9 de abril de 2012

Nada como um dia após outro.

“Nada como um dia após outro com uma noite no meio e a graça de Deus pingando de hora em hora”. Dito de João Virgílio, camponês da Liga Camponesa de Sapé preso e torturado pela ditadura militar, em seu depoimento sobre o Engenho Galiléia no filme "Cabra marcado para morrer".

"Para que não se imagine como trivial a relação íntima entre a linguagem sobre Deus e a vida social/eclesial, observo que algumas das lutas mais ferozes em comunidades eclesiásticas se dão em torno do culto e da liturgia, em que a maioria das pessoas se encontra com a religião. Os católicos descobrem isso tanto no nível de paróquia como no Vaticano, onde são travadas algumas das mais brutais batalhas envolvendo a linguagem a ser incluída na Missa ou as imagens a serem “permitidas” na oração.
É difícil explicar, com guerras destruidoras, pessoas morrendo de fome e um planeta em perigo, por que pessoas religiosas perderiam seu tempo com essa aparente tolice. Mas quando se compreende que as palavras – cada palavra medida – refletem crenças e compromissos que moldam estruturas sociais, vê-se que as batalhas sobre palavras no culto não são em absoluto triviais. Por exemplo, o emprego de expressões como “todos os homens” ou “todas as pessoas” na vida litúrgica significa a diferença entre excluir ou incluir as mulheres da consideração como seres humanos plenos. Na medida em que as mulheres são excluídas da igreja, há uma permissão implícita e, em muitos casos, explícita para excluí-las na sociedade. Embora isso pareça uma questão do século passado, sinto ter de informar que ela ainda está viva e bem viva em muitos lugares hoje.
Imagine um mundo em que o divino fosse compreendido como Amigo em vez de Pai, como Fonte em vez de Senhor, como Pacificador em vez de Soberano, como Cidadão em vez de Rei. Isso é apenas o começo. Imagine se fôssemos capazes de pensar fora do molde cristão para ver o divino nas incontáveis expressões da força vital que nos circunda."
Discurso feminista sobre o divino em um mundo pós-moderno. Mary E. Hunt.

"Os camponeses têm sofrido perseguições políticas e sociais, opressões ideológicas e religiosas e formas diversas de exploração econômica. É difícil se encontrar um período da história humana, história essa onde sempre estiveram presentes os camponeses nas suas mais variadas formas de organização social e de se relacionar com a natureza, sem que o tratamento dispensado aos camponeses não fosse rebuçado pelo desdém e pela humilhação". O campesinato contemporâneo como modo de produção e como classe social. Horacio Martins de Carvalho

A sabedoria do camponês nordestino João Virgílio, das antigas Ligas Camponesas, massacradas pelo latifúndio assassino para garantir uma sobrevida ao capitalismo, fala da vida como graça e dom de Deus. Ele fala deste Deus que se pôs ao lado dos camponeses sem terra escravos no Egito e se tornou camponês sem terra na Palestina em Jesus Cristo e foi morto pelos poderosos latifundiários que controlavam o Sinédrio como o foi também João Pedro Teixeira em 2 de abril de 1962 a mando do latifúndio.

Este mesmo latifúndio assassino que continua presente no poder como nos conta a notícia a seguir:
"A nomeação para o Ministério das Cidades do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) põe a nu as entranhas da aliança entre o “moderno” e o “atrasado” e explicita a natureza e o caráter deste governo de coalizão. O sociólogo Luiz Werneck Vianna diz: "O deputado Aguinaldo Ribeiro é neto do tristemente famoso usineiro Aguinaldo Velloso Borges, chefe de baraço e cutelo do agreste paraibano, acusado de mandar matar, em 1962, João Pedro Teixeira, uma das maiores lideranças dos trabalhadores do campo, então à frente da Liga Camponesa de Sapé, quando se destacou nacionalmente pela firmeza na defesa dos direitos da sua categoria social. Em 1983, o mesmo usineiro Aguinaldo foi, mais uma vez, apontado como responsável por mais um crime político, pois era disso que se tratava, com o assassinato sob encomenda de Maria Margarida Alves, símbolo das lutas feministas no País, cultuada na Marcha das Margaridas, que desde 2000, anualmente, desfila em avenidas de Brasília"."

