13 de agosto de 2012

Mt 25: A Dinâmica da Revolução do Reino de Deus



A pedido de estudantes da EST coloco no Blog a interpretação de Mt 25, que é parte do meu livro:
Análise de Conjuntura da IECLB - 2011
O livro está disponível com o Nilo Kolling da PPL: nilokolling@hotmail.com
Este é um novo olhar sobre este texto.

O texto de Mt 25 visto como um bloco no ponto alto do Evangelho de Mateus antes da Paixão sob o ponto de vista de Evangelho e Religião. O estudo abaixo encontra-se no PL 32, aqui um pouco retrabalhado.



Mt 25 está no contexto do Domingo de Ramos (Mt 21-25) onde Jesus fala sobre a perseguição, o jul-gamento e a segunda volta de Cristo. Mt 25 é o ponto alto destes assuntos: perseguição e julgamento de Deus. O capítulo 26 já fala da segunda feira em Betânia e a seqüência da Paixão: “Tendo Jesus acabado to-dos estes ensinamentos”, começa dizendo no capítulo 26. Os ensinamentos de Jesus acabaram no capítulo 25, o ponto alto da pregação central de Jesus: o Reino de Deus ou como Mateus prefere o Reino dos Céus. Mt 25 aponta para uma unidade e continuidade das três perícopes e não 3 textos distintos, separados e des-conectados.

1. Mt 25 começa assim – 1-13: Então, o reino dos céus será semelhante

2. Perícope – 14-30: Pois será como um homem que

3. Perícope – 31-46: Quando vier o Filho do Homem na sua majestade

Tudo está dentro da seqüência do início do capítulo 25: “Então, o reino dos céus será semelhante”; as duas outras perícopes estão emendadas na primeira e formam um conjunto. Se fossem perícopes distintas, todas começariam com: “o reino dos céus será semelhante”, como, por exemplo, em Mt 13.24-33 onde se relaciona várias parábolas distintas, onde cada perícope começa com: “Outra parábola lhes propôs”, e todas começam com: “O reino dos céus é semelhante”. Desconsidere a Nova Tradução na Linguagem de Hoje que começa a segunda perícope com: “O Reino do Céu será como”, isto não está no original grego. O Almeida é fiel ao texto grego.



Mt 25 - O Julgamento do Sistema

Para entender o nosso texto proponho olhar para todo o capítulo 25 de Mateus e faço uma leitura di-ferente da usual a partir de todo o capítulo. Não conheço comentário bíblico que aborda este capítulo desta forma. O capítulo quer explicar como é o reino de Deus e conseqüentemente o juízo: a primeira parte (1-13) diz para se estar preparado para o reino que pode se tornar realidade a qualquer momento, a segunda parte (14-30) diz como o reino não é e que a luta pelo reino traz a cruz, e, por fim, (31-46) diz qual a prática no reino, portanto, como ele é. Nas três perícopes está presente a questão do julgamento. No capítulo 26 em diante começa o julgamento de Jesus por parte do Templo de Jerusalém e por parte do Império Romano; é o confronto final entre o Reino de Deus e o reino do mundo que é vencido na Páscoa pela ressurreição de Jesus dos mortos.

Na segunda perícope é nos colocado o julgamento feita pelo sistema. O termo reino tem uma conota-ção política e religiosa. Jesus o tirou do conjunto da política e coloca-o no conjunto do religioso, une os dois. Política e Evangelho não se separam, pois a política é uma das formas de viabilizar as propostas do Evange-lho do Reino de Deus porque ela vai organizar e viabilizar uma nova sociedade não capitalista. No reino do mundo manda César (que é o representante legitimador do Modo de Produção Escravista; hoje o Estado é o representante do capital) e no Reino de Deus manda Deus, apesar de mandar na história do mundo também se confrontando com os poderosos para viabilizar a vida plena e abundante (Ex 3), pois Deus é o Senhor da história, como nos lembra o Apocalipse 1.8. O termo Reino de Deus sempre aponta para uma nova sociedade a ser construída já, hoje, uma sociedade não capitalista. Quando falamos hoje do Reino de Deus estamos desmontando o mito do pensamento único reinante que diz que não há outra saída além do capitalismo, que diz que o nosso futuro é o nosso presente (estamos condenados a viver sob o capitalismo imperialista eter-namente), portanto não há futuro. Nós cristãos dizemos que há um futuro: há outra forma de organizarmos a nossa vida e a nossa sociedade, que é o Reino de Deus, em oposição ao capitalismo.

