26 de novembro de 2012

Noam Chomsky: Como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo


Noam Chomsky visitou a Faixa de Gaza de 25 a 30 de outubro

Impressões de uma visita a Gaza

Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças. O artigo é de Noam Chomsky.

Uma noite encarcerado é o bastante para que se conheça o sabor de estar sob total controle de uma força externa. E dificilmente demora mais de um dia em Gaza para que se comece a perceber como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo. Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão constantemente sujeitas a eventuais e amiúde ferozes e arbitrárias punições, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina e ulteriormente garantir tanto o esmagamento das esperanças de um futuro decente quanto a nulidade do vasto apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças.

O comprometimento a isso por parte das lideranças políticas israelenses foi ilustrado expressivamente nos últimos dias, quando eles advertiram que ‘enlouqueceriam’ se os direitos palestinos fossem reconhecidos, mesmo que limitadamente pela ONU. Essa postura não é nova. A ameaça de ‘enlouquecer’ (‘nishtagea’) tem raízes profundas, lá nos governos trabalhistas dos anos 1950 e em seus respectivos “complexos de Sansão”: “se nos contrariarem, implodimos as paredes do Templo à nossa volta”. À época, essa ameaça era inútil; hoje não é mais.

A humilhação deliberada também não é nova, apesar de adquirir novas formas constantemente. Há trinta anos, líderes políticos, inclusive alguns dos mais notórios ‘falcões’ (sionistas mais conservadores), apresentaram ao primeiro-ministro um relato detalhado de como colonos regularmente violavam palestinos da forma mais vil e com total impunidade. A proeminente analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.

O povo de Gaza foi selecionado para punições particularmente cruéis. É quase miraculoso que eles suportem tal existência. Raja Shehadeh descreveu como eles o fazem num eloquente livro de memórias, A Terceira Via, escrito há 30 anos. O texto relata seu trabalho como advogado empenhado na tarefa de tentar proteger direitos elementares num sistema legal feito para ser insuficiente, além de sua experiência como um resistente que vê sua casa tornar-se uma prisão por ocupantes violentos e nada pode fazer além de “aguentar”.

A situação piorou muito desde o texto de Shehadeh. Os acordos de Oslo, celebrados com muita cerimônia em 1993, determinaram que Gaza e a Cisjordânia eram uma só entidade territorial. Os EUA e Israel puseram sua estratégia de separá-los para funcionar já naquela época, de forma a barrar um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.

A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu "amor" pela democracia, os EUA e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também imediatamente recorreram ao procedimento operacional padrão para momentos em que populações desobedientes elegem o governo errado: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem.

O povo de Gaza cometeu um crime ainda pior um ano depois. Barraram a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do sítio e das ofensivas militares. Isso culminou, no inverno de 2008-9, na Operação Chumbo Fundido, um dos mais covardes e perversos exercícios de poder militar na memória recente, na qual uma população civil sem defesa e enclausurada ficou sujeita à implacável ofensiva de um dos mais avançados sistemas militares do mundo, que conta com o apoio das armas e da diplomacia estadunidense. Um testemunho inesquecível do morticínio – infanticídio, nas palavras deles – é o livro Eyes in Gaza, de dois corajosos doutores noruegueses, Mads Gilbert e Erik Fosse, que à época trabalhavam no principal hospital de Gaza.

O Presidente Obama não foi capaz de dizer uma palavra além de reiterar sua sincera simpatia pelas crianças sob ataque – na cidade israelense de Sderot. A investida minuciosamente planejada foi levada a cabo justamente antes do empossamento de Barack, assim ele pôde dizer que era hora de vislumbrar o futuro, não o passado.

Obviamente, havia pretextos – sempre há. O de costume, apresentado assim que necessário, é a “segurança”: neste caso, os foguetes caseiros de Gaza. Como de costume, também, o pretexto carecia de credibilidade. Em 2008, estabeleceu-se uma trégua entre Israel e o Hamas. E o governo israelense reconheceu formalmente que o Hamas cumpriu a trégua. Nenhuma bomba do Hamas foi disparada até que Israel rompeu a trégua encoberto pelas eleições presidenciais norte-americanas de 4 de novembro de 2008, invadindo Gaza por motivos ridículos e matando meia-dúzia de membros do Hamas. O governo de Israel foi aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência de que a trégua poderia ser retomada por suavizar o bloqueio criminoso e acabar com as ofensivas militares. Mas o governo de Ehud Olmert, por reputação um “pombo” (termo para os sionistas “moderados”), preferiu rejeitar estas opções e lançar mão de sua enorme vantagem no quesito violência: a Operação Chumbo Fundido.

O modelo de bombardeio da Operação Chumbo Fundido foi analisado cuidadosamente pelo respeitado defensor dos direitos humanos Raji Sourani, natural de Gaza. Ele aponta que o bombardeio concentrou-se ao norte, mirando civis indefesos nas áreas de maior densidade populacional, sem qualquer desculpa do ponto de vista militar. O objetivo, ele sugere, talvez tenha sido mover a população intimidada para o sul, próximo à fronteira com o Egito. Mas, apesar da avalanche terrorista, os resistentes não se moveram.

Outro objetivo provavelmente era movê-los para lá da fronteira. Desde o início da colonização sionista dizia-se que os árabes não tinham motivo para estar na Palestina. Eles podiam continuar felizes noutro lugar e deveriam ser “transferidos” de maneira educada, sugeriam os pombos. Esta, que claramente não é uma preocupação menor do governo egípcio, talvez seja a razão pela qual o Egito não abre sua fronteira seja para civis, seja para os suprimentos dos quais o país necessita desesperadamente.

Sourani e outras fontes dignas de reconhecimento notam que a disciplina dos resistentes oculta um barril de pólvora que pode explodir inesperadamente, como aconteceu na primeira Intifada em Gaza em 1989, após anos de repressão indigna de qualquer interesse ou nota.

Só para mencionar um dos inumeráveis casos, pouco antes da eclosão da Intifada, uma menina palestina, Intissar al-Atar, foi assassinada no pátio da escola pelo morador de um assentamento judeu próximo. Ele era um dos milhares de colonos israelenses trazidos para Gaza, o que violava leis internacionais, sob proteção da enorme presença de um exército que assumiu o controle das terras e da escassa água da Faixa.

O assassino da estudante, Shimon Yifrah, foi preso. No entanto, foi solto rapidamente quando o tribunal determinou que “o delito não foi severo o suficiente” para justificar a detenção. O juiz comentou que Yifrah só pretendia assustar a garota por atirar na direção dela, não matá-la, assim, “o caso não é o de um criminoso que deve ser punido com um aprisionamento”. Yifrah recebeu uma pena suspensa de 7 meses, o que levou os outros colonos presentes à sala de tribunal a dançar e cantar. E o silêncio, pra variar, reinou. Afinal, a rotina é essa.

Assim que Yifrah foi libertado, a imprensa israelense reportou que uma patrulha armada atirou no pátio de um colégio para meninos de 6 a 12 anos num campo de refugiados da Cisjordânia, ferindo cinco crianças. O ataque só pretendia “assustá-los”. Não houve punições e o evento, para variar, não atraiu atenção. Era só mais um episódio do programa de “analfabetismo como punição”, disse a imprensa israelense, programa que incluía o fechamento de escolas, uso de bombas de gás, espancamento de estudantes a coronhadas, bloqueio de auxílio médico para vítimas; e para além das escolas predominou a mesma brutalidade, que até asseverou-se durante a Intifada, sob ordens do Ministro da Defesa Yitzhak Rabin, outro bem conceituado “pombo”.

Minha impressão inicial, depois de uma visita de alguns dias, foi de admiração ao povo palestino. Não só pela habilidade de levar a vida, mas também pela vitalidade da juventude, particularmente a universitária, com a qual eu passei um bom tempo numa conferência internacional. Mas também fui capaz de perceber que a pressão pode tornar-se grande demais. Relatos apontam que entre a população masculina jovem há uma frustração crescente e o reconhecimento de que, sob comando dos EUA e de Israel, o futuro não é promissor.

A Faixa de Gaza parece uma típica sociedade de terceiro mundo, com bolsões de riqueza rodeados por uma pobreza medonha. Não é, entretanto, um lugar “subdesenvolvido”. Na verdade, é “des-desenvolvido”, e de maneira muito sistemática, pegando emprestado um termo de Sara Ray, a maior especialista acadêmica em Gaza. Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura, uma promissora indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como descobriu-se há dez anos, a perspectiva de uma extensa reserva de gás natural dentro dos limites de suas águas. Coincidentemente ou não, foi há uma década que Israel intensificou seu bloqueio naval, levando navios pesqueiros em direção à costa.

As perspectivas favoráveis foram frustradas em 1948, quando a Faixa tornou-se abrigo da enxurrada de refugiados palestinos que fugiram ou foram expulsos à força do que hoje é Israel.

Na verdade, eles continuaram sendo expulsos quatro anos depois, como informou no periódico Haaretz (25.12.2008) o estudioso Beni Tziper. Ele afirma que, já em 1953, “avaliava-se necessário varrer os árabes da região”.

Isso foi em 1953, quando a necessidade de militarização ainda não se insinuava. As conquistas israelenses de 1967 ajudaram a administrar os golpes posteriores. Vieram então os terríveis crimes já mencionados, que continuam até hoje.

É fácil notar os sinais de tais crimes, mesmo numa visita breve. Num hotel perto da costa pode-se ouvir as metralhadoras israelenses empurrando pescadores para fora das águas de Gaza, em direção à própria costa. Assim, eles são levados a pescar em águas que estão poluidíssimas porque norte-americanos e israelenses não permitem a reconstrução dos sistemas de esgoto e energia que eles próprios destruíram.

Os Acordos de Oslo planejavam duas usinas de dessalinização, imprescindíveis em função da aridez da região. Uma, instalação muito avançada, foi construída – em Israel. A segunda é em Khan Yunis, sul da Faixa de Gaza. O engenheiro encarregado de tentar obter água potável para a população explicou que essa usina foi projetada de forma tal que é incapaz de usar água do mar, ela depende de reservas subterrâneas, um sistema mais barato que, no entanto, degrada o aquífero já deficiente. Mesmo assim, a água é limitadíssima. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que cuida dos refugiados (mas não dos outros moradores de Gaza), recentemente lançou um relatório advertindo que os danos ao aquífero podem em breve tornar-se “irreversíveis”, e que, sem ações reparadoras, Gaza talvez deixe de ser um “local habitável” em 2020.

Israel permite a entrada de concreto para projetos da UNRWA, mas não para os palestinos comprometidos com as enormes necessidades de reconstrução. O equipamento pesado permanece ocioso a maior parte do tempo, já que Israel não permite materiais para reparo. Tudo isso é parte do programa descrito por Dov Weisglass, conselheiro do primeiro-ministro Ehud Olmert, depois de os palestinos terem deixado de seguir certas ordens na eleição de 2006: “a ideia”, disse ele, “é aplicar uma dieta aos palestinos, mas não deixá-los morrer de fome”. Não seria de bom tom.

O plano está sendo seguido conscienciosamente. Sara Roy nos dá vasta evidência disso em seus estudos. Recentemente, após anos de esforços, a Gisha, organização israelense pelos direitos humanos, conseguiu obter uma ordem judicial exigindo que o governo divulgue os planos da “dieta”. Jonathan Cook, jornalista em Israel, assim os resume: “oficiais de saúde forneceram cálculos do número mínimo de calorias que Gaza precisa para que os 1.5 milhão de habitantes não fiquem desnutridos. Esse número traduziu-se no número de caminhões de comida que Israel supostamente permite a cada dia, uma média de apenas 67 caminhões – bem menos do que a metade do requerido. E que se compare com isso os 400 caminhões diários de antes do bloqueio”. Segundo relatórios da ONU, mesmo essas estimativas são bastante generosas.

O resultado da imposição da dieta, observa o especialista em Oriente Médio Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças palestinas com menos de cinco anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. Além disso, a anemia hoje afeta dois terços das crianças mais jovens, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das grávidas”. Os EUA e Israel querem ter certeza de que nada além da mera sobrevivência seja possível.

“O que devemos ter em mente”, diz Raji Sourani, “é que a ocupação e o encerramento absoluto é um ataque em andamento contra a dignidade humana do povo de Gaza em particular, e contra os palestinos em geral. É degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática do povo palestino”. Essa conclusão é confirmada por muitas outras fontes. Em um dos mais importantes periódicos médicos do mundo, The Lancet, um físico de Stanford, horrorizado com o que viu, descreveu a Faixa de Gaza como um tipo de “laboratório de observação da completa ausência de dignidade”, condição que tem efeitos “devastadores” sobre o bem-estar físico, mental e social da população. “A constante vigilância vinda do céu, punições coletivas por bloqueios e isolamentos, invasão de lares e de sistemas de comunicação, além de restrições aos que tentam viajar, casar ou trabalhar, tornam difícil viver de maneira digna em Gaza”.

