30 de abril de 2012

OLHANDO PARA A ESQUERDA


JOSE LUÍS FIORI

“De nada serve partir das coisas boas de sempre, mas sim das coisas novas e ruins” Bertold Brecht
Neste início do Século XXI, uma sucessão de vitórias eleitorais coloca a esquerda latino-americana frente ao desafio de governar democraticamente, como os europeus fizeram, sobretudo na segunda metade do século XX. Mas nesta hora, a esquerda européia está vivendo uma crise de identidade, depois de uma sucessão de derrotas eleitorais e de divisões internas, cada vez mais profundas. M esmo assim, a experiência européia segue sendo uma referencia decisiva, para repensar o que seja uma “gestão socialista” de uma sociedade nacional e de um capitalismo periférico, que vive na sombra imediata do poder norte americano? Para desbloquear seus caminhos, entretanto, a esquerda precisa recolocar-se o problema histórico e teórico das relações entre os processos de globalização do poder e do capital, com as lutas políticas dos povos, e o crescimento desigual da riqueza das nações.

1 O mapa conjuntural da esquerda.
Neste início do Século XXI, está acontecendo algo inédito na América Latina, um continente que se move de forma sempre sincrônica, apesar de sua enorme heterogeneidade interna. Basta olhar para trás para perceber as notáveis convergências de sua história, durante suas “guerras de formação”, na primeira metade do século XIX; na hora de sua integração “primário-exportadora” à economia industrial européia, depois de 1870; ou mesmo, no momento de sua reação defensiva e “desenvolvimentista”, frente à crise mundial, da década de 1930. Uma “convergência” que aumentou ainda mais, depois da II Guerra Mundial, com a ajuda da política externa dos Estados Unidos de combate sistemático a todos os partidos e governos que fossem ou tivessem qualquer tipo de inclinação de esquerda.

Logo depois do início da Guerra Fria, ainda nos anos 40, quase todos os países do continente colocaram na ilegalidade, simultaneamente, os seus Partidos Comunistas. Apesar de que só em alguns casos a perseguição aos comunistas tenha chegado ao extremo do Chile, que os prendeu e confinou em campos de concentração, nas regiões mais frias e desérticas do país. Na década de 50, esta mesma “convergência latino-americana” reapareceu na derrubada simultânea de vários governos eleitos democraticamente, como no caso da Guatemala, do Brasil, da Argentina e da Colômbia. Apesar de que só no caso da Guatemala houve uma intervenção norte-americana direta e a repressão e o assassinato de mais de 200 mil pessoas. Muito mais do que na Colômbia do ditador Perez Jimenez, na Nicarágua e Cuba dos ditadores Anastázio Somoza e Fulgêncio Batista, apoiados igualmente pelos Estados Unidos. Logo em seguida, nas décadas de 1960 e 1970, esta velha sintonia continental aumentou ainda mais depois da frustrada invasão de Cuba, em 1961, seguida de uma série de golpes militares que instalaram regimes ditatoriais em quase toda a América Latina. Apesar de que nem todas as ditaduras tenham tido o mesmo nível de violência do Chile, onde se estima que tenham morrido mais de 20 mil pessoas, e da Argentina, onde foram assassinados ou desapareceram cerca de 35 mil pessoas. Na década de 80, a redemocratização simultânea do continente ocorreu no mesmo momento em que a violência da “2ª. Guerra Fria” (1982-1985) do presidente Ronald Reagan atingiu a América Central e o Caribe, como se fosse um tufão. Mesmo quando ela não tenha atingido a todos com a mesma intensidade que El Salvador, onde foram mortos ou assassinadas, em poucos anos, mais de 75.000 salvadorenhos.

Com o fim da Guerra Fria, na década de 1990, a “indução” norte-americana e a convergência dos “latinos” se deslocaram para o campo das políticas econômicas. Como parte da renegociação de suas dívidas externas, quase todos os governos da região adotaram um programa comum de políticas e reformas liberais que abriu, desregulou e privatizou suas economias nacionais, “clonificando” os governos neoliberais de Carlos Salinas, no México, Andrés Perez, na Venezuela, Carlos Menem, na Argentina, Fernando H. Cardoso, no Brasil e Alberto Fujimori, no Peru, entre outros. Com o passar do tempo, entretanto, o novo modelo econômico instalado pelas políticas liberais não cumpriu sua promessa de crescimento econômico sustentado e diminuição das desigualdades sociais. Na virada do novo milênio, a frustração destas expectativas contribuiu, decisivamente, para a nova inflexão sincrônica do continente que está em pleno curso: uma virada democrática e à esquerda, dos governos de quase todos os países da América do Sul, e talvez, em breve, do México.

A eleição para presidente do líder indígena e socialista Evo Morales, na Bolívia, no final de 2005, e da militante socialista Michele Bachelet, no Chile, no início de 2006, foram apenas dois pontos de uma trajetória vitoriosa que começou, no Brasil, em 2002 e que seguiu na Argentina, Venezuela e Uruguai, podendo chegar ao Peru, Equador e México, ainda em 2006. Uma verdadeira revolução político-eleitoral, sem precedentes na história latino-americana e que coloca a esquerda frente ao desafio de governar democraticamente, convivendo – em geral – com a má vontade dos “mercados” e a hostilidade permanente da grande imprensa. Um desafio que foi vivido pela esquerda européia no século XX, mas que só foi experimentado tangencialmente pela esquerda latino-americana no século passado.

O grande paradoxo é que estas vitórias e novos desafios latino-americanos surgem no momento em que as esquerdas européias vêm sofrendo sucessivas revezes eleitorais e divisões políticos. As derrotas começaram na Itália e na França, em 2001 e 2002, e se repetiram, mais recentemente, na Alemanha e Portugal, em 2005 e 2006. Mas a divisão e perda de rumo ficaram muito mais claras no Referendo sobre a Constituição européia, rejeitada pelos franceses e holandeses em 2005, e no caso da revolta dos jovens da periferia das grandes cidades francesas, no final do mesmo ano. Para não falar da decisão da social-democracia alemã de participar de um governo de coalizão com seus adversários da União Democrata Cristã e da União Social Cristã. É verdade que neste mesmo período os socialistas espanhóis venceram as eleições gerais de 2004, mas isto aconteceu com a ajuda indiscutível de uma tragédia “externa” que reverteu as expectativas eleitorais favoráveis aos conservadores, até a véspera das eleições. E também é verdade que os ingleses reelegeram o primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, em março de 2005, mas seu governo e seu partido têm se mostrado cada vez mais frágeis e divididos sobre todos os temas da agenda política britânica e européia. Mais ao leste, entretanto, na Europa Central os resultados eleitorais e as tendências da opinião pública tem sido igualmente negativos para as forças de esquerda. Na Polônia, a aliança Social-Democrata, que teve 41% dos votos nas eleições de 2001, acaba de ser derrotada por uma coalizão de extrema-direita. Na República Tcheca já houve três mudanças de primeiro-ministro desde a sua entrada na EU, mas seu governo está cada vez mais dividido e os social-democratas, que tiveram 2/3 dos eleitores, agora estão com apenas 11% dos votos prováveis. O mesmo vem acontecendo na Hungria e começa a se anunciar em outros países da região.

Nesse contexto, os latino-americanos estão obrigados a discutir seus novos caminhos numa hora em que a esquerda européia perdeu o seu rumo e vive uma profunda crise de identidade.
Ninguém duvida que o “mundo das idéias” de esquerda tem estado na defensiva e não existe, neste momento, em lugar algum, novas “sínteses teóricas”, “utopias empacotadas”, ou projetos acabados, como gostariam de ter alguns intelectuais. Talvez por isso, na América Latina, quem está agora abrindo ou tentando abrir novos caminhos são homens que não pertencem às elites intelectualizadas e que não estão em geral familiarizados com os debates clássicos da esquerda socialista ou marxista européia. São homens que defendem valores éticos, sociais e políticos populares, nacionais e igualitários, e que criticam as políticas neoliberais (pelo menos no plano retórico) e o intervencionismo imperial dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, defendem um projeto político e econômico sul-americanista. Mas a ssim mesmo, a experiência européia do século XIX e XX segue sendo uma referência decisiva para quem queira repensar – no início do século XXI – o que seja ou deva ser um governo democrático e de esquerda, ou uma “gestão socialista” do capitalismo, uma vez excluída a possibilidade de ruptura revolucionária de contratos e instituições? Mais ainda, numa sociedade extremamente desigual e numa economia periférica, num momento de auge da globalização financeira e do poder norte-americano?

