20 de novembro de 2012

Marcos 4.1-9



Jesus ao contar as parábolas usava os fatos da realidade de sua época. Ao usar exemplos da vida real e da realidade social, política, econômica, cultural e religiosa ele denunciava esta realidade injusta propondo em seu lugar esta nova sociedade não classista e igualitária que ele chama de Reino de Deus.


Na parábola do Semeador Jesus denuncia a realidade da distribuição e do uso da terra. Nesta parábola Jesus coloca a diferença que há entre o latifúndio que tem terra boa e que por isso produz muito e a terra ruim que sobra para os camponeses empobrecidos que não produz nada. Aqui Jesus aponta para a profunda injustiça que aprofunda o empobrecimento e a dominação sobre a classe camponesa: quem tem pouca terra e terra ruim e é o mais necessitado não colhe nada e o que tem muita terra e terra boa tem uma super safra. O semeador na parábola é o mesmo: na terra ruim e na terra boa, porque é a classe camponesa que faz o trabalho também para o latifúndio. Quem trabalha para o latifundiário é o camponês sem terra que vira diarista assalariado (Mt 20). O camponês sem terra não vira sem terra por opção, ele é tornado sem terra pela expropriação que o sistema econômico produz. Assim como o pai de Jesus, o José, não virou carpinteiro (ou em outra tradução: trabalhador braçal) por opção, mas por precisão, pois não tinha terra.

Olhando como Jesus conta a parábola quem é camponês vai logo entender que ninguém semeia semente boa em solo rochoso, no meio de espinhos e nos barrancos da estrada a não ser que não tenha outra alternativa. Qual a terra que sobra para os camponeses empobrecidos? A pelanca: terra com laje, cheia de tocos e espinhos e barrancos de estrada que o latifúndio não tem interesse em usar. A terra boa foi apropriada pelos ocupantes romanos e pela elite latifundiária israelita, os saduceus, que também faziam parte do Sinédrio (parlamento israelita que se reunia no Templo de Jerusalém).

Jesus ao contar a parábola denuncia a injusta distribuição da terra e o empobrecimento dos camponeses; dá para fazer uma relação com Gn 3 que denuncia a opressão e sofrimento dos camponeses pelo modo de produção tributário. Jesus denuncia que os camponeses empobrecidos não colhem nada porque tem pouca terra e terra ainda por cima péssima e improdutiva e o latifúndio tem uma super colheita, pois possui a terra de ótima qualidade. Assim os extremos se acentuam: quem é pobre fica mais pobre e quem já é rico fica mais rico. É isso que grita aos céus.

Isto me lembra da realidade dos camponeses sem terra dos anos 50-80 do oeste catarinense que só conseguiam arrendar terra toda inçada e cheia de brotos e tocos e quando haviam limpado e preparado a terra, após a colheita, o dono a requeria para o seu uso e os agregados tinham que alugar outra terra para a outra safra e se repetia o processo: recebiam terra inçada, com todos e brotos e após limpa e plantada e colhida a safra tinham que migrar para outra terra porque o dono agora satisfeito com a terra limpa e bem preparada a requeria para seu uso.

A realidade de hoje é semelhante à do tempo de Jesus: hoje a terra dobrada e que não se presta para o uso de maquinário fica com os camponeses e a terra plana na qual se pode usar trator com implementos modernos foi sendo apropriada pelo latifúndio. Assim a pior terra fica para os pobres e a melhor terra fica para os ricos. Desta forma os pobres vão empobrecendo cada vez mais e os ricos vão enriquecendo cada vez mais e a injustiça se perpetua. Hoje até a terra dobrada já está sendo apropriada pelo latifúndio para o plantio de eucalipto e pinus ou para a criação de gado e os camponeses vão para a cidade.

Jesus termina a parábola dizendo: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Isto quer dizer: quem tem sensibilidade para com a realidade dos empobrecidos vai entender a parábola e a sua denúncia. A parábola não foi entendida pela comunidade e por isso em Mc 4.26-32 se procura explicar a parábola, pois os ouvintes da primeira comunidade não conheciam a realidade camponesa da Palestina e porque moravam na cidade.

Se um camponês ouve a parábola ele logo vai perguntar: Por que o semeador joga semente boa no meio dos espinhos, nas lajes e nos barrancos da estrada? Nenhum camponês de sã consciência vai semear boa semente em terra desse tipo a não ser que ele não tenha outra terra para semear.