Havia esperanças de que o novo governo egípcio de Mohammed Mursi, menos servil à Israel do que a ditadura de Mubarak, pudesse abrir a Travessia de Rafah, única saída de Gaza que não está sujeita a controle israelense direto. Até houve uma pequena abertura. A jornalista Leila el-Haddad escreve que a reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos anteriores: somente os palestinos portadores de identidades de Gaza aprovadas por Israel podem usar a Travessia”, o que exclui inclusive a família da jornalista.

Ademais, continua Leila, “Rafah não leva à Cisjordânia e não permite o transporte de bens, restrito às travessias controladas por Israel e sujeito às proibições a materiais de construção e exportação”. A restrição à Travessia de Rafah não muda o fato, também, de que “Gaza permanece sob apertado sítio marítimo e aéreo e fechada para qualquer capital cultural, econômico ou acadêmico que venha do resto dos territórios palestinos, o que viola as obrigações dos EUA e de Israel segundo o Acordo de Oslo˜.

Os efeitos disso são dolorosamente evidentes. No hospital de Khan Yunis, o diretor, que também é cirurgião-chefe, descreve enfurecido tanto a falta de remédios para aliviar o sofrimento dos pacientes quanto a dos equipamentos cirúrgicos mais simples.

Relatos pessoais dão vivacidade à corrente aversão à obscenidade da ocupação. Um exemplo é o testemunho de uma jovem que desesperou-se quando seu pai, que se orgulharia ao saber que sua filha foi a primeira mulher do campo de refugiados a receber um diploma avançado, “faleceu após seis meses de luta contra o câncer, aos 60 anos. A ocupação israelense negou que ele fosse aos hospitais de Israel para tratar-se. Eu tive de suspender meus estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de sua cama. Todos nós, incluindo meu irmão e minha irmã, sentamo-nos ao lado de meu pai, assistindo seu sofrimento impotentes e sem esperança. Ele morreu durante o desumano bloqueio a Gaza no verão de 2006, com pouquíssimo acesso a serviços de saúde. Sentir-se impotente e sem esperança é o sentimento mais terrível que alguém pode ter. É um sentimento que mata o espírito e quebra o coração. Podemos lutar contra a ocupação, mas não podemos lutar contra o sentimento de impotência. Não se pode nem dissolver esse sentimento”.

Aversão à obscenidade combinada com culpa: nós podemos acabar com esse sofrimento e permitir aos resistentes a vida de paz e dignidade que eles merecem.

http://www.viomundo.com.br/politica/chomsky-como-e-tentar-sobreviver-na-maior-prisao-a-ceu-aberto-do-mundo.html

23 de novembro de 2012

"A política agrária brasileira nunca deixou de ser uma pequena política".



Entrevista especial com José Juliano de Carvalho Filho

“O agronegócio é um mal para a nação, porque concentra a renda, cria pobreza, destrói emprego”, constata o economista.

“Já retiraram o tema da pauta e ficam nos enganando de vez em quando”. É com esta declaração que o professor da USP e membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária – ABRA, José Juliano de Carvalho Filho, resume a discussão acerca da reforma agrária no Brasil. Para ele, esta é uma discussão dividida entre a “pequena política e a grande política: a pequena política cabe aos subalternos, que podem até brincar de fazer política, contanto que não incomodem a grande política, que representa o interesse do capital. A política agrária brasileira nunca deixou de ser uma pequena política, nunca aconteceu para valer. Quando os movimentos sociais têm mais força, aparecem concessões, mas não se pode dizer que exista um programa de reforma ou de apoio ao pequeno produtor no país”.

Por outro lado, a aposta do governo no agronegócio demonstra que o Brasil “aceitou entrar de uma forma subalterna e marginal no mercado internacional”, diz na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. E dispara: “Nessa conjuntura, o Brasil é delegado a ser produtor de álcool, soja, papel, polpa de suco de laranja; mas nada mais do que isso. Portanto, não se trata de uma maldição histórica”.

O economista diz ainda que a aprovação do novo Código Florestal e a polêmica PEC 215 “demonstram que o agronegócio não tem interesse apenas em desenvolver uma agricultura moderna, mas também em formar um monopólio nacional e internacional. Se deixarmos que as empresas transnacionais façam o que estão tentando fazer, haverá um monopólio tanto na área de sementes, na área de produção, como na área do consumo”.

José Juliano de Carvalho Filho é graduado e doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, e pós-doutor pela Ohio State University. Leciona na Faculdade de Economia e Administração – FEA da USP, e é membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária – ABRA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como avalia o investimento do governo no agronegócio e a declaração de que é preciso elaborar uma agenda estratégica para fortalecer o agronegócio nacional?

José Juliano de Carvalho Filho – Tudo isso é uma lástima. Para entendermos o governo agrário e a política governamental de hoje, temos de compreender a adesão do Brasil ao agronegócio, ou seja, há um retorno à exportação de commodities de baixo valor agregado. Essa posição é lamentável sob vários aspectos. No caso do campo, o avanço de monoculturas de soja, cana-de-açúcar, silvicultura promove uma concentração fundiária em áreas como a de São Paulo, Rio Grande do Sul e Amazônia.

O governo está refém dos grandes produtores do agronegócio em detrimento de qualquer pretensão de justiça agrária ou de manter uma produção familiar com políticas apropriadas para ela. Se não bastasse isso, o novo presidente do Incra, Carlos Guedes de Guedes, declarou que o órgão não vai mais tratar de desapropriações, mas passará a apoiar os produtores, já que o importante no país é a produção. Essa é uma conversa tão velha, que se estende desde antes do governo Fernando Henrique Cardoso, quando se dizia que a reforma agrária era inviável porque era muito cara. Isso acontece porque não se entende a reforma agrária como terra, mais políticas públicas apropriadas. Não se entende que essas áreas precisam ter proteção do Estado, e que as que estão próximas de áreas do agronegócio precisam ter uma regulação maior. Do contrário, tudo acontece em função das monoculturas. O agronegócio é um mal para a nação, porque concentra a renda, cria pobreza, destrói emprego.

Além disso, medidas como a aprovação do novo Código Florestal e a PEC 215 demonstram que o agronegócio não tem interesse apenas em desenvolver uma agricultura moderna, mas também em formar um monopólio nacional e internacional. Se deixarmos que as empresas transnacionais façam o que estão tentando fazer, haverá um monopólio tanto na área de sementes, na área de produção, como na área do consumo.

IHU On-Line – Historicamente, a política econômica para a agricultura esteve muito associada a determinadas culturas. Pode-se dizer que essa política se mantém? Como vê, nesse quadro histórico, a discussão acerca da reforma agrária? Por que ela ficou em segundo plano?

José Juliano de Carvalho Filho – Teoricamente, a produção agrícola brasileira está ligada à época da colônia, que investiu primeiramente no açúcar, depois no ciclo do ouro, depois no café. Ocorre que desde os anos 1930 o Brasil mudou, passou a ser um país em busca da industrialização. Entretanto, nos últimos anos, se analisarmos as exportações, veremos que as culturas de subsistência têm tido um peso muito grande na balança comercial. Isso demonstra que o Brasil aceitou entrar de uma forma subalterna e marginal no mercado internacional. Essa forma subalterna e marginal, junto com a nova divisão internacional do trabalho, imposto pelo neoliberalismo, crescente pelo mundo. Nessa conjuntura, o Brasil é delegado a ser produtor de álcool, soja, papel, polpa de suco de laranja; mas nada mais do que isso. Portanto, não se trata de uma maldição histórica.

Nessa conjuntura, discussão da reforma agrária está completamente de lado. A discussão divide-se entre a pequena política e a grande política: a pequena política cabe aos subalternos, que podem até brincar de fazer política, contanto que não incomodem a grande política, que representa o interesse do capital. A política agrária brasileira nunca deixou de ser uma pequena política, nunca aconteceu para valer. Quando os movimentos sociais têm mais força, aparecem concessões, mas não se pode dizer que exista um programa de reforma ou de apoio ao pequeno produtor no país.

A reforma agrária, embora 80% da população viva na zona urbana, continua sendo um problema grave, porque parte desses 80% vive nos arredores das cidades e enfrentam problemas de falta de terra.

IHU On-Line – É uma escolha política?

José Juliano de Carvalho Filho – Foi uma opção do governo, apesar de ser um governo vindo de base popular. Costumo dizer que a maior vitória da esquerda na história das eleições brasileiras se transformou na maior vitória da direita.

IHU On-Line – Qual é o peso do MST nesta discussão da reforma agrária e enfrentamento do agronegócio?

José Juliano de Carvalho Filho – Tenho muito cuidado em criticar o MST, e não quero que minhas críticas sirvam para ir contra as lutas dos movimentos sociais, mas vejo o MST acuado e com uma ação muito menor. Enquanto isso, do lado contrário, as forças mais reacionárias se veem livres de enfrentamento, tanto por parte do governo, que com eles concorda, quanto por parte dos movimentos sociais.

IHU On-Line – O que mudou na política agrícola e agrária do governo FHC para os governos Lula e Dilma? Há aspectos que o senhor destacaria como relevantes?

José Juliano de Carvalho Filho – Destacaria pequenas coisas para melhor e muitas coisas para pior. Entre as pequenas coisas está a distribuição de merenda escolar pela Companhia Nacional de Abastecimento – Conab. De modo geral, não houve mudança nos aspectos fundamentais, ou seja, permaneceu a mesma política do governo Fernando Henrique Cardoso, com pequenas mudanças. O trato com os movimentos sociais já não é um trato com repressão, mas tanto os governos Lula quanto o de Dilma tentaram cooptá-los.

A política agrária é pífia e junto disso se tem um incentivo para o agronegócio com muito dinheiro, muito apoio de crédito agrícola. Há uma diferença muito grande entre o que é a política agrária e o que é a política agrícola. Então, de um lado tem o Ministério do Desenvolvimento Agrário e, de outro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Se você analisar todos os documentos do governo Lula – e eu fiz questão de analisá-los –, irá perceber que as propostas de campanha acerca da reforma agrária sumiram. De ponto de vista estrutural, esses três governos procuraram desacreditar a reforma agrária. Quando se assiste à Comissão de Agricultura no Congresso Nacional, assiste-se a uma demonstração da luta de classes, ao vivo e a cores.

No programa da presidente Dilma sobre o combate à pobreza no campo, a questão da má distribuição da terra não aparece como causa de pobreza. Então, essa situação só tende a piorar.

IHU On-Line – Há uma tentativa de retirar esse tema da pauta?
José Juliano de Carvalho Filho – Já retiraram o tema da pauta e ficam nos enganando de vez em quando.

IHU On-Line – Como vê a compra de terras por empresas estrangeiras no país? Quais as implicações disso para o futuro?

José Juliano de Carvalho Filho – Essa é mais uma submissão a esse modelo do agronegócio. Porém, neste caso específico, não se trata apenas do agronegócio, haja vista as compras de terras envolverem a compra de áreas ricas em água. A água é um fator estratégico. No futuro vai haver guerras pela água.

O meu colega Ariovaldo Umbelino mostra em seus estudos que o governo brasileiro não nega o avanço do capital estrangeiro na compra de terras nacionais, mas se utiliza dessa questão para encobrir o que está acontecendo com o Programa Terra Legal, ou seja, o beneficiamento de grandes grileiros.

Além disso, muitos pesquisadores acadêmicos passaram a reproduzir uma visão norte-americana, ligada ao Banco Mundial. Os estudos deles são financiados por empresas multinacionais e eles não denunciam esses casos. Basta ver, no Brasil, a situação da Embrapa, que está ligada com a Monsanto. Como se não bastasse, o governo fala em abrir o capital da Embrapa. Isso quer dizer que o país irá entregar essa empresa e o banco de angiosperma que ela tem. Os absurdos foram agravados nos últimos governos.

IHU On-Line – Quais os desafios da política agrícola e agrária nesta conjuntura?

José Juliano de Carvalho Filho – Só vejo uma saída: a retomada das lutas dos movimentos sociais. Mas não vejo como fazer isso sem representatividade política. As poucas conquistas em torno da reforma agrária foram fruto de lutas. É preciso ter pessoas envolvidas com a consciência de que é preciso fazer algo para ter um país melhor. É preciso uma rearticulação política, porque perdemos as defesas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Juliano de Carvalho Filho – O Brasil é uma série de frustrações. Toda vez que achamos que aconteceria uma mudança ela acabou não acontecendo. Veja bem, primeiro teve a luta pelas reformas nos anos 1960, que acabou com o golpe de Estado do então presidente João Goulart. Depois, teve as Diretas Já, e nada. E agora, temos uma sucessão de governos de esquerda que acabaram fazendo o que a direita não conseguiria fazer, porque não conta com oposição política. O Brasil parece um campo livre.