2 O debate e a experiência governamental da esquerda européia.

Do ponto de vista propositivo, o ponto de partida da esquerda européia foi, sem dúvida alguma, o debate dos “democratas populares”, do exército revolucionário de Oliver Cromwell, de 1648. De um lado, estavam as propostas políticas e jurídicas dos “niveladores”, de John Lilburne e Richard Overton, que estão na origem do “liberalismo revolucionário” e da “democracia radical” dos séculos XVIII e XIX, e do outro, o projeto econômico dos “cavadores”, de Gerrard Westanley, que está na origem de todos os “socialismos utópicos” da história moderna. Os primeiros, reivindicando reformas que garantissem a igualdade jurídica e política de todos os indivíduos da nação inglesa. E o segundo, propondo um “comunismo agrário” que se transformou no primeiro programa revolucionário, feito para um governo parlamentar e republicano. Para Gerrard Westanley, não era possível conceber a existência de liberdade e igualdade política sem que houvesse igualdade econômica, e não haveria igualdade econômica enquanto existisse a propriedade privada. Ele estava falando da propriedade privada da terra e dos seus frutos e por isto propunha sua coletivização. Mas, ao mesmo tempo, ele propunha uma tese que ia muito além da questão da terra, e que se transformou de fato, a partir de então, na aporia fundamental da esquerda e de todo e qualquer socialismo, em qualquer tempo ou lugar.

No século seguinte, os franceses Meslier, Mably, Morelly, Marechal e Babeuf repetiram, em distintas claves, o mesmo argumento e a mesma proposta de Gerrard Winstanley: só poderia haver igualdade social com o fim da propriedade privada da terra. Rousseau, entretanto, abriu um novo caminho “programático”, ao defender que o Estado assumisse a propriedade coletiva das terras, no seu “Projeto de Constituição para a Córsega”. Uma sugestão que foi retomada por Marx, no seu programa mínimo de governo, no fim do Manifesto Comunista, de 1848, onde ele propõe a estatização progressiva da propriedade privada e se separa definitivamente dos “socialista utópicos” que permaneceram fiéis ao “comunismo agrário” de Winstanley.

Os “utópicos” não se colocavam o problema da conquista do poder, porque eles sempre foram favoráveis às experiências econômicas comunitárias, cooperativas ou solidárias, e às experiências políticas locais de democracia direta ou participativa. Por razões distintas, o problema da gestão estatal e socialista do capitalismo tampouco se colocou para as revoluções comunistas do século XX, que coletivizaram a propriedade privada e construíram economias de planejamento central. A crise recente dessas experiências eliminou-as do debate da esquerda, apesar de que até hoje ainda não tenha sido feita uma avaliação rigorosa dos seus resultados. De qualquer maneira, elas não se propuseram nem enfrentaram o problema da “gestão socialista” do capitalismo. Depois de Marx, este tema só foi discutido, efetivamente, pelos partidos socialistas, social-democratas e comunistas europeus, que participaram dos governos de “unidade nacional' e das” frentes populares “, constituídos durante a I Guerra Mundial e na crise dos anos 1920/30, antes que se formassem os primeiros governos de maioria socialista, quase todos depois da II Guerra Mundial.
Para reconstruir a história deste debate sobre estratégias eleitorais e programas de governo dos partidos de esquerda europeus, é melhor separar as experiências de governo, propriamente ditas, dos debates doutrinários. Foi em 1917, durante a 1ª. Guerra Mundial, que os social-democratas participaram, pela primeira vez, de um governo de coalizão, na Dinamarca. Depois, durante todo o Século XX, a experiência de governo dos partidos de esquerda pode ser aglutinada em três grandes períodos:

i) de 1917 a 1938, entre as duas Grandes Guerras Mundiais, durante a “era da catástrofe”;
ii) de 1964 a 1983, em plena Guerra Fria, durante a “era de ouro” do capitalismo; e, finalmente,
iii) de 1992 a 2005, depois da queda do Muro de Berlim, durante o apogeu da utopia da globalização e das políticas neoliberais.
Por outro lado, o debate doutrinário e estratégico dos partidos de esquerda europeus também pode ser organizado em três momentos fundamentais a partir das três grandes “revisões” a que foi submetida a matriz marxista, que havia se transformado na ideologia oficial do partido social-democrata alemão, o mais forte e bem sucedido da Europa, até o início da 1º Guerra Mundial.

O primeiro e mais conhecido dos “revisionismos” - liderado por Eduard Bernstein – propôs em 1894, um primeiro “ajuste” das idéias de Marx às “novas formas” assumidas pelo capitalismo, no final do século XIX, e um ajuste dos objetivos programáticos dos social-democratas às exigências democráticas da competição eleitoral e da luta parlamentar. Segundo Bernstein, o progresso técnico e a internacionalização do capital haviam mudado a natureza da classe operária e do sistema capitalista, cujo desenvolvimento histórico concreto não estaria mais apontando na direção prevista por Marx, da “pauperização crescente” e da “crise final”. Como conseqüência, Bernstein propunha o abandono do socialismo como objetivo final e a opção por uma transformação permanente e sem fim, de dentro do próprio capitalismo. O essencial, neste primeiro momento, foi a opção pela via eleitoral, com todas as suas conseqüências estratégicas e programáticas, como ficou cada vez mais claro, através do século XX, e em particular, nos novos “ciclos revisionistas”, das décadas de 1950/60 e de 1980/90

Entre as duas grandes Guerras Mundiais, e durante a crise econômica da década de 30, os partidos social-democratas e socialistas europeus participaram de alguns governos de “união nacional”, na década de 20, e de “frente popular”, na década de 30. Sempre em situações de emergência nacional ou internacional em que os partidos de esquerda tiveram que responder ao desafio imediato e abrir mão dos seus projetos reformistas. Os grandes problemas que estavam colocados sobre a mesma pelas guerras e pela crise, eram o colapso econômico, o desemprego e a inflação e os socialistas, social-democratas e comunistas não tinham uma posição própria sobre o assunto, nem sabiam rigorosamente o que fazer numa situação que não estava prevista em suas discussões teóricas e doutrinárias. Por isso acabaram acompanhando, invariavelmente, as idéias, propostas e políticas dos próprios conservadores, inclusive suas experiências pioneiras de planejamento de guerra. Com a grande exceção dos social-democratas suecos, que responderam à crise econômica de 30 com uma proposta original e ousada de incentivo ao crescimento econômico e pleno emprego, através de políticas anticíclicas desenvolvidas por Wicksell e os economistas da Escola de Estocolmo, e implementadas pelo seu ministro da fazenda, Ernst Wigforss. Com o uso combinado e simultâneo de “acordos sociais” entre empresários e sindicalistas, para o controle da evolução dos preços e dos salários. Mas este foi um caso raro de sucesso, no meio de um sem numero de fracassos dos social-democratas no comando da política econômica da Alemanha, entre 1928-30; da Grã Bretanha, entre 1929-31; da Espanha, entre 1928-30; e da França, entre 1936-37.

As “políticas anticíclicas”, os “pactos sociais” e a experiência do planejamento de guerra foram aproveitadas pelo primeiro governo trabalhista inglês do imediato pós-guerra, entre 1945 e 1950, e pelos vários governos social-democratas dos pequenos países europeus, como Áustria, Bélgica, Holanda, e os próprios países nórdicos que seguiram sendo governados pelos social-democratas, depois da guerra. Mas além disto, estas idéias e experiências influenciaram decisivamente as duas grandes estratégias e propostas de governo que foram experimentadas pela esquerda, depois da II Guerra Mundial. A primeira e mais bem sucedida, foi a do “estado de bem estar social”, adotado por todos os governos social-democratas e trabalhistas, no período entre 1964 e 1983. Combinava políticas econômicas keynesianas pró-crescimento e pleno emprego com uma política fiscal de construção de redes estatais de infra-estrutura e proteção social universal. E a segunda proposta, foi a de “capitalismo de estado” adotada pelo Partido Comunista Francês, mas que teve uma influência difusa sobre a esquerda em vários lugares do mundo. Partia do conceito de “capitalismo organizado” - formulado por Hilferding - e de sua hipótese de que a centralização do capital, que havia se acelerado a partir do final do século XIX, facilitava uma gestão planejada do capitalismo, desde que o estado contasse com um “núcleo econômico estratégico” de propriedade estatal.