O passado continua presente na luta pela terra e na luta pela justiça em relação aos assassinatos cometidos pela ditadura militar de 64 na atual luta da Comissão da Verdade, combatida pelos de farda agora em pijama que não querem ir ao banco dos réus pelos assassinatos e torturas que praticaram para dar sobrevida ao capitalismo. O passado também continua presente no poder para reproduzir o poder do latifúndio e do capital. Os opressores sempre tornam as vítimas culpadas pela sua morte causada pelos opressores. João Pedro Teixeira e Margarida Alves são culpados de seu assassinato por não se curvar ao latifúndio. Os 436 brasileiros e brasileiras que lutaram pela democracia e que foram assassinados pela ditadura são culpados pela sua morte porque não se curvaram diante da ditadura a serviço do capitalismo. Jesus é culpado pela sua cruz porque não falou o que o Templo queria e o que o Império Romano deixava. Se estas vítimas tivessem se curvadas diante do poder do capital estariam vivas como os que se venderam ao sistema apoiando o golpe militar, é o argumento do opressor. Os que se venderam para a ditadura militar e continuam se vendendo hoje para o capital ainda não fizeram o seu mea culpa pública e ao que me parece não o farão, pois querem hoje posar de democratas para continuar no poder e defender a todo custo os interesses do capital. Toda essa corja de assassinos e traidores da pátria e seus aduladores (dos quais a igreja está repleta) hoje falam da democracia com a boca cheia e sem sequer ficar vermelhos de vergonha. Nas eleições deste ano temos que lembrar bem e bem alto os partidos originários da antiga ARENA. Nenhum destes partidos fez até hoje o seu mea culpa por ter sido em sua origem sustentáculo da ditadura militar (PP, PSD, Democratas), apostam na amnésia popular e na despolitização do povo. No entanto os assassinados preferiram trilhar o caminho de Jesus, a cruz, que também nós somos convidados a trilhar.

Estamos falando aqui do poder dos poderosos que é reproduzido também pelos não poderosos como nos relata Mary E. Hunt em seu texto sobre a forma de se expressar. A palavra produz vida e produz morte. A palavra inclui e também exclui. A palavra faz existir e faz não existir. Gn 11 fala disto dizendo que todos tinham a mesma linguagem e por isso construíram a cidade e a torre. Quando a pessoa oprimida assume a palavra, a linguagem (ideologia), do opressor ela também reproduz o sistema opressor e lhe dá sustentação. Javé em Gn 11 propõe acabar com a linguagem única, hoje chamada Ditadura do Pensamento Único que legitima e reproduz a Ditadura do Capital. A palavra, a linguagem (também como ideologia), é multifacetária, multicultural e multiétnica e não pertence somente a um gênero: pertence à mulher e ao homem, iguais e livres.

É pela palavra, mais do que pela prática diaconal, que a igreja proclama o Evangelho do Reino de Deus. É usando a palavra do ponto de vista do opressor que a igreja normalmente proclama o Evangelho. Falo só em Evangelho, pois ela pouco fala do Reino de Deus, que é a mensagem central de Jesus Cristo conforme Lc 4.43. Por que? Porque o Evangelho do Reino de Deus faz parte da utopia camponesa que tem suas raízes fincadas desde as lutas camponesas do AT e se encarna no movimento camponês guiado pelo camponês Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Por isso a igreja optou em falar apenas em Jesus Cristo e muito pouco no Evangelho do Reino de Deus e a igreja romana até sugere que se diga apenas: Cristo, porque o Jesus histórico é muito subversivo. Imagine Javé se torna classe camponesa em Jesus de Nazaré e não fala a linguagem da oficialidade religiosa. Não reproduz a teologia oficial, muito pelo contrário, abertamente desobedece as leis religiosas e não se submete à hierarquia, pior ainda, enfrenta publicamente a hierarquia e deixa a hierarquia sem resposta diante das questões que este camponês leigo coloca, galileu ainda por cima. É uma afronta à ordem! Como falar deste Jesus histórico, que nem sacerdote era, e foi morto como subversivo e herege por não se submeter à hierarquia religiosa. Como uma instituição religiosa pode falar de alguém assim, isto seria legitimar a heresia e a subversão e acima de tudo a desobediência. Esta ordem veio de Roma após o padre espanhol José Antonio Pagola ter publicado seu livro: "Jesus. Aproximação Histórica", aqui no Brasil pela Vozes. É a utopia camponesa sendo pedra de tropeço para a oficialidade eclesiástica. É a tentativa de crucificar o Jesus histórico pela segunda vez, agora na forma de sua palavra; coisas da oficialidade. Também, mania de Javé se tornar peão em vez de patrão. Se Javé tivesse se tornado patrão tudo seria muito mais fácil, não haveria toda esta necessidade e trabalheira de esconder a opção classista camponesa de Javé em Jesus Cristo. Está na hora de excomungar Javé da igreja, por desobediência eclesiástica! No mínimo condená-lo ao voto do silêncio: não pode mais dar aulas, nem fazer palestras e nem escrever e publicar seus textos.

