Os
traços característicos desses novos arranjos podem ser descritos a partir do
Censo 2010. Demógrafos e outros especialistas analisam esta nova realidade da
família na edição da revista IHU On-Line desta semana.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=406
Censo 2010.
Uma famlia plural, complexa e diversa. Entrevista especial com José Eustáquio
Diniz Alves e Suzana Cavenaghi
"A
sociedade brasileira mudou em termos demográficos e na composição plural das
relações familiares. Os diferenciais de gênero e de geração são fundamentais
para se compreender a complexidade e a diversidade das relações familiares do
Brasil contemporâneo", afirmam o/a pesquisador/a.
Indagados a
respeito das principais conclusões a que chegaram em relação à família
brasileira no estudo recente que realizaram com base no censo de 2010, José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi, em entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line, dizem que a primeira grande mudança foi a redução do arranjo
majoritário formado por casais (núcleo duplo) com filhos. “Em números
aproximados, este tipo de família estava presente em cerca de dois terços (66%)
dos domicílios, em 1980, mas caiu para algo próximo de 50% em 2010. Isso
aconteceu porque os pais, tendo menor número de filhos e maior esperança de
vida, vivem mais tempo na fase do ‘ninho vazio’, pois os filhos tendem a sair
da casa de seus progenitores para formar uma nova família, para morar sozinhos
ou para formar arranjos domiciliares com pessoas não parentes”, frisam.
Para eles, o
casamento é praticamente um evento universal no Brasil, mas somente se
considerarmos todos os tipos de matrimônio. “Em 1970, 65% dos casamentos
aconteciam no civil e no religioso, 14% somente no civil, 14% só no religioso e
7% eram uniões consensuais. Em 2010, o casamento no civil e religioso caiu para
43%, só no civil aumentou para 17%, só no religioso caiu para 3% e as uniões
consensuais subiram para 37%”.
José
Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor da Escola Nacional de
Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE.
Suzana
Cavenaghi é doutora em Demografia e professora da Escola Nacional de Ciências
Estatísticas do IBGE. Os entrevistados esclarecem que nesta entrevista
apresentam seus pontos de vista em caráter pessoal.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Quais foram as principais mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas
últimas décadas?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O Brasil passou por grandes
transformações econômicas e sociais no século XX, deixando de ser uma sociedade
predominantemente rural e agrária, para se tornar uma sociedade urbana com
predominância econômica da indústria e do setor de serviços. Nas últimas
décadas, houve mobilidade ocupacional, espacial e social, assim como a
construção de uma sociedade de consumo de massa. As relações entre as classes
mudaram e o Brasil se tornou uma democracia política e cultural (mesmo com as
diversas limitações). A transição demográfica reduziu as taxas de mortalidade
infantil, aumentou a esperança de vida e reduziu as taxas de fecundidade. Isso
provocou uma mudança da estrutura etária e o Brasil está deixando de ser um
país com alta predominância de jovens para se tornar um país com elevada
proporção de idosos. Houve também uma mudança das relações de gênero com maior
empoderamento das mulheres e um lento, mas contínuo, processo de
despatriarcalização da sociedade. Tais transformações tiveram um grande impacto
sobre a forma de estruturação das famílias e sobre a dinâmica dos arranjos domiciliares.
IHU On-Line –
Como essas transformações econômicas, sociais e demográficas afetaram a
organização das famílias brasileiras?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O primeiro e maior impacto foi sobre
o tamanho dos arranjos familiares. A família numerosa, que era muito adaptada
às condições da sociedade rural, quando havia ampla disponibilidade de terras,
deixou de ser funcional na sociedade urbana, onde a inserção dos filhos na
produção econômica passa pela intermediação do mercado de trabalho e pelos
filtros das exigências educacionais e dos padrões de produtividade da economia
urbano-industrial. A formalização do emprego ocorreu juntamente com a ampliação
da cobertura da previdência social. Neste processo de mudança do modelo
centrado na família ao sistema de inserção produtiva e proteção social público
e institucional, há uma tendência de aumento do custo dos filhos e de redução
dos seus benefícios. Como teoriza o demógrafo australiano John Caldwell, estas
transformações provocam uma reversão do “fluxo intergeracional de riqueza”. Os
filhos deixam de ser “a galinha dos ovos de ouro” dos pais e passam a acumular
maiores custos econômicos e a reduzir os benefícios. Isso modifica o regime de
fecundidade e a dinâmica entre as velhas e as jovens gerações. Também abre
espaço para novas formas de organização dos arranjos domiciliares, ao mesmo
tempo em que diminui o peso social das famílias tradicionais.
IHU On-Line –
Quais as principais conclusões a que vocês chegaram em relação à família brasileira
no estudo recente que realizaram com base no censo de 2010?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – A primeira grande mudança foi a
redução do arranjo majoritário formado por casais (núcleo duplo) com filhos. Em
números aproximados, esse tipo de família estava presente em cerca de dois
terços (66%) dos domicílios, em 1980, mas caiu para algo próximo de 50% em
2010. Isso aconteceu porque os pais, tendo menor número de filhos e maior
esperança de vida, vivem mais tempo na fase do “ninho vazio”, pois os filhos
tendem a sair da casa de seus progenitores para formar uma nova família, para
morar sozinhos ou para formar arranjos domiciliares com pessoas não parentes.
Casais sem
filhos
A segunda
mudança – de maneira complementar à primeira – foi o aumento do arranjo formado
apenaspelos casais sem filhos e sem outros parentes, que passou de 12% em 1980
para 15% em 2010.
Arranjo
monoparental feminino
A terceira
alteração foi o aumento do arranjo monoparental feminino (núcleo simples,
formado por mães com filhos), que passou de 11,5% em 1980 para 15,3% em 2010.
Arranjo
monoparental masculino
A quarta
modificação foi também o aumento – ainda que de uma base menor – do arranjo
monoparental masculino (núcleo simples, formado por homens com filhos), que passou
de 0,8% em 1980 para 2,2% em 2010.
Mulheres
morando sozinhas
A quinta
transformação foi o crescimento do número de mulheres morando sozinhas, que
passou de 2,8% em 1980 para 6,2% em 2010.
Homens
morando sozinhos
A sexta foi o
crescimento do número de homens morando sozinhos, que passou de 3% em 1980 para
6,5% em 2010. E, finalmente, a sétima mudança aconteceu com a redução do
percentual de famílias compostas e extensas (casais, filhos, parentes e
agregados) que caiu de 4,8% para 2,2% no mesmo período.
IHU On-Line –
As famílias unipessoais são as que mais crescem?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Sim. Mas não é correto usar o termo
“famílias unipessoais”, pois, de acordo com a definição das Organizações das
Nações Unidas – ONU, uma família é formada por pelo menos duas pessoas e seus
membros devem estar relacionados por meio de relações de consanguinidade
(parentesco), adoção ou casamento. Dessa forma, pessoas morando sozinhas podem
ser definidas como “arranjo unipessoal”, “domicílio unipessoal” ou simplesmente
“pessoas morando sozinhas”.
Solidão
De fato, o
número de pessoas morando sozinhas tem crescido e deve aumentar ainda mais com
o processo de envelhecimento da população. Houve também certa mudança de
perfil. No passado, havia uma clara diferenciação geracional e de gênero entre
as pessoas morando sozinhas no Brasil, pois entre os homens predominavam
aqueles com idade entre 30 e 59 anos, enquanto entre as mulheres em domicílios
unipessoais predominavam aquelas acima de 60 anos. Atualmente tem crescido o
número de mulheres entre 30 e 59 anos morando sozinhas. Geralmente são as que
optam por uma carreira profissional e declinam ou retardam a “carreira” da
maternidade.
IHU On-Line –
Famílias e domicílios são conceitos equivalentes?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Não. O Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE define o domicílio como o local estruturalmente
separado e independente que serve de habitação a uma ou mais pessoas. Existem
vários tipos de habitação, como os domicílios particulares e coletivos,
domicílios permanentes e improvisados, etc. A maior parte dos dados coletados
do censo se refere aos domicílios particulares permanentes ocupados. Nestes
domicílios pode haver famílias nucleares (com núcleo duplo ou núcleo simples),
famílias estendidas (com um ou mais de um núcleo familiar e outros parentes) ou
famílias compostas (núcleo familiar com parentes e outras pessoas não
aparentadas). Pessoas sem laços de parentesco e sem relacionamento afetivo, mas
morando juntas (tipo uma república de estudantes), são classificadas como
arranjo não familiar pela metodologia da ONU. O número de arranjos não
familiares é pequeno, mas cresceu na última década no Brasil. Deve-se ressaltar
que até o censo 2000 era possível identificar diretamente as chamadas famílias
conviventes, por meio das perguntas sobre as relações de parentesco dos
moradores com os responsáveis do domicílio e da família. Mas, no censo 2010, a
convivência só pode ser obtida de forma indireta e aproximada.
IHU On-Line –
Qual é o tipo de família que mais sofre com as situações de pobreza?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Sem dúvida são as famílias
monoparentais femininas, especialmente aquelas com filhos pequenos. Por
exemplo, a maioria dos beneficiados do programa Bolsa Família é constituída por
este tipo de arranjo. Isso acontece porque é muito difícil para uma mãe
combinar, ao mesmo tempo, as funções de provedora e cuidadora. As mães com
filhos menores de 15 anos e sem cônjuge não conseguem ter uma inserção integral
e permanente no mercado de trabalho, pois precisam dedicar muito tempo às
questões de alimentação, saúde, educação e cuidados dos filhos e da moradia.