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/a-disputa-entre-a-pequena-e-a-grande-politica-entrevista-especial-com-jose-juliano-de-carvalho-filho/515218-a-disputa-entre-a-pequena-e-a-grande-politica-entrevista-especial-com-jose-juliano-de-carvalho-filho

A Ruptura


por Ladislau Dowbor

Novas relações sociais começam a superar consumismo, devastação ambiental e desigualdade. Mas velho poder resiste. Será possível esperar transição tranquila?

Entrevista a Inês Castilho

Duas previsões opostas, porém igualmente verossímeis, são comuns quando se debatem os sentidos do século 21. Há quem mire, com otimismo, as grandes mobilizações sociais; a valorização da autonomia e das redes cidadãs não-hierárquicas; a tentativa de superar a crise da representação e reinventar a democracia; a expansão da consciência ambiental. Um olhar mais pessimista chama atenção para a ultra-concentração de riquezas; o esvaziamento da política, colonizada pelas grandes corporações (especialmente financeiras); a devastação da natureza e a procrastinação, pelos governos, das medidas que poderiam evitar grandes desastres naturais.

Coordenador do Núcleo de Estudos do Futuro (NEF) da PUC-São Paulo, o economista Ladislau Dowbor parece prestes a dar um passo além desta disjuntiva. Ao desnudar alguns dos fatores que estão por trás das incertezas contemporâneas, seus estudos recentes desenham um modelo em que riscos e de oportunidades não são estanques: estão sobrepostos no mesmo cenário. Aparece com clareza, então, uma alternativa além do pessimismo ou do otimismo. Ladislau lembra que, mais uma vez, o futuro está em aberto – e identifica os possíveis pontos da ruptura.

Esta visão de conjunto desenhou-se, com clareza, num diálogo que o economista – um dos intelectuais brasileiros mais mergulhados no debate sobre as crises globais – manteve com a pesquisadora e jornalista Inês Castilho, colaboradora de Outras Palavras. Ele ocorreu no âmbito do estudo qualitativo Política Cidadã, que o instituto Ideafix produziu para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).

Há uma grande novidade civilizatória, explica Ladislau, por trás de boa parte do que enxergamos como “tendências positivas” da atualidade. A produção imaterial agora ocupa o centro da Economia. O valor dos produtos e serviços está cada vez menos nos materiais neles envolvidos, e mais no conhecimento, cultura e criatividade que permitiram gerá-los. Nenhum destes fatores, explica o professor, é regido pela “lógica da escassez” em que se baseia a teoria econômica convencional. Significa, em outras palavras, que sobre eles não pesa o princípio da propriedade – algo central ao capitalismo. Se divido um prato de comida, ou uma fábrica, resta-me apenas uma parte do que antes possuía. Mas ideias, inovações, talentos e afetos multiplicam-se, quando compartilhados.

Esta enorme mudança de paradigma, prossegue Ladislau, está promovendo imensas transformações. O conhecimento e a informação podem circular livremente, graças a iniciativas como a Wikipedia; a sites, blogs e redes sociais; ou movimentos como a Primavera Científica e as grandes bibliotecas abertas de universidades norte-americanas e chinesas.

Uma economia baseada no imaterial e no conhecimento exige muito menos intervenções sobre a natureza. Além disso, prossegue Ladislau, “casa muito bem com serviços sofisticados (Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Lazer, Segurança) e com sistemas participativos, descentralizados, gestão local, políticas urbanas e redes”.

Conjugados, estes dois fatores insinuam uma utopia já em construção. Numa sociedade em que o principal fator de produção (o conhecimento) não é propriedade privada, mas bem-comum, seria perfeitamente possível redistribuir constantemente a riqueza. Imagine, por exemplo, uma renda cidadã paga a cada ser humano independentemente de trabalho, e capaz de assegurar vida digna. Associe esta garantia à possibilidade de dar sentido social a seus talentos e criatividade, participando de uma rede de prestadores de serviços públicos – educadores, profissionais de saúde, operadores do sistema de transporte coletivo, cuidadores de idosos ou produtores de audiovisual, por exemplo.

Por que, então, estas tendências não se tornam dominantes? Ladislau chama atenção para a inércia das velhas relações de poder e da economia que foi hegemônica nos séculos passados. Como desencadear políticas públicas que restrinjam o uso do carro individual e desmobilizem, portanto, boa parte da produção automobilística? De que forma desalojar, do aparelho de Estado, as construtoras de grandes obras rodoviárias e projetos faraônicos? Ainda mais difícil: como desmontar os mecanismos financeiros que capturam a riqueza social e a concentram nas mãos de 1% da sociedade, ou ainda menos?

Na encruzilhada em que estamos, qual das duas tendências prevalecerá? Ambas têm tanta força que, em diálogos mais recentes (como no lançamento do projeto Primaveras, em 24/10), Ladislau chegou a formular uma terceira hipótese. As transformações históricas exigem, muitas vezes, grandes fraturas. Foram necessárias duas guerras mundiais, e o fantasma da União Soviética, para que surgisse na Europa e América do Norte o Estado de Bem-estar social – hoje moribundo. Será necessária a catástrofe climática para que uma Economia do Bem-Comum e do Compartilhamento torne-se hegemônica? Ou seremos capazes de tramar rupturas mais humanas e suaves? O diálogo entre Ladislau Dowbor e Inês Castilho vem a seguir (A.M.)

Gostaria que o senhor falasse do seu trabalho sobre os megatrends, as grandes tendências atuais do planeta, e do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP.

Trabalho com a convergência das crises, fatores que antes eram avaliados de maneira independente, como por exemplo as tendências das populações, analisadas por demógrafos, as climáticas, por oceanógrafos e assim por diante. Somos sete bilhões de pessoas no planeta, 80 milhões a mais a cada ano, o que significa mais 220 mil pratos de comida na mesa a cada dia: qual é o impacto disso? Os impactos são cada vez mais visíveis, e exigem estudos permanentes. Estamos contaminando a água, tanto os rios, lagos e lençóis freáticos, como até o Golfo do México, o Báltico e certas regiões do Mediterrâneo, que já estão mortas. Contaminamos os solos por excesso de quimização, de agrotóxicos. As mudanças climáticas são estudadas nas suas diversas manifestações.

Não menos importante, as dimensões sociais: a pobreza, as migrações devido aos desastres climáticos, os impactos econômicos da desigualdade. Temos um bilhão de desnutridos, 1,5 bilhão sem acesso a água limpa. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria.

Há ainda o problema do caos econômico que está sendo gerado – não só o financeiro, mas o mercado mundial de commodities, a especulação com o petróleo e o descontrole nas áreas de comércio de armas, de produtos farmacêuticos, dos produtos químicos. Na ausência de governo mundial, de sistemas multilaterais de controle, gerou-se o caos especulativo.

O cenário é mais sombrio do que se imagina?

Uma pesquisa da Austrália perguntou aos cientistas por que os fatos se mostram mais graves, no geral, do que as previsões apresentadas nas várias reuniões sobre a questão ambiental – Estocolmo em 1972, Clube de Roma [conhecido pelo relatório Os Limites do Crescimento, de 1972], Eco-92 no Rio de Janeiro, Johanesburgo em 2002. Eles responderam que tentam reduzir os números para ganhar credibilidade, porque as pessoas se assustam. A cada reunião reajustam-se as cifras para cima, cresce a compreensão de que a janela de tempo de que dispomos é limitada.

E também porque existe um sistema mundial de construção de opinião pública por grandes empresas de relações públicas. Elas se especializaram em criar uma boa imagem das grandes corporações, como a da British Petroleum depois do desastre do Golfo do México; ou a campanha das empresas particulares de saúde dos EUA para tentar travar a aprovação de uma lei de saúde pública; as grandes campanhas para dizer que o fumo não gera câncer; ou ainda para convencer as populações de que limitar o acesso a armas de fogo seria uma limitação à liberdade. Vale tudo. São imensas campanhas, gerando o chamado “negacionismo”.

A campanha para dizer que não há aquecimento global faz parte dessas grandes iniciativas articuladas. Tem um belíssimo livro, Climate Cover-Up: The Crusade to Deny Global Warming, de James Hoggan. Ele explica como funcionam as campanhas de construção de opinião pública, hoje uma grande indústria.

Temos aqui na PUC-SP um pequeno Núcleo de Estudos do Futuro que trabalha sobre esses processos e também se articula com outras instituições. Na linha dos megatrends, ou macrotendências, promovemos estudos sobre dinâmicas de longo prazo, e também mudanças metodológicas como sobre o PIB, ou estudos setoriais como o livro sobre energias renováveis no Brasil. Disponibilizamos esses textos online, em regime Creative Commons.

A grande mídia estaria articulada com a construção dessas visões da realidade?

A grande mídia está visceralmente ligada a quem paga a publicidade. As grandes empresas de publicidade costumam se identificar com os interesses das grandes corporações – que são as que pagam a publicidade. Trata-se em geral de grandes empresas, as padarias não fazem propaganda nesse nível. Os setores financeiro, farmacêutico, automobilístico são típicos. O custo é colocado no produto que a gente paga. Assim, esse dinheiro financia as empresas de publicidade, uma grande indústria internacional, que por sua vez financia a mídia.

Isso se reflete na área editorial: primeiro porque a mídia nunca vai falar mal das corporações que a financiam; segundo porque se mantém presa a uma programação atrativa à média da população – já que os custos da publicidade são definidos pela quantidade de espectadores e leitores. O circuito se fecha: não se informa sobre os sistemas econômicos e os problemas e coisas desagradáveis. Em compensação, enche-se a televisão de PMs perseguindo bandidos no morro e coisas do gênero. Vai-se assim gerando uma indústria da burrice e uma indústria do medo.

Uma pesquisa dos Estados Unidos diz como aumenta o sentimento de insegurança das pessoas, independentemente do nível de criminalidade, em razão do uso da segurança pública como matéria-prima para atrair leitores ou espectadores de televisão. A solução organizacional e institucional e a forma de financiamento do processo deformam o nosso acesso à informação.

Em que medida as novas mídias tornam mais livre o acesso ao conhecimento?

Em vários níveis. A mudança importante é que o processo se inverte, a filosofia muda. As coisas circulam pela qualidade, e não porque os Mesquita, Civita, Marinho ou Frias querem que as pessoas pensem assim ou assado. As informações circulam pela demanda, e não pelo que vão render de publicidade. Um bom artigo é repassado nas redes porque as pessoas gostaram, e quando gostamos de algo a reação imediata é compartilhar esse gosto. A tendência é a intensificação da leitura definida pela demanda, e muito menos pela oferta forçada a um leitor ou telespectador passivo.

Tem gente, como eu, que disponibiliza toda a sua produção científica online. A tiragem típica de uma revista científica em uma universidade é de 800 exemplares, e a leitura é mínima. A partir do meu site, centenas de textos científicos são baixados diariamente. Como estão na internet, estão permanentemente disponíveis, não é noticiário de momento jogado no lixo, como jornal de ontem. E são utilizados em Angola e outras regiões onde não há dinheiro para comprar livros, nem disponibilidade nas bibliotecas.

Além de assegurar muito mais conhecimento na base da sociedade, o conhecimento circula em função da qualidade. Por exemplo: Joan Martínez Alier publicou na Universidade de Barcelona um artigo extremamente competente sobre os impactos ambientais da empresa americana Chevron-Texaco no Equador. Recebo esse artigo porque várias pessoas leram e disseram: “é excelente, o Ladislau precisa ler”. Leio e mando para um monte de gente, porque é excelente. Isso em nível individual. Existem hoje milhões de blogs – estou batalhando para que na PUC todos os professores tenham o seu blog e a gente construa uma comunidade online. A resistência é grande, há uma mudança cultural pela frente.

Em nível institucional, um exemplo: o MIT- Massachusetts Institute of Technology criou a partir de 2003 o OCW-Open Course Ware. Todo o trabalho dos professores, mais de dois mil cursos, está disponível online gratuitamente. No ano seguinte já a China conectou nesse sistema as suas 12 principais universidades: todo cientista chinês, ao criar um produto científico – um curso, um livro –, disponibiliza-o online no sistema e recebe um pagamento do governo. É uma solução institucional e organizacional interessante: milhões de chineses têm acesso à ciência gratuitamente, online. E quando se tem acesso à ciência se cria mais ciência, porque inspira e dá ideias. Hoje temos muitos países conectados ao OCW, várias instituições no Brasil – se você entrar no site do OCW Consortium, que articula mundialmente esse conjunto, vai ter os países e as instituições. Na China se chama CORE, China Open Resources for Education. Enquanto isso, na PUC, USP e outras universidades brasileiras ainda trabalhamos com pastas de professores e xerox de capítulos isolados. É pré-histórico.