A linguagem da vida falada pelo camponês João Virgílio é a linguagem de Deus. Linguagem encarnada na mulher do João Pedro Teixeira, a Elisabeth Teixeira, que continuou a luta da Liga Camponesa de Sapé e de todo o movimento camponês a nível de país. Cai um e a outra continua a caminhada. Mas a repressão não tem gênero e nem etnia, apenas classe (o homem assume e reproduz o papel da classe opressora, hoje capitalista, ao reprimir a mulher), é igual para todos que sonham o sonho de Deus em construir a vida livres. Antes de haver propriedade privada dos meios de produção e, portanto classes sociais, a mulher era tratada de outra forma e tinha outro espaço na sociedade. Por isso a camponesa Elizabeth Teixeira teve que cair na clandestinidade e ressurgir apenas 20 anos depois.

Interessante notar que muitas das lideranças das Ligas Camponesas eram da igreja batista, que por ela também foram abandonados; coisa típica de igreja que fala apenas na salvação individual sem compromisso de luta coletiva em favor do Reino de Deus. Salvação individual sem uma inserção num coletivo que luta pelo Reino de Deus é pura fantasia. Quando alguém diz 'eu sou salvo' e 'tenho Jesus no coração' então isto tem que mudar o preço do feijão que o camponês vende, tem que mudar o valor do salário mínimo num salário justo, tem que desencalhar a reforma agrária e tem que pôr os torturadores do tempo da ditadura militar nos banco dos réus. Caso isto não aconteça ou comece este processo de mudança, eu não tenho Jesus no coração e nem sou salvo. É conversa ingênua e farisaica. Mais ingênua e farisaica é a igreja que prega tal 'evangelho' da salvação individual sem compromisso de luta concreta em favor do Reino de Deus que pressupõe uma nova sociedade não capitalista. Crer no evangelho sem se arrepender é a tentativa dos cristãos, o que na verdade é impossível, pois o arrependimento é intrínseco à fé no Evangelho. Além disto, este evangelho não é o Evangelho do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo, é o evangelho da prosperidade, da bênção de Deus em forma de riqueza para o tal 'crente'.

