"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8.32)
15 de novembro de 2012
Política energética: As opções brasileiras em debate
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:
Que energia queremos para os próximos dez anos?
Avanços no Plano Decenal de Energia
Retrocessos no Plano Decenal
Entre avanços e retrocessos. Balanço final
Qual é o destino de toda essa energia?
MP 579. Quem sai ganhando?
Hipoteca do patrimônio público?
O capital ganha mais
Dualidade de comportamento
Repensar e democratizar a produção e a distribuição da energia
Ousar na concepção e em novas alternativas
Reduzir o consumo. Mais do que utopia, uma necessidade e possibilidade
Eis a análise.
O mundo é cada vez mais voraz, sedento e insaciável por energia. Os países em todo o planeta perseguem obsessivamente o aumento da geração de energia para dar conta da crescente demanda da produção e do consumo. O Brasil não foge à regra e o tema da energia postou-se como um dos mais importantes na agenda brasileira.
As opções de matriz energética e sua regulação dizem respeito aos conflitos entre o público e o privado, interferem em territórios e comunidades e interagem com as crises alimentar e climática. Ainda mais, definem o modelo de nação que se quer. É a partir desse contexto que deve ser analisado o Plano Decenal de Energia e a MP 579. Problematizar o anúncio do Plano e da MP e contextualizá-lo com o debate maior dos impasses e alternativas da matriz energética é o que se propõe essa Conjuntura da Semana.
Que energia queremos para os próximos dez anos?
O governo acaba de anunciar o Plano de Expansão Decenal de Energia 2021. O Plano é atualizado anualmente e prevê os rumos energéticos do Brasil para os próximos dez anos. O Plano Decenal anuncia forte continuidade em investimentos na área de energia fóssil – petróleo e gás – e em hidrelétricas. As novidades ficam por conta da revisão, na esteira do desastre de Fukushima, na área da energia nuclear – por ora segue apenas a conclusão de Angra 3 – e num incremento maior na energia eólica. Da energia solar nada se fala.
Os maiores investimentos estão previstos para petróleo – incluído o pré-sal – e gás natural: R$749 bilhões para os próximos dez anos. As hidrelétricas, por sua vez, seguem em expansão e estimam-se investimentos na ordem de R$ 190 bilhões – o plano fala na construção de mais 24 usinas hidrelétricas, além das que estão sendo construídas para o próximo decênio, a grande maioria delas na Amazônia.
Para as energias renováveis – eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas – os investimentos aumentam um pouco em relação ao plano anterior, de R$ 62,1 para R$ 82,1 bilhões. No entanto, o Plano é lacônico sobre a energia solar: do total de 386 páginas, apenas três parágrafos são dedicados a essa energia. A conclusão do Plano é de que "apesar do grande potencial, os custos atuais desta tecnologia são muito elevados e não permitem sua utilização em volume significativo".
Avanços no Plano Decenal de Energia
A análise crítica do Plano Decenal de Energia, na visão dos ambientalistas, apresenta três “novidades”. Uma delas é o incremento em energia eólica; a revisão nos investimentos em energia nuclear e a redução em investimentos de usinas térmicas a óleo combustível e diesel.
Tardiamente, o país vai incorporando a matriz eólica. "Agora é o momento da eólica. Amanhã vai ser o da solar. O preço vai cair e ela vai entrar, não tenho dúvida, mas vamos fazer no momento certo", afirma Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O presidente da EPE rebate os críticos que classificam a política energética de conservadora afirmando que a eólica se desenvolveu graças a medidas do governo. "Tudo foi feito a seu tempo. O Brasil está em 20.º no mundo em capacidade instalada e vai atingir a 10.ª posição no ano que vem”, diz ele. O objetivo é ampliar a capacidade de geração eólica no País de 1% para 9% da matriz nos próximos dez anos.
Apesar do discurso governamental, a expansão da energia eólica ainda é tímida e avança muito mais por conta de investimentos privados do que por ação e investimento do governo. O litoral do Rio Grande do Sul e, sobretudo o litoral nordeste – Rio Grande do Norte e Ceará –, assistem a crescentes investimentos privados. A participação do governo fica por conta dos leilões de instalação dos parques eólicos e a compra da energia.
Sobre os parques eólicos em crescente expansão cabe uma problematização. Apesar de ser considerada uma energia renovável e limpa, a instalação dos parques impactam os territórios locais. O professor Ângelo Magalhães Silva da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERS/RN) destaca que “é comum relatos de moradores afirmando o fim de algumas vegetações nativas, mudança no comportamento de aves, privatização de antigas áreas comunais de plantio, pesca e criação de animais”. Comenta ele: “Não sabemos se os fortes ventos mudam positivamente e com força o futuro de alguns municípios, e o sentido de uso que passa a atribuir os habitantes às suas terras”.