Como resultado, recebem salários mais baixos e precisam dividir uma renda baixa
com seus dependentes. Acabam caindo na “armadilha da pobreza” e não conseguem
romper com o ciclo intergeracional da pobreza. Nesses casos, além dos direitos
básicos de cidadania, o governo deveria promover políticas de conciliação entre
trabalho e família, intermediando condições de emprego mais favoráveis e
equipamentos públicos para o cuidado dos filhos, como creches, restaurantes e
lavanderias coletivos, escola em tempo integral, etc.
IHU On-Line –
Que tipo de realidade social se reflete diante do crescimento de casos em que
os membros do casal trabalham e decidem não ter filhos?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – De regra, são os casais sem filhos
que apresentam renda média domiciliar per capita mais elevada. Um caso particular
são os casais sem filhos com marido e esposa participando do mercado de
trabalho. Nos Estados Unidos, esses tipos de casais são chamados de Dinc (sigla
para Double Income No Children); no Brasil esse acrônimo significa: Duplo
Ingresso Nenhuma Criança. O número de famílias Dinc estava em torno de um
milhão de casais em 2000 e chegou a 2,8 milhões de casais. Portanto, em 2011 os
Dincs somavam 5 milhões e 600 mil pessoas no Brasil. Eles possuem maior poder
de consumo e, proporcionalmente, optam por morar em apartamentos nas grandes
metrópoles. Praticamente não existem casais Dinc entre os beneficiários do
Bolsa Família, pois duas pessoas com renda de um salário mínimo cada um,
morando juntas, são classificadas como membros da “nova classe média”. Em
geral, o casal Dinc apresenta alta mobilidade social, mas é um tipo de família
não procriativa, que reforça a tendência nacional para uma taxa de fecundidade
média abaixo do nível de reposição.
IHU On-Line –
Como entender que quanto maior o número de filhos, menor o tempo que os maridos
dedicam aos afazeres domésticos?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Os dados mostram que existe um forte
descompromisso dos homens com o trabalho doméstico. Isso vem desde a época em
que Paulo Prado definiu a família patriarcal brasileira como “Pai soturno,
mulher submissa, filhos aterrados”. Na divisão do uso do tempo entre os
cônjuges, em geral os homens se dedicam mais às atividades produtivas (e
remuneradas) e as mulheres se dedicam mais às atividades reprodutivas (e não
remuneradas). Isso acontece mesmo nas famílias em que as mulheres trabalham
fora e são penalizadas com a dupla jornada. A alocação desigual do tempo é mais
acentuada nas famílias tradicionais onde existe uma rígida divisão sexual do
trabalho, onde os homens fazem o papel de provedores e as mulheres o papel de
cuidadoras. Paradoxalmente, quando o trabalho doméstico diminui a contribuição
relativa do esposo aumenta, mas quando os afazeres da reprodução aumentam muito
o custo recai sobre as esposas. Isso indica que o maior número de filhos
reforça a tradicional divisão sexual do trabalho, com o homem se concentrando
na luta pelo “ganha pão” e a mulher assumindo os encargos da casa, da cozinha e
dos cuidados dos filhos.
IHU On-Line –
O casamento ainda pode ser considerado um anseio universal e um evento para
toda a vida?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O casamento é praticamente um evento
universal no Brasil, mas somente se considerarmos todos os tipos de matrimônio.
Em 1970, 65% dos casamentos aconteciam no civil e no religioso, 14% somente no
civil, 14% só no religioso e 7% eram uniões consensuais. Em 2010, o casamento
no civil e religioso caiu para 43%, só no civil aumentou para 17%, só no
religioso caiu para 3% e as uniões consensuais subiram para 37%.
Casamentos
inconstantes
Mas os
casamentos ficaram mais instáveis. Nos últimos 40 anos cresceu o número de
separações e divórcios. Consequentemente, cresceu o número de recasamentos,
especialmente para o caso dos homens. Na pirâmide brasileira existe um
superávit de mulheres acima dos 25 anos, pois há uma sobremortalidade masculina
por causas externas entre os jovens (especialmente homicídios e acidentes de
trânsito). No total, há um excedente de mais de 5 milhões de mulheres na
população brasileira e a proporção daquelas sem um companheiro aumenta com a
idade, pois, para agravar o desequilíbrio, os homens se casam com mulheres mais
jovens. Existe, portanto, um diferencial de gênero e de idade no chamado
“mercado matrimonial” brasileiro e um número muito grande de mulheres não
encontra companheiro de outro sexo para casamento.
IHU On-Line –
Em que medida o aumento das separações e dos divórcios interfere nas mudanças
das estruturas familiares?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Interfere, por exemplo, na formação
das chamadas famílias reconstituídas, que são cada vez mais frequentes no
cenário nacional. Crescem as famílias em que tanto o marido como a esposa
trazem para a nova união os filhos de casamentos anteriores, vindo a se somar
com novos filhos que surgem do novo enlace. De repente se juntam filhos,
enteados, irmãos, madrasta, padrasto, ex-esposo, ex-esposa e diversos avós.
Costuma-se dar o nome de “família mosaico” ao arranjo familiar em que os filhos
do casal compõem um quadro formado por irmãos, meio-irmãos e não irmãos, pois
os filhos de união (ou uniões) anteriores do marido e da esposa não são irmãos,
mas ambos são meio-irmãos dos novos filhos do casal. Dessa forma, nem todos os
membros da “família mosaico” são parentes entre si, mas todos têm um grau de
parentesco com a prole resultante da união do casal reconstituído. A “família
mosaico” é apenas mais um tipo de arranjo familiar dentre o leque de arranjos
possíveis, em uma sociedade cada vez mais marcada pela pluralidade e por
dinâmicas inovadores, que vão além do modelo padrão.
IHU On-Line –
E os novos arranjos, tais como famílias homoafetivas e famílias poliafetivas?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O Brasil ainda não possui dados
suficientes para traçar a evolução destes arranjos. O censo demográfico de
2010, conduzido pelo IBGE, abriu, pela primeira vez, a possibilidade dos casais
do mesmo sexo, que moram no mesmo domicilio, serem considerados um núcleo
familiar. Os dados indicaram a presença de cerca de 60 mil casais formados por
pessoas do mesmo sexo e um deles se declarou como chefe. Mas, se os casais
moram em casas diferentes ou nenhum deles se declarou como chefe, não foram
identificados pelo censo. As mulheres são maioria nos arranjos homoafetivos,
inclusive na homoparentalidade. Portanto, já existem crianças com dupla
“maternidade” ou dupla “paternidade”. Também não foi levantada a informação
sobre orientação sexual.
Famílias
poliafetivas
As famílias
poliafetivas se referem aos arranjos familiares cujo núcleo não é monogâmico.
São os “casais de 3” ou o “casal de n pessoas”. Pode ser um arranjo formado por
um homem e duas mulheres, uma mulher e dois homens (Uma Dona Flor de verdade)
ou qualquer outro tipo de arranjo envolvendo mais de duas pessoas no núcleo
familiar. Mas o censo não levantou múltiplos relacionamentos. A história mostra
que a poligamia e a poliandria sempre existiram de forma mais ou menos velada.
A novidade agora é que estes tipos de arranjos estão sendo visibilizados e estão
sendo objeto de busca de base legal para serem reconhecidos na legislação
brasileira. Existem, inclusive, as famílias poliafetivas cujos membros possuem
poliorientação sexual.
IHU On-Line –
Em que consiste “a complexidade e a diversidade das relações familiares do
Brasil contemporâneo”?
José
Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – De modo geral, pode-se afirmar que o
modelo hegemônico de família nuclear era formado por um homem e uma mulher que
se uniam em um matrimônio por toda a vida e praticavam sexo com finalidade
generativa. Esse modelo de família tinha como base o casal heterossexual, ele
mais alto e um pouco mais velho, com maior escolaridade, já com um emprego ou
independência financeira e ela mais baixa, mais jovem, com menor escolaridade e
voltada para a vida privada de dona de casa ou com emprego extradoméstico com
flexibilidade e tempo parcial. Esse modelo de família trazia embutida uma forte
desigualdade de gênero. A menor autonomia das mulheres na família era
geralmente reforçada pela desigualdade social, em especial pela baixa taxa de
atividade laboral e pela segregação no mercado de trabalho. O menor poder, a
autoridade e o prestígio feminino decorriam da desigualdade de acesso e de
controle sobre os diversos recursos econômicos, sociais e culturais. Contudo,
esta “família padrão” começou a ruir na mesma época do fim da padronização
fordista de produção, ou seja, com a revolução sexual dos anos de 1960, com a
disponibilidade de métodos contraceptivos, a entrada crescente da mulher no mercado
de trabalho, a reversão do hiato de gênero na educação e a aceitação mais ampla
de novos arranjos familiares. Cresceu o número de domicílios comandados por
mulheres. Em grande parte, isso se deve ao processo de empoderamento feminino,
mas, em outros casos, a chefia feminina é decorrência da ausência do cônjuge e
da falta de responsabilização dos pais (homens) com os filhos.