Uma palavra de Frank Cassano, citado por Horacio Martins de Carvalho em "O campesinato contemporâneo como modo de produção e como classe social" ajuda a entender o sucesso da teologia da salvação individual, dentro do modelo neoliberal do capitalismo, que a igreja reproduz, não sei se ingenuamente ou deliberadamente, para reafirmar o capitalismo como única forma de organização social. “Mas seria profundamente equivocado limitar-se a observar só o que acontece nas altas camadas da sociedade, o conflito entre as elites. Se a contra-ofensiva liberal tivesse ficado nas instâncias do novo poder não teria conseguido se afirmar, como aconteceu depois, e teria se encontrado diante de uma imensa massa de inimigos. Em vez disso, ela desbaratou o adversário porque se mostrou capaz de produzir uma forte e capilar hegemonia. A grande narrativa que ela propõe sabe falar também ao povo, porque colocou no centro do imaginário o tema da afirmação individual, do sucesso: para realizar os nossos sonhos, não precisamos dos outros, mas só de uma grande confiança em nós mesmos. O vínculo com os outros pode apenas nos bloquear, enquanto, se formos completamente indivíduos, um mundo inteiro está à disposição”. Esta é a grande e diabólica ilusão (se formos completamente indivíduos, um mundo inteiro está à disposição) que procura inviabilizar o projeto da utopia camponesa proclamada por Jesus Cristo: o Reino de Deus. A igreja só se entende como um coletivo, mas proclama a individualização da salvação como a salvação de todos, esta é a sua contradição que fortalece o sistema capitalista. Crê em Jesus Cristo e serás salvo, é o anúncio eclesial que não aponta para nada além do individual e do compromisso inerente à fé em Jesus Cristo que aponta para a construção coletiva do novo, que é o Reino de Deus. A igreja não consegue nem ligar a fé em Jesus Cristo à Ceia do Senhor que aponta para um novo projeto comunitário de economia e prática política organizacional, a partir da fé em Jesus Cristo, onde a comida e a bebida estão para todos. Até isto a igreja católica romana perverteu, um pouco mais, em só dar um dos elementos ao povo: o pão e subtraindo o vinho. Com isto está dizendo que não existe a possibilidade de haver comida e bebida para todos e nem nova sociedade utópica onde isto será possível, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus. Isto mostra que o anúncio da igreja é, no mínimo, manco e carece de clareza teológica. Clareza teológica é algo prescindível na igreja, assim o capitalismo pode ditar os dogmas teológicos, à ele inerentes e que lhe interessam, e determinar a missão da igreja para favorecer ao capital. Por isso, cristãos e teólogos, não leiam e nem estudem mais nada, afinal vocês tem tão pouco tempo porque o trabalho absorve todo o vosso tempo. A agenda precisa ser cumprida. Deixem que o capital determine a vossa teologia. Deixem que o capital pense por vocês.

A grande sagacidade do capitalismo neoliberal foi no dizer de Frank Cassano: "colocou no centro do imaginário o tema da afirmação individual, do sucesso: para realizar os nossos sonhos, não precisamos dos outros, mas só de uma grande confiança em nós mesmos". Está aí o sucesso das igrejas pentecostais que falam para dentro deste tema: o nosso egoísmo e a nossa ganância agora são coisa sagrada e Deus tem a obrigação de satisfazer os nosso desejos de consumo de mercadorias. Quanto mais consumo de mercadorias melhor para o capital, pois é no processo da produção da mercadoria que se extrai ao mais valor, o capital. A IECLB que não fala esta linguagem, ao menos oficialmente, porque há uma onda pentecostalizante também na nossa igreja, muito furtiva e escondida na nova geração do Movimento Encontrão. Os históricos do Movimento Encontrão estão alertando para isto, apontando principalmente para as bases leigas e alguns pastores, mas a igreja não está muito preocupada com isto até que a coisa ficar fora do controle e aí já era. Em Passo Fundo o Movimento Encontrão foi afastado da paróquia e as lideranças insatisfeitas foram para a igreja pentecostal Bola de Neve. Isto significa que a teologia pregada na paróquia era pentecostal, caso contrário os insatisfeitos não iriam para uma igreja pentecostal. Em outros lugares lideranças leigas de nossa igreja abriram a sua própria igreja luterana de viés pentecostal, porque o que ouviram da pregação do Movimento Encontrão os levou para este lado. Os sinais estão aí, claros. O pessoal da direção da igreja sempre viu no pessoal da Teologia da Libertação uma ameaça, porque denunciam o sistema capitalista, mas não foi o pessoal da TdL que criou o cisma na igreja. Foi o Movimento Encontrão que gestou o Movimento Carismático que fez um monte de sacanagens e depois caiu fora, finalmente. Na leitura que eu faço das coisas esta história ainda não terminou, pois está sendo gestado em silêncio outro rombo a longo prazo, espero que eu esteja enganado. Qual a posição do Movimento Encontrão diante dos textos do Werner Dietz e do Renato Becker? Espero que a resposta não seja: não é bem assim, mas eu acho que nem vai ter resposta. O que é péssimo e mostra falta de coragem.

