está aí a primevera no norte da África que não nos deixa mentir.

Você vê alguma particularidade quanto ao jovem?

Os jovens talvez tenham menos interesse em política do que quem lê jornal e tem o hábito de se manter informado, mas estão cada vez mais plugados, graças às redes sociais. A era dos Sarneys, dos coronéis que trabalham em segredo, está acabando.

Você acha que a política institucional dá conta da democracia?

Sinto que os partidos não representam a vontade da população, não trabalham para o Estado nem para o bem do país – trabalham prioritariamente para se manter no poder. Não saberia inventar outro sistema, mas percebo que este não dá conta da complexidade do mundo de hoje. O ex-presidente Lula declarou recentemente em um programa de TV que aceitaria se candidatar novamente à presidência, para que o PSDB não ocupasse o lugar. Essa declaração infeliz resume a questão: o poder político é um jogo que se vence ou se perde, e é isso que mobiliza seus participantes – o país vem depois, quando vem. Outro aspecto que tem me chamado a atenção é que, por estarmos todos muito mais ligados, praticamente não há mais poder local. Um prefeito que não trabalhe com os outros prefeitos da região não consegue fazer seu trabalho direito. Países que não integrem órgãos internacionais nos quais se debatam os interesses comuns ficam de mãos atadas.

Os anos 60 marcaram época, politicamente. O que mudou de lá pra cá?

Nos anos 60 o mundo estava dividido entre esquerda e direita, estava-se do lado de cá ou do lado de lá. Quando você polariza, o jogo fica mais acessível e mais apaixonante, vira um Fla-Flu. Depois tivemos o período em que a nossa sociedade foi convidada a se calar, e então o mundo ficou muito mais complexo. Hoje a esquerda é apoiada, por exemplo, pelo José Sarney e pelo Aldo Rebelo – este, um comunista que vota com os ruralistas. Tudo é mais confuso, mais impenetrável. O pensamento e as fórmulas de governança dos anos 60 não cabem mais no mundo de hoje.

Você percebe uma mudança de valores, dos anos 60 pra cá?

Um grande valor hoje, praticamente inexistente 40 anos atrás, é em relação às questões ambientais. Há 40 anos o planeta era inesgotável, ainda estava sendo conquistado. Hoje temos a percepção de que vivemos num planeta onde os recursos são finitos e, pior, estão se esgotando rapidamente. A grande descoberta em termos de valor é entendermos a necessidade de pararmos de pensar como nações e passarmos a pensar como planeta. A ideia de soberania nacional vai aos poucos sendo revista, ou relativizada. A interdependência global é um dado inquestionável. Se queimarmos a Amazônia, não choverá no Sul e vai haver seca no centro do Brasil, o carbono liberado vai acelerar o aquecimento do planeta, geleiras irão derreter, rios que dependem delas deixarão de ser formados, populações ficarão sem suas fontes de alimentos. Tudo está ligado. Não tínhamos essa noção 40 anos atrás. Hoje sabemos que o degelo da Groenlândia vai afetar imensamente a vida de enorme população na Ásia que vive à beira-mar. Essas questões bateram à nossa porta e já estão nos atropelando. Apenas cegos, cínicos ou oportunistas se recusam a enxergar.

Um parêntese: a despeito disso tudo, existem 69 povos isolados indígenas no Brasil.

Sim, pequenas aldeias devidamente localizadas e demarcadas com GPS. Esses índios podem não estar nos vendo, mas sabemos exatamente onde eles estão, quantos são, e fotos deles estão disponíveis para qualquer um no Google Earth. Não tenho dúvidas de que, se um dia suas terras nos interessarem para a construção de barragens hidrelétricas, por exemplo, em pouco tempo estará justificada a invasão. Este roteiro não é novo, ainda se repete depois de 500 anos de história.

Quanto ao exercício da cidadania, você percebe mudanças?

Está na moda falar em cidadania, ser responsável pelo coletivo, mas estamos longe de uma noção verdadeira de que nossos atos afetam a vida do próximo e precisam ser repensados. Em alguns lugares onde tenho trabalhado sinto que a noção de se viver numa comunidade está bem mais incorporada do que aqui. Tenho um caso recente. Estava em Toronto e fui almoçar na casa de um produtor amigo. Ele serviu salada e depois tinha uma lentilha, pois sabe que sou vegetariano. Quando foi trocar meu prato, falei: “Não precisa, pode deixar”. Ele respondeu de bate-pronto: “Não tem problema porque eu espero a máquina encher, não vou gastar mais água lavando mais este prato”. Eu havia pensado em ficar com o prato para aproveitar o molhinho de azeite, mas a noção de que seus atos podem repercutir na vida dos outros, de que a água é um bem coletivo, está tão impregnada que ele nem entendeu minha intenção. No Brasil ainda estamos longe desta noção de cidadania. Mas está melhorando.