Mudança da
sociedade brasileira
As
transformações socioeconômicas e as mudanças ideacionais ocorridas nos campos
ético, religioso e cultural levaram a uma maior autonomia individual e a uma
mudança na relação custo/benefício entre as gerações. A idade média da primeira
relação sexual diminuiu e moças e rapazes passaram a ter relações sexuais com
mais frequência antes do casamento. Cresceu o número de filhos nascidos fora do
casamento (inclusive na gravidez na adolescência). Aumentaram a guarda
compartilhada e o número de crianças que vivem em duas casas. Cresceram as
famílias homoafetivas e tem entrado na discussão a formalização dos arranjos
poliafetivos. Sem dúvida, a sociedade brasileira mudou em termos demográficos e
na composição plural das relações familiares. Os diferenciais de gênero e de
geração são fundamentais para se compreender a complexidade e a diversidade das
relações familiares do Brasil contemporâneo.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/censo-2010-uma-famlia-plural-complexa-e-diversa/515013-censo-2010-uma-famlia-plural-complexa-e-diversa
A
individualização da família
O
individualismo como crença perpassa cada vez mais o cotidiano das pessoas, que
usam suas teses para decidir o que fazer de suas vidas. Esta nova família que
se “descoletiviza” não assume todos os credos individualistas, principalmente
aqueles que se referem ao respeito às individualidades, assinala Sócrates
Nolasco
Por: Graziela
Wolfart e Thamiris Magalhães
“O imaginário
que povoa os lares brasileiros é tradicional, estimula o enriquecimento, o
consumo e a fama, como parâmetros de sucesso, mais do que educação, trabalho,
compromisso e respeito com o público”, pontua Sócrates Nolasco. Em entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line, Nolasco afirma que no Brasil assistimos a
formação de grupos familiares distintos, “porém, isso não quer dizer que dentro
de cada um deles valores tradicionais não continuem imperando”. Estas novas
famílias, para ele, têm crescido em torno delas mesmas e dialogam muito pouco
com aquelas que têm um formato diferente do seu. “As ‘novas’ famílias estão
cada vez menos preparadas para inventar formas de coletivização e vinculação
com outras famílias, cujo modelo seja distinto do seu. As novas famílias
brasileiras compraram o preceito individualista, mantendo o ranço de valores
tradicionais no que tange a falta de respeito ao outro, e uma pretensão de
superioridade herdada das classes altas”.
Para o
psicólogo, maternidade e paternidade se diluem diante das demandas de trabalho
e produção de dinheiro. “Ambos passaram a ter funções secundárias diante de uma
‘nova’ família, na qual os filhos são independentizados cada vez mais cedo,
passando de modo precoce a ter a mesma estatura dos seus pais”, frisa. E
completa: “Antes de existir um pai ou uma mãe, deve haver dois sujeitos com
disponibilidade para cuidar de um outro. Sem isso não surgirá nem pai, nem mãe,
mas máquinas de reprodução in vitro, de fecundidade sem sexo, de cuidado sem
vínculo, de conforto sem afeto”.
Sócrates
Nolasco é graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro – PUC-Rio, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e pela PUC-Rio,
respectivamente. Sua tese intitulou-se De Tarzan a Homer Simpson: banalização e
violência masculina em sociedades contemporâneas ocidentais (Rio de Janeiro:
Rocco, 2001). Escreveu A desconstrução do masculino (Rio de Janeiro: Rocco,
1995) e O mito da masculinidade (2ª. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993). Leciona
na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Como conceituar família em nossos dias, principalmente depois dos dados
apresentados no último censo?
Sócrates
Nolasco – O perfil das famílias brasileiras mudou em relação aos dados do
último censo. A chamada família tradicional, modelo composto por pai, mãe e
filhos, agora convive com famílias cujo núcleo familiar é formado por crianças
de uniões anteriores, de pessoas sozinhas, casais sem filhos e uniões
constituídas por pessoas do mesmo sexo. O casamento, tanto religioso como
civil, se reduziu diante das uniões consensuais, que aumentaram
consideravelmente. Redução da taxa de natalidade, mulheres tendo filhos mais
tarde e aumento da estimativa de vida, são fatores que corroboraram para este
cenário de mudança. O censo de 2010 enumerou 19 laços de parentesco, para que
fosse possível cobrir todas estas mudanças. Já o censo de 2000, listou apenas
onze. Os novos lares somam 28,647 milhões, 28.737 a mais que a formação
clássica. O que podemos pensar a respeito destes dados? Há uma crescente
individualização da família, agenciada pela busca de prazer imediato e aquisição
de bens. O individualismo como crença perpassa cada vez mais o cotidiano das
pessoas, que usam suas teses para decidir o que fazer de suas vidas. Esta nova
família que se “descoletiviza” não assume todos os credos individualistas,
principalmente aqueles que se referem ao respeito às individualidades. O
imaginário que povoa os lares brasileiros é tradicional, estimula o
enriquecimento, o consumo e a fama, como parâmetros de sucesso, mais do que
educação, trabalho, compromisso e respeito com o público.
IHU On-Line –
Que valores sociais e culturais refletem a nova família brasileira retratada
nos dados do último censo?
Sócrates
Nolasco – No Brasil, se pensarmos que saímos de uma sociedade tradicional para
uma que se consolida como individualista, deveríamos nos ater à ideia de
acesso, ou seja, a democratização do consumo e dos serviços que usufruem as
classes abastadas. Se olharmos sem pensar, poderíamos acreditar que esta
família múltipla e mais reduzida é nova. Porém, nela encontramos valores
tradicionais que a vincula às formas de poder vigente – a hierarquia social
pautada no enriquecimento, a valorização pela aquisição de bens. As iniciativas
culturais, apesar de terem aumentado, ainda são tímidas se considerarmos o
potencial de contribuição que elas têm para promover mudanças de mentalidade.
No Brasil, assistimos a formação de grupos familiares distintos. Porém, isso
não quer dizer que, dentro de cada um deles, valores tradicionais não continuem
imperando. Essas novas famílias têm crescido em torno delas mesmas, e dialogam
muito pouco com aquelas que têm um formato diferente do seu. As “novas”
famílias estão cada vez menos preparadas para inventar formas de coletivização
e vinculação com outras famílias, cujo modelo seja distinto do seu. As novas
famílias brasileiras compraram o preceito individualista, mantendo o ranço de
valores tradicionais no que tange a falta de respeito ao outro, e uma pretensão
de superioridade herdada das classes altas.
IHU On-Line –
O que podemos entender por maternidade e paternidade no século XXI?
Sócrates
Nolasco – Hoje, a paternidade deixou de ser uma questão de fé, como se dizia
nos anos 1970, passando a ser valorizada e estimulada. Por sua vez, a
maternidade que, anteriormente, era um exercício que se fazia dentro do doméstico
e associado ao cuidado dos filhos recebeu outra configuração por conta da
mulher ter ampliado suas demandas na vida. Pai e mãe se encontram cada vez mais
na cena pública, do trabalho, que na doméstica. Essas funções no Brasil estão
cada vez mais terceirizadas. Babás, creches, transporte escolar, ou ainda
filhos cada vez mais cedo sendo autorizados a cuidarem de si mesmo, mostram-nos
o quanto que há uma delegação de tarefas por parte dos pais. Maternidade e
paternidade se diluem diante das demandas de trabalho e produção de dinheiro.
Ambos passaram a ter funções secundárias diante de uma “nova” família, na qual
os filhos são independentizados cada vez mais cedo, passando de modo precoce a
ter a mesma estatura dos seus pais. A gravidez na adolescência e os indicadores
de mortes de homens jovens por causas externas descrevem um cenário de solidão,
no qual estes filhos ficam sem ter a quem recorrer, já que em suas casas o que
se manteve presente foram os eletrodomésticos. Antes de existir um pai ou uma
mãe, deve haver dois sujeitos com disponibilidade para cuidar de um outro. Sem
isso não surgirá nem pai nem mãe, mas máquinas de reprodução in vitro, de
fecundidade sem sexo, de cuidado sem vínculo, de conforto sem afeto.
IHU On-Line –
O que os homens têm feito diante das mudanças atuais da família para tentar
encontrar mais espaço no ambiente familiar?
Sócrates
Nolasco – No Brasil, apesar de a mulher ter saído do espaço doméstico,
tradicionalmente este tem sido considerado sua área de competência e poder.
Permanece o tradicional, lá onde deveria existir a premissa de que o individuo
é o valor, e, portanto, homem e mulher deveriam ter os mesmos direitos. Nas
varas de família, as mulheres continuam sendo favorecidas em relação aos
homens, caso se separem. Muitas famílias acreditam que a mãe tem mais
importância que o pai, mesmo quando a criança já tenha deixado o peito. Para
que um homem não se intimide com este panorama, ele deve ter clareza de que a
paternidade é uma ampliação de sua possibilidade de ser homem no mundo. Uma
criança precisa de um cuidador, seja ele pai ou mãe.
Homens e a
paternidade
No Brasil, os
homens não têm demonstrado interesse por uma reflexão mais séria e profunda no
que tange a paternidade, bem como nas maneiras que ela transforma a vida de
cada um deles. Os homens brasileiros têm uma resistência para sair desta área
de conforto em que tradicionalmente se colocaram. Segundo essa perspectiva, a
mãe é aquela que sabe como cuidar, porque foi ela quem gerou o bebê. As
sociedades tradicionais concedem à mulher o direito de usar a intuição,
aplicando-a no cuidado dos filhos. No consultório, percebo que são muitas as
razões que levam uma mulher desejar a ter filho. Ser mãe nem sempre é o
principal motivo. No Brasil, os grupos de homens que têm procurado discutir a
paternidade têm usado o ponto de vista das mulheres sobre o assunto, mais do
que os homens têm a dizer a respeito. Segundo tais grupos, a divisão das
tarefas domésticas e a prevenção da violência contra a mulher são temas
recorrentes.
IHU On-Line –
Em que medida o seriado Os Simpsons reflete a realidade familiar brasileira
atual?