O próprio Evangelho de Mateus, em Mt 25.14-30, nos faz uma análise da estrutura do Modo de Pro-dução Escravista da época do império romano mostrando como ele funciona, qual sua dinâmica. Logo após, Mt 25.31-46, nos mostra como é o Projeto do Reino de Deus, onde as vítimas geradas pelo sistema dizem o que nós temos que fazer para podermos participar do Reino de Deus e assim combater o sistema atual liber-tando os oprimidos do sistema opressivo. Todo o capítulo 25 de Mateus é um exercício de análise de conjun-tura, para sabermos como também fazer hoje em dia a leitura dos sinais dos tempos. Somos desafiados a nos prepararmos para o Reino lendo os sinais da realidade e propor o novo, a partir do Evangelho, em contrapo-sição ao atual. A primeira parábola nos diz que os cristãos sempre esperam pelo novo (conforme a parábola: pelo noivo) e com isto está dizendo que não colocam fé no velho, no sistema atual, ele já está aí, por isso não precisam esperar por ele. “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça”. 2 Pe 3.13



Sub-temas:

Mt 25.1-13: Fazer Análise de Conjuntura para não perder o Kairós.

Necessidade de fazer constantemente Análise de Conjuntura para não andar no escuro e não perder o Kairós, a revolução do Reino de Deus. Estejam preparados e façam uma análise correta da realidade!

Mt 25.1-13 é uma parábola do Reino de Deus que quer nos chamar a atenção sobre como precisamos estar alertas para podermos saber ler os sinais dos tempos; quer dizer: como fazer análise da estrutura e da conjuntura para não ser pego de surpresa pelos acontecimentos. A parábola nos adverte para sempre estarmos preparados, sempre termos uma reserva de azeite porque não sabemos quanto tempo vai durar a espera até que irrompa a nova realidade do Reino de forma definitiva. Devemos estar sempre preparado para o momento histórico que virá e nunca nos conformamos com este século, nos acomodando.

A parábola de Mt 25.1-13 nos alerta para que estejamos preparados para esta tarefa de saber fazer uma análise correta da estrutura e da conjuntura de nossa sociedade. Para poder fazer uma análise de conjun-tura correta precisamos conhecer o sistema em que o mundo está organizado, qual a estrutura de nosso sis-tema econômico e como ele se desdobra e se articula. Isto significa que precisamos estudar o modo de pro-dução escravista do tempo do império romano (NT), o modo de produção tributário (AT) e hoje temos que estudar o modo de produção capitalista para podermos fazer uma correta análise de conjuntura dentro da realidade brasileira e latino-americana. Caso contrário não entenderemos nem o texto bíblico e nem a reali-dade de hoje. Por isso no próximo texto Jesus faz uma análise da estrutura do sistema escravista sob o Impé-rio Romano, para dar um exemplo ao povo da época de como o mundo era e de como ele funcionava.



Mt 25.14-30: Análise de Estrutura do Modo de Produção

Jesus faz uma Análise da Estrutura do Modo de Produção Escravista que aponta para a cruz, para quem não se enquadra e põe areia na engrenagem do sistema – Teologia da Cruz. Mt 25.14-30 faz a descrição da realidade do tempo de Jesus sob o Modo de Produção Escravista. Esta descrição da realidade mostra como o Reino de Deus não é, e que quem luta pelo Reino de Deus terá a cruz como conseqüência.