A opção majoritária dos social-democratas europeus pelo projeto do estado de bem estar social, ocorreu na década de 50, junto com uma segunda grande “rodada revisionista” que culminou no Congresso da social-democracia alemã, em Bad Godesberg, em 1959. Foi nesta segunda “revisão”, que uma parte significativa da esquerda européia abandonou definitivamente as propostas clássicas – que às vezes ainda reapareciam no plano retórico – da revolução socialista e da eliminação da propriedade privada e do estado. O mais importante, entretanto, foi o giro de 180 graus que se completou naquele momento, dentro do pensamento socialista. Como vimos, o pensamento da esquerda moderna começa com uma tese e uma proposta muito claras, ainda que a equação pudesse ser utópica: “liberdade política = igualdade econômica = fim ou diminuição do peso da propriedade privada”. Deste ponto de vista, o que passou de essencial na década de 50, foi a transformação desta proposta originária, numa nova equação, que pode ser resumida de forma muito simples: “liberdade política = igualdade social = crescimento econômico = sucesso capitalista”. Foi a hora em que os socialistas e social-democratas deixaram de esperar ou apostar numa “crise final” do capitalismo, e passaram a lutar pelo sucesso do próprio capitalismo, o maior sucesso possível, como forma de criar empregos e financiar políticas distributivistas. É neste exato momento que uma parte signi-ficativa da esquerda européia abandona o “objetivo final socialista”, mesmo no plano retórico, e assume uma posição definitivamente “pró-capital”. Na primeira equação, formulada por Gerrard Winstanley, a liberdade socialista só existiria quando houvesse igualdade econômica entre as pessoas, e isto só ocorreria quando se eliminasse ou diminuísse o peso da propriedade privada. Mas a partir da revisão da década de 50, só haveria aumento da liberdade e da igualdade se houvesse mais empregos e mais recursos fiscais e, portanto, mais crescimento econômico ou desenvolvimento acelerado do capitalismo. E portanto – em termos estritamente lógicos - o sucesso do capitalismo passou a ser uma condição indispensável do sucesso da própria esquerda. O que estava suposto e legitimava esta grande mudança de posição era a hipótese de no médio prazo, pelo menos, as políticas “pró-capital” teriam conseqüências “pró-trabalho” e “pró-igualdade”. Essa talvez tenha sido a mudança teórica e doutrinária que teve efeitos mais radicais, em toda a história da esquerda, desde o debate entre “democratas populares” e os “comunistas utópicos”, dos exércitos de Cromwell. Neste novo contexto, as “estatizações” de grandes empresas – comuns na Inglaterra e na França do pós-guerra - perderam importância e só foram recomendadas, nos casos indispensáveis, em nome da "eficiência econômica" e não da criação de um núcleo estratégico estatal “, como no caso do” capitalismo de estado" dos comunistas franceses.

Três décadas depois, iniciava-se mais uma “rodada revisionista”, na hora em que os socialistas e social-democratas europeus abandonam o keynesianismo e a própria defesa do estado de bem estar social, e adotam as novas teses, reformas e políticas neoliberais, propostas, inicialmente, pelos governos conservadores dos países anglo-saxões. Quase ao mesmo tempo em que a União So-viética e os países da Europa Central viviam a crise final do seu “socialismo real”, de origem revolucionária. Esta nova “revisão” doutrinária foi menos surpreendente e disruptiva do que as duas anteriores. Afinal, agora se tratava apenas de seguir a opção dos anos 50, de acompanhar e estimular os “caminhos do capital”. Por isto Tony Blair pode declarar com legítimo orgulho numa entrevista para o Financial Times de janeiro de 1997, que o Labour “havia se transfor-mado num partido ‘ pró-business' ”. Esta nova mudança de rumo se deu de forma quase contínua, a partir de 80, na Espanha de Felipe Gonzalez e na França de François Mitterand, e também na Itália de Bettino Craxi, e na Grécia de Andreas Papandreu. Na década de 90, entretanto, todos os ventos sopravam numa só direção liberalizante, e todos já repetiam como algo absolutamente óbvio o mantra da “necessidade das reformas” neoliberais para aumentar a competitividade internacional da Europa. E uma boa parte da esquerda já não se sentia mais na obrigação de qualificar as reformas ou discutir quem eram seus principais beneficiários e perdedores. Como se elas fossem neutras ou completamente voltadas para o “bem comum”. Foi a hora em que nasceu a “terceira via”, uma sistematização inglesa das novas teses, propostas e programas justificados com argumentos muito parecidos aos de Eduard Bernstein, no final do século XIX: segundo os trabalhistas ingleses da terceira via, de novo estão em curso mudanças globais que estão alterando a estrutura de classes e a capacidade de ação dos estados nacionais, o que exige uma adaptação das idéias e programas de esquerda a este novo mundo globalizado e desproletarizado, como explica Anthony Giddens, no seu livro, “ The Third Way”, uma pequena introdução ao novo revisionismo.

Nesta virada neoliberal dos anos 80/90, o “caso” espanhol foi o que teve maior repercussão e influência sobre a esquerda latino-americana, transformando-se numa espécie de paradigma do “novo socialismo europeu”. González foi eleito com um programa de governo de tipo keynesiano, junto com um plano negociado de estabilização e crescimento econômico voltado para o pleno emprego e a eqüidade social. Mas logo no início do seu governo abandonou o seu programa keynesiano e trocou a “concertação social” - como forma de coordenação de preços e salários – pelo rigor fiscal e o desemprego, como preconizava o modelo neoliberal.

No final do século XX, entretanto, foi ficando cada vez mais claro que as novas políticas e reformas tinham diminuído a participação dos salários na renda nacional, restringido e condicionado os gastos sociais, diminuído a segurança do trabalhador e tinham promovido uma concentração/centralização de capital e renda em todos os países europeus. Ficou claro tratar-se de um conjunto de reformas e políticas “pró-capital” que não produziam os mesmos efeitos de médio prazo a favor do trabalho e pleno emprego, como no caso das políticas keynesianas do período 1864-1983. Não é de estranhar, portanto, que a esquerda européia venha sofrendo sucessivas derrotas eleitorais, e revezes políticos ainda mais graves, depois de 2001. Apesar de sua enorme diversidade, é possível identificar uma certa recorrência, em todos estes casos europeus: são partidos e governos socialistas, social-democratas, comunistas ou verdes, que sozinhos ou coligados, adotaram a agenda e as políticas neoliberais, na década de 80 ou 90, e agora vem sendo derrotados pelo seu próprio eleitorado tradicional. O mais perturbador, entretanto, é que a esquerda vem sendo derrotada por partidos conservadores de diferentes matizes, mas que defendem as mesmas políticas neoliberais, às vezes de forma ainda mais radical, como no caso recente da democracia cristã alemã, o que reforça a convergência ideológica e perda de identidade, como se a velha esquerda européia tivesse chegado a um “beco sem saída”, neste início do século XXI. Mas quando se olha a sua história de uma perspectiva de longo prazo, se percebe que a esquerda não está vivendo apenas uma crise conjuntural e circunstancial, ela está vivendo o limite lógico de um projeto que foi nascendo de sucessivas decisões estratégicas e que esgotou completamente sua capacidade “projetual”. De “revisão” em “revisão”, os partidos de esquerda europeus abriram mão, primeiro, da idéia da revolução socialista e depois do próprio socialismo como objetivo ou “estado-final” a ser alcançado no longo prazo. Mais à frente, deixaram de lado o projeto de socialização da propriedade privada, e no final do século XX, abriram mão, inclusive, das políticas de crescimento, pleno emprego e proteção social universal que foi a sua principal contribuição ao século XX.