Sócrates
Nolasco – Nos dias de hoje, a mídia quando se refere à mulher, o faz através da
palavra “poderosa”. Nas últimas décadas do século passado, a mulher vem
investindo na conquista de poder. No seriado Os Simpsons encontramos histórias
de uma família na qual as mulheres são as politicamente corretas, sendo que pai
e filho são pessoas equivocadas. O mesmo acontece com Os Silva, da família
dinossauro. Essa representação de família tem no imaginário dos países da
América do Norte e Europa um impacto maior do que no Brasil. Porém, a
desvalorização dos homens aqui passa por uma dúvida que gera um estado de
vigilância em torno da masculinidade, como se a qualquer momento um homem
pudesse perder a sua, quer seja de forma financeira, sexual ou por fraqueza
física. Isso tem levado muitos homens jovens a lançar mão da violência e do
sexo como ferramentas que atestam masculinidade. Para a mulher, o modelo que
serviu para o empoderamento foi o do homem, branco e heterossexual. Esse
sujeito é considerado o grande beneficiado na história do ocidente. Por essa
razão, as mulheres passaram a reivindicar paridade de direito com os homens, os
gays com o hétero e as demais etnias com os brancos. Homer Simpson é branco,
heterossexual e homem. É desta representação que estamos falando. Muitos homens
brasileiros podem estar identificados com Homer, mas dificilmente irão
partilhar este sentimento uns com os outros, por medo de serem vistos como
fracassados. No Brasil, Homer se traveste de valentão, bombado, sedutor
irresistível, esperto, malandro e todas as insígnias do estereótipo do homem
tradicional. A derrota ronda cada um destes tipos, fazendo-os serem quem são.
IHU On-Line –
Que impactos a nova configuração familiar terá sobre as novas gerações?
Sócrates
Nolasco – As novas gerações crescerão convivendo como diferentes arranjos
familiares, o que favorecerá uma compreensão sobre o que seja multiplicidade e
possibilidade de se viver a vida. Todavia, isso só não basta, é importante que
o modelo tradicional seja identificado e problematizado, mesmo dentro dos novos
arranjos familiares. Nem tudo o que é tradicional é ruim. Uma crítica deve ser
feita, mesmo dentro das novas famílias, que, me parece, vem perdendo a
capacidade de serem críticas em relação a elas mesmas. Fazer parte de um novo
formato de família não atestar que as representações tradicionais tenham sido
problematizadas. É preciso ter cuidado quando se fala do que seja o novo,
quando as representações sociais de homem e mulher, pai e mãe, não mudaram,
mesmo que a família em questão seja formada por pessoas do mesmo sexo. A
quantidade de separações tem deixado uma impressão ruim a respeito das uniões.
As relações duram cada vez menos. É um desafio ser jovem na cultura do
divórcio, onde não se acredita que seja possível formar e fazer durar um
vínculo, sem comprometer a sede de prazer imediato.
IHU On-Line –
O ditado “quando o pai falta, o filho manca” se aplica à família do século XXI?
Sócrates
Nolasco – Em uma época de reprodução assistida, liberdade sexual e direito ao
aborto, a paternidade tem deixado de ser algo de valor. Isso acontece menos
pelo valor que ela tem para os filhos, e mais por conta de uma compreensão
limitada que se tem dela, em tempos de consumo e entretenimento. Escrevi uma
matéria para um jornal do Rio de Janeiro sobre adoção realizada por casais do
mesmo sexo. Fui aos Estados Unidos cobrir eventos que tratavam deste assunto.
Dentre as entrevistas que fiz, uma delas me chamou atenção. Uma mulher de 20
anos nasceu em uma família formada por duas mulheres. De uma delas foi retirado
um óvulo que, depois de fecundado in vitro, foi inseminado na outra mulher, que
gerou uma filha. O sêmen foi pego em um bando de doadores. Estávamos no final
dos anos 1990. Quando conversei com essa mulher, ela me contou que suas mães
haviam se separado, e que ela já não morava mais com nenhuma delas, porque
estava na universidade. Eu perguntei o que estava escrito em sua certidão de
nascimento, e ela me disse que aparecia o nome das duas mães. E no do pai? Ela
me respondeu: no lugar do nome do pai está escrito D.I. (donor insemination).
Creio que isso revela uma parte do que vem acontecendo com a representação
paterna nos dias de hoje.
IHU On-Line –
Que análise pode ser feita do fato de que a maioria dos casais gays é formada
por mulheres?
Sócrates
Nolasco – O imaginário atravessa todos que fazem parte de uma cultura. Não
importa qual seja o tipo de classificação que ela atribua aos indivíduos. No
Brasil, maternidade e feminilidade estão associadas ao sujeito empírico mulher.
Creio que a ideia de ser mãe passe de algum modo pela mulher, de tal maneira
que a mulher acaba desejando ter filhos, mais do que ocorre nas uniões formadas
por homens.
Experiências
Estava em São
Francisco, para um curso. Conheço a cidade, e sei que ela tem uma ambiência de
diversidade, no mais extenso que esta palavra possa representar, e não apenas
do ponto vista sexual, como ficou associada no Brasil. Castro é o nome do
bairro onde a comunidade gay vive. O que me chamou atenção foi o fato de que,
na parte do bairro onde moram os homens, era raro encontrar uma mulher. O mesmo
acontecia com a parte reservada às mulheres. Lá não se via homens. Bem, até aí,
nada demais. Contudo, as imagens que a cultura usa para representar
masculinidade e feminilidade estavam lá. As mulheres andavam e se vestiam, em
sua grande maioria, como homens, e os homens lançam mão do que havia ficado
estabelecido como feminino. Quando existia alguma alusão à masculinidade, esta
se referia ao mundo tradicional dos homens: cowboy, couro, militares eram
vistos nas ruas e vitrines. O que percorre o imaginário de uma cultura,
atribuído a homem e mulher, continua existindo tanto em uniões do mesmo sexo
como de sexo diferente. Com todas as mudanças ocorridas na última década, não
houve uma reinvenção do que signifique ser homem e mulher. O que encontramos é
uma autorização social para que cada qual possa experimentar o que
tradicionalmente estava atribuído ao outro sexo.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4717&secao=406
Um novo papel
social da mulher brasileira
Segundo a
professora e economista do IPEA, Ana Amélia Camarano, a responsabilidade
financeira familiar feminina veio para ficar no Brasil. “42% da renda de todas
as famílias brasileiras vem das mulheres. Não se pode abrir mão disso. Imagine
a renda diminuir 42% se as mulheres voltarem para casa? É um caminho sem volta”
Por: Graziela
Wolfart
Uma das
novidades trazidas pelos dados do censo 2010 foi o aumento do número de
mulheres como chefes de família no Brasil. A pesquisadora do IPEA, Ana Amélia
Camarano, não sabe se isso é positivo ou negativo. Para ela, trata-se de uma
importante mudança da sociedade. E o que configura essa mudança seria a maior
independência econômica da mulher, sua maior participação no mercado de
trabalho, maior renda e maior escolaridade. “Por outro lado”, continua a
professora, na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, “a
independência econômica leva a um maior número de mulheres que moram sozinhas,
e por isso chefiam a família, e também a um maior índice de separação, o que,
consequentemente, as tornam chefes de família”. Segundo a análise de Ana
Amélia, é mais comum que as mulheres assumam esse papel na medida em que
envelhecem, porque ficam viúvas. “Como os homens morrem, em média, sete anos
antes que as mulheres, elas ficam viúvas e se tornam chefes de família. Elas
têm a renda da pensão por morte e podem complementar com outras fontes de
renda, formais ou informais”, explica.
Ana Amélia
Camarano de Mello Moreira possui graduação em Economia e mestrado em Demografia
pela Universidade Federal de Minas Gerais, e doutorado em Population Studies,
pela London School of Economics. É professora na Escola Nacional de Ciências
Estatísticas e técnica em pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA. Tem experiência na área de Demografia, com ênfase em
envelhecimento populacional.
Confira a entrevista.
IHU On-Line –
Quais os pontos positivos e negativos do crescimento das mulheres como chefes
de família, dado apontado pelo último censo?
Ana Amélia
Camarano – Na verdade, não sei se isso é positivo ou negativo. Esse é um fato,
uma mudança da sociedade. O que configura essa mudança é a maior independência
econômica da mulher, sua maior participação no mercado de trabalho, maior
renda, maior escolaridade. Por outro lado, a independência econômica leva a um
maior número de mulheres que moram sozinhas, e por isso chefiam a família, e
também a um maior índice de separação, o que, consequentemente, as tornam
chefes de família.
IHU On-Line –
Qual a influência da melhora na participação das mulheres no mercado de
trabalho e nos níveis de escolaridade e renda para que elas crescessem como
chefes de família? Que tipo de “mudança sociológica” esse dado indica?
Ana Amélia
Camarano – Ele indica uma maior participação da mulher, indica um novo papel
social da mulher. Essa mulher, que era tradicionalmente a cuidadora (enquanto
que o homem era o provedor), hoje é uma provedora importante, mas continua
mantendo seu papel e função de cuidadora.
IHU On-Line –
E isso não acaba sobrecarregando a mulher ainda mais?
Ana Amélia
Camarano – Acredito que sim, porque a mulher continua mais envolvida nas
atividades domésticas, mesmo trabalhando fora. Por isso se fala da dupla
jornada de trabalho.
IHU On-Line –
Qual a relação entre o envelhecimento e a colocação das mulheres como chefes de
família? É mais comum que elas assumam esse papel na medida em que envelhecem?
Ana Amélia
Camarano – Sim, porque elas ficam viúvas. Como os homens morrem, em média, sete
anos antes que as mulheres, elas ficam viúvas e se tornam chefes de família.
Elas têm a renda da pensão por morte e podem complementar com outras fontes de
renda, formais ou informais.