Temos que dar mais atenção à linguagem nos, adverte Gn 11, é o que também sugere Mary E. Hunt dizendo: "Imagine um mundo em que o divino fosse compreendido como Amigo em vez de Pai, como Fonte em vez de Senhor, como Pacificador em vez de Soberano, como Cidadão em vez de Rei".
As expressões patriarcais são muito fortes na Bíblia, não só patriarcais, mas também opressoras em se referir a Deus. Falar de Deus como rei é no mínimo contraditório porque ele era contra a existência de reis e monarquias, que são o resultado da desigualdade e da existência de uma sociedade dividida em classes sociais que gera a necessidade de um estado. Falar de Deus como rei é o resultado da concentração da terra que gerou o latifúndio que por sua vez necessitava do rei para proteger e legitimar o latifúndio. Os escritores bíblicos usavam esta linguagem patriarcal e das instâncias de poder por se verem limitados a expressar e mostrar Deus como aquele que tem poder e usaram como exemplo o poder que havia na época: o rei. São palavras de pessoas falhas e culturalmente inseridas no mundo patriarcal para falar de Deus. É também o caso de Paulo e suas expressões em relação à mulher, onde uma vez coloca a mulher como submissa (Ef 5.22-23: As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo.) e outra vez a coloca como igual (Gl 3.28: Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.).

Hoje não tem porque falar de Deus como rei e nem como homem somente. Hoje tem sentido falar de Deus como Cidadão, como Amigo, Companheiro, que também são expressões do e no masculino; melhor seria falar de Deus como Cidadão/Cidadã, Amigo/Amiga, Companheiro/Companheira, Pai/Mãe. Como todos nós, inclusive Moisés, fomos educados na escola do Faraó isto tudo nos soa entranho. É difícil se desvencilhar das expressões masculinas de Deus, sendo que quem gesta a vida é a mulher a partir de um consenso com o homem, quando ela não é violentada. A obra criadora do ser humano é tanto da mulher como do homem. Em galinheiro em que não há galo não nascem pintos, mas para nascerem pintos tem que haver uma galinha para por os ovos fecundados. As coisas são interdependentes e de poderes iguais, um não existe e nem se reproduz sem o outro. Assim, no nosso fraco e limitado compreender Deus é feminino e masculino ao mesmo tempo. Por causa do nosso fraco e limitado compreender da realidade criada por Deus não conseguimos entender também quando alguém que é homem quer ser mulher ou se expressar como tal e quando uma mulher quer ser homem ou se expressar como tal. Deus sendo feminino e masculino ao mesmo tempo para nós cheira a gay, por causa da educação preconceituosa e torta que temos. Mas, se tivermos amor ele nos guiará e nos fará compreender o incompreensível e superará todo e qualquer preconceito e incompreensão fundamentalistas. Jesus resume isto em Mc 12.29-33: "Respondeu Jesus: O principal é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. Disse-lhe o escriba: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que ele é o único, e não há outro senão ele, e que amar a Deus de todo o coração e de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e sacrifícios". Que este amor, a Deus e ao próximo, nos guie em nossos relacionamentos e entendimentos. O amor anula nossos preconceitos formados a partir da cultura e da classe.

Como falar da vida do ser humano sem diminuí-la por causa da cultura, da economia, do gênero? O processo da libertação é amplo e complexo e atinge a todos e todas nós. O arrependimento, que Jesus exige em Mc 1.15, cabe a todos e todas nós. Arrependimento é mudança diária e aí se inclui a mudança de linguagem, para construir uma linguagem inclusiva; algo que precisa ser treinado diariamente e a gente mesmo tem que se fiscalizar nisso.

Jesus era do sexo masculino. Deus (Amigo ou Amiga, Criador ou Criadora, Pai e Mãe) e o Espírito Santo são de que sexo? Podemos discutir muito sobre isto, mas o que Deus quer é a libertação de todas as opressões, quaisquer que sejam: de gênero ou de classe. O que sabemos é que Deus tem opção de classe: opção pela classe oprimida, para a partir dela acabar com a sociedade de classes. Por isso ele se tronou um camponês em Jesus de Nazaré, para mostrar a sua opção de classe, porque ele é contra toda e qualquer sociedade construída em cima de classes sociais antagônicas. Javé opta pela classe oprimida para a partir dela acabar com a sociedade de classes. O que Deus quer é a sua graça pingando de hora em hora num ritmo diário ininterrupto para a vida das pessoas, como o sugere o camponês João Virgílio. É só isso que nós também queremos. Não queremos opressão econômica, política, ideológica, religiosa, cultural e de gênero; queremos apenas viver plena, livre e dignamente na graça de Deus como suas criaturas que recebem os pingos diários da graça de Deus.