Outra novidade no Plano Decenal encontra-se no quesito energia nuclear. Com o acidente na usina de Fukushima, no Japão, em março do ano passado, o programa nuclear brasileiro passou a ser repensado. O Brasil não prevê novas usinas até 2021 afirma o secretário executivo do Ministério de Minas e Energia Márcio Zimmermann. A previsão, portanto, de construir mais quatro usinas nucleares no País até 2030 está suspensa. Angra 3, entretanto, será mantida com a previsão de entrar em operação em 2016.
Retrocessos Plano Decenal de Energia
Como maior e mais evidente retrocesso no Plano Decenal destaca-se a ausência de qualquer menção à energia solar – a segunda fonte que mais cresce no mundo, depois da eólica. No Plano Decenal de Expansão de Energia 2021, como já destacado, apenas três parágrafos (em 386 páginas) são dedicados à solar. A conclusão é de que apesar do grande potencial, os custos atuais desta tecnologia são muito elevados e não permitem sua utilização em volume significativo.
Para o engenheiro florestal Tasso Azevedo, a discussão atual sobre energia solar no País é muito parecida com a que ocorreu em relação à eólica no passado recente. "O governo resistiu muito. A presidente, enquanto ministra de Minas e Energia e depois da Casa Civil (no governo Lula), não acreditava em energia eólica e ponto final (...) com o tempo, ela tende a ser convencida pelos fatos, como ocorreu com a eólica, que está explodindo no País. O problema é que, com isso, a gente fica para trás”. Para Azevedo, falta ousadia no planejamento: "Há uma confusão com a ideia de que ser conservador tem a ver com segurança”.
Na opinião de Bazileu Margarido, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), "o governo diz que vai usar a tecnologia quando se chegar ao preço que for conveniente, mas deveria ser o contrário: o que podemos fazer para acelerar”. Ele lembra que a energia eólica nem aparecia no plano setorial finalizado há 3 anos. Segundo o pesquisador, “o argumento era o mesmo usado hoje para descartar a solar”.
O pesquisador Instituto de Energia e Eletrotécnica da USP Joaquim Francisco de Carvalho, aponta como decisão da energia solar não ter espaço no planejamento da política energética, a “falta de vontade política”. Segundo ele, “às vezes as pessoas não estão preparadas para assumir determinados cargos relacionados ao setor. Basta ver que a Dilma, quando foi ministra de Minas e Energia, fez muita coisa errada, e tampouco pensou em investir em energia eólica ou solar. Ela só pensava em energia hidrelétrica, por causa do grande impulso da Eletrobrás, ou no gás natural, no óleo combustível e no carvão”.
Outras más notícias do Plano Decenal, na opinião dos ambientalistas, ficam por conta dos altos investimentos em hidrelétricas. Os dados do Plano Decenal de Energia preveem para o período 2012-2021 34 usinas, 15 já tiveram sua construção iniciada e 19 ainda não foram licitadas. A grande maioria está na Amazônia. No conjunto, uma área de 6.456 quilômetros quadrados deverá ficar debaixo d'água – equivalente ao território somado de dez capitais brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Recife e Maceió.
Para o diretor da Amigos da Terra - Amazônia Brasileira, Roberto Smeraldi, a maior falha do planejamento no setor elétrico é insistir em não atacar as altas perdas técnicas – estimadas em cerca de 20% – das linhas de transmissão, antes de expandir o parque gerador. Ele se diz preocupado com o fato de que o impacto indireto das últimas hidrelétricas de grande porte, como o desmatamento e a ocupação urbana desordenada, tem sido de oito a dez vezes o tamanho dos reservatórios: "Cada caso é um caso, obviamente depende do nível de antropização (ocupação humana) que já existe e da infraestrutura disponível, mas precisamos entender que o impacto vai muito além da área alagada", afirma. Smeraldi diz que, caso o governo atacasse o problema das perdas técnicas no sistema de transmissão, ganharia tempo suficiente para preparar a chegada de novas hidrelétricas, com um trabalho de regularização fundiária e planejamento para evitar o caos social.
A assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) Alessandra Cardoso, chama a atenção para novos empreendimentos, além dos previstos nos grandes rios (Madeira, Xingu, Tapajós, Teles Pires) que, até o ano passado, não estavam na lista de prioridades do governo. É o caso de duas megausinas previstas para o rio Juruena, no Mato Grosso. Juntas, as hidrelétricas de São Simão e Salto Augusto têm potência de 4.970 MW. "Pequenas usinas foram retiradas do planejamento, mas outros projetos bem maiores foram desenhados para a Amazônia", disse ela.
A construção, por outro lado, de novas usinas na Amazônia vai exigir um novo retalhamento no mapa atual das unidades de conservação do país. Para levar adiante seus principais projetos de geração hidrelétrica, o governo terá de reduzir parte do território de florestas protegidas. Pela lei atual, é proibida a construção de usinas quando elas afetam diretamente as unidades de conservação. Para se livrar dessa restrição, no entanto, o governo decidiu redefinir o território das unidades de conservação.
Há ainda outros problemas, grande parte dos lagos formado pelas barragens atingem territórios indígenas. Pela lei atual, não é permitido construir usinas em casos onde a barragem tenha impacto direto numa terra indígena demarcada. Atualmente, existem 505 terras indígenas no país, cobrindo uma extensão de 106,7 milhões de hectares, o que equivale a 12,5% do território nacional. Segundo a organização Acende Brasil, 897 mil índios – 58% da população indígena – vivem na Amazônia Legal, área onde estão concentrados os principais projetos hidrelétricos do governo. A solução proposta pelo governo é compensar as comunidades indígenas pagando "royalty".
Entre avanços e retrocessos. Balanço final
Na leitura crítica do movimento ambientalista, o Plano Decenal de Energia apresenta pequenos avanços e grandes retrocessos. De acordo com o diretor de Políticas Públicas do Greenpeace Sérgio Leitão criticando a contínua aposta em mega-obras hidrelétricas, “os grandes reservatórios inundam as terras onde vivem milhares de pessoas, destruindo suas vidas, seus projetos de futuro. O Brasil vive um paradoxo. É na democracia que se destrói a lei, porque não se tem a capacidade para fazê-la ser cumprida. Assim foi com o Código Florestal, e assim será com o licenciamento de grandes empreendimentos”, afirma.
Outra crítica ao Plano Decenal é a de que projeções e investimentos não incluem a energia solar como já destacado. A fonte conta com um potencial energético dezenas de vezes maior do que qualquer opção, destaca o movimento ambientalista, mas a EPE usa o argumento dos altos custos para sequer considerá-la no horizonte de tempo de médio prazo.
A crítica maior, entretanto, ao Plano deve-se aos fortes investimentos na energia fóssil, a maior poluidora. Os já elevados investimentos previstos para petróleo e gás natural aumentaram e a previsão é de que totalizem R$ 749 bilhões nos próximos dez anos (superior aos 686 bilhões do PDE anterior). Segundo Sérgio Leitão, “as prioridades do Plano Energético vão para onde se investe o dinheiro. E o dinheiro vai para o petróleo. Mas que política é essa que o governo não consegue dizer se é viável, se vai dar retorno? Vamos gastar 730 bilhões no pré-sal. Estamos destinando todo o recurso do país para investir num combustível do passado, enquanto o país tem alternativas possíveis. Mas novos paradigmas não são considerados”, diz ele.
O diagnóstico geral para o Plano de Expansão Decenal de Energia 2012-2021 por parte dos ambientalistas é de que apesar de alguns avanços em relação à versão anterior, boa parte de suas premissas e previsões, criticadas há anos pela academia e sociedade civil, continuarão a exercer altos impactos ao meio ambiente e à sociedade nos anos por vir.
Qual é o destino de toda essa energia?
Uma pergunta importante emerge da análise anterior: A quem se destina tanta energia? Na opinião do professor Celio Bermann “estamos produzindo energia para gerar produtos que não ficam no Brasil”. Segundo ele, “a tendência de incremento dos combustíveis fósseis na matriz energética, certamente, está indo na contramão da história”.
O professor da Usp comenta que o incremento em energia e as opções que se fazem são definidas pelo mercado: “A necessidade é ditada pelo mercado e não pela população brasileira, nem pelo órgão planejador do governo. E o fato de ela precisar atender uma demanda que é do mercado, a necessidade de energia a curto prazo, faz com que esta última previsão coloque com muita ênfase a termeletricidade a partir de combustíveis fósseis”.
Celio Bermann diz que “se pegarmos a matriz de consumo setorial de energia elétrica no Brasil, praticamente 30% da energia é consumida pelos seis setores chamados de intensivos em energia. São eles: o cimento, a produção de aço, a produção de ferro-ligas (ligas a base de ferro), a produção dos metais não-ferrosos (principalmente, o alumínio primário), a produção de química e, finalmente, o setor de papel e celulose. Esses seis setores consomem 30% da energia produzida no Brasil”.