Temos, na parábola, a clara luta de classes na Palestina entre latifúndio e camponeses. A realidade salta à olhos vistos e aponta para a luta de classes que acontece em nossa sociedade de hoje, que em alguns pontos é semelhante e em outros diferente porque vivemos em outro modo de produção. A nós cabe saber fazer a análise de nossa realidade a partir de onde Jesus tem os pés fincados: a classe camponesa explorada e oprimida e também a classe trabalhadora como um todo. Deus fez sua opção de classe a partir do camponês sem terra e sem teto Jesus de Nazaré e a partir desta opção de classe ele fala à nós. Esta opção de classe que Deus fez em Jesus nos incomoda profundamente como Igreja, que se diz de Jesus Cristo, e que também fez sua opção de classe, pelo latifúndio. Conto aqui um relato de uma mulher assentada em Chapecó, no assentamento Dom José Gomes:

Sua família foi atingida pela barragem de Garibaldi e o MAB fez uma mobilização contra a barragem e o pai dela, católico e ministro da eucaristia em sua comunidade, foi convidar o bispo de Lages para participar da mobilização contra a barragem. O bispo, curto e grosso, respondeu que ele não iria nesta mobilização porque os fazendeiros eram contra esta mobilização e que eles sempre lhe davam alguns bois para a festa e por isso não apoiaria esta mobilização e luta contra a barragem. Seu pai ficou profundamente chocado e escandalizado por ser católico fiel e batalhador de sua comunidade.

Como esta Igreja que se diz de Jesus Cristo vai explicar esta parábola de Mc 4? Como a IECLB que também se diz ser Igreja de Jesus Cristo e que tem postura igual à do bispo vai explicar esta parábola? Ah!, mas na IECLB é diferente! Mentira! Não é diferente! Ouvi ainda este mês o relato de um pastor que foi pastor em Marechal Cândido Rondom, anos atrás, e que a diretoria da comunidade lhe proibiu de falar sobre o tema: sem terra, ele podia até participar da CPT fora da paróquia, da qual participava, e levar membros para a Romaria da Terra (desde que longe da paróquia), mas na paróquia o tema sem terra era proibido; se desobedecer é rua! Significa não apenas o tema sem terra, mas o tema Reforma Agrária era tema proibido. Os interesses do latifúndio devem estar garantidos pela Igreja, que se diz de Jesus Cristo no Brasil. O escandaloso de tudo isto é que Jesus era um camponês sem terra.

Outro fato aconteceu em 1992 no antigo DEAJ - Distrito Eclesiástico Alto Jacuí. Participei de uma instalação de um pastor, que não era tido de direita, e na pregação falou mal dos sem terra que haviam sido assentados há pouco há uns 5 km da cidade. Anos depois fiquei sabendo o porque desta pregação. O pastor foi aceito nesta comunidade com a condição de na pregação de instalação falar mal destes sem terra assentados perto da cidade. Ele não teve a coragem de se negar a fazer este triste papel e em troca ele conseguiu uma paróquia para trabalhar, mas estava comprometido publicamente com o projeto do latifúndio historicamente predador da natureza, escravocrata e assassino. Mais de 15 anos depois quando doente e incapaz para o trabalho a paróquia não o queria mais e a Igreja teve que tirá-lo de lá e continua até hoje na vala geral dos desempregados abandonados, alijados e esquecidos. Em outras palavras: ferrado!

Por que não enxergamos esta realidade da luta de classes que a parábola nos aponta? Porque fomos ensinados a não ver a realidade assim como ela é; fomos ensinados desde pequenos a ver a realidade do ponto de vista da classe economicamente dominante; fomos ensinados a ver o Evangelho como algo espiritual desvinculado do material e nunca fomos instruídos a ver a materialidade da espiritualidade. A Bíblia é tida como espiritual quando na verdade vive falando do material: das pessoas, da terra, da saúde, da moradia, da injustiça, da exploração, da luta de classes desde o Antigo Testamento e da opção de Deus pela classe explorada a tal ponto que ele se faz classe camponesa em Jesus de Nazaré e morre como morrem os camponeses e escravos que não se submetem à exploração e à opressão. A materialidade da espiritualidade da fé tem que ser vista nos textos. Jesus Cristo veio para que tenhamos vida abundante e vida abundante pressupõe condições materiais para tal, como terra, comida, moradia, saúde, bom governo que são coisas materiais, como explica Martim Lutero no Catecismo Menor quando fala do pão nosso de cada dia.

Jesus com esta (e outras) parábola nos quer fazer olhar para a nossa realidade e para a luta de classes que hoje se desenrola e como ela se desenrola. Uma sociedade que vive em luta de classes é o oposto de uma sociedade que vive segundo a vontade de Deus. A partir desta parábola podemos começar a analisar a luta de classes de hoje e ver como está a nossa sociedade de classes e como ela não combina com a proposta do Reino de Deus, que é uma sociedade sem classes, sem Estado, sem templo, igualitária (na comunidade cristã as pessoas se chamam de irmãos e de irmãs - portanto iguais) e onde os meios de produção estão sob o controle de toda a sociedade.

Jesus coloca as contradições da sociedade na parábola do semeador ou na parábola da terra e da semente, como a queiramos chamar. Camponês com pouca terra e sem terra não condiz com a dignidade do camponês e nem com a história do Povo de Israel para o qual Deus deu a terra na Palestina: terra boa que mana leite e mel. Terra com laje, espinho e barranco não condiz com a terra que mana leite e mel que Deus deu à todo o povo para ser livre e ter vida digna. O camponês está inexoravelmente ligado à terra e à semente. Camponês sem terra e camponês sem semente é um contradição insuportável para Deus. Semente e terra não se separam, uma precisa da outra. A semente precisa da terra para germinar e a terra precisa da semente para cobrir o solo com a sombra da planta e a decomposição da planta para virar adubo senão a terra vira deserto e é terra morta que degrada. A terra automaticamente faz a semente brotar para se proteger. A semente ao se tornar planta protege a terra e a terra é fundamental para a semente existir e se reproduzir para manter e gerar a vida dos seres que vivem na Terra.