3. Caminhos e paradoxos

Não é impossível identificar algumas tendências e paradoxos na história da esquerda européia, que devem estar no ponto de partida de qualquer discussão sobre o futuro do socialismo, no XXI, e que são também uma lição para a esquerda latino-americana que começa a governar quase um século depois dos europeus:
i) a unidade e identidade da esquerda européia foi desmontada, no século XX, pelas sucessivas revisões doutrinárias e estratégicas de sua matriz originária, de inspiração marxista. Depois da “desconstrução” do materialismo histórico, não surgiu nenhuma outra teoria com a mesma capacidade lógica de definir atores, interesses e estratégias, a partir de um diagnóstico conjuntural das tendências críticas do capitalismo Muito menos ainda, no caso da combinação contemporânea da teoria da “globalização econômica”, da “sociedade em redes” e da “governança progressiva” é uma verdadeira geléia, amorfa do ponto de vista teórico e inconclusiva do ponto de vista político.

ii) com a progressiva erosão da unidade teórica e lógica do materialismo histórico, aumentou cada vez mais a divisão interna da esquerda. Suas discussões doutrinárias sobre a sua própria identidade, e o seu juízo sobre a “correção” de suas posições e políticas conjunturais, transformaram-se num verdadeiro “jogo de cabra-cega”. Uma polêmica permanente e inconclusiva, e um consenso impossível devido à ausência de qualquer tipo de baliza ou ponto de referencia unânime, do ponto de vista ético ou teórico. A definição das “posições oficiais” dos partidos ou organizações de esquerda ficou cada vez mais fechada e autoritária e foi cada vez mais contestada pelos militantes e pela intelectualidade, até 1991, e depois disto, a esquerda se transformou definitivamente numa “torre de Babel”.

iii) as sucessivas revisões doutrinárias foram criando – durante o século XX - um verdadeiro “Frankstein” teórico, um remendo de decisões e convicções pragmáticas, cada vez mais contraditórias, que se transformaram numa camisa-de-força que hoje aprisiona e paralisa a esquerda do século XXI. A primeira revisão, do final do século XIX, foi uma opção estratégica e de longo prazo pela “via eleitoral”, com todas as suas conseqüências, do ponto de vista da organização partidária, da competição política e das alianças parlamentares e de governo. Mas ao mesmo tempo, e inevitavelmente, significou o abandono do projeto ou da hipótese de ruptura revolucio-nária dos contratos e instituições responsáveis pelo funcionamento desigual do capitalismo, e portando, a desistência de tocar na propri-edade privada. A segunda revisão, da década de 1950, do ponto de vista imediato, foi uma mera mudança programática, mas do ponto de vista de longo prazo, representou o abandono definitivo da idéia, do projeto e do objetivo de uma sociedade socialista, diferente do capitalismo. De tal maneira que a terceira revisão neoliberal dos anos 90, acabou sendo apenas uma conseqüência inevitável das decisões anteriores, em particular da decisão de promover ativamente o de-senvolvimento capitalista e ajustar-se permanentemente às “inovações do Capital”.

iv) talvez por isto mesmo, nunca existiu uma originalidade total, nas três grandes experiências de governo da esquerda européia. E ficou cada vez mais difícil definir o que o fosse um programa de governo ou uma política específica econômica ou internacional de esquerda. Na verdade, existiu um “diálogo” permanente e uma mútua influência, durante todo o século XX, entre as idéias, projetos e go-vernos conservadores e de esquerda, como no caso da relação entre as idéias social-democratas da Escola Econômica de Estocolmo, e as idéias liberais do Lord Keynes, ou mesmo, da relação entre a idéia e a estratégia de planejamento soviético com as experiências de planejamento de guerra das economias “ocidentais”.Num primeiro momento, no período do “entre-guerras”, a esquerda participou de governos de emergência ou unidade nacional e praticamente acompanhou ou replicou as políticas dos conservadores. Mas depois da II Guerra Mundial, esta relação foi mais complexa e criativa, porque a disputa se deu dentro de um campo comum e de um pensamento hegemônico mais à esquerda, na hora em que também os conservadores defendiam políticas keynesianas de pleno emprego e proteção social universal. E, em alguns casos, como na Alemanha, também apoiavam a idéia da “pactação social”, entre o capital e o trabalho. Mas a verdade é que depois de 1991, no período áureo da hegemonia neoliberal, os governos de esquerda voltaram a repetir ou replicar apenas, sem nenhuma inventividade, as políticas e reformas preconizadas pelos conservadores.

v) esta relação fica muito visível nos campos da política econômica e das relações internacionais. No campo macroeconômico, os governos de esquerda foram quase sempre conservadores e ortodoxos, como no caso clássico de Rudolf Hilferding, ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha, em 1928. Mas também no caso do Partido Laborista inglês que optou em 1929 pela “visão do Tesouro”, contra a opinião liberal de John Keynes e David George, a mesma opção feita pelo governo social-democrata de Leon Blum, na França, em 1936. Mesmo depois da II Guerra Mundial, os social-democratas e socialistas seguiram ortodoxos, e só se “converteram” às políticas keynesianas na década de 60. Mas assim mesmo, nas crises monetárias de 1966 e 1972, os governos de Harold Wilson e Helmut Schmid voltaram rapidamente ao trilho conservador da ortodoxia monetarista. A experiência sueca da década de 1930, foi uma exceção dentro desta história, uma verdadeira inovação social-democrata feita na contra mão da ortodoxia do seu tempo.

vi)o mesmo pode se dizer com relação à política externa dos governos de esquerda europeus do século XX, que nunca foi homogênea nem inovadora. Como se sabe, sua primeira grande divisão interna já começou com a votação dos orçamentos de guerra, em 1914. Mas depois, na década de 30, as coalizões de governo com participação socialista ou social-democrata, também se dividiram frente à Guerra Civil Espanhola e aos primeiros passos da escalada nazista. E voltaram a se dividir durante a Guerra Fria, como agora de novo, na discussão das relações da União Européia com os Estados Unidos e com a Rússia, depois do fim da União Soviética. Em todo o século XX, uma das raras iniciativas realmente originais e autônomas da esquerda no campo da política internacional, afora sua solidariedade genérica com o “terceiro mundo”, foi a Ostpolitik do governo social-democrata de Willy Brandt, em 1969, que viabilizou os acordos de desarmamento, da década de 70 em 80 e iniciou o grande movimento “ao leste” da Alemanha, que segue ainda hoje.

vii) esta falta de iniciativa ou originalidade – na maioria dos casos - com relação às políticas dos conservadores explica o fato que tenha sido durante seus governos que a esquerda tenha se dividido de forma mais profunda e radical. Foi aí que se cristalizou, de forma definitiva e irreversível, a divisão “funcional”, dentro da esquerda, entre i) a “crítica intelectual”, ii) a “mobilização social”, e a iii) e a “gestão de governo”. Uma divisão que chegou no limite da ruptura definitiva, depois da “virada revisionista” dos anos 50, e durante os governos social-democratas que começam na década de 60. Foi o período das grandes revoltas sociais e sindicais que questionaram a estratégia e a organização da “velha esquerda” e criaram as bases dos novos movimentos sociais com sua proposta de volta às raízes anárquicas e comunitárias do “socialismo utópico”, e sua recusa da política partidária e da participação em governos. Mas apesar de todas as críticas e divisões, e da pouca originalidade experimental da maioria dos governos socialistas e social-democratas da segunda metade do século XX, eles deram uma contribuição absolutamente decisiva e definitiva ao avanço mais democrático e igualitário das sociedades européias. Este talvez tenha sido o grande paradoxo de toda esta história da esquerda européia: suas políticas e iniciativas parciais tiveram sempre uma forte componente conservadora, mas no final, o conjunto da obra, foi criativo e contribuiu decisivamente para o aumento da igualdade econômica e o aprofundamento da democracia política européia.

viii) talvez por isto mesmo, depois da década de 60, a esquerda européia se transformou num fenômeno cada vez mais facetado e global. Sua identidade e sua força já não se encontravam mais em nenhuma de suas facções ou agrupamentos e governos nacionais, tomados individualmente, e só existiam na percepção e no movimento do seu conjunto e de sua inserção mundial. Os governos socialistas e social-democratas eram cada vez mais criticados nacionalmente, mas seguiam sendo considerados pelos “estrangeiros” como partes constitutivas e importantes - em alguns casos – da esquerda européia e mundial. Nesse sentido, radicalizando o argumento, se pode dizer que estes partidos e governos social-democratas só conseguiam manter sua identidade de esquerda, do ponto de vista do conjunto do movimento global. Isto é, enquanto existiram partidos comunistas que não haviam governado e que seguiam sendo os portadores do “catastrofismo utópico” do socialismo e do marxismo originário. E enquanto existiram também, no “terceiro mundo”, movimentos de libertação nacional vitoriosos, em quase todas as ex-colônias européias. E por fim, o que é mais paradoxal, enquanto existiu a União Soviética, que durante todo este tempo cumpriu o papel de “caso limite”, o único europeu que levou até as últimas conseqüências as propostas originárias de Gerrard Winstanley e Karl Marx, de abolição da propriedade privada e estatização da economia, incluindo a cláusula marxista, da ditadura do proletariado. De tal maneira que, apesar das críticas generalizadas, seguiu sendo a baliza de referência das demais experiências e governos de esquerda, no imaginário coletivo europeu e mundial.