Esta perícope faz uma leitura da realidade e mostra como funciona a luta de classes no império roma-no: homem (patrão, senhor de escravos) x servos (escravos). Jesus começa colocando a realidade da luta de classes no Modo de Produção Escravista: Senhor de escravos versus escravos. Quem tem escravos e pode viajar para fora do país? Quem possui 204 kg de ouro (6 talentos)? O escravocrata rico. Quem tem escravos é aliado e sustentador do sistema escravista, tem uma prática de opressão e de acúmulo. É 1 senhor de escravos e 3 escravos que mantém e reproduzem a economia do senhor de escravos. No escravismo era assim em que os escravos eram os únicos que trabalhavam, mantinham e reproduziam, assim, a riqueza dos senhores. A função do escravo é reproduzir a riqueza do seu senhor, mas ele não deixa de ser escravo. Reproduzindo a riqueza do patrão ele reproduz a sua própria escravidão.

É elogiado quem faz o jogo do patrão e entra no esquema da economia opressora, que é o caso dos dois primeiros escravos. Progride e é bem visto e elogiado pelo patrão quem pratica e se enquadra na dinâ-mica do sistema. Um escravo resiste ao sistema e o boicota e não trabalha para dar mais riqueza para o patrão e assim ameaça a existência do próprio sistema escravista e isto resulta em castigo para o assim chamado: servo mau e negligente (v.26). Este 3º escravo enterrou o dinheiro e não entrou no esquema da especulação financeira do sistema e não foi considerado eficiente e produtivo; nem pôs o dinheiro no banco para alimentar o sistema financeiro especulativo. Ele resistiu à proposta do sistema de enriquecer mais ainda o seu patrão com o seu trabalho escravo e assim boicota e anula todo o sistema escravista. Ele fez subversão.

V. 24-25 descreve o patrão que ceifa onde não semeia  é a prática do sistema romano de invadir massacrar e saquear outros países, como os USA e seus aliados fazem hoje. O v. 24 diz que o patrão é severo - romanos eram muito repressores, a revolta se pagava na cruz. Lembramos aqui o texto de Lc 13.1: “Naquela mesma ocasião, chegando alguns, falavam a Jesus a respeito dos galileus cujo sangue Pilatos misturara com os sacrifícios que os mesmos realizavam”. Não há misericórdia para com os que não se enquadram no sistema opressivo e não se submetem à dinâmica do sistema opressor. O sistema necessitava de escravos, que deviam ser fiéis reprodutores do sistema, para se poder acumular sempre mais. Para conseguir escravos se fazia guerras e se massacrava povos inteiros, se exterminava sua cultura e se saqueava suas riquezas que aumentavam o acúmulo dos escravistas romanos e seus aliados (Ap 18). Hoje pela ideologia da classe domi-nante se produz e reproduz um povo pacato, ordeiro, pacífico e trabalhador (como nos falam os oradores do sistema) que reproduz o sistema porque não sabe como ele funciona e como funciona a sua exploração.

V.v. 28-29 tira de quem tem um e o dá ao que tem dez. Assim funciona o processo de acumulação até hoje. Dar ao que já tem muito é a prática do sistema, também hoje. Tirar do que tem pouco para repassar ao que já tem muito é a experiência dos camponeses palestinos saqueados pelos impostos e ocupação romana; é também a experiência da classe trabalhadora de hoje.

V. 30 mostra o resultado do sistema = choro, trevas e ranger de dentes. Quem não entra no sistema apanha e é expulso e fica à margem, no sofrimento. Até os escravos são incentivados a entrar nas propostas do sistema escravista que os massacram. O sistema trabalha bem a ideologia. Quem resiste ao sistema é cas-tigado! O sistema também diz, como hoje, que não há salvação fora dele.

