Economia e Vida (I): a missão - 05.02.10
Jung Mo Sung
Extraído da Página www.adital.com.br
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Nas próximas semanas, uma boa parte das comunidades católicas e de outras Igrejas que participam da Campanha da Fraternidade Ecumênica vai começar a debater sobre “economia e vida”. Eu gostaria de contribuir nessa discussão com uma série de artigos (espero que eu possa manter o ritmo semanal) sobre o tema da CF.
Quero começar com a pergunta: qual é o assunto central da CF? Muitos poderão responder rapidamente que é a economia. Respostas rápidas assim podem nos levar a repetir os velhos esquemas mentais e nos fazer a reduzir a CF a discussões sobre temas e questões econômicas, como por ex., o desemprego, pobreza, economia solidária etc.
Entretanto, o tema proposta pela CF não é economia, mas sim a relação entre “economia e vida”, vista na perspectiva da fé cristã. Eu gostaria de destacar aqui duas dimensões dessa relação:
a) a materialidade da vida;
b) o aspecto teológico-espiritual da economia.
Há em muitas tradições religiosas, seja do Ocidente ou do Oriente, uma tendência de “espiritualizar” a noção de vida. Por exemplo, quando cristãos falam da salvação, uma grande parte pensa na salvação da alma. Isto é, estão preocupados com a vida eterna da alma. A vida que interessa realmente é a eterna de um “ser incorpóreo” (sem corpo). Com isso, a noção de vida vai se “espiritualizando” (no mal sentido), perdendo a sua dimensão corpóreo-material. Por isso, a missão das igrejas se concentra na evangelização ou na Pregação da Palavra entendidas como não tendo relação com aspectos materiais e econômicos da vida humana. A ação ou preocupação social em favor das pessoas pobres ou em necessidade se torna um complemento secundário à missão. O mais importante seria a salvação da alma.
Essa é uma das razões pela qual muitos grupos religiosos não se interessam pelo tema ou questões da economia nas suas discussões ou preocupações religiosas. Em grupos assim, o tema da CF deste ano não é importante para missão das Igrejas e será esquecido logo após a Campanha, se é que não será deixado de lado até mesmo no período da Campanha.
Essa separação é reforçada também, mesmo que inconsciente ou não intencionalmente, por grupos que assumem, em nome da sua fé, lutas econômicas e sociais, mas não conseguem elaborar um discurso religioso-espiritual capaz de articular de modo coerente a relação economia e fé. Esses grupos tendem a justificar as suas lutas e preocupações em nome da ética (bem-comum) ou da doutrina social da Igreja, mas não em relação à evangelização, salvação ou missão da Igreja. Infelizmente, muitos cristãos atuantes no campo econômico-social-político têm dificuldade em falar sobre evangelização, salvação ou missão, como se isso não fizesse parte do “cristianismo de libertação” ou como se “libertação” não tivesse muito a ver com salvação. (Provavelmente uma boa parte da responsabilidade disso cabe a teólogos, assessores e formadores).
A CF deste ano deve ajudar as comunidades a tomarem mais consciência da materialidade da vida e da íntima relação entre essa dimensão e a salvação. A Bíblia, diferentemente da filosofia grega que divide o ser humano em corpo X alma, nos ensina que, na criação, Deus insuflou nas narinas do ser humano “um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Nós somos seres viventes e como tais lutamos contra a morte. E a imagem de “sopro de vida” nos lembra que a vida é o dom mais precioso que recebemos de Deus, que a vida vem de “dentro” de Deus (nosso Deus é Deus da Vida) e que, como sopro, a vida é algo frágil que precisa ser continuamente cuidada e preservada. Por isso, a Bíblia continua a narrativa dizendo que Deus fez brotar da terra “toda espécie de árvore formosa para ver e boas de comer”. A vida humana é para ser vivida na formosura, beleza, e com boa comida partilhada.
É pela mesma razão que Jesus disse que veio para que todos nós tenhamos vida e a tenhamos em abundância (cf. Jo 1010), assim como nós celebramos na eucaristia a memória de Jesus, que viveu e lutou para que a mesa compartilhada fosse uma realidade para toda a humanidade e, por isso, deixou o seu corpo como comida e o seu sangue como bebida. E na missa católica apresentamos, na oferta, “o pão que é fruto da terra e do trabalho do homem”.
A vida humana depende do trabalho e da “natureza”, depende também de como funciona a economia. E salvar a vida contra as forças da morte e contra as mentiras (8º. mandamento, na versão da Igreja Católica e 9º na versão das Igrejas protestante) e idolatrias que justificam essas mortes em nome de falsos deuses das (2º/3o. mandamento) é a missão do cristianismo e das igrejas.
Se perdermos de vista a dimensão material-econômica da vida, perdemos de vista o ser humano real e concreto e, assim, perdemos o núcleo da missão cristã e o que faz valer a pena sermos cristãos hoje, apesar de tudo. (No próximo artigo, o aspecto teológico-espiritual da economia).