ix) neste sentido, se pode fazer uma leitura complementar das crises atuais dos socialistas, social-democratas, comunistas e verdes europeus. Do ponto de vista estritamente programático, não estão numa situação muito diferente, desde a década de 60. Mas agora não contam mais com a “parceria oculta” do “socialismo real', dos velhos partidos comunistas e dos movimentos de libertação nacional dos países do Terceiro Mundo, que sempre contribuíram para a preservação de sua identidade coletiva de esquerda. E, neste sentido, sua falta de identidade atual é também, em grande medida, um sub-produto da desmontagem, depois de 1991, de uma arquitetura político-ideológica ”global”, extremamente complexa, que foi responsável pela preservação da vitalidade da esquerda internacional, entre 1968 e 1991. Mas não é impossível que esta arquitetura possa ser refeita, lentamente, começando pelas novas experiência de governo de esquerda da América Latina.

4. O debate e a experiência da esquerda latino-americana

O Plano Ayala, proposto em 1911, pelo líder camponês da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata, pode ser considerado o equivalente latino-americano do “comunismo agrário”, de Gerrard Winstanley, o líder “democrata popular” da Revolução Inglesa de 1648. O Plano de Zapata propunha a coletivização da propriedade da terra e sua devolução à comunidade dos índios e camponeses mexicanos. Zapata foi derrotado e morto, mas seu programa agrário foi retomado alguns anos depois, pelo presidente Lázaro Cardenas, um militar que governou o México na década de 1930 e criou o Partido Revolucionário Institucional (PRI). O governo de Cárdenas foi nacionalista; fez a reforma agrária; estatizou as empresas estrangeiras produtoras de petróleo; criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comercio exterior da América Latina; investiu em infra-estrutura; fez políticas de industrialização e proteção do mercado interno mexicano; criou uma legislação trabalhista e tomou medidas de proteção social; e manteve uma política externa independente e antiimperialista. Em grandes linhas, e com pequenas variações, este programa se transformou no denominador comum de vários governos latino-americanos “nacional-populares” ou “nacional-desenvolvimentistas”, como no caso de Perón, na Argentina, de Vargas, no Brasil, de Velasco Ibarra, no Equador e de Paz Estenssoro, na Bolívia. Nenhum deles foi socialista, comunista ou social-democrata, mas suas propostas, políticas e posições internacionais se transformaram também no programa básico de governo apoiado por quase toda a esquerda reformista latino-americana, pelo menos até 1980. Foi este mesmo programa que inspirou a revolução camponesa boliviana, de 1952; o governo democrático de esquerda de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962; o governo militar e reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975, e o próprio governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973.. No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as pressões americanas apressaram uma opção socialista mais radical, pela coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. Modelo que orientou também as primeiras iniciativas da revolução sandinista da Nicarágua, de 1979.

Apesar de sua fragilidade, na maioria dos países, os Partidos Comunistas foram a principal organização e referência doutrinária da esquerda latino-americana, entre 1920 e 1960. Eles foram uma espécie de “primos pobres” dos comunistas europeus e asiáticos, e nunca tiveram uma estratégia autônoma da Internacional Comunista. Sua criação teórica foi pouco inovadora, e em geral se mantiveram dentro dos limites estreitos da teoria militante do imperialismo, de Lênin, e da teoria da “revolução democrático-burguesa”, de Kautski. Mas foi exatamente esta visão “etapista” do desenvolvimento capitalista e da revolução socialista que permitiu e legitimou a estratégia democrática e a adesão precoce dos comunistas à lógica do projeto desenvolvimentista, que os europeus aceitaram e adotaram só depois de 1950. Isto é, desde cedo, na América Latina, a equação foi a mesma: transição ao socialismo e igualdade = crescimento econômico e desenvolvimento capitalista. Com a diferença, com relação aos europeus, que a esquerda latino-americana considerava o pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas como caminho de transição para o socialismo que seguia sendo o objetivo final. Esta visão estratégica dos comunistas, permitiu também um diálogo fecundo com as idéias convergentes da “economia política” da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), organismo das Nações Unidas, criado em 1949, e sediado em Santiago do Chile. A CEPAL propunha para a América Latina, desde o início da década de 1950, um projeto nacional de industrialização e desenvolvimento, liderado pelo estado, mas com apoio do capital privado estrangeiro. E defendia, ao mesmo tempo, a necessidade do planejamento estratégico de longo prazo, dos investimentos em infra-estrutura, e das políticas de apoio à industrialização. Uma versão mais elaborada tecnicamente do “modelo mexicano”, apesar de não ter o seu mesmo teor antiimperialista.

Esta relação intelectual e política, dos comunistas com o “nacional-desenvolvimentismo”, existiu em quase todos os países da região, mas foi no Brasil e no Chile que ela foi mais original, fecunda e duradoura. No Brasil, esta relação ficou marcada, desde o início, por dois acontecimentos fundamentais, da década de 1930. O primeiro, foi o desaparecimento precoce da Aliança Nacional Libertadora (ANL) - uma espécie de embrião das Frentes Populares espanhola, francesa e chilena – que foi dissolvida depois do fracasso de uma rebelião militar comunista, em 1935. E o segundo, foi o golpe de estado de 1937, que deu origem ao regime ditatorial do Estado Novo e transferiu para os conservadores a liderança no Brasil do projeto de industrialização desenvolvimentista, e das primeiras políticas sociais e trabalhistas de corte urbano. Talvez por isto mesmo, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) só tenha abandonado sua estratégia revolucionária, da “Frente Democrática de Libertação Nacional”, na década de 50, quando aderiu ao reformismo democrático e à estratégia da “revolução democrático-burguesa”, que já havia sido adotada por quase todos os partidos comunistas do continente. Foi neste momento que os comunistas brasileiros começaram sua aproximação “programática” do “desenvolvimentismo conservador” de Getulio Vargas. Mais a frente, no início da década de 60, esta vertente de esquerda do desenvolvimentismo propôs um programa de reformas que acelerassem a democratização da terra, da riqueza, do sistema educacional e do sistema político que foi sintetizado, em parte, no Plano Econômico Trienal, formulado pelo economista Celso Furtado, em 1963, e abortado pelo golpe militar de 1964. Antes do golpe militar, entretanto, e do aparecimento da “esquerda armada”, a aliança e o programa “nacional-desenvolvimentista” apoiado pelo PCB foram objeto de uma crítica teórica sistemática, por parte de um grupo de intelectuais marxistas, da Universidade de São Paulo. Esta crítica teórica, entretanto, não produziu imediatamente nenhum tipo de programa alternativo ao desenvolvimentismo. E para complicar ainda mais o quadro, o regime militar, instalado em 1964, apesar do seu radicalismo anticomunista e de sua primeira opção liberal, acabou adotando na década de 70 uma estratégia nacional-desenvolvimentista, o que aumentou ainda mais o embaraço da esquerda desenvolvimentista. Talvez por isto mesmo, quando a esquerda brasileira volta à cena política democrática, na década de 80, a maior parte de sua militância jovem tinha um forte viés antiestatal, antinacionalista e antidesenvolvimentista. Só um pequeno grupo minoritário de intelectuais propôs naquele momento uma nova versão do desenvolvimentismo, que era de fato uma combinação do “capita-lismo organizado de estado”, da esquerda francesa, com o projeto de “estado de bem estar social”, do resto da social-democracia européia. Mas a grande maioria dos novos militantes, movimentos e partidos de esquerda tomaram outro rumo. Uma parte importante foi para os movimentos sociais e as “comunidades de base” que retomaram a trilha do socialismo utópico e sua crítica cada vez mais dura da esquerda tradicional e de sua opção estatista. E outra parte tomou o caminho da social-democracia, mantendo-se no campo da luta política tradicional pelo poder do estado, e propondo o abandono das políticas desenvolvimentistas e a implementação imediata das reformas e políticas neoliberais. Este projeto se materializou no Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB), criado no final dos anos 80 e liderado por alguns intelectuais marxistas que haviam participado do movimento de crítica ao nacional-desenvolvimentismo, da década de 60. Mas suas idéias influenciaram também uma boa parte da intelectualidade mais jovem do Partido dos Trabalhadores (PT), que também nasceu na década de 80, liderado por um grupo de sindicalistas de São Paulo.