Destes seis setores, continua Bermann, “quatro – produção de aço, não-ferrosos, ferro-ligas, papel e celulose – são fundamentalmente destinados à exportação”. Logo, diz ele, “praticamente 17,5% da energia elétrica no Brasil é destinada à exportação. Isto é, é uma energia elétrica que foi consumida pelas plantas indústrias eletrointensivas, e que são exportadas, incorpora a produção de energia a esses bens primários”.
Na opinião do pesquisador, estamos diante da submissão ao mercado, “em detrimento de uma questão importante, do meu ponto de vista, que é a demanda social, em que um contingente considerável de brasileiros ainda vive sem acesso à energia elétrica. Claro que o governo, ao implantar, em grande medida, o seu programa ‘Luz para todos’, procura atender esta necessidade. Mas, enquanto ela for restrita à extensão de rede, enquanto o acesso de energia elétrica não permitir que fontes locais de energia renovável atendam às necessidades das populações que são distantes à rede de distribuição, enquanto isso tudo não for feito, ficaremos sujeitos à Lei do Mercado. E na Lei do Mercado essas populações não têm espaço”, afirma.
MP 579. Quem sai ganhando?
É no contexto do debate anterior que deve ser inserida a polêmica da MP 579. A medida interfere na dinâmica da geração, produção e distribuição de energia. A MP 579 propõe a antecipação da renovação das concessões do setor elétrico (privadas e públicas – grande parte dela de ativos públicos estaduais) que vencem de 2015 a 2017 por mais 30 anos. De acordo com Constituição da República, todos os potenciais hidráulicos pertencem ao país e são parte do patrimônio nacional, assim como as concessões dos sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica. Uma vez vencidas as concessões e, caso não renovadas, elas devem ser integradas ao patrimônio público.
Com a MP 579, o governo pretende reduzir a tarifa da energia em 16% para os consumidores e 28% para as empresas. Em troca da renovação antecipada, as empresas retirariam do preço da tarifa o valor referente a ativos já amortizados ou depreciados, ou seja, investimentos que já se pagaram e reduziriam a tarifa desde já.
A MP 579 interfere no intricado jogo que envolve o bilionário negócio da energia em crescimento no país. Envolve capital privado, fundos de investimentos acionários e especulativos, ativos estaduais controlados por governadores, empreiteiras etc. Fazem parte desse universo, 123 geradoras de energia, que somam uma capacidade instalada de 20.000 megawatts (MW), equivalente a 20% do parque gerador brasileiro; 44 distribuidoras que dominam 35% do mercado consumidor e 9 transmissoras, proprietárias de 85 mil quilômetros de linhas, ou 67% da rede do Sistema Interligado Nacional.
O debate ficou ainda mais acalorado após os três grandes apagões ocorridos nos últimos meses (22 de setembro, 03 de outubro e 25 de outubro). Mesmo os apagões tendo acontecidos depois da publicação da MP 579 acabaram por contribuir para intensificar o debate.
O anúncio da medida desatou forte polêmica. De um lado, as empresas que operam na geração, transmissão e distribuição de energia acostumadas com altas taxas de remuneração não gostaram da ideia de reduzir ganhos a curto prazo mesmo ganhando no longo prazo; o governo irritou-se com as empresas porque considera que está propondo um bom negócio e do outro; os movimentos sociais demonstraram perplexidade com a proposta e manifestaram dubiedade na análise da MP 579.
Hipoteca do patrimônio público?
No contexto da polêmica, dúvidas e falta de conhecimento da MP 579, é oportuna a entrevista do pesquisador Ildo Sauer, um dos maiores especialistas em política energética brasileira, ao IHU On-Line.
Sauer é um contundente crítico da MP 579. Segundo ele, a medida resulta no “reconhecimento da presidência da República de que o sistema energético brasileiro vem sendo gerido de maneira deficiente e sem interesse público nas últimas décadas”.
O pesquisador diz que o governo pretende “hipotecar o patrimônio público” para reduzir a tarifa média de energia. Segundo ele, a proposta é ineficaz e responde a uma pressão da imprensa, “comandada por federações de indústrias, que fazem coro ao debate de que a energia elétrica no Brasil está muito cara”. Diz ele: "Existe uma pressão muito grande na imprensa, comandada por federações de indústrias, que faz coro ao debate de que a energia elétrica no Brasil está muito cara. Esses grupos de interesse estão pressionando o governo para que ele utilize o patrimônio público herdado depois de meio século para ajudar a favorecer grupos que já se beneficiaram na última década".