O v. 27 deixa claro que o sistema exige lucros para o patrão. A especulação ajuda o sistema a se man-ter. Inútil (v. 30) é quem não produz acúmulo para o sistema; este é marginalizado e excluído dos benefícios do sistema, que são meras migalhas. Por isso os povos indígenas são subversivos porque não produzem para o sistema e nem os camponeses que não produzem commodities para exportação. Alguns são integrados como trabalhadores escravos nas fazendas do agronegócio. Então, por que fazer reforma agrária e demarcar terras indígenas e quilombolas? São uns inúteis! Os escravos fiéis ao sistema tinham algumas regalias (foram colocados para administrar mais bens), mas continuavam escravos! Os v.v. 21 e 23 exaltam os escravos fiéis, só que eles continuam escravos não foram libertos após terem conseguido muito lucro para o patrão. Assim como hoje o peão trabalhador é elogiado quando produz e reproduz para o sistema, mas continua peão. São chamados de bons porque reproduzem o sistema e defendem os interesses deste. O sistema só pode aprovei-tar os escravos fiéis; os outros são uma ameaça que precisa ser eliminada. Assim também hoje no capitalismo são elogiados estes trabalhadores/as que são bons reprodutores do sistema e recebem algumas vantagens salariais ou cargos melhores, mas continuam trabalhadores que não possuem os meios de produção e por isso precisam eternamente vender a sua força de trabalho ao patrão para reproduzir a riqueza deste que por sua vez vai realimentar o sistema que o oprime. O terceiro escravo interrompe esta dinâmica opressiva. Já por ser considerado menos produtivo e menos eficiente para o sistema recebe apenas um talento, é preguiçoso mesmo.

Nesta parábola Jesus adverte que na luta pelo Reino de Deus, quando não entramos e quando boico-tamos a dinâmica do sistema opressivo, a cruz nos é imposta: v. 30: “E o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes”. Teologia da cruz e não da glória. Quem luta pelo Reino de Deus pode esperar a cruz como algo automático, pois a luta pelo Reino de Deus é lutar contra o sistema deste mundo, hoje o capitalismo, que é opressivo por princípio. Os mártires da primeira comunidade atestam este fato como nos relata a Ata do martírio de Justino e de seus companheiros:

“Vindo ante o tribunal, o prefeito Rústico disse a Justino: - Em primeiro lugar, vocês acreditam nos deuses e obedecem aos imperadores?

Justino respondeu: - A coisa impecável e que não admite condenação é obedecer aos mandamentos de nosso Salvador, Jesus Cristo.

O prefeito Rústico disse: - Que doutrinas você está se agradando, miserável?

Justino respondeu: - Sim, desde que eu os sigo de acordo com o reto dogma.

O prefeito Rústico disse: - Que dogma é esse?

Justino respondeu: - O dogma nos ensina a dar culto ao Deus dos cristãos o qual nós temos por Deus só, o que desde o princípio é o criador e autor da criação inteira, visível e invisível, e para o Deus Jesus Cris-to, para o filho de Deus, do qual de antemão falaram os profetas que viria ao gênero humano como o pro-clamador de salvação e professor de ensinos bonitos. E eu, pequeno homem que eu sou, penso que eu digo muita pouca coisa para o que merece a divindade infinita, enquanto admitindo isso para falar dela isto era necessariamente virtude profética, porque profeticamente foi pregado sobre isto de quem que eu há pouco lhe disse que é o filho de Deus. Porque você tem que saber que os profetas, inspirados divinamente falaram com antecedência da vinda dele entre os homens.

O prefeito Rústico disse: - Nós já viemos ao assunto proposto, para a pergunta necessária e urgente. Ponham-se juntos e por unanimidade sacrificar aos deuses.

Justino disse: - Ninguém que está em seu perfeito juízo passa da piedade para a impiedade.

O prefeito Rústico disse: - Se vocês não obedecerem, vocês serão castigados inexoravelmente.

Justino disse: - Nosso desejo mais ardente é sofrer para amor de nosso Deus Jesus Cristo para salvar-nos, porque este sofrimento será transformado em salvação e confiança ante o tremendo e universal tribunal de nosso Senhor e Salvador.