Voltando à questão das novas mídias…

É muito mais do que mídia alternativa. É o fato de que as pessoas disponibilizam conhecimento segundo a relevância efetiva que tem para elas e buscam de maneira temática as informações de que necessitam. Isso, em outro nível, gera um sistema de newsletters que começa a concorrer efetivamente. Carta Maior é recebida por centenas de milhares de pessoas, temos o Envolverde, Mercado Ético, IHU, inúmeros grupos que redistribuem e fazem circular informação inteligente. E temos informação tradicional que se adaptou, como o The Guardian, no qual você pode encontrar informação internacional extremamente atualizada, gratuitamente, a partir do celular ou tablet, sem complicações de senhas, pagamentos, cadastros. É um serviço público a partir da esfera privada.

Os que se aferram à mídia antiga, e ao controle político e comercial da mídia, declaram guerra a estas formas abertas de acesso. Você liga o rádio e ouve: “seja ético” – o que é uma bobagem. Ser feliz sozinho é deprimente. Quando ouço uma música bonita penso: vou mandar para fulano. Criminalizar isso é patológico: o Brasil é de uma hipocrisia quase escandalosa, ao inverter a noção de ética. O prejudicado não é o músico, que só tem a lucrar com a divulgação. São os grandes intermediários, os donos da chamada indústria cultural, que não criam nada mas travam o acesso. O copyright é legítimo na forma como surgiu: uma editora que produz um livro não quer que outra editora aproveite o eventual sucesso comercial. Mas criminalizar o uso não comercial é inclusive uma burrice econômica, além da deformação do conceito de ética.

E existe agora esse fantástico avanço do tagging: o endereço e o código de cada documento. Estamos em um nível que, se quero estudar desemprego jovem em periferias metropolitanas, coloco esses termos no Google ou em qualquer outro buscador e tenho centenas de artigos sobre o que acontece nas periferias de Beijing, Xangai ou Moscou – e posso compor essas visões em uma articulação nova sobre a base do conhecimento acumulado. Fazer articulações inovadoras sobre a base de conhecimento acumulado chama-se ciência. Isso é inovar. Neste sentido, o acesso aberto online é muito mais do que a gratuidade, é a abertura e flexibilidade de cruzamento de informações e avanços científicos de qualquer parte do planeta, de qualquer área científica, que gera a presente explosão de inovações. Não à toa milhares de cientistas americanos geraram o movimento Science Spring, primavera científica, na linha da primavera árabe, e boicotam as revistas indexadas. Chega de intermediários que cobram pedágio sobre as inovações dos outros.

A inovação é um processo colaborativo: ninguém inova sozinho. Tem um livro muito bonito, Cognitive Capital, em que o autor Clay Shirky lembra que se não fossem as universidades terem desenvolvido os microprocessadores, os chips etc, um Bill Gates ainda estaria trabalhando com tubos catódicos – aqueles antigos de televisão. A inovação é uma maré que levanta todos os barcos, só que alguns querem cobrar pedágio sobre as inovações de todos.

Então, esse talvez seja o megatrend que atravessa todo o conjunto: o conhecimento se desmaterializa. Quando escrevo a letra a, preciso gastar tinta e papel; mas o digital é uma combinação de zeros e uns que pode ser feita com luz acesa ou apagada, polo magnético positivo ou negativo, intensidade maior ou menor de fótons – estou nas ondas eletromagnéticas. Instala-se um sistema de satélites geoestacionários ao redor do planeta que retransmitem esse conhecimento – e o planeta passa a ser banhado em conhecimento. Esses satélites ficam a 36 mil km de altitude, uma altitude da qual podem acompanhar exatamente o movimento da Terra – e tem-se a cobertura completa do planeta em conhecimento.

O que está acontecendo é que o conhecimento não está mais na cabeça do professor, está no ambiente, ou na nuvem. Isso significa que a educação tem que passar a ser articuladora, organizadora de conhecimento, muito mais do que lecionadora. Esse fluxo de conhecimento online leva à ruptura do fatiamento: isso é química, aquilo é física, e um não se mete no outro – isso está indo para o brejo. As escolas, as universidades com seus diplomas estão se tornando um conjunto de estruturas desesperadamente desatualizadas, relativamente a todas essas transformações possíveis.

E qual é a escola necessária?

A escola necessária é muito menos lecionadora e muito mais articuladora de conhecimento. Seymour Pappert escreveu A Máquina das Crianças, The Children’s Machine, um livro sobre as inovações educacionais na era do computador, em 1993. Conta ali a história de uma professora de informática que, sentindo-se cada vez mais sem jeito porque os alunos estavam indo mais rápido que ela, num momento de crise tem um ataque de bom senso e diz: “meninos, vocês claramente estão indo mais rápido que eu. Mas sei organizar conhecimento e sei discutir com vocês como usar esses instrumentos. Então vou parar de dar aula e passar a ser uma assessora organizacional para vocês construírem novos conhecimentos através desse instrumento.” Isso é a nova escola. Se você lê José Pacheco, da Escola da Ponte, a visão é essa.

É uma escola-referência?

É uma escola-referência. Pegue os Recursos Educacionais Abertos (REA), ou o Projeto Folhas, da secretaria de Educação do estado do Paraná: não tem mais livros-textos na aula. Eles selecionaram professores voluntários, dispostos a elaborar textos com o que acham que as crianças querem aprender, pensando junto com elas. Deram ano sabático para eles poderem se dedicar, e cada texto é elaborado por esses professores junto com os alunos, numa produção online. Eles contam com núcleos universitários de apoio para as dúvidas técnicas, e triangulam isso permanentemente com a secretaria de Educação. Vão assim construindo de forma colaborativa, e incluindo os eixos de interesse dos alunos. Quando aparece uma bobagem, é corrigida na hora: não dá escândalo, a Folha de São Paulo não pode fazer uso político de um erro no livro-texto.

E mais, quando surge uma nova pesquisa o professor recebe uma notinha no e-mail, dizendo: “atualize tal coisa no livro.” Os professores vivem a educação, participam do que estão ensinando. E o sentimento do aluno é de que está trabalhando online, com coisas relevantes. Ele aprende a trabalhar por problema. Um texto sobre água, por exemplo: água é vida, é lazer, água é meio de transporte, irrigação, cultura e dinâmica ambiental. Podemos, sim, ir além das disciplinas, do conhecimento fatiado.

É uma revolução, e está acontecendo – sempre com muita resistência, da mesma maneira que na área comercial as grandes corporações resistem. Estou batalhando aqui na PUC para adotarem o OCW – o que seria óbvio. É patético que ainda tenhamos que tirar xerox de um capítulo, e não do livro inteiro, porque não pode. Para o aluno, que tem uma bagagem pequena, é ruim ler um capítulo isolado. Assim trabalhamos, em pleno século XXI, quando outros países já estão em outra fase: nesses poucos anos, só no OCW-MIT, mais de 50 milhões de textos foram baixados. Imagine a contribuição ao conhecimento planetário. E os professores passaram a se sentir mais úteis, sem esperar “pontinhos” por publicação.

Isso configura uma revolução na economia?

O que acontece é que todo o referencial está mudando. Por exemplo: o que estou falando para você não tira nada de mim, e pode acrescentar algo de valor a você. Mais: falando, eu penso, “não tinha percebido tal coisa”. E você vai recriar o que eu disser. Essa máquina aqui [um gravador digital] deve ter 3% de matéria-prima e trabalho físico, 97% é conhecimento incorporado – design, pesquisa etc. No mundo, hoje, 3/4 do valor dos produtos é conhecimento incorporado.

Quanto mais se generaliza conhecimento, mais se enriquece a humanidade. Pense no conceito dos economistas – de que economia é a alocação ótima de recursos escassos. Como perceber a economia quando o recurso deixa de ser escasso, e além disso pode ser retransmitido livremente, instantaneamente, sem custos, pois as ondas eletromagnéticas são da natureza? E com custos de transação praticamente nulos? E não é uma inundação, o conhecimento pode circular pelo planeta e ser acessado de maneira inteligente por meio de algoritmos que permitem foco e seleção precisos. Esse é o tamanho da revolução da chamada economia do conhecimento. O conhecimento é um fator de produção cujo consumo não reduz o estoque.

E começamos a assistir ao uso das redes sociais para a mobilização política. Como vê isso?

O pano de fundo mais amplo para toda essa mobilização, além do twitter e das manifestações, é que os pobres hoje não são mais como os pobres de antigamente. Quando de meu primeiro trabalho, como jornalista do Jornal do Comércio do Recife, na área rural, pobre era sim, sinhô pra tudo, resignado, analfabeto. Hoje ninguém mais está dizendo sim, sinhô.

Passando por África, bem no interior, encontrei um descalço, indo a pé, com seu turbante. Tinha havido uma ruptura de chuvas – uma seca, falta de água para a colheita seguinte. Perguntei: “como vocês vão fazer com a safra?” Ele olhou para mim com tranquilidade e disse: “quero saber o que vocês vão fazer.” Viu meu carro, que sou branco, da capital… São muitos os informados, sabem que podem ter acesso a uma saúde decente para os filhos, direitos de cidadania. É um despertar prodigioso.

Há algumas cifras de referência que são úteis: somos sete bilhões de habitantes no planeta, dos quais quatro bilhões são “pessoas que não têm acesso aos benefícios da globalização”– como diz o Banco Mundial, educadamente, pois não gosta de dizer “pobres”. Um bilhão dessas pessoas passa fome, e 180 milhões são crianças. Destas, entre 10 e 11 milhões são reduzidas à morte, todo ano. São dados recentes da Unicef e da FAO. Não estamos matando, estamos deixando morrer, isso porque temos os recursos, os conhecimentos, as tecnologias.

Estamos vendo morrer 12 milhões de pessoas no Chifre da África, de AIDS já morreram 25 milhões – e estamos discutindo o valor das patentes. É insustentável. Em paralelo, há facilidade de adquirir informações que mudam a atitude das pessoas. Esses 2/3 da população mundial reduzidos à miséria estão em grande parte nas cidades, não mais isolados no campo. No Brasil, 96% dos domicílios têm tevê. Celular, então…

Mesmo considerando que a tevê informa mal, deforma?

Sem dúvida informa mal – mas as coisas chegam, circulam. Digamos que, com essa expansão do acesso ao conhecimento e acesso inteligente das mensagens, as pessoas podem traduzir o seu desespero individual na compreensão de que se trata de um processo social e não de sua própria incapacidade. Os pobres estão começando a compreender. Um padre latino-americano me falou certa vez: “se ajudo um pobre, dizem que sou santo; se pergunto por que razão ele é pobre, dizem que sou comunista.” Achei interessante…

De um lado temos esse imenso desafio ambiental – as situações críticas que estamos provocando; e de outro o desafio social – que está explodindo: até os índios Aymara estão se mobilizando. E tem um terceiro eixo, o caos financeiro que estão gerando, a desorganização do sistema produtivo. São tão gananciosos que querem fazer dinheiro com dinheiro, não sabem sequer financiar de maneira inteligente o processo produtivo, para ser remunerados com ele.

Estamos começando a entender as sinergias. Por exemplo, o permafrost da Sibéria, aquele gelo acumulado há séculos sobre toda a Sibéria, que não derretia no verão, só em parte, mas se mantinha congelado e branco, e portando refletia o calor – derreteu com o aquecimento global. São milhões de quilômetros quadrados hoje escuros, que absorvem, a invés de refletir o calor – gera-se um feedback do processo de aquecimento. Começamos a entender como interagem os diversos processos. É um exemplo a mais. Hoje entendemos a seriedade das situações, porque tudo está sendo estudado, e porque nos últimos anos e nas últimas décadas se fechou a fronteira estatística do planeta. Sabemos o que está acontecendo.

Como assim?

Não há mais “buraco negro” – regiões da África em que não se sabia quanta população há, por exemplo. Está tudo mapeado. Com o cruzamento dessas informações a gente consegue entender: estamos destruindo a água, que já é chamada de ouro azul. Em 200 anos teremos liquidado com o petróleo, que se acumulou em 200 milhões de anos. O petróleo fácil acaba nos próximos 20 anos. Liquidar com o petróleo, uma preciosidade que deve servir às gerações futuras da humanidade, para andar de moto e jet-ski ou ficar parado nas avenidas… haja bom senso!

Temos a liquidação da cobertura florestal do planeta – agora o eixo principal do desmatamento está na Indonésia. O Brasil conseguiu uma vitória fantástica, com Marina Silva e depois com Carlos Minc, que foi reduzir de 28 mil km² para 7 mil km² o desmatamento anual da Amazônia. Continua sendo um desastre, mas foi uma vitória. O governo Lula foi o primeiro a não colocar ministros do meio ambiente decorativos.