De fato a opressão de gênero faz parte da opressão de classe, em que o homem assume a opressão que sofre por parte do patrão e a repassa para a mulher. O homem reproduz a sociedade de classes dentro de casa, achando que ele agora é o patrão. Já que no trabalho ele se tornou objeto, mercadoria, vendável a preço barato, mas agora quer ser gente e gente com cabeça de patrão que reproduz esta ideologia oprimindo em casa a mulher. O oprimido não conhecendo outra forma de relacionamento, além de ser mercadoria alienada, assume o jeito do patrão em casa tratando a mulher como sua mercadoria, assim como ele é tratado pelo patrão, pois ali ele é mercadoria do patrão. O Evangelho quer-nos libertar desta opressão infame em que o oprimido vira opressor por não conhecer outro relacionamento além da de mercadoria e da do capital. O Evangelho propõe outro relacionamento entre as pessoas a partir do amor. O amor exige o aniquilamento da opressão, qualquer que seja. O amor conduz ao fim da opressão, que obviamente vai resistir em se deixar anular. O amor é revolucionário. Vemos isto no amor de Deus revelado na história da humanidade em Jesus Cristo na cruz e na ressurreição.

A classe camponesa oprimida secularmente, à qual o camponês João Virgílio pertence, tem sido desprezada ao longo da história e a sua sabedoria ignorada e abafada, mas ao mesmo tempo a classe camponesa sempre foi temida. Temida porque tem dentro dela um sonho embutido: uma terra onde a vida é livre e digna, semelhante à Terra sem Males dos guaranis. A história nos mostra isto na Guerra dos Macabeus, em 167 antes de Cristo, passando pelos grupos considerados heréticos da Idade Média, as Guerras Camponesas na Alemanha e em toda a Europa do tempo de Lutero, na Guerra de Canudos, Contestado, Mucker, das Ligas Camponesas dos anos 50-60 e nos vários Movimentos Sem Terra e camponeses (MPA, MAB, MMC) de hoje, incluídos aí os movimentos indígenas que também lutam pela terra. O medo da classe dominante se mostra pela reação diante destes movimentos de resistência: a reação sempre foi de violento massacre e extermínio (hoje o extermínio é pelo êxodo rural que parece que não tem fim e se metamorfoseia a cada década). Por que? Por dois motivos: um porque a terra não é apenas terra, mas poder (é meio de produção e reprodução do capital que precisa estar concentrado na mão da classe dominante), o outro é que a classe camponesa já venceu muitas batalhas e já começou a construir muitos projetos ao longo da história da humanidade e forneceu lideranças fenomenais. Projetos muito conhecidos pela humanidade como a Revolução Francesa, onde a classe camponesa foi fundamental junto com o proletariado, a Revolução Russa, a Revolução Chinesa, a Revolução Cubana, a Revolução Sandinista, a Revolução Mexicana, a Revolução Vietnamita, onde um exército de camponeses venceu o mais poderoso exército do Planeta, as Revoluções de independência na África dos anos 60-70 foram compostas por camponeses. No Brasil o próprio Lula foi um camponês que virou operário e nunca esqueceu o sofrimento de sua infância camponesa e porque teve que migrar para São Paulo.

O movimento camponês está imbuído desta sabedoria do camponês nordestino João Virgílio: “Nada como um dia após outro com uma noite no meio e a graça de Deus pingando de hora em hora”. É esta sabedoria que lhe dá força para a resistência na procura de um novo projeto para a humanidade. Esta palavra mostra o imenso poder de resistência da classe camponesa. O tempo vai passando e o movimento camponês vai se reciclando conforme o momento histórico e vai permanecendo presente teimosamente no processo histórico da humanidade. Neste momento histórico o movimento camponês está melhor organizado que o movimento urbano de resistência ao capital.