No Chile, esta relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo foi completamente diferente e ocupou um lugar único na história latino-americana. Na década de 1930, os socialistas e comunistas chilenos formaram uma Frente Popular com o Partido Radical, que ganhou as eleições presidenciais de 1938, e foi reeleita três vezes, antes de ser desfeita em 1947, pela pressão americana, no início da Guerra Fria. Os governos da Frente Popular chilena seguiram basicamente o mesmo figurino mexicano, sobretudo no planejamento e financiamento das políticas de industrialização, proteção do mercado interno e construção de infra-estrutura, além da legislação trabalhista e dos programas de universalização da educação e da saúde publica. Em 1970, esta coalizão política renasceu no Chile com o nome de Unidade Popular, agora sob a hegemonia dos socialistas e comunistas, e com uma nova proposta de “transição democrática para o socialismo”. Na prática, entretanto, o programa de governo de Salvador Allende radicalizou o “modelo mexicano” na direção do “capitalismo de estado”, concebido pelos comunistas franceses. Allende acelerou a reforma agrária e a nacionalização das empresas estrangeiras produtoras de cobre, mas ao mesmo tempo, se propôs criar um “núcleo industrial estratégico”, de propriedade estatal, que deveria ter sido o embrião de uma futura economia socialista. Este foi, aliás, o pomo de discórdia que dividiu a esquerda durante todo o governo da Unidade Popular, chegando até o ponto da ruptura, entre os que queriam limitar as estatizações industriais aos setores estratégicos da economia, e os que queriam estendê-las, até originar um novo “modo de produção”, sob controle estatal. A “transição democrática para o socialismo”, de Salvador Allende, foi interrompida pela intervenção norte-americana e o golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet. E o debate da esquerda chilena sobre o “capitalismo organizado de estado” como forma de transição para o socialismo ficou sem uma conclusão. Em 1989, o Partido Socialista do Chile voltou ao governo, aliado com os democrata-cristãos mas, naquele momento, já havia mudado sua posição e aceito as novas teses e políticas neoliberais que eram dominantes entre os socialistas e social-democratas europeus. Seu objetivo já não era mais “transitar” para o socialismo, era administrar com eficiência o capitalismo e um conjunto de políticas sociais “focalizadas”, segundo o modelo neoliberal.

Em maio de 1995, o Financial Times saudou esta conversão das elites intelectuais, políticas e econômicas latino-americanas - em particular as de esquerda - ao novo consenso que se difundia pelo mundo, desde a década anterior. A verdade, entretanto, é que o Chile do General Pinochet, havia sido – depois de 1973 - o primeiro laboratório mundial de experimentação do novo modelo econômico, que Paul Samuelson chamou de "fascismo de mercado". Mas não há dúvida que foi na segunda metade dos anos 80, e durante a década de 90, que se generalizaram no continente as novas políticas preconizadas pelo "Consenso de Washington", e induzidas pela renegociação das dívidas externas dos principais países da região. Um programa ortodoxo de estabilização monetária acompanhado por um pacote de reformas estruturais ou institucionais voltadas para a abertura, desregulação e privatização das economias nacionais da região. No caso do México, a mudança neoliberal ocorreu na década de 80, e foi liderada pelo PRI, o partido criado por Lázaro Cardenas, o “pai” do nacionaldesenvolvimentismo. No caso da Argentina, a mudança se deu no início dos anos 90, liderada pelos peronistas de Carlos Menem. No caso do Chile, foram os próprios socialistas que, aliados com os democrata-cristãos, assumiram o governo em 88 e mantiveram, em grandes linhas, a política de corte liberal que vinha do período militar. Por fim, no caso brasileiro, a desmontagem do desenvolvimentismo foi liderada por uma coalizão de centro-direita, liderada pelos social-democratas do PSDB. Em todos os casos, as novas políticas foram justificadas com os mesmos argumentos usados pela social-democracia européia: a globalização era um fato novo, promissor e irrecusável que impunha uma política de abertura e interdependência irrestrita, como único caminho de defesa dos interesses nacionais, num mundo onde já não existiam mais as fronteiras nacionais, nem se justificavam portanto ideologias ou políticas nacionalistas. Com a diferença que, na Europa, a esquerda neoliberal governou sociedades que seguem sendo ricas e homogêneas, apesar do desemprego, e que já possuíam excelentes redes de proteção social universal, no início do processo de desregulação e/ou privatização de suas economias e de parte de seus sistemas de proteção social. Ao contrário da América Latina, onde as mesmas políticas foram aplicadas em sociedades extremamente heterogêneas e desiguais, com gigantescos bolsões de miséria e com redes de proteção social muito limitadas.

De qualquer maneira, no fim da década de 90, se pode dizer que a esquerda latino-americana também havia feito um giro de 180º graus com relação ao seu projeto originário que propunha a reforma agrária e políticas estatais de infra-estrutura e industrialização, substituídas pelas políticas de desregulação, privatização e abertura dos mercados. No campo teórico, também na América Latina, uma boa parte da esquerda substituiu o conceito de “sociedade de classes”, pelo da “sociedade em redes”; e trocou a crítica ao imperialismo, pela defesa do “desenvolvimento associado”.
Depois de uma década de experimentação neoliberal o balanço global é negativo, e em alguns casos, como na Argentina, os efeitos foram catastróficos. Em quase todos os países, os resultados foram os mesmos, apontando na direção do baixo crescimento econômico, e do aprofundamento das desigualdades sociais. A frustração das expectativas criadas nos anos 90, pela utopia da globalização e pelas novas políticas neoliberais, contribuiu para a multiplicação e fortalecimento dos movimentos sociais antiestatistas que se recusam, cada vez mais, a tarefa de governar. Mas ao mesmo tempo, também contribuiu para as vitórias eleitorais de líderes que se propõe governar e inovar a esquerda latino-americana. Apesar de que ainda não se consiga ver com nitidez o que será este novo caminho “pós-neoliberal”.

5. Os projetos e a fronteira teórica.

Na América Latina, a teoria da “revolução democrático-burguesa”, perdeu credibilidade histórica a partir da década de 60, e as “teorias da dependência” nunca ”decantaram” uma estratégia política e democrática consensual, e em alguns casos, inclusive, atuaram como “guarda-chuva” teórico da luta armada. Por isso, na hora da crise de 1991, e da hegemonia neoliberal, a esquerda latino-americana estava desguarnecida, e foi presa fácil das novas idéias. E hoje, existe um denominador comum, entre as posições da “esquerda neoliberal” e da “esquerda pós-moderna”: o conformismo com os desígnios da globalização. Os argumentos são diferentes, mas os dois interpretam a “mundialização” capitalista de maneira análoga: como um produto necessário e incontornável da expansão dos mercados, ou do “capital em geral”, e os dois se recusam a entender ou incorporar no seu cálculo político, o papel do poder das Grandes Potências - sobretudo da Grã Bretanha e dos Estados Unidos – na abertura das fronteiras econômicas e na aceleração da globalização financeira, no final dos séculos XIX e XX. Uma leitura dos fatos que poderia ser apenas um ponto de vista teórico entre outros, se não escondesse um passe de mágica muito mais complicado. Ao eliminar o papel do poder político no processo de globalização econômica, esta visão líbero-marxista da história despolitiza as mudanças recentes do capitalismo e, com isto, transforma muitas coisas que são decisões ou imposições políticas das Grandes Potências, num imperativo inapelável dos Mercados. Como conseqüência, todos os atos de submissão política dos governos periféricos passam ser considerados uma manifestação de realismo e sensatez com relação aos desígnios dos Mercados ou do Capital; e todos os atos de resistência dos povos menos favorecidos, se transformam automaticamente em sinais de irresponsabilidade e “populismo econômico”.