Segundo ele, a tarifa é cara no Brasil “porque foram feitos contratos no governo FHC e no governo Lula, que dão enorme taxa de retorno sobre os investimentos em geração, em linhas de transmissão e em sistemas de distribuição”. Em sua análise, “foram escolhidos projetos fora da ordem natural de mérito, econômico, técnico, ambiental ou social, ou todos esses. Além disso, vários projetos, como o de usinas de carvão, que têm altíssimo custo, foram contratados em leilões improvisados. Em seguida, foram contratadas as usinas do rio Madeira e de Belo Monte, com controvérsias ambientais e sociais. Tudo isso aconteceu porque o governo não fez um planejamento de todo o potencial hidrelétrico brasileiro, do potencial de modernização e repotenciação de usinas antigas existentes”. Logo, diz ele, “a falta desses projetos e a opção por projetos como o do rio Madeira é o que faz a tarifa ser cara no país. Além disso, quando a construção de novas usinas atrasa, em vez de o governo multar os que venderam e não entregaram, ele faz acordos, e todos esses custos acabam sendo repassados aos consumidores”.
O capital ganha mais
Com a MP 579, Sauer diz ainda que o “governo está se escondendo atrás da pressão desses grupos de interesse, da ansiedade da classe média brasileira, que está sendo onerada com tarifas muito altas pela má gestão do sistema, pela precariedade demonstrada nos apagões recentes. O que o governo quer fazer com essa MP é anunciar um pequeno alívio tarifário para a classe média. A reivindicação da população é legítima, mas a forma como o governo quer fazer isso é absolutamente inaceitável do ponto de vista de quem considera o interesse público”, afirma.
Para o professor da Usp a medida em nome de beneficiar os consumidores vai acabar beneficiando sobretudo o capital: “(...) há muita reclamação do setor produtivo que são cerca de 1.500 consumidores, que consomem aproximadamente 28% de toda a eletricidade brasileira e que têm enorme poder de barganha, mas que continuam fazendo uma pressão enorme para continuar recebendo energia a preços muito abaixo dos custos”. Segundo ele, “no Brasil, a energia não custa menos de cem reais o megawatt-hora (MWh), mas esses consumidores pagaram cerca de 20 reais por MWh durante longos períodos”.
O pesquisador comenta que mesmo entre os consumidores ganhará proporcionalmente mais quem consome mais. Diz ele: “o governo vai anunciar publicamente que a tarifa média irá diminuir para todos, só que quem mais consome energia no Brasil são aqueles que têm mais renda. Portanto, qualquer benefício linear, como o que está sendo proposto, beneficiará só os mais ricos e deixará de fora 2,5 milhões de pessoas que ainda não têm acesso à energia”.
Sauer destaca que “o custo da energia não irá baixar; apenas irão vender a energia pelo custo de operação e manutenção, sem remunerar o seu valor. É isso o que Dilma quer fazer. Com isso ela acha que irá reduzir em 28% o custo dos grandes consumidores e em 16% o dos pequenos e médios consumidores”. E dispara: “O irônico é que provavelmente a população vai gostar da medida, porque vai ter um alívio pequeno nas tarifas. Só que vamos pagar mais caro no futuro, porque a falta de educação e saúde públicas continuará fazendo esse povo se refugiar em casamatas e contratar segurança privada. Nós vamos continuar aumentando a distância entre os segmentos sociais em vez de resolvê-la”.
Dualidade de comportamento
O pesquisador identifica também o problema energético brasileiro a partir do seu marco regulatório: “O problema está na filosofia regulatória que a Aneel tem seguido, e que precisava e deveria ter sido revista em 2003, mas não foi. Nitidamente estamos vendo que o governo tem centrado o foco nos contratos de novas linhas de transmissão, e tem abandonado substancialmente, o modelo de regulação e controle sobre o sistema elétrico. A Aneel está sediada em Brasília, e as equipes técnicas não vão a campo para verificar o estado real do sistema de geração, transmissão e distribuição de energia”.
Outro problema, diz ele, “é que os papéis dos agentes do setor estão muito diluídos, porque há um número muito grande deles, como a Agência Nacional de Energia Elétrica, o Operador Nacional do Sistema, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, a Empresa de Planejamento Energético, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico, o Conselho Nacional de Política Energética, o Ministério de Minas e Energia, além de outros atores e de empresas públicas e privadas”.