E é bom não esquecer que Javé se fez camponês em Jesus de Nazaré e foi uma ameaça ao poder dominante e deste camponês surge um novo movimento que já dura 2 mil anos. Este movimento, a igreja, foi construído, como processo de resistência ao Império, a partir de mulheres, escravos, camponeses sem terra, diaristas e estrangeiros em sua maioria. De tão perigoso que é este movimento camponês que desembocou no Reino de Deus que precisa constantemente ser vigiado e cooptado porque senão ele vai acabar com a opressão de classe que há na sociedade. Além disso, o projeto deste Deus camponês Jesus, chamado o Cristo, é uma nova sociedade, que ele chama de Reino de Deus, onde as pessoas são irmãs. Pode haver algo mais perigoso do que uma sociedade de irmãos e irmãs perante esta sociedade opressora dividida em classes sociais? Nesta nova sociedade, chamada de Reino de Deus, as questões e diferenças de gênero vão desaparecer, como diz Paulo em Gl 3.28, pois não haverá mais "nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus".

A mensagem e a dinâmica original do cristianismo brotam da classe camponesa e é repensada para a realidade urbana pelos apóstolos e apóstolas da igreja primitiva. Estes escolheram as cidades para reproduzir com maior velocidade a mensagem do camponês Jesus de Nazaré que aponta para a construção de uma nova sociedade sem classes sociais, fraterna, igualitária e sem Estado (porque este é o aparelho de uma classe para subjugar outra e brota da desigualdade social - isto não haverá mais no Reino de Deus que já começou). Proposta assim só pode brotar do meio de uma classe oprimida que era e continua sendo a classe camponesa.
Assim, a origem da igreja cristã está no campesinato e na utopia camponesa desde a história de luta dos sem terra escravos hebreus contra o Estado egípcio, passando pela experiência igualitária nas montanhas da Palestina onde se formou o povo de Israel a partir de vários grupos camponeses migrantes, passando pelo movimento profético de origem camponesa durante a monarquia israelita e desembocando no próprio camponês Jesus Cristo, cujos discípulos e discípulas foram camponeses que transmitiram o seu Evangelho do Reino de Deus com eficácia, a partir do campo e da cidade, a tal ponto que chegou até nós hoje. Ninguém acaba com a utopia camponesa que Jesus chama de Reino de Deus! Na mesma medida da resistência desta utopia é a repressão que cai em cima daqueles que alimentam esta utopia e procuram realizá-la na prática. Perseguição, cooptação, prisão, tortura e assassinato foram os métodos usados historicamente, também pela igreja, contra o campesinato para acabar com esta utopia camponesa que se expressa na história de várias maneiras. Para ver isto sugiro ler o livro "História do Socialismo e das Lutas Sociais" de Max Beer da Editora Expressão Popular.

Esta utopia camponesa do Reino de Deus, por ser extremamente perigosa e por ser revolucionária, é usada e abusada pela classe dominante de hoje para desfocar o ponto de chegada que é a esperança da construção do Reino de Deus que é composto por uma nova sociedade não classista e não capitalista. Neste papel de desfocar o objetivo primeiro do Evangelho do camponês Jesus Cristo a igreja cristã tem tido papel preponderante, mas nunca conseguiu acabar com esta utopia camponesa do Reino de Deus que está revelada no Evangelho de Jesus Cristo. O papel principal da igreja tem sido desfocar e desviar o seu conteúdo insurgente e revolucionário para uma proposta de salvação individual já aqui agora focado no egoísmo e na ganância da riqueza capitalista fora de um contexto coletivo de luta pelo Reino de Deus que aponta para a construção de um novo conceito de humanidade que pressupõe a fraternidade e a igualdade. O instrumento, igreja, que se diz de origem divina é o instrumento que o diabo usa para inviabilizar o projeto divino do Deus tornado camponês em Jesus de Nazaré. Mas mesmo dentro deste instrumento igreja, quando usado contra o Reino de Deus, sempre continua existindo a resistência à cooptação porque o Espírito Santo sopra onde bem quiser, ninguém o controla. A igreja é divina e diabólica ao mesmo tempo. Santa e pecadora ao mesmo tempo, como todos os seres humanos, desafiados pelas palavras de Jesus de Mc 1.15: "O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho".