Alguma articulação ou movimento social, no Brasil e fora dele, chamou sua atenção nos últimos tempos?

Sim, os movimentos ambientalistas que questionam o nosso modelo de desenvolvimento, o business as usual. O impressionante é que os jornais comemoram o crescimento do consumo ou da economia como se isso ainda fosse saudável. Há movimentos mostrando que precisamos urgentemente fazer uma curva na história e buscar outros modelos de desenvolvimento. Os movimentos que lidam com estas questões são os mais importantes, hoje. Infelizmente nossos homens públicos trabalham com a perspectiva de futuro de três ou quatro anos, que é o quanto duram seus mandatos. Difícil construir um mundo sem perspectiva de longo ou longuíssimo prazo. Estamos ameaçados justamente por essa lógica.

E como fica a questão do consumo diante disso? O seu, o meu, o nosso?

Temos que mudar nosso padrão de consumo, rapidamente. Esta mudança precisaria ser como uma mobilização de guerra, na qual todos entendessem que precisam abrir mão de alguma coisa para poder prosseguir. Tenho feito mudanças nesse sentido na minha vida, mas talvez só quando os efeitos da carência de recursos baterem à nossa porta é que mudaremos de fato nossas vidas. A lógica do dinheiro como motor da sociedade é tão perversa quanto difícil de ser alterada. Sabemos, por exemplo, que há falta de alimento no mundo, e sabemos também que 40% do alimento produzido é desperdiçado no processo de produção, transporte, comercialização e preparação para o consumo. Contudo, quando olhamos para esta questão, a maneira de atacá-la é sempre o aumento da produção, e não o uso racional do que já existe. Para quem produz, transporta ou comercializa alimentos, o desperdício é boa notícia, pois significa maior demanda, mais renda. A racionalização do uso dos recursos é a nova economia de que o mundo precisa.

Li recentemente um editorial do Estadão [jornal O Estado de S.Paulo] no qual o Washington Novaes [jornalista e ambientalista] comentava o gosto dos governos pelas grandes obras. Dava exemplos de como pequenas medidas poderiam ser mais eficazes, mais racionais, falava de outra maneira de pensar a administração pública e a organização da sociedade. Um dos exemplos era a notícia de que a Caixa Econômica Federal, a partir de agora, não vai mais financiar moradias em lugares onde não houver água e esgoto disponíveis. É uma loucura pensar que até ontem o Estado financiava moradias que usavam os rios como esgoto. O texto falava sobre desperdício e trazia dados interessantes: no Brasil desperdiçamos 40% da água usada, e o estado de São Paulo vai fazer uma reformulação para desperdiçarmos 24%. No Japão desperdiçam-se 3%. Seguindo a mesma lógica, o pensamento dominante quando se fala em água é a construção de novas barragens, novos reservatórios, tratar mais água. Pensa-se sempre em novas obras, e no entanto há muita brecha para a racionalização. Temos que chegar ao ponto em que 100% do que é produzido possa ser reciclado, mas isso demanda uma mudança cultural inimaginável.

Essa mudança é compatível com o capitalismo?

Não, a lógica do capitalismo é expandir, crescer. Isso poderia fazer algum sentido num mundo inesgotável e infinito, mas já sabemos que não é mais o nosso. Um novo modelo de desenvolvimento implica uma dificílima e demorada transformação nas nossas vidas. Ela virá com mais ou menos dor. A questão que os capitalistas colocam é: se vamos consumir menos, para onde vai o trabalho e a atividade humana? Uma resposta é que o trabalho pode migrar da área de produção de bens de consumo para áreas como educação, cultura, serviços. A aspiração das populações, hoje, é por bens de consumo, roupas, automóveis. A mudança cultural necessária é passarmos a valorizar bens não materiais. Educação, esporte, música, ciência são atividades humanas que não consomem tanto o planeta e preenchem mais a alma do que a busca desesperada pela reposição de bens, que é uma das principais razões pelas quais se trabalha e se vive, hoje.