Sauer denuncia ainda o padrão tecnológico dos equipamentos. Diz ele que “muitas das distribuidoras e transmissoras de energia, quando compram equipamentos novos, o fazem com base no menor preço e isso lhe dá o maior lucro. Nem sempre esse é o melhor padrão tecnológico e de maior confiabilidade”.
Para ele, a MP 579 é um paliativo para os males brasileiros. Diz ele: “Mas há que se ressaltar que os males foram causados inicialmente no governo Fernando Henrique Cardoso, e foram aprofundados nos governos Lula e Dilma. Agora, com a renovação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia, pretende-se hipotecar o patrimônio público por aproximadamente 35 anos, conforme a MP prevê, para reduzir a tarifa média de energia”.
Para Sauer, “o problema é que grupos econômicos continuam ganhando muito dinheiro, os projetos para expansão da oferta de energia continuam sendo mal escolhidos e a taxa interna de retorno continua altíssima. O governo não faz nada porque os empresários fazem parte da rede de amigos do governo anterior e do governo atual”.
Segundo ele, “o governo atende às pressões que estão à mesa, que estão na imprensa, no parlamento, na base de apoio, nos círculos empresariais, e vai entregar o patrimônio público ao setor privado com aura de quem está resolvendo um problema histórico da população”.
Conclui Sauer: “De maneira que nessa dualidade de comportamento – ou seja, entre aquilo que acontece nas entranhas do governo, dentro das relações econômicas, políticas e sociais e o que é anunciado publicamente – parece haver uma ‘Carminha Rousseff’. Ou seja, alguém que tem, de um lado, uma imagem pública altamente generosa, benevolente e, nas entranhas, comete toda e qualquer ação em benefício das artimanhas que atendem às pressões dos grupos dominantes”.
Repensar e democratizar a produção e distribuição da energia
Ousar na concepção e em alternativas
A partir do debate anterior, da MP 579 e principalmente do Plano Decenal de Energia, um dos grandes desafios colocados para os países, no atual contexto mundial, é o de repensar, reorganizar e efetivar novas formas de lidar com o potencial energético do planeta. Os velhos padrões de organização econômica, totalmente dependentes de matrizes energéticas centralizadoras e poluidoras, têm sido fortemente criticados e responsabilizados pelas principais mazelas do mundo atual, como as guerras setorizadas, a crise alimentar e as mudanças climáticas.
Dentro de um padrão conservador, as exigências da economia por mais petróleo, carvão, gás, eletricidade, energia nuclear e biocombustível continuarão em expansão. Contudo, diante de recursos naturais que se mostram finitos, os países precisam ousar em novas alternativas de organização e produção de energia, mudando completamente de concepção e racionalidade sobre o que significa, hoje, consumir energia.
Pensando as novas possibilidades oferecidas pelos desdobramentos da revolução informacional e comunicacional (Internet), o economista estadunidense Jeremy Rifkin destaca as dimensões distributiva e colaborativa, forjadas por uma “tecnologia de comunicação revolucionária”, como eixos norteadores da relação entre as demandas do ser humano e as novas fontes de energia. Diferente do modelo concentrador e centralizador dos grandes empreendimentos energéticos do século XX, caracterizados pelo autoritarismo e poder hierárquico, para Rifkin o “direito de acesso ao conhecimento, a relação paritária, a troca de informações e de música”, comuns na Internet, podem ser valores basilares para se pensar a produção e o consumo de energia na atualidade. Será na superação dos grandes oligopólios energéticos, por meio de fontes descentralizadas, que haverá uma democratização da energia, superando o sistema vertical, estabelecido até aqui, por um sistema horizontal na distribuição de energia.
Ao contrário das velhas e depredadoras matrizes energéticas, segundo Rifkin, “a energia renovável distributiva é encontrada em qualquer metro quadrado do mundo. Vem do sol, do vento, do calor debaixo do solo, do lixo, dos compostos orgânicos gerados pelos processos agrícolas, das marés e das ondas do mar”. Tudo isto acarreta uma verdadeira revolução na forma de concebê-la e utilizá-la, provocando uma quebra de paradigmas.
Assim, para uma mudança de tal magnitude, as fontes de energia deveriam ser encaradas como um bem ao serviço de todos, que precisa ser cuidada, racionalizada e compartilhada. Segundo o físico Heitor Scalambrini, “o envolvimento da comunidade na discussão, no planejamento e na gestão democrática dos recursos energéticos é chave para a sua soberania e para a sustentabilidade, e uma opção de resistência aos modelos centralizadores de recursos e poder que impõe aos povos altos custos econômicos, ambientais e sociais em troca do acesso a este bem de interesse comum que é a energia e que, portanto, deveria ser um direito de todo cidadão, assim como o direito a uma vida digna num ambiente saudável”.