Esta utopia histórica do Reino de Deus alimentava as Ligas Camponesas, cujos líderes eram protestantes, em sua maioria, mesmo que abandonados pelas suas igrejas, dos quais João Virgílio faz parte e nos dá um testemunho de fé claro e decidido de resistência, dizendo: “Nada como um dia após outro com uma noite no meio e a graça de Deus pingando de hora em hora”. Nesses profetas e profetisas camponeses podemos incluir Patativa do Assaré e outros poetas, poetisas e cantadores nordestinos, não esquecendo Antônio Conselheiro e no sul João e José Maria e suas apóstolas e Jacobina Maurer.

Falar de Deus como Amigo/Amiga, Cidadão/Cidadã e não como rei e senhor (que embute um processo de dominação e de subserviência) faz parte deste processo de resistência e nisto o movimento de mulheres cristãs e não cristãs nos tem ajudado. Chamar Deus de Cidadão/Cidadã não é diminuir a sua divindade? A sua divindade não diminuiu quando ele se fez camponês leigo em Jesus de Nazaré; um camponês oprimido igual aos outros camponeses oprimidos. Paulo fala disso dizendo em Ef 2.19: "Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus". Deus tornado cidadão/cidadã em Jesus Cristo nos tornou pelo batismo concidadãos do Reino de Deus. Isto não quer dizer que ele tenha perdido com isso o poder de nos julgar no dia do juízo final. Javé ao se tornar cidadão/cidadã em Jesus não perdeu a sua divindade e nem a sua autoridade, pois ele mesmo diz que quem se diminui é elevado, em Jo 13.12-17: "Depois de lhes ter lavado os pés, tomou as vestes e, voltando à mesa, perguntou-lhes: Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes." E em Mc 10.43-45 completa: "Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos." Deus não perde a sua divindade fazendo o caminho inverso ao nosso. Temos que começar a insistir a falar de Deus a partir dos oprimidos e das oprimidas. As mulheres por comporem um grupo de oprimidas nos acenderam esta luz de podermos falar de Deus do ponto de vista dos grupos marginalizados pelo poder dominante. Por as mulheres tentarem fazer isto foram historicamente perseguidas, presas, torturadas, massacradas e queimadas como bruxas pela oficialidade eclesiástica aliada ao Estado. A classe dominante aliada à igreja (que age como Religião e não como Evangelho) não deixa barato quando alguém ou um grupo começa a falar de Deus de outra forma à oficial. Jesus Cristo foi morto por este mesmo motivo: ser herege, falava de Deus a partir dos camponeses empobrecidos e oprimidos pela classe dominante religiosa e civil e militar e não a partir do conceito que o Estado, a serviço do modo de produção escravista, tinha e defendia de Deus.

Toda heresia será castigada (parafraseando Nelson Rodrigues: Toda nudez será castigada), é ainda hoje o lema da igreja cristã. Qual heresia? Falar de Deus de outra forma da defendida pela oficialidade. A oficialidade, com suas devidas e honrosas exceções, é controlada pelo capital que diz como a igreja deve falar de Deus e como se deve crer em Deus. Temos um monte de exemplos de pessoas que foram tentadas calar, na IECLB: Albrecht Baeske e outros que a história conseguiu esconder; na Igreja Católica Romana: Jon Sobrino, Leonardo Boff, etc. e aí vai afora. O único problema é conseguir calar o Evangelho! Coisa difícil que nem a igreja, a serviço do capital, conseguiu historicamente até hoje, por mais que tenta. A História e o Evangelho são que nem uma fonte: em época de seca ela deixa de fluir a água até a superfície, mas a água está lá no fundo da terra, escondida, escassa e aparentemente esquecida e extinta, e após o final da seca periódica esta água recomeça a fluir terra afora incansavelmente e sem poder ser detida.

A função da teologia é:
1. Revelar Javé como o Deus da classe camponesa (a classe oprimida que trabalha) tornado pessoa no camponês empobrecidos e leigo Jesus Cristo e revelado e presente pelo poder do Espírito Santo no meio da luta por uma nova sociedade pelo povo trabalhador oprimido, que Jesus Cristo chama de Reino de Deus.
2. Revelar o capital como um deus falso e inexistente, mas poderosamente presente no meio da igreja e do povo com o papel de tentar impedir a construção do Reino de Deus por ser uma proposta camponesa, levantada por Jesus Cristo, de uma nova sociedade não classista, fraterna, igualitária e não capitalista que já está no meio de nós.

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