Pegando segmento por segmento, a gente constata os desastres, como por exemplo o da destruição da biodiversidade. Passamos a entender que as cadeias alimentares são todas conectadas, uma colabora com a outra, uma vive da outra – e fomos cortando uma por uma. No plano dos oceanos, como estamos emitindo mais dióxido de carbono, os oceanos absorvem mais e se tornam mais ácidos; com isso, fica reduzida a capacidade de formação óssea de tudo o que exige cálcio, como as conchas e os corais.
Tem um livro belíssimo do Fred Pearce, When Rivers Run Dry, Quando os ricos secam, em que ele conversa com grandes agricultores indianos. Eles têm bombas que puxam 12 metros cúbicos de água por hora, a 350 metros de profundidade, muito mais que a capacidade de reposição do sistema de chuvas local; o argumento é: “se não for eu, vai ser outro”. A pedido do governo africano, fui falar com uma empresa de pesca que estava exaurindo os recursos pesqueiros da África Ocidental. O argumento foi o mesmo: “meu amigo, tenho 100 milhões de dólares empatados em pesca industrial, tenho que recuperar o meu, e, francamente, se não for eu…”. Há uma corrida para ver quem chega primeiro, antes que acabe. Em nome do liberalismo econômico.

Será possível construir uma governança global para cuidar do planeta?

Estamos frente a uma mudança necessária de governança, o processo decisório tem que mudar. Globalmente. Na sua hierarquia completa, nos seus problemas planetários, cada problema planetário sendo enfrentado em cada cidade.

Em São Paulo andamos de carro a 14 km/h, em primeira e segunda. O paulistano perde 2h40m por dia em deslocamento no trânsito. O transporte individual sai imensamente caro, polui e as pessoas não se movem. Estive agora na China: Xangai tem 420 km de metrô. O trajeto diário escola-trabalho-casa, todo mundo no mesmo horário, é chutado para debaixo da terra, por eletricidade, que não polui. Estive em Beijin, Xangai e outras cidades, vi poucas motos movidas a gasolina: é tudo elétrico. Aqui no Brasil essa moto não entra por interesses das empresas tradicionais, japonesas e outras. O equivalente de uma Biz, só que elétrica, custa na China 350 reais. Um motorzinho elétrico, uma bateria, o resto é lataria e borracha. E não polui. A moto no nosso trânsito emite o equivalente a 6 carros.

O grande vetor dessa mudança necessária é o acesso ao conhecimento e à informação. Por que as pessoas aceitam pagar 160% de juros do cheque especial ao ano, no Santander? Porque elas não sabem que na Espanha o mesmo cheque especial, até 5 mil euros, custa 0% por 6 meses. As pessoas ignoram, por exemplo, que quando você compra vitamina C numa caixinha, o conteúdo efetivo de ácido ascórbico custou à empresa apenas três centavos. O resto é embalagem, publicidade – “uma tampinha que faz ‘poc’” – daí que apenas 1/3 da população tenham acesso à vitamina C.

A base produtiva dos países está mudando. Antigamente eram bens essencialmente materiais, hoje o principal eixo de atividade econômica não é indústria, não é agricultura – atividades por excelência do século XX. A gente sabe o que é agricultura e indústria, todo o resto chamamos de serviços, e dentro de serviços o que se vai encontrar são as políticas sociais: saúde, educação, cultura, segurança, habitação, esporte, lazer. Que são densos em mão de obra, em interações pessoais, e portanto densos em organização social.

O maior setor econômico dos Estados Unidos, hoje, 17% do PIB, é saúde. As atividades estão se deslocando para essa área, que funciona de maneira diferente: não se põe saúde em container, não tem concorrência da China. O IPad é feito na China, mas a educação, não.

Quais são os sistemas que funcionam no Brasil? Pastoral da Criança, Programa de Saúde da Família – porque política social é contato, é professor com aluno, são sistemas em rede, horizontais. Há um deslocamento planetário dos empregos, das atividades econômicas para os chamados bens de valor imaterial, e o imaterial casa muito bem com sistemas participativos descentralizados, gestão local, políticas urbanas, sistemas em rede. Isso significa que os movimentos sociais têm como crescer, não porque a gente é de esquerda e gosta de Ong, mas porque funciona. Não há uma organização no Brasil que se compare, em competitividade, com a Pastoral da Criança: com R$ 1,70 por criança/mês, atingiram 50% de redução de mortalidade infantil, 80% de redução de hospitalizações. Os planos de saúde comerciais ficam indignados com a eficiência do terceiro setor, os velhos interesses buscam criminalizar os movimentos sociais.

Não podemos olhar o século XXI com o olhar do século XX. Há um deslocamento intersetorial de onde estão os empregos e as atividades. O que leva à sociedade em rede, a Manuel Castells, a todas essas compreensões da reestruturação da sociedade.

E isso potencializa a mobilização política?

Isso gera uma base econômica para a sociedade articulada. Quando se produz tênis Nike, vai para fábrica, volta para casa e não organiza nada; despacha por conteiner, vende nas lojas, nos shoppings. Quando faz sistemas sociais, você articula a sociedade e a torna forte. Isso gera uma apropriação da política pela base da sociedade.

Uma coisa interessante: a Suécia, que é muito adiantada nesses processos, tem uma taxa de impostos elevada, de 60% – a nossa é baixa, de 35%. No entanto, de toda a massa de dinheiro dos impostos, de recurso público, 72% são administrados em nível local, diretamente com as comunidades. É uma política apropriada pela base, tem um aprofundamento da democracia, como em Boaventura dos Santos.

Gostaria de recomendar o meu pequeno livro Poder Local, da Brasiliense, e meu estudo As políticas sociais e transformação da sociedade, que ajudam a entender essa dinâmica. Está tudo no meu blog. No ensaio Democracia Econômica, também online, faço um painel de 20 eixos de grandes transformações. É um livro pequeno. Aliás, fiz um grande, A Reprodução social, e aí os alunos disseram: “professor, livro que fica de pé?!”. Nunca tinha pensado nesse critério.

O senhor é otimista em relação ao futuro?

Sou um pessimista ativo, digamos, faço tudo para as coisas melhorarem. Não acredito que haja pessoas boas e pessoas más – todos temos dimensões boas e más. Trata-se de criar instituições que tirem o melhor de nós. Há espaço para isso: estou vendo a multiplicação das organizações da sociedade civil, o surgimento da mídia alternativa, a conscientização sobre os desafios planetários, a indignação com a desigualdade, o funcionamento das políticas redistributivas. Só que uma coisa são as dinâmicas que melhoram os processos, e outra é a janela de tempo que temos – o petróleo está acabando, os mares estão contaminados, os rios nem se fala, as florestas estão acabando, a biodiversidade vai para o brejo e o clima está explodindo.

Haverá tempo?

É complicado, porque são processos de inércia muito profunda. Tome a imagem do Titanic: o cara vê o iceberg a 2 km, que é longe; mas 2 km para o Titanic já era, porque até ele começar a mudar de rumo, não dá tempo. Se começarmos a mudar um conjunto de emissões de dióxido de carbono hoje, até 2040 não mudou nada, as condições já estão dadas.

O Lester Brown, que é o melhor estudioso desses problemas, trabalha com a visão de que não sabemos onde vai se dar a ruptura. Como estão se exaurindo os aquíferos, muitos países, particularmente no Oriente Médio, já não têm mais grãos, porque não têm água para os cultivos, e então se tornaram importadores. Conforme vão se acelerando as contaminações e a liquidação dos aquíferos, haverá uma bolha alimentar. Já existe no planeta um bilhão de pessoas passando fome, e pode haver uma explosão muito mais violenta. Há necessidade de mudar o paradigma energético: estamos investindo mais em aeroportos, enquanto a Europa já saiu do aeroporto e está indo para os trens, está reduzindo a velocidade.

É difícil saber onde vai se gerar uma ruptura sistêmica e quais as conexões intersistêmicas dessas rupturas. A atitude é a da chamada precaução: tudo o que gera uma sociedade mais informada é legal, tudo o que articula, organiza a sociedade e lhe dá instrumentos de controle é bom, tudo que tira as patas das corporações de dentro do governo é bom. O que conscientiza, o que gera sistemas educacionais, o que gera um sistema aberto de acesso ao conhecimento, reduz patentes e copyright – são coisas que efetivamente podem funcionar, melhoram a resiliência do conjunto.

http://www.outraspalavras.net/2012/11/22/um-planeta-banhado-em-conhecimento/



Climate cover-up: The cruzade to deny global warming

Não há dúvidas sobre o aquecimento global, nem sobre o peso das atividades humanas na sua geração. No entanto, depois de dois anos de uma gigantesca campanha de mídia, envolvendo também a criação de ONGs fajutas e de movimentos aparentemente “grass-root”, portanto “espontâneas e comunitárias”, e sobre tudo listagens de cientístas “céticos” visando dar impressão de “quantidade”, temos resultados, e para os grupos do petróleo, do carvão e semelhantes, terá valido a pena. Segundo The Economist, a proporção de americanos que achavam existir evidências sólidas de aumento das temperaturas globais caiu de 71% em abril de 2008 para 57% em outubro de 2009.(in Carta Capital, 16/12/2009, p. 48)

O estudo de James Hoggan não é sobre o clima, mas sobre comunicação, e consiste essencialmente em mapear como a campanha foi montada e como hoje funciona. A articulação é poderosa, envolvendo instituições conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros, muitos republicanos e a direita religiosa.

Os grandes grupos corporativos aparecem mais discretamente, com exceção da ExxonMobil que inundou com dinheiro o mercado de consultoria e de comunicação. Este “inundou”, naturalmente, é um conceito relativo: são centenas de milhões de dólares, mas New Scientist lembra que “as empresas de petróleo têm vastos lucros. Só a ExxonMobil lucrou US$45 bilhões em 2008. Num mundo sano, certamente encontrariamos uma maneira de desviar um pouco deste dinheiro para resolver os problemas que o próprio petróleo está gerando. A questão é: estamos vivendo num mundo sano?” (NS, 5/12/2010, p. 5) Não custa lembrar que estas empresas não “produzem” petróleo, e sim extraem e comercializam um bem herdado da natureza, e que está acabando.

Em termos de personagens, encontraremos os das causas conservadoras e muitos personagens “flexíveis”, como Frank Luntz, Christopher Walker, Fred Singer, Patrick Michaels, Arthur Robinson, Steven Milloy, Benny Peiser e numerosos outros, além da eterna estrela do “contra”, o dinamarquês Lomborg, que graças à sua disponibilidade anti-clima ganha financiamentos para incessantes palestras.

Profissionais das relações públicas (sim, o nome é este) estão sempre presentes. Hoggan, o autor deste estudo, é um profissional de relações públicas, e conhece profundamente como funciona a indústria da construção e da destruição das reputações de pessoas ou de causas. Isto o levou a fazer o presente levantamento detalhado de como se estrutura, com o impressionante poder das tecnologias modernas de comunicação, a manipulação da opinião pública. Independentemente da causa, no caso o drama do aquecimento global, o que é muito interessante no livro é entender esta indústria da desinformação.

Naomi Oreskes organizou uma meta-pesquisa, com o buscador “mudança climática global”, e limitada a artigos revistos por pares (peer review). Encontrou 928 artigos, nenhum colocando dúvidas sobre a realidade do processo climático. Nos jornais, no entanto, comentando a pesquisa, 53% dos artigos, buscaram ouvir “os dois lados”, e colocaram de maneira equilibrada opiniões de contestadores. Zero porcento de artigos científicos contestadores sobre o processo climático em si, mas nos jornais aparecia como “um tema em discussão”. O que era o objetivo. O tema está em discussão, afirmam gravemente os grandes grupos geradores do aquecimento (não diretamente, sempre através de listas de livre inscrição), portanto o assunto “é controverso”. Os “céticos” passam a se apresentar não como contestadores do fenômeno, mas como os que têm uma visão equilibrada, sem extremismos, portanto acreditam que talvez haja um problema, mas temos de ser ponderados, e adiar decisões.