Esta foi e segue sendo a posição da “esquerda neoliberal', que foi hegemônica na década de 90, e que ainda ocupa uma posição importante nos debates acadêmicos e políticos da América Latina, apesar dos resultados medíocres e, em muitos casos, catastróficos, das políticas liberais na América Latina. Mas aquela mesma posição reaparece – de outra forma, e com outros argumentos - dentro dos movimentos sociais e das “organizações não governamentais” que se multiplicaram a partir da década de 80. E entre vários intelectuais que criticam a “globalização neoliberal” e propõem uma “democracia cosmopolita” – como é o caso, por exemplo, do sociólogo norte-americano, Immanuel Wallerstein e do filósofo italiano, Antonio Negri – mas de fato também consideram que a globalização eliminou as fronteiras econômicas e o poder dos estados nacionais. Neste sentido, repetem quase as mesmas teses e argumentos de Rosa de Luxemburgo, em 1908, a propósito da irrelevância das lutas políticas nacionais, para os movimentos de esquerda. Rosa de Luxemburgo falava de um “estado supranacional”, na era imperialista, e Antonio Negri fala de um “império pós-nacional”, na era da globalização. Negri ainda vai mais longe e considera que “a construção do Império é um passo a frente para se desembaraçar de toda nostalgia com relação às velhas estruturas de poder que o precederam, e para recusar toda estratégia política que implique no retorno aos velhos dispositivos de poder, como seria o caso dos que se propõem ressuscitar o Estado-Nação, para se proteger contra o capital mundial.” ( Hardt e Negri, 2000, p: 73). O argumento de Wallerstein é diferente: ele supõe que esteja em curso uma crise terminal do “sistema mundial moderno” e uma “transição” para um novo um novo mundo ou “universo” pós-moderno, que ele prevê para 2050. Como conseqüência, quem quiser “influir de maneira efetiva nesta transição geral do sistema mundial, para que ela avance em certa direção e não em outra, o Estado não é o principal veículo de ação. Na verdade, ele é um grande obstáculo. Por isso, o objetivo não deve ser mais a tomada do poder estatal, é assegurar a criação de um novo sistema histórico, agindo ao mesmo tempo no nível local e global” ( Wallerstein, 1995 p: 6 e 7). Em síntese, os argumentos variam mas a conclusão é uma só: todos consideram inútil a luta política da esquerda, pelo controle do poder dos estados nacionais.

Do ponto de vista estritamente político e programático, esta proposta antiestatal e de recusa do governo se enfrenta com a mesma dificuldade de todos os “internacionalismos” anteriores: ela reúne um número muito grande e heterogêneo de reivindicações que só podem avançar quando são confrontadas com algum poder capaz de resistir ou de atendê-las. E este poder segue organizado de forma territorial e nacional, os estados ainda não desapareceram, pelo contrário, seguem se multiplicando. Como se pode sustentar a tese de que globalização está acabando com os estados nacionais se pelo contrário, ela tem sido uma grande multiplicadora dos próprios estados. No início do século XX, os estados nacionais não passavam de 30 ou 40 e hoje são cerca de 190 gerados na forma de três grandes ondas: a primeira, logo depois da 1º GM, quando se dissolvem os impérios austro-húngaro e otomano; a segunda, depois da 2 º GM, quando se dissolvem os impérios europeus na Ásia e na África e a terceira, finalmente, quando se desintegra o espaço territorial do velho império russo, logo depois do fim da URSS. Neste sentido, se os estados nacionais originários nasceram na Europa do século XVI, e não eram mais do que sete ou oito, foi no século vinte que eles se transformaram num fenômeno universal ou global. Fica difícil, nesse sentido, anunciar a “morte dos estados” na hora exata em que eles se multiplicam e intensificam a sua competição, sobretudo se tivermos em conta que a maioria dos quase duzentos estados nacionais existentes nasceram durante o período áureo da globalização, ou seja na segunda metade do século vinte ? (Fiori, 1997, p: 133) Talvez por isto mesmo, apesar da retórica globalista, a luta pela democratização das sociedades capitalistas e pela conquista da cidadania, segue se dando no espaço de poder dos estados nacionais. Ou seja, existem ‘causas' e reivindicações que são internacionalistas, mas as lutas e conquistas fundamentais seguem sendo travadas território por território, estado por estado, onde os pobres e “excluídos” da terra são ‘estocados', e onde se geram e acumulam os recursos capazes de alterar a distribuição desigual da riqueza e do poder entre os grupos sociais. Além disto, não há indícios de que a globalização econômica e as novas tecnologias de comunicação consigam por si só viabilizar algum tipo de ‘democracia cosmopolita', que segue sendo uma hipótese muito longínqua e improvável, uma verdadeira utopia, quase metafísica. Por fim, a globalização não alterou algumas condições e contradições básicas do capitalismo, por isso, no plano retórico se pode falar de uma “globalização solidária” porque é uma forma de protestar. Mas na verdade é impossível pensar numa globalização capitalista que seja “fraterna”, porque afinal, a ‘globalização' é apenas um novo nome de uma tendência secular do desenvolvimento desigual do capitalismo, da mesma forma que a polarização da riqueza entre as nações e as classes sociais.

Por outro lado, do ponto de vista do argumento e da proposta econômica da “esquerda globalista”, deve-se reconhecer que existem muitos estados e economias nacionais que não tem soberania real e têm enorme dificuldade de levar à frente o seu desenvolvimento econômico. Mas, ao mesmo tempo, existem outros países que devido às suas dimensões, não têm outro caminho senão lutar pelo seu próprio desenvolvimento. E nestes casos, a pergunta que fica é sobre o que pode propor este novo socialismo utópico e esta esquerda globalista, no caso destas economias e estados nacionais que não tendem, nem podem desaparecer? A simples multiplicação de expe-riências econômicas locais de tipo solidário ou do “terceiro setor” não acabaria se transformando num projeto permanente de criação de “ilhas de felicidade solidária”, numa espécie de “micro-tribos” ou seitas urbanas e rurais, a espera do fim do capitalismo?

Às vezes, parece que algumas idéias e polêmicas ficam congeladas e esquecidas por longos períodos, e depois reaparecem, de tempos em tempos, quase idênticas, deixando claro que o problema persiste e não foi resolvido teoricamente. Como no caso desta discussão sobre os processos históricos de globalização do poder e do capital, e suas relações com as lutas políticas nacionais dos povos. A Internacional Socialista, em 1896 e a social-democracia russa, em 1903, incluíram nos seus programas, pela primeira vez, o direito universal à autodeterminação das nações. Mas ao mesmo tempo, Rosa de Luxemburgo, Karl Rádek, Joseph Strasser e vários outros membros da chamada “oposição de esquerda”, minoritária dentro da Internacional, se negaram a reconhecer este direito, ou a participar da luta pela autonomia das nações, que segundo eles se encontrava na contra-mão do movimento geral do capitalismo e do internacionalismo proletário. Eles também achavam – no início do século XX - que o “tempo” dos movimentos nacionais havia terminado, e que os povos oprimidos não tinham mais soluções econômicas e políticas nacionais. Este conflito tem raízes teóricas antigas, e no caso dos marxistas, talvez remonte ao próprio Marx e sua teoria da acumulação do capital e da globalização do “modo de produção burguês”, onde não aparece o poder político e os estados nacionais, que viriam a ser o tema central da teoria “marxista” do imperialismo. Mas assim mesmo, a ambigüidade se mantém, na teoria do “capital financeiro” e da “economia mundial” de Rudolf Hilferding e Nicolai Bukarin. Ambos falam de uma tendência do desenvolvimento capitalista que aponta na direção do “império global” do capital financeiro. e ao mesmo tempo reconhecem o papel decisivo do poder político e dos Estados Nacionais, para o sucesso “global” dos seus capitais financeiros. (Fiori, 1997, p:141 e 142) Logo depois, veio o debate do marxismo “austríaco” sobre a importância da “questão nacional” e, mais à frente, a defesa soviética dos movimentos de “libertação nacional”, na Ásia e na África, mas a questão teórica e histórica fundamental seguiu sem uma resposta definitiva. Portanto, não é de se estranhar que o tema das relações entre a luta política da esquerda, com os estados nacionais, os impérios e a globalização do capitalismo tenha reaparecido com tamanha intensidade, depois da derrocada de 1991. Mais do que isto, do nosso ponto de vista, esta é a verdadeira fronteira teórica que divide hoje a esquerda internacional, impondo-se, portanto, uma retomada histórica e teórica do problema, como condição para o desbloqueio dos caminhos do futuro.