No mesmo sentido falaram os demais:

- Faça o que você quer; porque nós somos cristãos e nós não sacrificamos aos ídolos.

O prefeito Rústico pronunciando a sentença disse:

"Esses que não quiseram sacrificar aos deuses nem obedecer ao mandato do imperador, sejam, depois de chicoteados, conduzidos à tortura, sofrendo a pena capital de acordo com as leis.”

Sobre isto fala em Hb 11.35-36: “Alguns foram torturados, não aceitando seu resgate, para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez, passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada”.

Mt 25.31-46: A Dinâmica da Revolução do Reino de Deus

Esta é a Proposta e a Dinâmica do Reino de Deus que acolhe e organiza os excluídos e massacrados pelo sistema vigente; é a Proposta de Jesus frente à realidade de opressão.

O v. 31 contrapõe Jesus ao patrão da parábola anterior. Lá o patrão é o juiz, aqui Jesus é o juiz. Lá o patrão (sistema) julga e aqui Jesus julga com outros critérios e medidas e a partir de outra proposta: a partir das vítimas do sistema econômico escravista.

Só que Jesus julga nações inteiras pela sua prática com as medidas baseadas no amparo, acolhimento, solidariedade, resistência e a favor dos fracos. Na parábola anterior só o patrão julga pela prática do sistema contra o fraco e quem resiste ao sistema. No texto anterior só os escravos são julgados a partir de sua prática de apoio ou não ao sistema. Aqui todos são julgados a partir de sua prática a favor ou contra as vítimas do sistema, inclusive Roma com seu sistema escravista. Ninguém escapa da justiça divina. Os que ajudaram e acolheram as vítimas do sistema deste mundo são justos e terão a salvação - v. 46. O critério para a nossa ação é dada pelos que sofrem e são vítimas do sistema e não por nós mesmos. São os que foram enfraqueci-dos e empobrecidos, as vítimas do sistema opressivo, que dizem o que nós devemos fazer. Quem atende o seu chamado, tem misericórdia e é solidário é salvo. Aqui se parte da prática automática da fé (em favor dos fracos e vítimas do sistema) como critério de salvação.

Critério para ser justo  v. 35-36,40 é o atendimento às vítimas do sistema e com isto se denuncia o próprio sistema como gerador destas vítimas. "Olha para a tua vida. Se não te encontrares, como Cristo, no Evangelho, em meio aos pobres e necessitados, então que saibas que a tua fé ainda não é verdadeira, e que certamente ainda não provaste a ti o favor e a obra de Cristo", diz Lutero.

Tertuliano, falando da prática cristã básica, pergunta sobre a situação de uma mulher cristã que está casada com um pagão:

“Ele lhe permitirá ir rua por rua e penetrar em casas de estranhos e principalmente nos barracos dos mais pobres para visitar os irmãos?”

Hipólito de Roma, século III:

“Escolhidos os que receberão o batismo, sua vida será examinada: se viveram com dignidade enquan-to catecúmenos, se honraram as viúvas, se visitaram os enfermos, se só praticaram boas ações. E, ao teste-munharem sobre eles os que os tiverem apresentado, dizendo que assim agiram, ouçam o Evangelho.”

Didaqué (Catecismo dos Primeiros Cristãos da época de ±100 d.C.) IV,5-8:

“Não seja como os que estendem a mão na hora de receber e a retirar na hora de dar. Se você ganha alguma coisa com o trabalho de suas mãos, ofereça-o como reparação por seus pecados. Não hesite em dar, nem dê reclamando, pois você sabe quem é o verdadeiro remunerador da sua recompensa. Não rejeite o ne-cessitado. Divida tudo com o seu irmão, e não diga que são coisas suas. Se vocês estão unidos nas coisas que não morrem, tanto mais nas coisas perecíveis.”