IHU On-Line –
Em sua opinião, a responsabilidade financeira familiar feminina veio para ficar
ou é algo transitório?
Ana Amélia
Camarano – Eu acho que ela veio para ficar. 42% da renda de todas as famílias
brasileiras vem das mulheres. Não se pode abrir mão disso. Imagine a renda das
famílias no país diminuir 42% se as mulheres voltarem para casa? É um caminho
sem volta.
IHU On-Line –
O que isso representa em relação às características da mulher contemporânea?
Ana Amélia
Camarano – Ela é uma mulher mais independente, inclusive sexualmente. Essa é
outra revolução que foi feita e impacta os arranjos familiares, que foram a
separação da sexualidade da reprodução e a separação da sexualidade do
casamento. Isso permite que as mulheres tenham uma vida mais independente que
as do passado, tanto econômica como sexual e socialmente.
IHU On-Line –
Como essa “nova mulher” repercute na configuração tradicional das famílias?
Ana Amélia
Camarano – Temos a diminuição da família tradicional, que é aquela formada por
casal com filhos. Em 1980, essa família era quase 70% do total de famílias
brasileiras. Hoje é menos de 50%. O que temos são novos arranjos: famílias
chefiadas por mulheres sem marido, famílias chefiadas por mulheres com marido,
famílias chefiadas por homens sem mulher, mulheres e homens morando sozinhos,
etc.
IHU On-Line –
A partir da nova configuração familiar que se instaura segundo os dados do
último censo, quais os desafios para a previdência no Brasil, tendo em vista a
dinâmica populacional?
Ana Amélia
Camarano – Primeiramente, temos a questão do envelhecimento, ou seja, mais
pessoas recebendo benefício por um tempo maior. Depois, temos a legislação
previdenciária em relação à mulher, que ainda é baseada nos contratos
tradicionais de gênero, em que a mulher é a cuidadora e dependente. Por isso
ela recebe uma pensão de viuvez. Isso também acontece com os homens, mas como é
baixa a proporção de homens viúvos, elas recebem o valor integral, quando
viúva, do benefício do marido. Isso vai ter que mudar, porque hoje a mulher
trabalha. Ela terá a sua aposentadoria. A legislação brasileira também permite
que a mulher acumule os benefícios previdenciários dela com a pensão por morte
do marido, porque isso é ainda fruto da visão de que a mulher era apenas
cuidadora.
IHU On-Line –
O que a senhora destaca em relação aos dados do censo 2010 sobre a taxa de
fecundidade da mulher brasileira e o que pode ser dito sobre as projeções
populacionais para os próximos anos?
Ana Amélia
Camarano – A fecundidade está abaixo do nível de reposição, aliás, bem abaixo.
Isso vai acarretar que, em torno de 2030, a população brasileira começará a
diminuir e a força de trabalho começará também a diminuir, o que causará um
impacto importante caso não haja um grande aumento de produtividade, até no
crescimento do PIB.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4719&secao=406
Transformações
na estrutura das famílias brasileiras
É a partir do
preenchimento do quadro de moradores do questionário, onde são codificadas as
relações de parentesco que existem em cada unidade doméstica, que podemos
construir os distintos tipos de família. Para o censo 2010, essa relação foi
bem mais extensa do que nos censos anteriores, destacam Barbara Cobo e Gilson
Gonçalves de Matos
Por: Graziela
Wolfart e Thamiris Magalhães
Questionados
a respeito de como definir o novo modelo de família que surge no Brasil a
partir dos dados do censo 2010, Barbara Cobo e Gilson Gonçalves de Matos
avaliam, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que o “modelo” não é
exatamente novo, mas fruto de uma série de mudanças na organização das famílias
que vem ocorrendo nos últimos anos em resposta à queda da taxa de fecundidade,
à maior esperança de vida, ao papel da mulher no mercado de trabalho, ao avanço
na escolaridade das mulheres, à postergação da maternidade para idades mais
velhas e ao aumento do número de separações e divórcios.
“Esse
conjunto de fatores vem resultando numa maior diversificação de arranjos em
direção às famílias de tamanho mais reduzido, com avós convivendo com netos, a
ausência de cônjuge no domicílio e, mesmo no tipo ainda predominante ‘casal com
filhos’, existem as famílias chamadas reconstituídas, onde o cônjuge já viveu
união anterior e pode ou não trazer filhos para morar com o novo cônjuge”,
explicam. Para eles, a inovação no censo 2010 foi melhorar o instrumento de
captação dessas mudanças, aprimorando o questionário e permitindo construir uma
tipologia de família mais diferenciada a partir das estatísticas coletadas
junto à população brasileira.
Barbara Cobo
é doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e
especialista em Análise de Políticas Públicas. Trabalha como técnica do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE na Gerência de
Indicadores Sociais.
Gilson
Gonçalves de Matos é estatístico formado pela Universidade de Brasília – UnB e
mestrando em engenharia elétrica pela PUC-Rio de Janeiro. Trabalha como técnico
do IBGE na Gerência de Indicadores Sociais.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Como se define o novo modelo de família que surge no Brasil a partir dos dados
do censo 2010?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – O “modelo” não é exatamente novo, mas fruto de
uma série de mudanças na organização das famílias que vem ocorrendo nos últimos
anos em resposta à queda da taxa de fecundidade, à maior esperança de vida, ao
papel da mulher no mercado de trabalho, ao avanço na escolaridade das mulheres,
à postergação da maternidade para idades mais velhas e ao aumento do número de
separações e divórcios. Esse conjunto de fatores vem resultando numa maior
diversificação de arranjos em direção às famílias de tamanho mais reduzido, com
avós convivendo com netos, a ausência de cônjuge no domicílio e, mesmo no tipo
ainda predominante “casal com filhos”, existem as famílias chamadas
reconstituídas, onde o cônjuge já viveu união anterior e pode ou não trazer
filhos para morar com o novo cônjuge. A inovação no censo 2010 foi melhorar o
instrumento de captação dessas mudanças, aprimorando o questionário e
permitindo construir uma tipologia de família mais diferenciada a partir das
estatísticas coletadas junto à população brasileira.
IHU On-Line –
Qual a importância da dimensão estatística para o conhecimento das diferentes
configurações familiares existentes na sociedade brasileira? Nesse sentido,
qual a principal novidade que destacam a partir dos dados do último censo em
relação às famílias brasileiras?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – A investigação e quantificação dos arranjos
familiares nos permite traçar panoramas e entender as transformações na
estrutura das famílias brasileiras, sobretudo nas últimas décadas. Como
novidades, podemos destacar os conceitos de unidades domésticas e famílias
adotados neste censo bem como a identificação das famílias conviventes, que não
foi feita no campo, mas de forma derivada a partir de perguntas existentes no
questionário do censo. É a partir do preenchimento do quadro de moradores do
questionário, onde são codificadas as relações de parentesco que existem em
cada unidade doméstica, que podemos construir os distintos tipos de família.
Para o censo 2010 essa relação foi bem mais extensa que nos censos anteriores.
IHU On-Line –
O que destacam sobre os aspectos metodológicos dos conceitos utilizados pelo
censo demográfico de 2010 referentes à família?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – Primeiramente, a introdução dos conceitos de
unidade doméstica e famílias.
Unidade
doméstica
A unidade
doméstica é a denominação que se dá ao conjunto de pessoas que vive em um
domicílio particular, cuja constituição se baseia em arranjos feitos pela
pessoa, individualmente ou em grupos, para garantir alimentação e outros bens
essenciais para sua existência.
Famílias
Quanto às
famílias, foram consideradas como conjuntos formados por duas ou mais pessoas
ligadas por laços de parentesco, consanguinidade ou adoção. Logo, os arranjos
formados pelo responsável e por não parentes (agregados, pensionistas,
empregados domésticos, etc.) não foram considerados famílias, a exemplo dos
censos anteriores.
Identificação
de famílias conviventes
Quanto à
identificação das famílias conviventes, a derivação metodológica se deu a partir
das relações de parentesco com o responsável, bem como dos quesitos de
maternidade e conjugalidade (existência de filhos e cônjuges no domicílio e
respectivas identificações).
IHU On-Line –
Como se dá o processo de concepção de unidade familiar desenvolvido pelo IBGE?
Em que sentido ele se relaciona com o conceito sociológico de família?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
– IBGE se baliza em recomendações internacionais para coleta de informações, em
especial a Comissão de Estatísticas da Organização das Nações Unidas – ONU,
seguindo-as sempre que possível, considerando as adequações e adaptações
necessárias à realidade brasileira. E essas recomendações se baseiam nos
conceitos sociológicos de família, mas limitadas às especificidades referentes
à operação de campo e coleta das informações. Muitas vezes determinada
informação é de difícil entendimento por parte da população, de difícil
aplicabilidade ou subjetiva demais a ponto de não serem interpretadas por todos
da mesma forma. Como as pesquisas domiciliares do IBGE não têm por objetivo o
estudo de famílias somente, mas uma ampla gama de temas sociais, opta-se pela
forma mais objetiva de captação da informação. O entrevistador primeiramente pergunta
quem seria a pessoa responsável pelo domicílio (assim indicada pelos demais
membros) e a partir desta identificação começa a enumerar as relações de
parentesco dos demais moradores em relação a esta pessoa. Com essa
identificação, a construção dos tipos é realizada de forma a retratar as
principais formas de organização das famílias brasileiras.