Ao longo da história, vários movimentos sociais lutaram pela liberdade. Você acha que a liberdade ainda é uma questão?

Claro que é. A plena liberdade política é desfrutada por apenas uma parcela da população mundial. Mas, mais do que a liberdade de influir nas decisões que afetam a própria vida, a pobreza é o maior limitador da liberdade humana. Sem justiça social não há liberdade, e a injustiça social ainda é dominante no planeta. Em todos os países encontraremos diferenças entre ricos e pobres, maiores ou menores, mas não há lugar onde a diferença seja tão grande quanto no planeta Terra como um todo. A diferença entre países com altas taxas de consumo e países sem margem para desfrutar de alguma autonomia é mais brutal do que qualquer diferença interna entre os que têm e os que não têm. Um país que consome sozinho 25% dos recursos do mundo inexoravelmente estará tolhendo a liberdade de outros.

Que outros direitos e valores há a serem conquistados, hoje?

Creio que a noção de que somos parte de uma mesma humanidade e de que dependemos um do outro, que afetamos a vida do outro, precisa ser mais bem compreendida. Mais do que nunca, estamos todos conectados. A dona Kátia Abreu [senadora pelo PSD-TO, líder da bancada ruralista do congresso] ainda não entendeu que a expansão das fronteiras agrícolas na Amazônia, que ela defende, vai gerar seca e derrubar a produção de soja de sua fazenda em Campos Lindos, no Tocantins.

Ao mesmo tempo em que descobrimos essa interdependência, vivemos um individualismo exacerbado.

Pode parecer paradoxal, mas não creio que a busca de uma identidade ou da própria individualidade seja conflitante com a noção de pertencer a uma grande comunidade global. Todos queremos ter uma cara, deixar de ser invisíveis, mas ao mesmo tempo vejo mais pessoas engajadas em lutas e num pensamento de cardume. A compreensão de que somos uma só espécie passa pelo autoconhecimento.

Como você vê as próximas gerações coexistindo nesse planeta cada vez menor?

Menor e mais rápido, vale lembrar. Meus netos irão viver num mundo muito diferente do meu. Passei a infância em um mundo natural ainda em expansão, onde a manteiga era feita na fazenda e a fruta, colhida no pé. Onde meu avô dizia que “desde que o mundo é mundo as coisas são assim e assim ficarão”. Meus netos vão viver num mundo onde as transformações acontecem a cada bimestre, um mundo que é como uma aldeia, totalmente conectado e sem muitas fronteiras, onde a busca pelo crescimento perderá o sentido. Segundo o último Censo, a população brasileira parou de crescer e já começa a envelhecer.

Sem população em crescimento, o esforço para suprir bens e alimento para quem está chegando deve ser deslocado para o esforço de distribuir melhor os bens, alimentos e energia já disponíveis. Nessas condições, me parece mais fácil organizar a sociedade. Mas a possibilidade de termos que conviver com populações refugiadas da fome, da falta de água, do aumento do nível do mar, assim como os desafios para mudarmos nossa matriz energética ou conseguirmos manter a produção de alimentos com menos água, coloca no futuro variantes tais que qualquer tentativa de previsão se torna quase um exercício de adivinhação.

Ha outro aspecto, a velocidade do novo mundo. Quando penso em futuro sempre me sinto enganado. Prometeram que a tecnologia iria libertar o homem, dar-lhe mais tempo para cuidar do espírito e para o lazer, mas aconteceu o contrário. Viramos prisioneiros das máquinas. Antes eu saía do trabalho às 7 da noite e só voltava no dia seguinte. Hoje, conectado, me vejo respondendo emails e trabalhando em qualquer hora e lugar. Todo mundo recebe solicitações de trabalho durante o almoço, nos finais de semana. A tecnologia nos transformou em trabalhadores compulsivos. Nem nas férias nos desconectamos dessas maravilhas tecnológicas.

Mas talvez o trabalho fosse mais separado do lazer.

No meu caso, trabalho e lazer são praticamente a mesma coisa. Mas sei que sou um caso raro e, mesmo assim, gostaria de ter um tempo em que pudesse virar o disco. Para quem tem funções que exigem mais esforço e menos criatividade, a tecnologia realmente veio para diminuir os prazos e roubar o tempo que se tem para desfrutar da vida e ser feliz.

Você vê a possibilidade de uma governança global?