No caso de Naomi Oreskes, é curioso, pois um Dr. Benny Peiser, professor de educação física (esporte mesmo, não física), realizou uma pesquisa sobre “mudança climática” (e não “mudança climática global”) e apresentou uma lista não de 928 artigos, mas de mais de 12 mil. Portanto, os 928 representariam apenas uma pequena parcela das opiniões. Os jornais, devidamente estimulados (a Fox em particular, naturalmente), fizeram alarde. Faltava demonstrar que os 12 mil tinham opinião contrária. Pressionado por revistas científicas que se recusavam a publicar o seu artigo, Peiser conseguiu localizar 34 artigos “que rejeitam ou duvidam da visão de que as atividades humanas são a principal causa do aquecimento observado nos últimos 50 anos”. Pressionado ainda para mostrar os artigos e os argumentos científicos em artigos “peer reviewed”, Peiser finalmente chegou a um artigo científico de contestação. Não era revisto por pares, e foi publicado na American Association of Petroleum Geologists. (102)

Tudo isto, evidentemente, amplamente divulgado, em particular por redes de institutos empresariais conservadores, utilizando em parte os mesmos grupos de relações públicas utilizados nas campanhas de caça-voto dos republicanos, e apoiados nas tecnologias de ampla divulgação como youtube. O resultado de tudo? Frente a tanta celeuma, os grupos interessados puderam passar a dar entrevistas “equilibradas”, pois estaria claro que “há controvérsias”. Que era o único objetivo da campanha. Não de negar o inegável, mas de dar a entender que as pessoas comedidas, equilibradas, não vão fazer nada, e muito menos pressionar os agentes do aquecimento global.

O livro é muito instrutivo para quem lida com comunicação, com teoria dos lobbies, com manipulação política. O próprio Hoggan menciona como é cansativo, a cada vez que aparece um cientista de peso mencionado no grupo “cético”, fazer circular a carta de denegação do cientista, ou destrinchar uma lista de milhares de “opositores” para ver se há no meio alguém que realmente tenha feito alguma pesquisa sobre a única coisa finalmente relevante, que não é a “opinião”, e sim dados científicos novos que provem algo diferente. E depois tentar fazer circular a informação de que a “notícia” afinal não era notícia, isto numa mídia onde as corporações financiam a publicidade.

Uma pérola entre os argumentos, e uma das mais utilizadas: “Como podem os cientistas dizer que podem prever o clima dentro de 50 anos se não são capazes de prever a chuva de amanhã”. Como se meteorologia e estudos climáticos fossem da mesma área. Um britânico pode não saber se vai nevar amanhã, mas sabe perfeitamente prever que vai chegar o inverno e o frio correspondente, e não hesita em comprar um casaco. Mas o argumento pega, e se apoia numa fragilidade que é de todos nós: se nos dão um argumento que confirma a opinião que já estávamos propensos a ter, qualquer estribo vale.

O estudo bem poderia ser traduzido e utilizado para os nosso próprios problemas, como por exemplo o peso da bancada ruralista na opinião pública, ou as campanhas orquestradas pela Febraban, ou ainda a campanha contra a proibição de armas de fogo individuais, estribadas no “direito de se defender”, e até na “liberdade”. Nos Estados Unidos, temos precedentes interessantes e igualmente desastrosos tanto no caso das armas, como na batalha das grandes empresas de saúde privada aliadas com o “Big Pharma” para tentar travar o direito de acesso à serviços de saúde, sem falar das gigantescas campanhas das empresas de cigarros. O último livro de Robert Reich, aliás, Supercapitalim, também trata desta apropriação dos processos políticos pelas corporações. O filme O Informante mostra como isto se deu com a indústria do cigarro, enquanto The Corporation, (resenhado aqui), explicita o mecanismo de maneira ampla. Marcia Angell fez um excelente estudo dos procedimentos equivalentes na indústria farmacêutica (em português, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos). A própria desinformação se transformou numa indústria. É a indústria da opinião pública.

No caso da mudança climática, como qualificar a dimensão ética do que constitui uma clara compra de opiniões? Ou os ataques impressionantes das empresas de advocacia das corporações, que processam qualquer pessoa que ouse sugerir que uma opinião poderia envolver não a verdade mas interesses corporativos? O liberalismo tem uma concepção curiosa da liberdade. (L.Dowbor)

http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/

22 de novembro de 2012

A dependência da economia ao capital estrangeiro


Cabe ao nosso território e ao nosso povo trabalhar apenas para fornecer matérias-primas baratas para o centro do capital. Essa é a lógica dominante

Editorial da edição impressa 507 www.brasildefato.com.br

Há um consenso entre as correntes de pensamento econômico, movimentos sociais e partidos políticos de todo o mundo, que a partir da década de 1990 o capitalismo ingressou numa nova fase hegemonizada pelo capital financeiro e pelas grandes corporações internacionais que passaram a dominar o mercado mundial. Assim, o capitalismo globalizou-se e domina toda a economia global; porém sob o comando do capital financeiro e das grandes corporações. As estatísticas mais conservadoras revelam que, passados vinte anos dessa hegemonia, o capital financeiro circulante saltou de 17 trilhões de dólares, em 1980, para 155 trilhões em 2010, enquanto o volume de produção de mercadorias medidas pelo PIB mundial passou de 15 trilhões de dólares para 55 trilhões. Por outro lado, as 500 maiores empresas internacionais controlam 58% de todo PIB mundial, embora empreguem menos de 5% da mão de obra disponível.

Essa força do capital em sua nova fase atingiu e submeteu a todas as economias do hemisfério sul, entre elas o Brasil. Mais do que nunca a economia brasileira é cada vez mais dependente do capitalismo internacional, ao ponto de nos transformarmos novamente em país agro-mineral exportador e provocar uma desindustrialização da economia, que chegou a pesar 38% do PIB na década de 1980. Hoje pesa apenas 15% da economia nacional.

Sofremos com essa redivisão internacional da produção e do trabalho. Cabe ao nosso território e ao nosso povo trabalhar apenas para fornecer matérias-primas baratas para o centro do capital. Essa é a lógica dominante.

Já a burguesia brasileira, interna, continua com o mesmo comportamento histórico denunciado por todos os pesquisadores, em especial Florestan Fernandes. Segundo ele, essa burguesia nunca teve interesses nacionais e muito menos de desenvolver nosso país. Pensa e age apenas em torno do lucro imediato, e para isso, se apropria de recursos públicos ou se alia subalternamente aos interesses da burguesia internacional.

Há alguns meses, os jornais revelaram que haveria 580 bilhões de dólares de capitalistas brasileiros depositados em paraísos fiscais no exterior. A maior parte dessa fortuna sai do país sem pagar impostos, e parte dela às vezes retorna para esquentar investimentos estratégicos, ou mesmo apenas para limpar sua origem, como revelou o livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., A privataria Tucana onde descreve esse movimento com detalhes e nomes.

Por isso, os movimentos sociais e a esquerda de todo o mundo precisam urgentemente levantar a bandeira da luta contra os paraísos fiscais, suas isenções e sigilos. Eles são a verdadeira “lavanderia” secreta da maior parte dos capitalistas financeiros do mundo. Por aí passam também os verdadeiros ganhadores com o comércio de drogas e armas.

Agora, começam a surgir notícias e estudos revelando um grave processo de desnacionalização das empresas brasileiras. O Brasil de Fato soma-se a essa preocupação. Por isso, publicaremos em nossas páginas análises e matérias para subsidiar esse debate. Parece que a crise que se abateu sobre o capitalismo financeiro internacional gerou para o Brasil um efeito contraditório, pois um grande volume daquele capital fictício, para evitar o risco de perder-se corre para afugentar-se no Brasil. Chegaram aqui, de 2008 para cá, ao em torno de 200 bilhões de dólares por ano. E aqui, compraram terras, usinas, etanol, hidrelétricas, poços de petróleo, empresas industriais, e até a empresa de serviços de saúde como a Amil. Com um cadastro de 8 milhões de brasileiros, a empresa foi desnacionalizada e passada para um grupo de empresários estadunidenses. No setor sucroalcooleiro, o movimento foi ainda mais violento. Em apenas três anos, o capital estrangeiro passou a controlar 58% de todas as terras de cana, usinas de açúcar e etanol. Hoje, três empresas controlem verdadeiramente o setor: Bunge, Cargill e Shell! E todos os dias os jornais da burguesia anunciam novas compra de empresas pelo capital estrangeiro.

Mas a galinha de ovos de ouro dos capitalistas estrangeiros são as reservas do pré-sal. Essa é a verdadeira pressão que Obama e o primeiro-ministro da Inglaterra fizeram sobre a presidenta Dilma: exigem que o Brasil faça leilões do pré-sal, para que suas empresas possam explorá-los. Todos sabemos que o petróleo, pelas circunstâncias econômicas atuais e pelo mercado garantido, gera a maior renda extraordinária que um capitalista pode sonhar. Pois enquanto o preço de mercado do barril está ao redor de 120 dólares, o custo de extração do pré-sal é de apenas 16 dólares. A diferença deve ser apropriada pelo Estado e não pelos interesses do lucro capitalista. Fez bem a presidenta em anunciar que o governo brasileiro se comprometeria a aplicar todos os recursos advindos dos royalties do petróleo em educação. Medida sábia e necessária. Porém, sofreu boicote de sua própria base parlamentar e a proposta sofreu a primeira derrota no Congresso. Ou seja, a disputa dos recursos naturais com o capital só será vencida pelo povo, se houver mobilização de massa. Caso contrário, as empresas petrolíferas garantirão com muita facilidade seus interesses.

O diálogo inter-religioso e a eclesiologia da harmonia





Proscritos na sociedade hindu se identificam com o Ressuscitado que, como eles, era um servo e um pária. Um diálogo sinfônico é a proposta de Peter Phan na “eclesiologia da harmonia”, cujo modelo de comunhão é uma trindade igualitária

Por: Márcia Junges
Tradução: Sílvia Ferabolli

Phan debate a compreensão de Jesus Cristo como um dalite

Num mundo composto por sete bilhões de pessoas, somente dois bilhões delas são cristãos. “E o que acontece com os outros cinco bilhões de pessoas? Como é possível se comunicar com elas? E com aquelas que não falam sobre Deus e outras questões relevantes/importantes para os cristãos? Esse é o grande desafio para a cristandade hoje”. A reflexão é do teólogo vietnamita naturalizado americano, Peter Phan, em entrevista exclusiva concedida pessoalmente à IHU On-Line por ocasião de sua vinda à Unisinos em outubro. Uma de suas ideias mais instigantes é a comparação de Jesus Cristo com um dalite, pessoa que no sistema de castas indiano está à margem, fora das castas, vivendo separada e proscrita. Assim como ocorreu com Jesus Cristo, oprimido, crucificado, tornado servo. Dessa forma, argumenta Phan, os dalites identificam-se com o Ressuscitado porque ele também é um servo, e não um Senhor, como um Brahim, da casta sacerdotal. Ele discute, também, sua concepção de eclesiologia da harmonia, na qual todos têm voz, como em uma sinfonia.

Peter C. Phan é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma e doutor em Filosofia pela Universidade de Londres, instituição na qual também obteve doutorado em Teologia Pastoral. Publicou diversas obras sobre vários aspectos da teologia, traduzidos em italiano, alemão, francês, espanhol, polonês, chinês, japonês e vietnamita. É o atual titular da Cátedra Ignacio Ellacuría de Pensamento Social Católico da Universidade de Georgetown. Além disso, já lecionou na Universidade de Dallas, na Catholic University of America de Washington e no Union Theological Seminary de Nova Iorque, dentre outros. Em 2010 foi homenageado com o prêmio John Murray Courtney, a mais alta honraria concedida pela Sociedade Teológica Católica da América, por seu “extraordinário e distinto êxito em Teologia”.

Em 05-10-2012, Phan proferiu a conferência “A semântica do Mistério da Igreja no contexto das gramáticas atuais. Uma perspectiva inter-religiosa”, como parte da programação do XIII Simpósio Internacional IHU Igreja, cultura e sociedade. A semântica do Mistério da Igreja no contexto das novas gramáticas da civilização tecnocientífica. Ele também participou do Congresso Continental de Teologia com a conferência “Mundialização, pluralismo religioso e teologia cristã”, em 10-10-2012.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais críticas que o senhor recebe por sua proposta de eclesiologia da harmonia?

Peter Phan – A primeira crítica contra a proposta da eclesiologia da harmonia é que ela não presta atenção suficiente à questão da hierarquia porque, como eu disse, na harmonia todas diferentes vozes são ouvidas, enquanto no magistério e toda a eclesiologia insistem que eles são professores da fé e que os outros devem apenas ouvir. Na eclesiologia da harmonia todos têm voz porque você não pode ter harmonia se existe apenas uma ou duas vozes – isso não é harmonia. Em uma sinfonia, por exemplo, você tem instrumentos diferentes: o violino, a flauta, enfim, instrumentos diferentes. Então, vozes diferentes devem ser ouvidas, mas o magistério diz: “Não. A voz principal que deve ser ouvida é a do Papa e dos bispos”. Contudo, esse é um princípio falso. A crítica que normalmente se faz é que a eclesiologia da harmonia não presta atenção devida às instituições, tais como os sacramentos e o catecismo. Então os elementos institucionais, de acordo com as críticas, não são preservados. Dessa forma, muito frequentemente as pessoas dizem que a eclesiologia da harmonia é dirigida às pessoas, em vez de seguir o modo hierárquico, da igreja institucionalizada. A eclesiologia da harmonia seria então o modo igualitário e democrático da Igreja.