Maldito é quem não atende, não acolhe e não vai ao encontro das vítimas do sistema. Abençoado, salvo é aquele que não entra no sistema e pratica a diaconia. Aqui nem se fala explicitamente da fé em Jesus ou em Deus Pai. A ação da solidariedade e acolhida decorrem automaticamente como gesto de misericórdia (Misericórdia quero e não holocaustos. Mt 9.13). No texto anterior era maldito aquele que não entra no sis-tema; aqui é o contrário: quem entra no sistema e o reproduz é maldito.

Denúncia do sistema: O sistema traz, produz e reproduz:

Fome  expulsa da terra, não tem trabalho, cria sem terra.

Sede  havia multidões de andarilhos, sem lar e terra percorrendo o país na paisagem desértica da Palestina.

Nudez  pobre não tem roupa, só trapos.

Prisão  quem resiste ao sistema ou não pode paga as dívidas vai preso ou tem que roubar para viver e por isso vai ser preso.

Doença  pobreza e miséria trazem a doença.

Forasteiros  muitos vão para o exílio ou escravidão romana via falta de pagamento de dívidas ou revoltas. Também há os que vão para a Palestina, há uma migração intensa. Forasteiros, migrantes, empo-brecidos e sem cidadania romana eram em sua maioria as pessoas das primeiras comunidades cristãs. São os “paroikoi” - os paroquianos.

Como nos relata Aristides, cidadão romano (não cristão) de 125 d.C. que escreve sobre os cristãos: “Eles andam em humildade e bondade: não existe falsidade entre eles; amam uns aos outros, se ouvem que alguém dentre eles é preso ou oprimido por causa do nome do seu Messias, todos providenciam para suas necessidades, e quando possível de ser liberto eles o libertam e se há alguém entre eles pobre e necessitado, jejuam dois ou três dias para suprirem-no com alimento de que precisa”.

“Eles não desviam a sua atenção das viúvas, e os órfãos eles libertam de quem os violenta”. O texto expõe a prática exigida aos batizados das primeiras comunidades. Esta é a prática de fé dos batizados que confere com as exigências do texto.

Quem vive segundo o sistema diz que estes: os famintos e os sedentos, são o preço do progresso. Je-sus diz que isto é resultado do sistema econômico escravista romano opressor.

Os v. 37 e 44 perguntam: Senhor, quando foi que te vimos... Jesus deixa bem claro que ele é e está no faminto,... a vítima do sistema. Ajudando as vítimas do sistema se estará combatendo o sistema em si, pois se terá de atacar as causas do sofrimento e da opressão. Como acabar com a fome? É devolvendo as terras aos camponeses, que o Estado Romano expropriou dos camponeses e deu aos seus aliados judeus ou aos soldados que serviram por 20 anos nas legiões romanas. Acolher e dar de comer aos famintos e sedentos é acabar com o sistema que os cria.

Jesus começa dizendo que para resolver a situação econômica tem que atacar a base do sistema: fome se acaba com a devolução das terras ao povo, com uma revolução agrária. O povo passa a controlar os meios de produção: a terra, assim se acaba com a fome e se muda as relações de poder. Terra não é somente terra, mas é poder. O segundo item é a água que é fundamental para a vida e para a agricultura e para a pecuária, algo escasso na Palestina, e hoje, sempre mais, em muitos locais do Planeta. O terceiro item é a roupa, o povo empobrecido vestia trapos, tem que se recuperar a dignidade da pessoa. Se o povo tem acesso aos meios de produção: a terra e a água automaticamente melhoram as condições de vida e assim o povo poderá também se agasalhar contra o frio. O quarto item é a prisão dos pobres por causa das dívidas ou por serem pobres tiveram que roubar (isto lembra Pv 30.7-9: “Duas coisas te peço; não mas negues, antes que eu morra: afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem a pobreza nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto, te negue e diga: Quem é o Senhor? Ou que, empobrecido, venha a furtar e profane o nome de Deus.”). Os empobrecidos têm que contrair dívidas, que quando não sal-dadas, trazem prisão ou escravidão para eles e seus familiares (Mt 18.23-35). O quinto item é a doença que aparece muito nos Evangelhos, pois a miséria e falta de água geram muitas doenças. E sexto item é o aco-lhimento dos forasteiros sem direitos (eram os paroikoi da primeira comunidade), que hoje é tema quente de discussão no primeiro mundo, cujas fronteiras se fecham para eles.