Será inevitável. O rio Ganges ou o Amarelo, e a população que eles alimentam, não dependem de decisões da Índia ou da China para continuarem a correr. Eles dependem do corte e emissão de carbono no mundo todo, da preservação das florestas que ainda existem, de modo que o planeta não se aqueça mais e as geleiras do Himalaia, que os alimentam, continuem a se formar anualmente. Como esses, há muitos outros exemplos de problemas cujas decisões nacionais, nos países onde podem ser tomadas, não conseguem mais dar conta. Creio que tentativas de governança global como a do Mercosul ou da Zona do Euro são ensaios para um mundo em que as decisões precisam ser compartilhadas. A ONU não funciona muito bem porque os Estados Unidos, apesar de serem seu maior financiador, não respeitam muito suas decisões. Mas a tendência é cada vez mais organizações globais passarem a ter mais influência no mundo. Precisamos urgentemente de organizações que regulem as questões ambientais no planeta. Nada mais razoável, dada a nossa interdependência.

http://www.outraspalavras.net/2012/08/29/nossos-sonhos-nao-cabem-no-capitalismo/

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É preciso vomitar o "sapo barbudo"



Por Roberto Amaral, vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro, na CartaCapital:


Quem quiser, no que resta de esquerda brasileira, que construa castelos de areia sobre a ilusão do fim da luta de classes, ou da conciliação dos interesses populares com a burguesia reacionária, rentista, quatrocentona, de nariz arrebitado e cartórios na Avenida Paulista. Nossas ‘elites’ conservadoras têm consciência de classe, mais aguda e mais profundamente que os dirigentes da Força Sindical. A classe dominante (vai a expressão em desuso como homenagem ao sempre saudoso Florestan Fernandes) conhece seus objetivos e sabe escolher os adversários segundo a ‘periculosidade’ que atribui a cada um. Uns são adversários passageiros, ocasionais, outros são inimigos históricos, que cumpre o quanto antes eliminar.


Lula, considere-se ele intimamente de esquerda ou não, socialista ou não, é, independentemente de sua vontade, esse inimigo fundamental: de extração operária (daí, contrário senso, a boa vontade da classe média com Dilma, pois não vem do andar de baixo) está, no campo da esquerda, no campo popular e no campo das lutas sociais. Para além, portanto, das reivindicações econômicas do sindicalismo, quando chegou a encantar certos setores da burguesia que nele viam então apenas uma alternativa sindical aos cartéis do “peleguismo”, dóceis, e do que restava de varguismo e comunismo.


Hoje, queira ou não, continua a ser o “sapo barbudo” que a direita foi obrigada a engolir, mas está sempre tentando regurgitar. A direita — impressa ou partidária (esta sob o comando daquela, ambas mercantis, desligadas do interesse nacional) –, ao contrário de certos setores pueris de nossa esquerda, age em função de seus objetivos estratégicos e em torno deles se unifica. Recua, quando necessário, em pontos secundários em face de dificuldades conjunturais para avançar no fundamental, exercitando a lição leninista do “um passo atrás, dois à frente”. Muitos de nós operam na inversão da frase.


No governo, cingido à realidade fática da “correlação de forças”, nosso governo (o de coalisão liderado pelo presidente Lula, que abarcou todos os partidos de esquerda e mais os apêndices que foram do centro à direita assistencialista) não realizou as reformas políticas, da estrutura estatal, que poderiam, passo a passo, abrir caminho para uma efetiva, ainda que a médio e longo prazos, alternância de poder.


Neste ponto, conciliou com mais competência que Vargas e Jango (pois se manteve no poder e o conservou ao fazer sua sucessora), para realizar o que não conseguiram esses seus antecessores, atingidos que foram por golpes de Estado, do que Lula se livrou em 2005. O governo Lula realizou, porém, o inaceitável: transferir o centro ideológico dos interesses do Estado para as maiorias marginalizadas pelo capitalismo predador, o que o tornou inimigo estratégico da nossa carcomida direita. E, audacioso – rompendo com o complexo de vira-latas das ‘elites’ econômicas alienadas ao forâneo–, construiu (salvas a Amorim-Samuel-Marco Aurélio) uma inserção soberana no cenário internacional, rompendo com décadas de submissão aos interesses externos, cujo exemplo maior é oferecido pelas administrações dos dois Fernandos. Ao contrário de Jânio, que acenava no plano externo com uma política independente para no campo interno realizar uma política recessiva e anti-popular, Lula, que encontrou falido o país de FHC, rompe com a submissão recessivista para colocar o Brasil na rota do desenvolvimento com distribuição de renda, incorporando à cidadania milhões de brasileiros até então marginalizados.