IHU On-Line – O que diferencia a eclesiologia da harmonia e a eclesiologia da comunhão?

Peter Phan – Essa foi uma das perguntas feitas durante o XIII Simpósio Internacional IHU: Igreja, cultura e sociedade. Eu concordo com a eclesiologia da comunhão se essa for uma comunhão de iguais. O modelo da comunhão é a trindade. Mesmo que façamos uma distinção entre Pai, Filho e Espírito Santo nós dizemos: “eles são iguais”. Existe igualdade absoluta. O Pai não é um Deus maior do que o Filho, e o Filho não é mais Deus que o Espírito. Então é uma comunhão igualitária e, nesse sentido, ela é harmoniosa. Infelizmente, nos últimos 20 ou 30 anos, quando se fala em “comunhão” se fala em “comunhão hierárquica”, ou seja, existe um papel central. As igrejas têm de estar em harmonia com a igreja de Roma, mas nisso não está implícito que a Igreja de Roma também deva estar em harmonia com outras igrejas. Então, quando se fala de eclesiologia da comunhão fala-se, na verdade, de eclesiologia da comunhão hierarquizada. E é por isso que, para mim, a eclesiologia da harmonia não é a mesma coisa que a eclesiologia da comunhão. Elas não são iguais porque a harmonia não requer que uma voz domine as outras vozes. Na verdade, se uma voz domina as outras vozes você não tem a sinfonia, não tem a harmonia. Mas na eclesiologia da comunhão, como ela é basicamente entendida, a igreja de Roma sempre está no centro e todas as outras igrejas devem estar em comunhão com ela. Eu insisto que a Igreja de Roma também precisa ouvir as vozes de outras igrejas e estar em comunhão com elas, e não dominá-las. Essa é a diferença entre a eclesiologia da harmonia e a eclesiologia da comunhão.

IHU On-Line – Por que é tão difícil para o cristianismo aceitar que há outras formas de salvação, que não somente através de Jesus?

Peter Phan – Bem, a resposta para essa pergunta é bastante longa. Como eu disse, por dois mil anos, a Igreja se definiu e formou sua identidade em oposição às outras religiões. Em seus primórdios, a Igreja era uma pequeníssima seita e então podia existir junto a outras religiões – Judaísmo, religiões imperiais, etc. Contudo, quando o cristianismo torna-se uma religião imperial em 388 d. C., os imperadores passam a dizer: “a única religião lícita e permitida é o cristianismo”. Então, de uma religião minoritária, passa a ser a religião do império romano. A igreja começou a dizer não ao judaísmo, e, a partir do século VI, não ao Islã. E quando a Igreja chegou ao novo mundo, no século XIV, ela passou a dizer não às religiões indígenas. No século XVI, quando novas áreas da Ásia foram descobertas, falou “não” para as religiões locais. Então, existe uma longa tradição dentro da fé cristã de entender a si mesma e o cristianismo como diferente, como exclusivo. Em nossos dias, quando vivemos em uma era de pluralismo religioso, nós não estamos acostumados com esse tipo de existência. O cristianismo é somente uma entre muitas religiões. Não se trata mais da única, ou “a” religião. É um ajuste difícil.


O desafio do diálogo inter-religioso

Você me pergunta por que é tão difícil que o cristianismo aceite outras formas de salvação. É porque nós estamos acostumados com a ideia de que somos a única, que somos superiores em relação ao restante das religiões, e que a salvação só é possível através de Jesus porque isso é o que pensamos de Jesus Cristo. E, de repente, nos damos conta de que existem outras religiões que também falam de salvação ou que, algumas vezes, elas nem ao menos falam de salvação! Elas falam em harmonia, em relacionamentos... Porque muitas vezes nós pensamos que a salvação é a união com Deus porque essa é a tradição cristã. Contudo, muitas vezes percebemos que algumas religiões nem ao menos falam de Deus. No budismo, por exemplo, Buda não fala em Deus – ele não o afirma e ele não o nega, ele apenas diz que não é útil especular sobre a existência ou não de Deus. Cito um exemplo: se alguém tem uma áurea, eu não faço perguntas sobre a origem da aura, qual é a sua finalidade, de que substância é feita. Não faço esse tipo de perguntas. Eu tomo isso como fato. Então, para Buda, todas as perguntas sobre Deus e a salvação são irrelevantes, ou melhor, distrações. Então como eu, um cristão, que acredita que existe apenas um Deus e atribui a salvação apenas a Cristo, posso encontrar um budista que me diz: “eu não estou interessado em salvação, só estou interessado em acabar com o sofrimento. Ajude-me a acabar com o sofrimento”.

Então é muito difícil para um cristão, hoje, porque ele não está mais limitado na Europa, nos Estados Unidos ou na América Latina e precisa falar com não cristãos. Então como você fala com não cristão sobre Deus, igreja, Cristo e salvação? Hoje sabemos que existem sete bilhões de pessoas nesse mundo. Desses, por volta de dois bilhões são cristãos. Então o que acontece com os outros cinco bilhões de pessoas? Como é possível se comunicar com eles? E com aqueles que não falam sobre Deus e outras questões relevantes/importantes para os cristãos? Esse é o grande desafio para o cristianismo hoje. Então o diálogo inter-religioso é essencial para mim como cristão.

E o que significa ser cristão hoje? É uma mistura de tantas coisas... Antes pensava-se que existiam apenas cristãos no mundo, e que no século XVI um novo mundo foi descoberto nas Américas. Então como você diz que fora da igreja não há salvação? Porque antes se achava que a Igreja era “tudo”. Então você podia dizer “existem alguns judeus, alguns muçulmanos”, mas agora você descobre que a maioria é composta por não cristãos, e que os cristãos são minoria.


IHU On-Line – Qual foi a importância e qual é o legado, a herança da missão de Matteo Ricci na China e no Oriente como um todo?

Peter Phan – Matteo Ricci foi para Macau, na China. Essa cidade era o centro da missão da Igreja. Dali, a Igreja dirigiu-se para o Japão e o Vietnã. E o padre jesuíta superior dessa missão era Alessandro Valignano . Ele era um italiano muito jovem. Como ele era o que chamamos de “visitador”, disse para o Matteo Ricci que se ele quisesse ir para o Japão ou China, deveria viver como um japonês, ou um chinês. E para isso, a primeira coisa que deveria fazer era aprender o idioma. Então, Valignano enviou Matteo Ricci para Macau por dois anos para que aprendesse chinês. E os chineses tinham as escrituras, os livros sagrados de Confúcio. Matteo Ricci tinha uma memória fantástica, o que foi muito importante porque no chinês você tem que memorizar cada palavra – e ele aprendeu. Então, traduziu muitos textos de Confúcio para o italiano ou o latim. Mas a questão de “viver como um chinês” ou “viver como um japonês” não significa “viver como um português na China” ou algo assim. Muitos missionários no exterior – os portugueses, por exemplo – faziam desta forma: se você é indiano, mas quer se converter ao cristianismo, você tem que se tornar um cristão português – viver o modo de vida de um cristão português! Valignano disse “não, não e não! Você tem que viver como você vive”. É o que se chama hoje, inculturação.

Então, como eu disse em minha conferência no Simpósio, antes de ensinar, você tem que aprender, e só então você pode ensinar. Essa é a primeira grande importante herança de Matteo Ricci e Alessandro Valignano, porque eles tiveram essa ideia de que você deve ser como os povos que você quer evangelizar.


Controvérsia dos ritos

A segunda herança é que Ricci respeitava as culturas dos povos, não apenas sua língua. Uma prática cultural importante na China é a veneração dos ancestrais. Para os chineses, é de extrema importância honrar os mortos. Muitos missionários, sobretudo os dominicanos, achavam isso perigoso, pois se tratava de uma superstição. Essa é uma das razões pelas quais se instalou a Controvérsia dos Ritos. Matteo Ricci, por sua vez, queria entender o significado desses ritos. As pessoas diziam-lhe que esta era a maneira de expressarem sua gratidão aos antepassados. Eles não achavam que seus pais ou avós comiam a comida, tanto que depois de certo tempo eles pegavam a comida e a comiam. O que estava envolvido, então, era um senso de respeito, gratidão e continuação familiar. A partir disso, Ricci dizia que tais práticas eram plausíveis.

A Controvérsia Chinesa dos Ritos começou em meados do século XVII, e apenas em 1924, ou seja, três séculos depois de ter sido iniciada, que a Igreja reconheceu a possibilidade de que os rituais chineses de culto aos antepassados não fossem superstição, mas fruto da própria ética e moral da cultura chinesa. Em 1924, o Vaticano passou a aceitar essas práticas. Assim, hoje você vai a um funeral em Taiwan e poderá ver inclusive o bispo se curvar diante da pessoa morta e fazer oferendas de incensos, colocando-os próximos à sua cabeça, porque esses são ritos de veneração.

Um mundo simbólico

É bom lembrar que na Igreja Católica também existe a prática de veneração de santos oferecendo, por exemplo, flores aos mortos. Você acha que Santa Maria vem à Terra cheirar essas flores? Você acha que os santos gostam de rosas, de velas? Não! Trata-se de símbolos. Nós vivemos em um mundo de simbolismos. Na Ásia existem as flores e também a comida. Na Europa só há as flores. Comida é para ser comida quando se tem fome. Na Ásia, contudo, o ato de comer é um evento familiar em que pessoas conversam e compartilham. Na América, você entra no MacDonalds’s, pega alguma coisa correndo e vai embora. Na China, não. Os parentes, as crianças, a família se reúne para comer e o ato de comer passa a ser, então, um ato de comunhão. É uma espécie de eucaristia. Na eucaristia eu não apenas recebo o corpo de Cristo para a minha alma, mas a ela é também a comunidade alimentando especialmente os pobres, que não tem comida. Então eucaristia é exatamente alimentar, dentro da comunidade, a todos, especialmente aqueles que não têm o que comer. Não significa ir ate lá e receber Jesus em meu coração.


IHU On-Line – Qual é o nexo principal que une a Teologia da Libertação da América Latina e a Teologia da Libertação da Ásia?

Peter Phan – A preocupação com os pobres é a primeira coisa que as une. Existem muitos pobres na América Latina assim como na Ásia. Você sabe que os países mais pobres do mundo estão na Ásia, e não na América Latina: Camboja, Índia, Paquistão, Bangladesh. Todos esses países pobres do mundo estão na Ásia. Claro que existem aqueles muito ricos, como Japão, Taiwan, Coreia do Sul. Mas dos quase sete bilhões de habitantes do mundo, quatro bilhões vivem na Ásia, e dois dos maiores países do mundo, China e Índia, em conjunto, compõem 2,5 bilhões de pessoas da humanidade. É muito importante lembrar-nos da demografia, e de que a maioria dos asiáticos é muito pobre. Então, quando você me pergunta o que une a Teologia da Libertação da América Latina e a Teologia da Libertação da Ásia, digo que é a presença dos pobres. Pobres, muito, muito pobres. Você vê pessoas vivendo literalmente no lixo em lugares como a Índia. Então, como eu disse em minha conferência no Congresso Continental de Teologia, o que une as duas teologias não é um tópico específico ou uma doutrina: mas um contexto. Desse modo temos a pergunta relacionada ao contexto: o que o contexto – aqui e agora – pode nos ensinar sobre Deus e sobre ser um bom cristão? A resposta é muito diferente quer estejamos falando da América Latina, da China ou do Vietnã. Mas o que une esses lugares é a mesma questão básica: qual é o contexto, aqui e agora: aqui, na China, agora, 2012? Como esse contexto pode me ensinar sobre o que é Deus? Essa pergunta permanecerá a mesma, o que irá variar é a resposta, que varia de contexto para contexto. Na China é uma resposta. No Brasil é outra resposta, diferente, porque o contexto é muito diferente, mas a questão permanece a mesma. Então o que une a Teologia da Libertação da América Latina e a Teologia da Libertação da Ásia é a presença dos pobres e as semelhanças entre as perguntas que são feitas.



IHU On-Line – Em que sentido a concepção de Jesus Cristo como dalite e Deus como servo, e não mais senhor, abre caminho para uma nova gramática do Mistério na vida das pessoas?