No tempo de Jesus havia o camponês com terra e o sem terra, mas ele controlava a semente. Historicamente ele aprendeu a conservar e reproduzir as sementes. Hoje o camponês com terra e o sem terra não controlam mais a semente que é controlada por alguns grupos multinacionais que escravizam o camponês pelo seu projeto de agricultura química dependente. Hoje há a grande corrida pela terra no mundo, pelo controle da terra para produzir commodities para exportação e como objeto de valor especulativo e de poder. Países com pouco território, pouca terra, e empresas multinacionais estão disputando a terra dos países pobres para poder controlar o alimento, que agora virou instrumento de especulação. Para poder especular com a semente, que é alimento, precisa-se do controle da terra. Para viabilizar um modelo suicida de locomoção individual se usa a terra para produzir combustível em vez de alimentos. A parábola aponta para a questão do poder embutido na posse da terra que produz 100 por um e na falta de poder do que semeia o barranco da beira da estrada, que era o que sobrava para o empobrecido e despossuído. Na Rio+20 se denunciou a chamada "economia verde" que se propõe a especular com os bens comuns da natureza. Esta especulação da terra está inviabilizando a Reforma Agrária no Brasil (da forma como o governo a propõe: comprar terra a preços de mercado) porque o governo não quer gastar além de 100 mil reais com cada família assentada com os requisitos que cada assentamento necessita.


Jesus denuncia nesta parábola a sociedade de sua época que se afastou do Projeto de Deus que pressupõe terra boa para todos e uma sociedade de iguais. A parábola denuncia a desigualdade na posse da terra em sua quantidade e em sua qualidade e a desigualdade entre as pessoas que geram a fome. Pobre tem pelanca e pouca terra e rico tem a terra boa e muita terra. Pobre não colhe nada e rico colhe 100 por um. Terra não é apenas terra para plantar, mas terra é poder. No tempo de Jesus os latifundiários israelitas, os saduceus, tinham assento no Sinédrio, e hoje a CNA controla o processo do Congresso Nacional e impõe os seus interesses, aliados aos empresários urbanos, que também tem terra pelo Brasil afora. O Projeto de Deus foi rompido e ele se tornou pessoa no camponês sem terra Jesus de Nazaré para recompor o Projeto de Deus no que ele chama de Reino de Deus, a partir dos despossuídos para construir uma sociedade igualitária.


Jesus na parábola não deixa nenhuma mensagem como estamos acostumados a ouvir, como nos aponta a explicação mais adiante nos versículos 26-32. A parábola é pura denúncia da realidade de opressão do camponês empobrecido e despossuído. A parábola fala da teimosia do camponês empobrecido em semear boa semente em terra árida, isto é sinal de resistência do Reino de Deus em teimar em resistir e reproduzir a vida. A dinâmica camponesa é esta: semear sempre, fazendo seca ou não, sendo a terra boa ou não. É a esperança contra toda desesperança: semear em terra árida, cheia de espinhos e laje onde teoricamente não vai produzir fruto nenhum: é a teologia da cruz. Era esta também a realidade da primeira comunidade cristã no Império Romano: vivendo a teologia da cruz na própria carne e semeando a Palavra de Deus em terra árida (realidade contrária ao projeto do Reino de Deus). É esta a realidade das comunidades empobrecidas pelo Brasil afora que são controladas por pessoas aliadas ao capitalismo e que impedem que o Evangelho de Jesus Cristo seja pregado pura e retamente na Igreja, que se diz de Jesus Cristo no Brasil.

Não dá para não falar de Reforma Agrária aqui e nem do projeto da agricultura do agronegócio que produz o camponês sem terra e sem semente. Hoje também o camponês com pouca terra é um camponês sem semente, pois não controla mais o processo todo, pois depende do financiamento do banco para comprar máquinas, adubos químicos, venenos e sementes transgências; é a escravidão total. A última coisa que o camponês ainda possuía era o controle sobre a semente, este controle ele agora perdeu.

Uma pesquisa mostra a parte que cabe ao camponês dos alimentos que se compra no supermercado:
40% fica com a agroindústria
30% fica com a indústria de insumos químicos e venenos
20% fica com o supermercado
5% fica com o transporte
5% fica com o camponês

A parte do Banco perpassa todo o processo, ele ganha uma fatia de cada um dos cinco, porque os cinco fazem financiamento bancário. Isto significa que ele fica com a parte do leão.

Mas há sinais de esperança o MPA, o MMC e o MST estão preservando e reproduzindo sementes crioulas, raças de animais e aves em extinção para quebrar o projeto do agronegócio e garantir a liberdade do camponês e da camponesa.

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