Quem não se solidariza com as vítimas do sistema também não o combaterá. O acolhimento dos em-pobrecidos é feito de uma forma espontânea que brota da prática da fé. Jesus Cristo continua não sendo re-conhecido como estando presente em meio às pessoas empobrecidas. Assim como os judeus não o reconhe-ceram como sendo o Messias, assim também a comunidade cristã tem dificuldade de reconhecê-lo nos mas-sacrados pelo sistema. Jesus nasceu, morreu, resuscitou e continua sendo pobre e continua sendo vítima do sistema, esta é a revelação. Nós precisamos optar de que lado queremos ficar: ficar do lado de Jesus é correr o risco de o sistema nos pegar e nos julgar e nos impor a cruz porque lutamos contra o sistema deste mundo, hoje o capitalismo, e a partir daí faremos parte dos massacrados e vamos necessitar de solidariedade e aco-lhida  tomai a vossa cruz e sigam-me, diz Jesus. A comunidade cristã é ao mesmo tempo acolhedora e aco-lhida.

O v. 46 fala do castigo eterno para os causadores do sofrimento e os que o apóiam e o fortalecem. Justo é o que ampara e acolhe as vítimas do sistema boicotando-o e não se enquadrando na dinâmica do sis-tema, que é excluir os pobres e produzir mais pobres. Ai daqueles que não se solidarizam com as vítimas do sistema e não lutam contra o mesmo, que assim cria estas vítimas. Manifesto Chapada dos Guimarães entra aqui, quando fala em renegar o sistema econômico opressor. Como fica a maioria das pessoas de nossas co-munidades e também pastores/as, que com medo de serem marginalizados na comunidade e na sociedade ou expulsos das paróquias quando se opõe e combatem o sistema capitalista, se negam a fazer um trabalho com as vítimas do sistema: os sem terra, atingidos por barragens, sem teto, desempregados e estrangeiros?

A diferença no final é que no texto anterior o pobre (escravo subversivo que boicota o sistema) vai para o castigo e sofrimento; aqui vai para o castigo quem apóia o sistema e não se solidariza com os empo-brecidos e vítimas do sistema. A salvação é para quem acolhe as vítimas do sistema e resiste dando acolhida aos que passam fome por causa do sistema e não tem terra e trabalho. Não tem terra e trabalho porque os romanos não obedecem ao mandado de Deus, e sim, eles agem como deuses se apossando da terra e das pes-soas. Antes a terra e as pessoas eram de Deus (Lv 25.23), agora são do Estado que dá a terra a seus aliados ou aos soldados que serviram no exército por 20 anos e dá as pessoas como escravas aos escravocratas.



Próximo texto  Mt 26.1-5

Este texto fala do plano para matar Jesus, que resiste e é contra o sistema (representado pelo Templo de Jerusalém e pelo Estado romano); é conseqüência do texto anterior. Quem resiste e denuncia o sistema é uma ameaça e tem que ser castigado até a morte, morte de cruz. Esta é a conclusão lógica e a conseqüência de certa prática de fé. Hoje, como resistimos ao modelo capitalista neoliberal globalizado? Ou fomos coop-tados por ele e o apoiamos? Xingamos os empobrecidos de vagabundos e preguiçosos como se a pobreza fosse sua própria culpa? Somos contra os que resistem ao sistema deste mundo (os movimentos populares, sindicatos combativos, povos indígenas e partidos da classe trabalhadora) e, assim, apoiamos o sistema? A nossa salvação ou a nossa condenação dependem desta resposta.

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