Neste contexto, todas as iniciativas que invistam em fontes de energia com o menor impacto ambiental possível, respeitando as comunidades originárias e a diversidade das espécies, devem ser incentivadas, em detrimento daquelas que investem pesado nas matrizes centralizadoras e poluidoras (fósseis), perigosas (nuclear) ou devastadoras do meio ambiente (hidrelétricas).
Infelizmente, de acordo com Emilio Lèbre La Rovere, professor do Programa de Planejamento Energético do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pesquisa e Pós-Graduação de Engenharia – UFRJ, “em nível mundial, o investimento em energia solar nunca foi comparável com o que se investiu em pesquisas para aprimorar a tecnologia dos combustíveis fósseis e mesmo da energia nuclear, que era vista, depois da segunda guerra mundial, como a grande promessa de energia abundante e barata, mas que depois não se concretizou devido aos riscos de acidentes radiativos. Mesmo assim, até poucos anos se gastava muito mais dinheiro em pesquisa em energia nuclear e combustíveis fósseis do que nas energias renováveis, como solar e eólica”.
Neste sentido, o engenheiro Eloy Casagrande Jr, professor da Universidade Federal do Paraná, alerta que “quando um país começa a sair do paradigma de uma energia poluente, com a energia baseada no combustível fóssil, e passa a investir em uma energia como a renovável, tem que investir em informação, educação, inovação, e precisa criar condições para que essa energia possa ser consolidada no mercado”.
Na opinião do engenheiro, “quando se discute matriz energética, não se trata de dizer que a melhor energia é a hidrelétrica, a solar ou a eólica. O conjunto delas, associado a um bom programa de eficiência energética, o qual o Brasil precisa assumir, [é que] traria resultados”. Portanto, nesse caso, trata-se de um longo caminho a ser percorrido pelo país, repleto de arestas, sendo necessários muitos embates políticos para que o Brasil, dentro deste cenário geral, assuma o protagonismo que lhe cabe, como um grande portador de recursos naturais e de possibilidades alternativas de geração de energia.
Reduzir o consumo de energia. Mais do que utopia, uma necessidade e possibilidade
Há uma “cultura” em que é mais fácil e vantajoso construir uma nova hidrelétrica do que aprimorar a eficiência daquelas já existentes. Reduzir o consumo de energia é uma palavra de ordem que causa pânico nas distribuidoras de energia. Para o mercado, falar em economia de energia é um tabu em que não se pode tocar. “Nem o governo, nem as autoridades do setor energético, nem os responsáveis pela administração do setor elétrico brasileiro, nem os distribuidores falam uma só palavra sobre economia de energia, racionalização do gasto de energia, eficiência, manutenção, modernização.
Só a obra nova parece interessar e ser capaz de gerar energia no Brasil”, critica Heitor Scalambrini Costa, professor da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), em entrevista especial por e-mail, à IHU On-Line.
Entretanto, o tempo presente, de crise ecológica, de que a crise energética é um componente entre outros, requer de nós a capacidade de colocar sobre a mesa temas não muito populares. Embora tenhamos muito claro onde queremos chegar, no caso o “decrescimento”, proposta de sociedade que não deixa de ser revolucionária, como constata o economista francês Serge Latouche, o programa para chegar a ela é necessariamente reformista.
Nesta perspectiva, “alternativas como a repotenciação (modernização) das hidrelétricas já existentes, melhorar a eficiência e conservação de energia, utilizar o aquecimento de água com energia solar para substituição dos chuveiros elétricos, dentre outras medidas, seriam suficientes para ofertar a energia elétrica necessária ao País, sem a necessidade de realizar estas grandes obras”, acredita Heitor Scalambrini Costa. Estas grandes obras “desnecessárias” a que Costa se refere são as usinas hidrelétricas no Rio Madeira e no Xingu, obras contempladas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
“Com a eficiência energética, o crescimento da oferta se dá em um ritmo mais lento. Se é possível reduzir a quantidade de energia que alimenta o desperdício e o parque gerador continua o mesmo, obviamente o restante pode ser disponibilizado para uma nova demanda”, de acordo com Ricardo David, da Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), o processo de eficiência deve reduzir a necessidade de novas fontes e não substituí-las.