IHU On-Line –
Segundo o último censo, quais são os principais tipos de núcleo familiar? Em
que se diferem do censo 2000, por exemplo?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – A maior parte dos núcleos é ainda composta por
casais com filhos, seguidos dos casais sem filhos e arranjos monoparentais,
sobretudo os femininos. Merece destaque o crescimento da proporção de casais
sem filhos entre 2000 e 2010, sendo causas possíveis para o fenômeno a maior
participação da mulher no mercado de trabalho, as baixas taxas de fecundidade e
o envelhecimento da população.
IHU On-Line –
A partir dos dados do último censo, como a questão econômica se reflete na
forma de as famílias se estruturarem?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – Ainda não realizamos estudos aprofundados acerca
desta questão. Mas a distribuição dos tipos de família por classes de
rendimento familiar mostra que o tipo “casal com filhos” é mais comum nas
famílias com maiores rendimentos (chega a 35% dos arranjos em famílias com mais
de cinco salários mínimos per capita. Para as famílias com até ¼ de salário
mínimo per capita, esse percentual é de 4,5%.). “Casal com filhos” é o tipo
mais comum em todas as classes de renda, mas mais representativo nas classes
com menor rendimento, assim como mulher sem cônjuge com filhos. Observa-se
também que dentre as famílias conviventes, a maioria é sem rendimento e formada
por mulher sem cônjuge com filho, o que sugere que podem ser filhas que tiveram
filho e continuaram a viver com os pais.
IHU On-Line –
Que políticas públicas podem ser sugeridas a partir dos resultados do censo
2010 sobre as famílias brasileiras?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – Diversas políticas públicas têm sido formuladas
tendo a família como unidade beneficiária, como o próprio Bolsa Família, por
exemplo. As informações devem ser cruzadas com as de rendimento, saneamento e
trabalho para a formulação de políticas públicas específicas para essas áreas.
IHU On-Line –
Quais os limites que devemos levar em conta ao analisarmos os dados do censo em
relação à família? Quer dizer, os dados são reportados de maneira sincera ao
recenseador, quando o assunto é a homossexualidade, por exemplo?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – Isso não é possível afirmar. O recenseador
preenche o formulário com as respostas dadas pelos entrevistados, sem
interferir nas repostas (neutralidade). A pergunta sobre a existência de
“cônjuge do mesmo sexo” é relativamente nova, mas as demais mostram seguir as
tendências observadas em outras pesquisas amostrais do IBGE, como a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD e a Pesquisa de Orçamentos Familiares
– POF, o que confere robustez e consistência aos dados censitários. O IBGE não
investigou homossexualidade no censo.
IHU On-Line –
Que tipo de família já é comum na sociedade brasileira, mas que não aparece no
questionário do IBGE? Como se caracterizam as famílias “novíssimas”?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – Na verdade, entre os casais com filhos, foram
identificados aqueles reconstituídos (com filhos de uniões anteriores), os
quais não foram investigados nos censos passados, pelas próprias categorias da
variável de relação de parentesco com o responsável em tais pesquisas. Os
únicos arranjos familiares não identificados são os monoparentais masculinos,
quando estes conviviam com um núcleo principal. Porém, este caso é pouco
frequente no contexto brasileiro. Os demais tipos de famílias foram
identificados a partir do questionário.
IHU On-Line –
O que o Brasil pode aprender com os outros países sobre a forma de recensear
sua população, principalmente em relação às novas modalidades familiares?
Barbara Cobo
e Gilson Gonçalves de Matos – O IBGE segue recomendações internacionais de
coleta de informações e busca apreender exemplos internacionais de sucesso para
sempre melhorar as suas formas de captação. No caso do tema família, aumentamos
o número de relações de parentesco possíveis a fim de permitir a constituição
de tipos mais diferenciados específicos. Alguns ainda não são possíveis pelos
dados, como os casais que vivem em casas separadas. Mas a ideia é que, aos
poucos, possamos aprimorar nossos instrumentos de coleta e acompanhar cada vez
de mais perto às mudanças em curso na sociedade.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4720&secao=406
As
telenovelas acompanham as mudanças da família brasileira
Esther
Hamburger defende que há uma diversidade de arranjos familiares nas novelas que
se relaciona com a diversidade de arranjos que existe na sociedade brasileira
Por: Graziela
Wolfart e Thamiris Magalhães
A vida imita
a arte ou a arte inspira a vida? Para a professora Esther Hamburger, tanto a
novela tem inspiração na realidade como ela é influenciadora da vida social
real. “Porque a novela faz parte da realidade. Ela capta coisas, as transforma
e depois expressa. Esse é o processo. Como é feita ao mesmo tempo em que vai ao
ar, ela se apoia muito nessa dinâmica de captar as ansiedades que estão na
sociedade e devolvê-las”, explica, em entrevista concedida por telefone para a
IHU On-Line. Na visão da pesquisadora, “as novelas fazem sucesso quando
provocam temas polêmicos, quando trazem à tona temas que as pessoas lidam no
cotidiano. Ao trazer para o horário nobre, a novela legitima a existência do
problema e o reconhece de uma forma que todo mundo assiste. Então, todos
compartilham aquelas histórias e podem usá-las para discutir suas próprias
opiniões e seus próprios problemas”.
Esther
Hamburger é professora da Universidade de São Paulo – USP, Ph.D em Antropologia
pela Universidade de Chicago, com pós-doutorado pela Universidade do Texas,
Austin. É crítica e ensaísta, autora do livro O Brasil antenado: a sociedade da
novela (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Qual é o modelo de família que é vendido pelas telenovelas atuais?
Esther
Hamburger – Não há um modelo de família. Há diversos. Há uma diversidade de arranjos
familiares que se relaciona com a diversidade de arranjos que existe na
sociedade brasileira. Então, por exemplo, em Avenida Brasil , tinha os mais
variados tipos de família. Inclusive a novela valorizou a família do Tufão, um
dos personagens principais, que, no fim, tinha filhos que não eram seus filhos,
mas a ideia de família permaneceu valorizada, mesmo que admitindo uma
diversidade. Isso tem a ver com o sucesso da novela também.
IHU On-Line –
Guardadas as devidas proporções entre ficção e vida real, o que o casamento
entre o personagem Cadinho, da novela Avenida Brasil, e suas três mulheres,
pode sinalizar sobre novas modalidades de família que surgem no Brasil?
Esther
Hamburger – Não acho que as pessoas vão seguir esse modelo. As pessoas não imitam
o que a novela mostra. A novela serve como um repertório comum entre as pessoas
mais diferentes, que serve para cada um colocar seu ponto de vista: discordar,
concordar, expor outras formas. Não penso que a novela vá estimular esse tipo
de arranjo, mesmo porque sabemos que o problema existe. E a novela faz
justamente uma valoração positiva das famílias. É importante ressaltar que as
novelas fazem sucesso quando provocam temas polêmicos, quando trazem à tona
temas que as pessoas lidam no seu cotidiano. Ao trazer para o horário nobre, a
novela legitima a existência do problema e o reconhece de uma forma que todo
mundo assiste. Então, todos compartilham aquelas histórias e podem usá-las para
discutir suas próprias opiniões e seus próprios problemas.
IHU On-Line –
De forma geral, como o povo brasileiro reagiu diante de um marido com três
esposas (Cadinho) e uma mulher (Suélen) com dois maridos? O que mais choca e o
que mais provoca identificação e simpatia?
Esther
Hamburger – A solução do Cadinho, com três mulheres, e da Suélen, com dois
homens, na verdade, é um tratamento bem humorado para tensões que as pessoas
enfrentam no dia a dia, pessoas dos mais variados tipos, das mais diferentes
idades e gêneros. A novela reconhece que o problema existe, mas o resolve com
bom humor.
IHU On-Line –
Em sua opinião, a novela tem inspiração na realidade ou é influenciadora da
vida social real?
Esther
Hamburger – As duas coisas. Porque a novela faz parte da realidade. Ela capta
coisas, as transforma e depois expressa. Esse é o processo. Como ela é feita ao
mesmo tempo em que vai ao ar, ela se apoia muito nessa dinâmica de captar as
ansiedades que estão na sociedade e devolvê-las.
IHU On-Line –
Resgatando a trajetória histórica das telenovelas brasileiras, o que mais mudou
em relação ao modelo de família nos últimos anos?
Esther
Hamburger – É muito interessante pensar a novela em relação aos modelos de
família. Porque há uma diversificação crescente na sociedade brasileira, como
os demógrafos mostram, e as novelas acompanham isso tudo, pois elas fazem parte
de um processo de mudança demográfica do Brasil. O país vem mudando muito nos
últimos 50 anos e são mudanças muito radicais. Tão radicais que afetam a
estrutura familiar. É uma combinação de fatores que levam a isso. Não existe
uma única causa. Uma coisa interessante é que, segundo o último censo, aumentou
o número de pessoas que vivem sozinhas. Isso, em novela, é muito raro aparecer.
Então, podemos ver que a ligação não é imediata. Há muitas mediações acontecendo.
De forma geral, a novela capta as transformações que vêm ocorrendo na família
brasileira. Às vezes, ela devolve reforçando alguma tendência e às vezes ela
devolve com alguma solução inusitada e criativa, como foi o caso desta última.
IHU On-Line –
Considerando que, segundo o último censo, tem aumentado o número de mulheres
chefes de família, como aparece nas novelas a mudança do protagonismo feminino
na sociedade – dentro e fora de casa?