Charles Tilly, sociólogo norte-americano que fez longa pesquisa sobre a formação dos estados europeus, fornece uma pista histórica importante para repensar a origem e a ambigüidade permanente destas relações entre o capitalismo e o sistema interestatal. No final de sua pesquisa, Tilly conclui que “no momento em que os impérios se estavam desfazendo dentro da Europa, os principais estados europeus criavam impérios fora da Europa, nas Américas, na África, na Ásia e no Pacífico. E portanto, a construção destes novos impérios externos propiciou alguns dos meios e parte do ímpeto de moldar, dentro do continente, estados nacionais relativamente poderosos, centralizados e homogeneizados, enquanto as potências européias passavam a lutar entre si nessas zonas imperiais”. (Tilly, 1996 p:244). Este fato histórico permite falar da existência de um verdadeiro paradoxo na origem do sistema estatal: “ao nascerem, seus primeiros estados se expandiram imediatamente para fora de seus próprios territórios transformando-se em seres híbridos, uma espécie de “minotauros”, meio estado-meio império. Enquanto lutavam para impor seu poder e sua soberania interna, já estavam se expandindo para fora dos seus territórios e construindo seus domínios coloniais. E, nesse sentido, se pode dizer que o “império” foi uma dimensão essencial destes primeiros estados nacionais europeus” que se transformaram no “núcleo central” competitivo do sistema estatal europeu, o núcleo dos “estados-impérios ou das Grandes Potências”. (Fiori, 2004, p: 38). Ao pesquisar este mesmo processo de formação, Max Weber identificou um tipo de relacionamento indissolúvel entre esta competição política dos estados e o processo simultâneo de acumulação do capital: “os estados nacionais concorrentes viviam numa situação de luta perpétua pelo poder, na paz ou na guerra, mas essa luta competitiva criou as mais amplas oportunidades para o moderno capitalismo ocidental... (neste sentido) foi o Estado nacional bem delimitado que proporcionou ao capitalismo sua oportunidade de desenvolvimento...”. (Weber, 1961: 249). Os ganhadores desta competição foram, sempre, os que conseguiram chegar mais longe e garantir o controle de “territórios políticos e econômicos” supranacionais mais amplos do que o de seus concorrentes, seja na forma de colônias, domínios ou de periferias independentes. “E neste sentido, se pode entender melhor porque a “expansão e universalização do sistema capitalista não foi uma obra apenas , foi e será sempre o resultado da competição entre “estados-economias nacionais” que conseguem impor a sua moeda, a sua “dívida pública”, o seu sistema de crédito” e o seu sistema de “tributação”, como lastro monetário do seu capital financeiro dentro destes territórios econômicos supranacionais em expansão contínua” (Fiori, 2004, p:46)

Resumindo nosso ponto de vista: o sistema político e econômico mundial, não é o produto de uma somatória simples e pro-gressiva de territórios, mercados, países e regiões. Do ponto de vista histórico, o sistema mundial foi uma criação do poder, do poder ex-pansivo e conquistador de alguns estados e economias nacionais européias, que se constituíram e se transformaram, durante o século XVII, no pequeno grupo das Grandes Potências. Até o século XIX, o sistema político mundial se restringia quase exclusivamente aos estados europeus, aos que se agregaram, no século XIX, os novos estados independentes americanos. Mas foi só na primeira metade do século XX que o Sistema incorporou, no seu núcleo central, duas potências “expansivas” e extra-européias, os Estados Unidos e o Japão, um pouco antes que se generalizasse, na segunda metade do século XX, o estado nacional como a forma dominante de organização do poder político territorial, através do mundo.

Além disto, do nosso ponto de vista, o sistema mundial não existiria na sua forma atual caso não tivesse ocorrido, na Europa, o casamento entre os estados e as economias nacionais. E, a partir deste momento, o que se chama muitas vezes de globalização, é o processo e o resultado de uma competição secular entre estes estados-economias nacionais. A hierarquia, a competição e a guerra, dentro do núcleo central do Sistema Mundial, marcaram o ritmo e a tendência do conjunto, na direção de um império ou estado universal, e de uma economia global. Mas este movimento não tem nada a ver com o avanço de uma espécie de “razão hegeliana” de natureza global e convergente. Pelo contrário, é um movimento que avança sempre liderado por algum estado e economia nacional em particular. E, por isto mesmo, nunca se completa, porque acaba se encontrando com a resistência das demais “vocações imperiais” do sistema. Os ganhadores transitórios, desta competição, foram sempre os que conseguiram chegar mais longe e garantir de forma mais permanente o controle de “territórios políticos e econômicos” supra-nacionais, mantidos na forma de colônias, domínios ou de periferias independentes, mas pouco soberanas. Você já disse isto um pouquinho à frente, portanto, retome de outro jeito. Mas só duas das Grandes Potências lograram impor o seu poder e expandir as fronteiras de suas economias nacionais, até quase o limite da constituição de um império mundial: a Inglaterra e os Estados Unidos. Esse processo deu um passo enorme, depois da generalização do padrão ouro e da desregulação financeira, promovida pela Inglaterra, na década de 1870. E deu outro passo gigantesco depois da generalização do padrão “dólar-flexível” e da desregulação financeira, promovida pelos Estados Unidos, a partir da década de 1970. (Fiori, 2005)

Em 1944, Karl Polanyi formulou uma tese original e provocadora a respeito desta contradição do sistema mundial e do seu impacto dentro das sociedades nacionais. Polanyi identifica um “duplo movimento” na história do capitalismo, provocado pela ação de dois princípios universais do sistema. Um, seria o “princípio do liberalismo” econômico que move a globalização ou universalização permanente dos mercados auto-regulados. E o outro, seria o princípio da “autoproteção social” que aparece como uma reação defensiva e nacional das “substâncias sociais ameaçadas pelos mercados”. (Polanyi [1944], 1980: 164). Muitos interpretam o “duplo movimento” de Polanyi como se fosse uma seqüência no tempo ou como se tratasse de um movimento pendular ao longo da história. Do nosso ponto de vista , entretanto, se trata, uma vez mais, de uma relação dialética entre o nacional e o internacional, o econômico e o político, entre o curto prazo das lutas sociais e o longo prazo das grandes transformações mundiais. (Fiori, 1999, p:63) As resistências que acabam paralisando e corrigindo a expansão entrópica dos mercados auto-regulados nascem de dentro da própria expansão mercantil, se manifestam nos interstícios do mundo liberal, e se fortalecem com a destruição que os mercados desregulados produzem, no longo prazo, no mundo do trabalho, da terra, do dinheiro e da própria capacidade produtiva das nações. Segundo Polanyi, foi isto que ocorreu na Europa, entre os séculos XIX e o XX, quando nasce e se expande um movimento simultâneo de defesa nacional e social contra o “moinho satânico” dos mercados desregulados, o movimento que está na origem macro-histórica dos grandes progressos democráticos, sociais e políticos, do pós II Guerra Mundial.

Polanyi não previu o retorno, no final do século XX, do “princípio do liberalismo” e da crença cega nos mercados auto-regulados. Do nosso ponto de vista, entretanto, não é impossível que a América Latina esteja vivendo o início de uma nova etapa de convergência entre as lutas nacionais e sociais dos povos menos favorecidos. A euforia liberal arrefeceu depois de 2000 e a guerra e o “poder das armas” voltaram ao epicentro do Sistema Mundial, ao mesmo tempo em que se multiplicam as novas formas de protecionismo das Grandes Potências econômicas. Mas à sombra imediata do poder global dos Estados Unidos, pode estar se abrindo um novo espaço e uma grande oportunidade para uma convergência “virtuosa” entre a ação “autoprotetora”, nacional ou regional, dos novos governos de esquerda latino-americanos, e a ação reivindicativa e mobilizadora dos movimentos sociais e partidos de esquerda que lutam na região, contra a desigualdade e a polarização da riqueza e da propriedade privada. Pelo menos, esta é a esperança que circula nas “veias abertas” deste continente, neste início do Século XXI.

http://www.eco.unicamp.br/asp-scripts/boletim_ceri/boletim/boletim9/06-Fiori.pdf

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