Um caminho possível, portanto, diz respeito à busca de formas de aumentar a eficiência e a conservação de energia, e de encontrar, na diversidade das fontes renováveis, as múltiplas saídas para os problemas energéticos do país.
Nesta direção, ganha força a implantação de redes elétricas inteligentes, que já são uma realidade de sucesso em vários países. O que são as redes elétricas inteligentes? Segundo Ricardo Baitelo, coordenador da Campanha de Energias Renováveis do Greenpeace, “Redes inteligentes enviam a eletricidade dos pontos de geração até os consumidores, utilizando um sistema de monitoramento completo do fluxo de energia, a partir de tecnologia digital, que permite o rastreamento tanto da energia que entra no sistema, gerada em diferentes pontos, quanto da energia consumida por residências, edifícios e indústrias”.
“As redes inteligentes permitirão – prossegue Baitelo – o controle não apenas da geração descentralizada, realizada em milhares de pontos, como também o controle do consumo de aparelhos e eletrodomésticos em residências e edifícios. A proposta de pulverizar o sistema elétrico em uma rede de microgeradores e a revolução provocada por isto guardam semelhanças com a grande pulverização de informação provocada pela Internet”.
“Com redes inteligentes, nós basicamente combinamos internet com eletricidade”, comenta, por sua vez, o especialista em energia do escritório internacional do Greenpeace, Sven Teske. “Reforçar as redes inteligentes é uma grande oportunidade de negócios, especialmente para companhias de tecnologia. Na Europa, o investimento anual necessário ficaria em torno de € 5 bilhões, ou seja, menos de € 5 por ano por casa. Para destravar o investimento necessário em uma estrutura que seja amigável com o clima, precisamos urgentemente de políticas que apoiem a transição para uma oferta de eletricidade 100% renovável”, afirma Teske.
Outro setor em que é possível avançar em termos de eficiência energética é o dos edifícios verdes ou edifícios inteligentes, que já são uma realidade em países como a Alemanha.
É fácil constatar como em muitas casas, escritórios, salas, salões no Brasil há uma enorme quantidade de energia desperdiçada pelo fato de não aproveitarem corretamente a luz natural, o que representa um enorme desafio para a arquitetura.
A eficiência energética passa também pela questão dos transportes. Um automóvel, que carrega uma só pessoa, representa um enorme desperdício de energia quando se leva em conta que um carro pequeno pesa cerca de uma tonelada... e transporta cerca de 75 kg.
Seguindo na linha da sobriedade no consumo de energia, é hoje possível diminuir de 40% a 50% o nosso consumo sem comprometer o nosso conforto. Como? Monitorando os desperdícios e as necessidades supérfluas. Estão na mira: "Os outdoors que consomem em média 7.000 kWh por ano, ou seja, o equivalente ao que consomem seis franceses em um ano", exaspera-se Thierry Salomon, engenheiro e presidente da Associação Négawatt. Ou ainda, a má gestão da iluminação pública. O fato é que “hoje, a sociedade está em estado de embriaguez energética", como constata Thierry Salomon. É mais difícil sair deste estado de embriaguez do que aplicar ações e políticas de contenção dos desperdícios em energia.
Mais fácil é acreditar que as leis do mercado dão conta de resolver a escassez energética da melhor forma possível e desejável. “Muitos acreditam e manifestam a crença de que o mercado pode ser o responsável pela implantação da filosofia do desenvolvimento sustentável. Acreditam que com o decorrer do tempo, e com o surgimento de novas tecnologias, os problemas ambientais podem ser sanados e superados, resultando uma melhoria no bem-estar social ou mesmo a diminuição das desigualdades sociais”, denuncia Heitor Scalambrini Costa.
Mas, como o fácil ou o difícil não é critério de decisão, “um modelo sustentável só será possível a partir da mudança dos modos de produção e de consumo da sociedade. É a razão capitalista com base no consumismo, no militarismo, e na da lógica de acumulação do capital que está levando o nosso planeta – e os seres vivos que o habitam – a uma situação catastrófica do ponto de vista do meio ambiente, das condições de sobrevivência da vida humana e da vida em geral”, insiste Costa.
E conclui: “O paradigma do crescimento econômico deve e precisa ser profundamente alterado. (...) Para estar à altura dos acontecimentos, uma boa ideia é começar a deixar de lado um conceito de crescimento econômico que nos foi imposto pelo próprio capitalismo”.
Fundamental é ganhar em eficiência na produção da energia; fundamental é ganhar racionalidade no consumo da energia necessária. Mas fundamental mesmo é precisar usar menos energia. Quem nos prepara para isso?
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