Esther
Hamburger – No caso das famílias chefiadas por mulheres, principalmente nessa
última novela, até que havia alguns casos. No caso da família do Tufão, ele era
o chefe. Embora os filhos não sendo dele, ele continua se considerando o pai e
é o chefe da família. Depois, tem a família da Lucinda (no núcleo do lixão), chefiada
por ela. O Cadinho se tornou o chefe de uma grande família com três mulheres,
ou de três famílias. A novela, ao longo dos anos, foi fortalecendo uma ideia de
mulher que dá conta de muitas coisas: a mulher que trabalha, que tem desejo e
direito ao prazer. A novela legitimou a separação, inclusive antes de o
divórcio ser aprovado no Brasil. Sem dúvida, ela acompanha esse processo de
independência da mulher, mas problematiza pouco as relações de gênero
propriamente ditas no que diz respeito à distribuição do trabalho doméstico,
por exemplo. Ela não necessariamente entra nessa discussão. Em geral, se
favorece o modelo de supermulher, que dá conta de tudo, de ser mãe, mulher,
esposa, profissional. Nesse sentido, embora as mulheres tenham, ao longo dos anos,
ganhado muito espaço, problematiza-se pouco as consequências dessa
multiplicidade de tarefas das quais a mulher é cobrada.
IHU On-Line –
Como a fragmentação da família e a liberalização das relações conjugais têm
aparecido nas novelas da Globo nos últimos anos?
Esther
Hamburger – As novelas acompanham o processo de mudança social. Às vezes elas
estimulam e às vezes elas “seguram”. Não são um espelho sem distorções. Por
outro lado, elas não estão fora da realidade, mas fazem parte dela. O que vimos
foi essa novela mais recente (Avenida Brasil) tomando iniciativas muito
inesperadas e inovadoras, o que não quer dizer que as pessoas vão seguir o
modelo que a novela está oferecendo. Só quer dizer que as pessoas, dentro dos
próprios problemas, verão que esses problemas não são especificamente seus, mas
são compartilhados e reconhecidos por todos e podem pensar em soluções
criativas para eles. De qualquer forma, a personagem da Suélen é muito
interessante, talvez a mais inovadora dessa novela, pois ela tenta uma saída
que envolve não só dois homens como também uma afirmação do homossexualismo.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4721&secao=406
“Estamos
vivendo cada vez mais numa sociedade de indivíduos”
Portanto, a
sociedade tem que aprender a viver ou conviver com famílias diferenciadas.
Por: Graziela
Wolfart e Thamiris Magalhães
Em entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line, Thierry Linard de Guertechin, demógrafo,
acredita que a família tradicional estável e com filhos está perdendo sua
hegemonia. “Pode também haver reinvindicações de constituir outros tipos de
famílias. Dois fatores exercem uma razão de causa a efeito e reciprocamente: a
nupcialidade e a fecundidade. Segundo o censo demográfico de 2010, das 81 milhões
de pessoas de mais de 10 anos que viviam um tipo de união conjugal (metade da
população de mais de 10 anos de idade), registram-se 51 milhões de pessoas
casadas legalmente e 30 milhões de pessoas vivendo em ‘uniões consensuais’”,
diz. E completa: “Há décadas que este efetivo não para de aumentar e tornou-se
matriz dos rearranjos familiares. Por outro lado, hoje, para quatro casamentos
celebrados, registra-se um divórcio no ano corrente”.
Thierry
Linard de Guertechin é jesuíta, nascido na Bélgica, residente permanente no
Brasil desde 1975. Sua formação básica é nas áreas de Filosofia e Teologia, com
mestrado em Demografia, pela Universidade Católica de Lovaina e em Geografia na
Universidade de Liège, Bélgica. Professor na PUC-Rio desde 1976 a 1996, no Departamento
de Sociologia e Ciências Políticas, foi diretor regional da Fundação Fé e
Alegria (1990-1997) e assistente espiritual da Ação Social Padre Anchieta –
ASPA, na favela da Rocinha. Exerce atividades de assessoria ao Setor Pastoral
Social da CNBB. Pesquisador e professor no Centro de Investigação e Ação Social
e no Instituto Brasileiro de Desenvolvimento – CIAS/IBRADES desde 1980.
Atualmente é diretor do CIAS/BRADES
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
No Brasil, a família tradicional (pai, mãe e filhos) já não é mais maioria
(49,9%). O que isso significa sobre as mudanças que a família vem sofrendo
atualmente?
Thierry
Linard de Guertechin – Não diria que a família tradicional está sofrendo alguma
coisa. Só que ela vê sua hegemonia diminuir em termos de maioria absoluta,
perdendo espaço na sociedade brasileira, pois assistimos a uma multiplicação e
diversificação de outros arranjos familiares. Se não me engano, do censo
demográfico de 2000 a 2010, no registro de tipos de famílias, passamos de 11 a
19, sendo 18 que se distinguem, no censo de 2010, da família tradicional
nuclear composta de pai, mãe e filho (s).
IHU On-Line –
O que representa para a família o fato de que as mulheres já assumem a
responsabilidade por muito mais lares do que há dez anos? Como o homem se
posiciona e se sente nesse novo cenário?
Thierry
Linard de Guertechin – O fato de famílias chefiadas por mulheres vivendo com
filhos é, na verdade, uma tendência que começou nas décadas anteriores, eu
diria nos anos 1960, e que está continuando a crescer. Hoje (no censo de 2010),
registram-se 8,5 milhões de famílias chefiadas por mulheres, seja 15,1% do
total das famílias. Elas eram da ordem de 12% há dez anos. Segundo pesquisas,
são famílias de baixa renda em sua maioria, o que foi comentado com a
feminilização da pobreza no Brasil. Como os homens se posicionam neste cenário
que não é tão novo? Observamos uma minoria de pais com filhos, da ordem de
2,3%. Por outro lado, os homens têm mais propensão que as mulheres em realizar
outra união depois da separação ou do abandono da mãe solteira.
IHU On-Line –
Que tipo de sociedade pode estar se formando com famílias onde muitos netos
estão morando com avós?
Thierry
Linard de Guertechin – Ainda bem que têm os avós que ajudam as famílias
monoparentais ou não, no mesmo domicílio ou não. O fato de a família estar
constituída de três gerações é de suma importância para seu bem-estar ou até
para sua sobrevivência. Em não poucos casos os avós estão contribuindo de
maneira significativa à renda familiar. Pode ser um resquício da família
composta do passado. Nesse caso, não seria uma novidade. Mas creio que a sua
permanência ou continuidade é resposta a uma situação nova por meio de arranjo
familiar antigo.
IHU On-Line –
O que esperar da família chamada “mosaico” (a do meu, do seu e dos nossos
filhos)?
Thierry
Linard de Guertechin – A família chamada “mosaico” resulta de histórias de vida
marcadas por uniões instáveis, separações e novas uniões, juntando os filhos
tanto de um parceiro como do outro. Um ponto final desse processo pode resultar
em famílias com padrastos e/ou madrastas tomando conta dos filhos dos antigos
parceiros. Trata-se de uma reorganização familiar que alguns qualificam de
desagregação, outros de rearranjo familiar pelas condições da vida. É uma
solução pragmática que permite manter um lar para crianças fruto de outras
uniões, solução mais desejável do que o abandono dessas crianças a sua sorte.
IHU On-Line –
Podemos afirmar que as novas famílias prenunciam um século diferente? Como seria
a sociedade do futuro a partir das novas constituições familiares?
Thierry
Linard de Guertechin – A sociedade tem que aprender a viver ou conviver com
famílias diferenciadas. A família tradicional estável e com filhos está
perdendo sua hegemonia. Pode também haver reinvindicações de constituir outros
tipos de famílias. Dois fatores exercem uma razão de causa a efeito e
reciprocamente: a nupcialidade e a fecundidade. Segundo o censo demográfico de
2010, das 81 milhões de pessoas de mais de 10 anos que viviam um tipo de união
conjugal (metade da população de mais de 10 anos de idade), registram-se 51
milhões de pessoas casadas legalmente e 30 milhões de pessoas vivendo em
“uniões consensuais”. Há décadas que este efetivo não para de aumentar e
tornou-se matriz dos rearranjos familiares. Por outro lado, hoje, para quatro
casamentos celebrados, registra-se um divórcio no ano corrente.
IHU On-Line –
Falou-se que a família iria acabar, tal como se disse quando a mulher
conquistou o direito ao voto. Entretanto, a família se adapta, se renova. Qual
a importância dos laços afetivos nesse sentido?
Thierry
Linard de Guertechin – Se a família tradicional não tem mais a maioria
absoluta, ela fica ainda bem representativa sendo modelo dominante de
referência a partir do qual se definem as novas formas de famílias. Os
pesquisadores chamam a atenção sobre as novidades e adaptações em termos de
arranjo familiar. De fato, apesar dos pesares, a família está formando um valor
para as pessoas. Movimentos femininos de emancipação têm seu papel na
transformação atual; isso gera efeitos também sobre as famílias tradicionais.
Trata-se de rever o papel da mulher em família na sociedade. A família faz
parte da sociedade, de uma sociedade que luta ou deveria lutar mais pela igualdade
entre homens e mulheres. Interessante é a percepção, no imaginário popular, de
muitas mulheres que não querem o casamento nem no papel no religioso, pois,
como dizem, “casar dá azar”. Nesse caso, o casamento é visto como um vínculo
que submete legalmente a mulher aos caprichos do marido. Pelo contrato de
matrimônio se fixa uma situação desigual que perdura e perde a flexibilidade de
união mais informal. Também é verdade que muitos homens não estão dispostos a
assumir compromissos, o que é outra forma de desigualdade. Uma última forma de
adaptação que evidencia a busca de laços afetivos, mas dentro de uma sociedade
em que o dinheiro e o indivíduo são sobrevalorizados, é a família “DINC” .