Para a burguesia reacionária essa política soou como um rompimento com a “Carta aos brasileiros”, e era o sinal para a tentativa de desestabilização do governo.


Tudo o que se segue é história recente, daí decorrente.


Nada de novo, portanto.


A direita brasileira foi sempre, é, e sempre será golpista. Não podendo derrotar Vargas, impôs-lhe o golpe-de-Estado de agosto de 1954, consumado com a posse de Café Filho e o governo reacionário – leia-se anti-nacional - de Eugênio Gudin-Eduardo Gomes-Juarez Távora. Derrotada pelo povo na tentativa de impedir a posse de Jango, impôs-lhe o golpe de Estado de 1964, abrindo as portas para a ditadura militar. O grande legado histórico da UDN e da “grande imprensa”. Antes, por cinco anos, tentara, inclusive com insurreições militares e seguidos pedidos de impeachment (e a oposição dos jornalões de sempre) desestabilizar o governo JK. Ora, se o presidente era um quadro do pessedismo conservador, tinha como vice-presidente o inaceitável Jango e sua administração apoiada pelos comunistas. Em 1954, para fazer face ao nacionalismo de Vargas, a direita inventou um “mar de lama”, que, como as armas de Saddam Hussein, jamais existiu. Em1964, a aleivosia foi uma “conspiração comunista” que a simples fragilidade do governo, derrubado sem resistência, revelou fantasiosa. Agora, e como sempre, os herdeiros do golpismo, aprendizes medíocres do lacerdismo anacrônico, investem na injúria e na mentira para tentar denegrir a honra do mais importante líder popular contemporâneo.


Eis um inimigo que precisa ser destruído, como a era Vargas que FHC prometeu apagar da história.


Uma notória revista de questionável padrão ético, alimentada por “segundo consta” e “segundo teria dito” um réu da ação penal 470, procura, uma vez mais e não pela última vez, politizar o julgamento do “mensalão”, tentando aproximá-lo do ex-Presidente. Este objetivo é perseguido, incansavelmente, mediante, intrigas e futricas, desde 2005.


A imprensa levanta a tese, e, como respondendo a um reflexo condicionado, como o cão de Pavlov, os Partidos de direita assumem a acusação leviana como bandeira de lutas.


Estranha história: são as atuais forças da reação – PSDB e DEM (e o penduricalho do PPS) — as fundadoras, no primeiro governo FHC, da grande fraude que foi a compra de votos para assegurar a imoral aprovação da emenda permissiva da reeleição. Foi o PSDB que, no governo de Eduardo Azeredo, com os personagens de hoje, fundou o “mensalão”. Foi o DEM do “mosqueteiro” Demóstenes quem deu sustentação à quadrilha de Cachoeira e foi o DEM de Arruda quem instalou o “mensalão”, no Distrito Federal. São essas as forças que apontam o dedo sujo na direção do presidente Lula.


A história não se repete, sabemos (a não ser como tragédia ou farsa) mas no Brasil ela é recorrente: direita impressa, meramente mercantil ou partidária, ou seja, a direita em quaisquer de suas representações, reiteradamente derrotada nas urnas, está sempre em busca de uma crise política salvadora, que a leve ao poder, pelo golpe inclusive, já que pelo voto não o consegue. A infâmia, a mentira, a calúnia, são, no caso, preços moralmente irrelevantes que a reação brasileira está disposta a pagar para “varrer a era Lula”.


Eu, Lobo, comento:
É bom lembrar que a direita subserviente ao imperialismo estadunidense, hoje aliada do PT, pendurou a esquerda no pau de arara no tempo da Ditadura do Getúlio como na Ditadura de 64, e não só isso, mas matou 457 lutadores pela democracia, 370 camponeses e 5 mil pessoas de várias tribos indígenas deixando a tão falada repressão do Pinochet no chinelo. Ela fará tudo de novo quando achar conveniente, tendo sido aliada ou não nos tempos atuais. É bom não se iludir. O Paraguai e Honduras nos lembram disto. Precisa-se fazer mais do que meras alianças oportunistas nos tempos de eleições porque a acomodação e preguiça não deixam fazer trabalho de base e formação e engajamento nas lutas do Movimento Popular.