Peter Phan – Você sabe o que é um dalite? O sistema de castas na Índia divide-se quatro castas: os sacerdotes, os militares, os comerciantes e os servos. Contudo, fora dessas castas existem os dalites, que são literalmente os “separados”, pois eles não pertencem a nenhuma casta: eles estão simplesmente “fora” do sistema de castas, o que significa que eles nem ao menos são considerados humanos. A eles não é permitido frequentar as igrejas daqueles que pertencem às castas, não podem ser enterrados nos mesmos cemitérios e nem mesmo comer em público. Quando o fazem, existe sempre um lugar separado para os dalites. Eles também são proibidos de ir à escola. Como é triste o sistema de castas e a ideia de excluído, um intocável, que transforma todos os que encostam nele em impuros. Mesmo hoje, em muitos vilarejos indianos, os dalites existem. E, logicamente, eles jamais podem se casar com pessoas das castas superiores. Na verdade, os casamentos se dão internamente em cada casta. Vale observar que a maioria dos cristãos na Índia são dalites: 80% dos cristãos indianos são dalites.

Um dalite como bispo

E por que Jesus é um dalite? Porque, assim como os dalites, ele também estava fora das “castas”, da cidade, era um pária que foi crucificado. Então o dalite ouve essa história e pensa: se eu quero ser um cristão, a imagem que eu tenho de Deus é Deus como um servo. Para um dalite quem é o “senhor”? O senhor é um Brahim, um pertencente à casta dos sacerdotes. Então, se eu penso em Jesus como um “Senhor”, penso nele como um membro da mais alta casta, como um Brahim, mas eu, um dalite, não posso nem ao menos sentar próximo a eles... Mesmo as igrejas católicas na Índia têm áreas separadas para dalites e não dalites. Cinco ou seis anos atrás houve uma crise. A crise aconteceu quando o bispo se aposentou e um dalite foi apontado como seu sucessor. O bispo aposentado o recusou porque ele era um Brahim, da mais alta casta, e o seu sucessor, um dalite. Então, mesmo entre os franciscanos eles tinham os superiores dentro da comunidade e Roma apontou um dalite para ser “o” superior da casa, mas eles o recusaram. Então, um antigo amigo meu, um vietnamita que estava em Roma, foi até o conselho superior e de lá teve de ir até a Índia para, pessoalmente, dizer aos Franciscanos: “vocês fizeram um voto de obediência e tem que aceitar a nomeação desse bispo”. Então você percebe essas clivagens culturais que existem na religião, porque eles acreditam que Deus criou o mundo com essas quatro castas – os sacerdotes, os militares, os comerciantes e os servos – porque isso era o que Deus queria. Então os “fora” da casta não podem participar, pois assim quis Deus. E isso ainda acontece.

Então, os dalites têm duas escolhas. Já que não podem permanecer no hinduísmo, porque este prega obediência ao sistema de castas, podem se tornar budistas, ou cristãos. O budismo rejeita o sistema de castas. O próprio Buda, embora tenha nascido na segunda casta indiana, não aceitava a distinção de castas. Então, os pobres e outras pessoas tornaram-se budistas. A segunda opção é tornar-se cristão, mas, infelizmente, quando eles entravam na igreja cristã, encontravam o mesmo sistema de castas. Você sabe qual foi a coisa mais interessante que vi em São Leopoldo? Um cemitério ecumênico! Essa é a primeira vez na minha vida que eu vejo algo assim. Quando você morre pode começar um “diálogo ecumênico”! Eu preciso tirar uma foto desse cemitério! Porque isso é algo muito interessante. Então quando você morrer, se for católico, pode “dialogar” com um luterano ou um budista. No Vietnã isso seria impensável.

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4783&secao=409

“A revolução é um belo monstro com mil cabeças”.



Entrevista especial com Michael Löwy

Ainda hoje, encontramos na esquerda esta visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução, constata sociólogo.

Questionado a respeito dos principais limites do pensamento marxista e o que explica o fato de que o marxismo seja visto por muitos setores da academia como retrógrado, Michael Löwy, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, frisa que o marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: “por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica”.

Para Löwy, alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. E continua: “outros, identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o ‘progresso’, sendo o marxismo ‘arcaico’, por se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital”.

Segundo o sociólogo marxista, tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época. Para ele, as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões políticas e culturais. “Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...”.

Michael Löwy (foto) é sociólogo marxista e filósofo. É diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, tendo sido homenageado em 1994 com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais. É ainda um dos principais pensadores marxistas da atualidade. Recentemente publicou os livros Revoluções (Boitempo, 2009) e A teoria da revolução no jovem Marx (Boitempo, 2012). Além disso, é autor de livros sobre Karl Marx, Che Guevara, a Teologia da Libertação, György Lukács, Walter Benjamin, Lucien Goldmann e Franz Kafka.

Recentemente ele publicou o livro A teoria da revolução no jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as peculiaridades da revolução na obra do jovem Marx? Em que aspectos sua teoria se modifica em seus escritos posteriores?

Michael Löwy – Nas Teses sobre Feuerbach (1845) – o germe genial de uma nova concepção do mundo, segundo Engels – e na Ideologia alemã (1846), Marx inventa uma nova teoria, que se poderia definir como filosofia da práxis (o termo é de Gramsci). Superando dialeticamente o idealismo neo-hegeliano – para o qual a mudança da sociedade começa com a mudança das consciências – e o materialismo vulgar – para o qual é necessário primeiro mudar as “circunstâncias” materiais –, Marx afirma, na Tese n. III sobre Feuerbach: na práxis revolucionária, coincidem a mudança das circunstâncias e automodificação dos indivíduos.

Como ele explica pouco depois na Ideologia alemã: uma consciência comunista de massas só pode surgir da ação, da experiência, da luta revolucionária das massas; a revolução é não apenas necessária para derrubar a classe dominante, mas também para que a classe subversiva se liberte da ideologia dominante.

Em outras palavras: a única emancipação verdadeira é a autoemancipação revolucionária. Essa tese vai ser um fio vermelho, através de toda sua obra, mesmo que as formulações sejam mais diretamente políticas e menos filosóficas. Por exemplo, no célebre preâmbulo dos Estatutos da Primeira Internacional: “A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores”. Mas isso vale também para o Manifesto comunista, para os escritos sobre a Comuna de Paris, etc.

IHU On-Line – Como pode ser compreendida a ditadura do proletariado face a democracia que emana da teoria da revolução comunista?

Michael Löwy – A expressão “ditadura do proletariado” foi pouco feliz. Mas como o demonstrou o socialista americano Hal Draper, o que Marx e Engels queriam dizer com isso era o poder democrático dos trabalhadores, tal como o conheceu a Comuna de Paris, que teve eleições democráticas, pluripartidarismo, liberdade de expressão, etc. No século XX, essa expressão serviu para justificar políticas autoritárias em nome do comunismo, que não correspondem ao pensamento de Marx.

IHU On-Line – O que mudou na esquerda desde o lançamento da primeira edição de A revolução comunista na obra do jovem Marx?

Michael Löwy – O título da primeira edição (não da tese de doutorado) era A teoria da revolução no jovem Marx, publicado pelas Editions Maspero, em 1971. Desde então muita água correu nas margens do Sena, e a versão estalinista da esquerda, que predominou durante boa parte do século XX, entrou em crise e praticamente desmoronou no mundo inteiro. Fica então confirmada, pela via negativa, a tese de Marx: a única revolução verdadeira é a autoemancipação dos oprimidos.

IHU On-Line – Em termos gerais, o senhor considera que a esquerda em suas diferentes experiências (União Soviética, Leste Europeu, América Latina, Europa e Brasil) compreendeu Marx de forma equivocada? Por quê?

Michael Löwy – Na URSS, em seus primeiros anos, existiu talvez uma compreensão equivocada do marxismo, uma leitura autoritária de certos textos. Mas a partir do stalinismo, em meados dos anos 1920, já não se trata de equívoco, mas de uma ideologia de Estado, pretensamente marxista-leninista, visando justificar o poder totalitário da burocracia e suas políticas oportunistas. Infelizmente, os partidos comunistas da Europa, América Latina e Brasil seguiram, durante muitos anos, a orientação stalinista. Mas já a partir de 1956 e, sobretudo, de 1968 (invasão da Tchecoslováquia), muitos comunistas começaram a questionar esta ideologia. Na América Latina foi a Revolução Cubana que provocou uma profunda crise no movimento comunista.

IHU On-Line – A revolução permanente de Trotsky é uma categoria adequada para se pensar a esquerda hoje? Por quê?

Michael Löwy – A teoria da revolução permanente de Trotsky – que havia sido formulada por José Carlos Mariategui, no contexto latino-americano, desde 1928 – é a única que dá conta da dinâmica das revoluções do século XX: revoluções russa de 1917, chinesa, iugoslava, vietnamita, cubana. Em todos estes países, uma revolução democrática, agrária e/ou anticolonial se transforma num processo ininterrupto – permanente – em revolução socialista. Infelizmente, em todos estes processos – com a exceção parcial de Cuba – acabou se dando uma degeneração burocrática. Isso não é uma fatalidade, mas o produto de circunstâncias históricas. O que vale ainda hoje é a visão estratégica: as revoluções na periferia do sistema serão revoluções socialistas, democráticas, agrárias e anti-imperialistas ao mesmo tempo; ou então serão “caricaturas de revolução”, como dizia Che Guevara. Dito isso, não se pode considerar a teoria de Trotsky como um dogma infalível: ele previa, nestas revoluções, um papel dirigente da classe operária, que só se deu no caso russo de 1917.

IHU On-Line – Como concilia a militância socialista e surrealista? Como essas vertentes se complementam e confluem para o trotskismo?

Michael Löwy – O surrealismo é um movimento romântico revolucionário, de reencantamento do mundo, que tem uma vocação eminentemente subversiva: é, portanto, perfeitamente compatível com a militância socialista. Aliás, muitos surrealistas, como o poeta Benjamin Péret – que esteve vários anos no Brasil – nunca deixou de militar, e combateu em 1936-37, nas fileiras antifascistas na guerra civil espanhola.



Em 1938, André Breton, o fundador do surrealismo, viajou ao México para encontrar Leon Trotsky, então exilado em Coyacan. Os dois redigiram juntos um manifesto, intitulado Por uma arte revolucionária independente, contra qualquer controle de partido ou Estado sobre atividade poética ou artística. Pouco depois, será fundada a Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente – FIARI, na qual participam surrealistas, trotskistas, e outros. Mas o surrealismo não se relacionou somente com o trotskismo: teve também vínculos com o anarquismo, em particular nos anos 1950, e chegou a se aproximar de Cuba revolucionária nos anos 1960. Suas simpatias vão a todo movimento autenticamente revolucionário.

IHU On-Line – Quais são os desafios da autoemancipação do proletariado numa sociedade “enfeitiçada” pelo consumo e, por conseguinte, por um trabalho que proporciona a alimentação dessa maquinaria capitalista?

Michael Löwy – O feitiço do consumo e o fetichismo da mercadoria exercem um poder considerável sobre a população, mas em certos momentos decisivos o feitiço se rompe, a magia negra do capitalismo deixa de funcionar e os proletários, a juventude, os oprimidos, se levantam contra o sistema. A história da América Latina das últimas décadas é uma ótima ilustração disso.

IHU On-Line – O filósofo como cabeça e o proletariado como coração da revolução. Até que ponto essa ideia de Marx inspira a esquerda do nosso tempo?

Michael Löwy – Essa ideia, de corte tipicamente neo-hegeliano, foi defendida por Marx no começo de 1844. Mas pouco depois, impactado pelo levante dos tecedores da Silésia (norte da Alemanha), de junho de 1844, ele descobre que o proletariado alemão é “filosófico”, não precisa esperar pelos neo-hegelianos para se sublevar. Ainda hoje, encontramos na esquerda essa visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução. A revolução é um belo monstro com mil cabeças.

IHU On-Line – Qual é o significado dos movimentos dos indignados e da primavera árabe? Seriam sopros de uma nova política?

Michael Löwy – A Primavera Árabe foi um magnífico levante da juventude árabe contra ditaduras sanguinárias e anacrônicas. Infelizmente, a vitória dos revolucionários foi confiscada – provisoriamente, esperamos – por forças islamistas conservadoras.

No caso do Movimento dos Indignados, trata-se de outro contexto: a crise do capitalismo na Europa e Estados Unidos, com consequências dramáticas para a população: desemprego, arrocho salarial, redução das pensões, perda de domicílios, etc. Tendo à sua cabeça a juventude, este movimento traz reivindicações antineoliberais, democráticas, igualitárias, muitas vezes anticapitalistas. Seu denominador comum é a indignação, um sentimento essencial, ponto de partida necessário de toda luta e toda transformação social. Sem indignação não se faz nada de grande e de radical.

IHU On-Line – Quais são os principais limites do pensamento marxista? O que explica que o marxismo seja visto por muitos setores da academia como retrógrado?

Michael Löwy – O marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica. Alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. Outros, identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o “progresso”, sendo o marxismo “arcaico”, por se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital.

Penso que tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época; as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo regressões políticas e culturais. Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/515587-a-revolucao-e-um-belo-monstro-com-mil-cabecas-entrevista-especial-com-michael-loewy