Morando ou não juntos, trata-se de uma união afetiva de “duplo ingresso nenhuma
criança”. Duplo ingresso significa que cada um tem o seu rendimento e/ou
trabalho com o projeto de não ter filhos.
IHU On-Line –
Quais as instituições sociais que mais devem se readaptar às novas formas
familiares do século XXI? Qual deve ser a postura da Igreja nesse sentido?
Thierry
Linard de Guertechin – Se o último tipo de família se torna hegemônico, a
sociedade vai encontrar dificuldades para sobreviver e garantir a sobrevivência
da sua própria população envelhecida. Nas evoluções da nupcialidade, da
fecundidade e das famílias, não é fácil determinar se é o ovo que vem da
galinha ou se é a galinha que vem do ovo. Um fato seguro é a queda da
fecundidade da mulher que, no Brasil, passou de mais de 6 a menos de 2 nascidos
vivos por mulher, isso em 50 anos, quer dizer em duas gerações! Por outro lado,
o Código Civil já, em parte, se adaptou às outras formas de famílias que a
tradicional. Reconhecem os direitos dos cônjuges. Mas sempre o direito vem
depois das mudanças de costumes. Por outro lado, segmentos da sociedade não
reconhecem algumas formas de arranjos familiares negando a esses o nome de
“casamento” e os direitos (e deveres?) consequentes.
Posição da
Igreja
A Igreja
manifesta reservas nítidas diante dessa diversidade e multiplicação de famílias
de tipos diferentes da família tradicional que conhecemos no passado como
hegemônica. Mas não podemos, no concreto da vida, idealizar a família
tradicional, pois, segundo eminentes canonistas, o matrimônio católico sofre,
em não poucos casos, de validade canônica. Abre-se aqui um campo pastoral para
uma melhor compreensão da vida do casal e a celebração do sacramento do
matrimônio. Para concluir, uma inquietação: estamos vivendo cada vez mais numa
sociedade de indivíduos.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4722&secao=406
“Há uma
hierarquia racial na sociedade”
José Luis
Petruccelli destaca que o fator raça intervém fortemente na escolha da pessoa
para casar
Por: Graziela
Wolfart e Thamiris Magalhães
Segundo o
censo 2010, as mulheres pretas são as que menos se casam. Na opinião do
pesquisador do IBGE, José Luis Petruccelli, isso acontece porque “a sociedade
tem preconceitos em termos de valores, de beleza, de prestígio, de padrões
europeus, no sentido de que o branco e loiro é mais bonito do que outro tipo de
aparência física. Esses valores predominantes fazem que as pessoas
aparentemente tenham um ‘capital’ diferenciado na hora de serem escolhidas como
parceiros para formar casais”. Na entrevista que aceitou conceder por telefone
para a IHU On-Line, Petruccelli explica que “os dados mostram – e isso já vem
de outras pesquisas – que as mulheres brancas têm uma taxa de nupcialidade mais
elevada que as pardas e estas com uma taxa mais elevada que as pretas. Há um
número de mulheres que nunca se casaram aos 50 anos de idade, que é de 10
pontos percentuais mais elevados para as mulheres pretas do que as mulheres
brancas”. E continua: “se a maioria das pessoas de cor ou raça branca se casa
entre ela, fica sobrando pouco para as iniciativas de miscigenação por meio do
casamento inter-racial. Por exemplo, por que as mulheres pretas se casam menos
com homens brancos? Porque há um estigma social”.
José Luis
Petruccelli é doutor em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales de Paris, França, e mestre em Demografia pela School of
Hygiene and Tropical Medicine, de Londres. Pesquisador do Departamento de
Indicadores Sociais da Diretoria de Pesquisas do IBGE, suas áreas de atuação
recentes são: desigualdades raciais, identificação étnico-racial, políticas
públicas de ação afirmativa, categorias de classificação étnico-racial.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line –
Como entender que 70% dos casamentos no país ocorrem entre pessoas de mesma
cor?
José Luis
Petruccelli – Em primeiro lugar, é importante destacar que esse não é um fato
novo, deste censo 2010. Isso vem sendo verificado já desde o censo de 1980 e
com a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – PNAD da década de 1990. O
censo mais recente reforça essa tendência de seletividade na hora da escolha do
parceiro para formar o casal, que já vem de longa data. O fator raça intervém
fortemente na escolha da pessoa para casar.
IHU On-Line –
Então a raça é realmente um fator predominante na escolha de parceiros
conjugais?
José Luis
Petruccelli – Nas décadas de 1980 e 1990 o patamar dos casamentos no país que
ocorriam entre pessoas de mesma cor era em torno de 80%. O censo de 2000 e o
censo de 2010 mostram uma tendência um pouco decrescente, mas muito pouco
ainda, chegando ao patamar de 70%, que ainda é um percentual considerado
bastante elevado, porque o padrão de comparação é feito com a pergunta de qual
seria esse percentual caso as escolhas não fossem determinadas pela raça do
parceiro. E aí chegamos ao valor estimado de pouco mais de 40%. Entretanto,
como o valor apontado pelo censo é em torno de 70%, isso indica que as escolhas
não são aleatórias, ou seja, a raça é um fator determinante.
IHU On-Line –
Isso tem a ver com a questão do racismo também?
José Luis
Petruccelli – Sim. É o que chamamos de racismo estrutural. Não é que o
comportamento das pessoas seja racista individualmente. É que toda a estrutura
socioeconômica leva a comportamentos que induzem à reprodução das relações de
dominação pelos grupos que estão nos lugares dominantes da sociedade, lugares
de maior prestígio. A estratégia desses grupos é de reprodução.
IHU On-Line –
O casamento entre pessoas de mesma cor ou raça é maior/ mais comum entre quais
raças?
José Luis Petruccelli
– Há uma questão metodológica envolvida aqui. Os grupos não têm tamanhos
equivalentes, ou seja, pouco menos da metade da população se declara como que
de cor branca. Em torno de 40% se declara de cor parda e em torno de 7% se
declara de cor preta. Então, esses grupos são de tamanhos diferentes e esses
tamanhos também incidem no resultado da participação no mercado matrimonial. Os
números e taxas brutas indicam que o branco tem maior taxa de endogamia, que é
a tendência de se casar dentro do mesmo grupo. Depois, seguida pelos de
raça/cor parda e em terceiro lugar pela de cor ou raça preta.
IHU On-Line –
Em que sentido esses dados desconstroem o mito da altíssima miscigenação da
harmonia racial?
José Luis
Petruccelli – No sentido de que os dados mostram que não há tal harmonia. Por
exemplo, nos Estados Unidos se fala em uma sociedade color blind, em que a raça
não seria um fator que intervém nas relações sociais. Isso mostra como as
pessoas são classificadas e percebidas de acordo com o grupo étnico-racial ao
qual pertencem e, por isso, sofrem comportamentos bem diferenciados. Ou seja,
têm regiões em que os brancos usufruem de vantagens notórias em relação ao
acesso aos melhores postos de trabalho, às melhores universidades, etc. E
outros grupos são relativamente menos favorecidos e acabam preteridos nessas
opções. Há uma hierarquia racial na sociedade.
IHU On-Line –
Considerando estes dados, o que esperar da miscigenação e da mobilidade social
no Brasil para os próximos anos?
José Luis
Petruccelli – Esses dados que foram divulgados agora são da amostra do censo
2010. Não é um estudo aprofundado sobre cada um dos temas. Para responder a
essa pergunta, vou usar outros estudos e outros levantamentos. Por exemplo, com
os levantamentos das PNADs, verificou-se que as gerações mais jovens têm uma
tendência menor à endogamia do que as gerações mais velhas. Talvez a tendência
seja reduzir a endogamia, ou seja, ampliar as uniões inter-raciais. Mas é
preciso verificar essa tendência para ver se ela se confirma com o tempo.
IHU On-Line –
Segundo o censo 2010, as mulheres pretas (7% da população) são as que menos se
casam. Em sua opinião, por que isso acontece?
José Luis
Petruccelli – Porque a sociedade tem preconceitos em termos de valores, de
beleza, de prestígio, de padrões europeus, no sentido de que o branco e loiro é
mais bonito do que outro tipo de aparência física. Esses valores predominantes
fazem que as pessoas aparentemente tenham um “capital” diferenciado na hora de
serem escolhidas como parceiros para formar casais. Os dados mostram – e isso
já vem de outras pesquisas – que as mulheres brancas têm uma taxa de
nupcialidade mais elevada que as pardas e estas com uma taxa mais elevada que
as pretas. Há um número de mulheres que nunca se casaram aos 50 anos de idade,
que é de 10 pontos percentuais mais elevados para as mulheres pretas do que as
mulheres brancas.
IHU On-Line –
Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
José Luis
Petruccelli – Nós falamos aqui sobre a endogamia e o casamento de pessoas entre
a mesma raça com taxa elevada, mas gostaria de destacar que o grupo que se
identifica como de cor ou raça branca utiliza esse mecanismo como estratégia de
sobrevivência e reprodução, afinal é um grupo privilegiado dentro da sociedade.
Por isso que a tendência é de haver mais casamentos dentro desse grupo racial.
Os outros grupos não usam o mesmo tipo de estratégia. Se a maioria das pessoas
de cor ou raça branca se casa entre ela, fica sobrando pouco para as
iniciativas de miscigenação por meio do casamento inter-racial. Por exemplo,
por que as mulheres pretas se casam menos com homens brancos? Porque há um
estigma social, situações nas quais um casal formado por um homem branco e uma
mulher preta é visto com preconceito, e se depara com afirmações do tipo “ah,
ela deve ser prostituta” ou “deve ser só um encontro casual”.
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4723&secao=406