(Autor, entre outros, de “Se Deus existe, por que há pobreza?”, Ed., Reflexão).
Economia e Vida (II): Deus e ídolos na economia
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior , eu tratei da “materialidade da vida”, que é um dos aspectos fundamentais do tema da CF deste ano: “Economia e vida”. Neste artigo, eu quero continuar a reflexão abordando um segundo aspecto, “o aspecto teológico-espiritual da economia”.
À primeira vista, falar em aspecto teológico-espiritual da economia soa estranho para a maioria da população. Pois a economia trataria das questões materiais e a teologia e a espiritualidade, das questões imateriais. Esta visão que separa e opõe a economia da teologia e espiritualidade é uma característica do mundo moderno, que separou os campos da vida social (por ex, o campo econômico e o religioso) de uma forma que os vê como independentes e autônomos. E, estranhamente, muitos dos grupos religiosos que se opõem ao mundo moderno assumem essa separação moderna como algo “natural” ou “divino”.
A afirmação de Jesus, “Ninguém pode servir a dois senhores. ... Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro.” (Mt 6,24), mostra que na tradição cristã, e nas sociedades antigas, há uma relação entre a economia e teologia. E aqui é preciso prestar atenção: não é relação entre economia e ética ou entre a economia e a doutrina social da Igreja, mas sim entre economia e teologia! Jesus coloca uma disjuntiva: servir a Deus ou a Dinheiro. Isto é, Jesus mostra que dinheiro pode ser e foi colocado no mesmo nível de Deus. Por isso, há relações de seres humanos com o dinheiro que se tornam uma questão teológica, uma questão de discernimento entre o Deus verdadeiro e o deus falso, ou ídolo.
O que as Igrejas cristãs fazem normalmente, quando tratam das questões econômicas, é propor uma doutrina social, que costuma não ter o mesmo status de teologia. É como se fosse uma aplicação derivada da teologia aos problemas do mundo social, uma aplicação que não faria parte da essência da reflexão teológica e da evangelização. Entretanto, Jesus, ao colocar a oposição entre o “servir ao Dinheiro” e o “servir a Deus”, eleva a questão econômica ao coração da teologia e da evangelização.
Porém, é preciso tomar outro cuidado. Jesus não condena dinheiro ou economia de uma forma geral. O que ele condena é a transformação do dinheiro no sentido último da vida, no critério máximo para decidir o que é bom ou mal, quem deve viver ou morrer. Na Teologia da Libertação, essa discussão foi desenvolvida especialmente pela “escola do DEI” (Departamento Ecuménico de Investigaciones, em Costa Rica, com nomes como Franz Hinkelammert e Hugo Assmann), que cunhou a expressão “a idolatria do mercado”. A economia de hoje é muito diferente do tempo de Jesus, por isso, a melhor forma de criticar a idolatria que ocorre na ou via economia é a do mercado, e não mais a do dinheiro. Porém, é preciso lembrar que Assmann e Hinkelammert também criticam o fazer do mercado algo absoluto, o último critério para as decisões sobre a vida e a morte na sociedade (idolatria); mas não o mercado como tal. Pois, não é possível organizar a economia e a sociedade hoje sem mercado.
Servir a um “deus falso”, ídolo, deus que exige sacrifícios de vidas humanas, é um tema da teologia, mas também da espiritualidade. Pois “servir” a Deus ou ídolo implica em dedicar uma vida, em encontrar o sentido da vida e a motivação para viver nesse serviço. A questão central hoje, em termos de evangelização, não é anunciar a Deus a um mundo não-crente. Mas a de discernir entre uma espiritualidade e teologia que nos leva a Deus que se revelou na vida, morte e ressurreição de Jesus; e a outra que nos leva ao ídolo, que sempre se mostra como um deus poderoso, radiante e glorioso no mundo.
Esta breve reflexão nos mostra que há, pelo menos, dois níveis na discussão da economia. A tarefa teológica da crítica da idolatria – que pertence ao coração da tradição bíblica – que ocorre na economia e da proposição de uma nova noção de Deus como fundamento de uma nova economia. (Max Weber chega a dizer que as ciências sociais devem desvelar os deuses impessoais que estão por detrás das ações na economia e na sociedade, mas não propõe uma crítica a esses deuses.) Outro nível é o do campo técnico-operacional da economia. A discussão sobre a melhor forma de combater a inflação, de aumentar o nível de emprego ou melhorar a distribuição de renda, não é do campo da teologia, mas sim das ciências econômicas. Isto é, não podemos tirar da Bíblia, da teologia, ou até mesmo da doutrina social da Igreja, críticas ou propostas no campo operacional da economia.
É preciso fazer uso das “mediações”, como sempre insistiu a Teologia da Libertação. Da análise da economia, desvelar os seus fundamentos teológicos e econômicos; da reflexão teológico-bíblica, dialogar com as ciências econômicas, sociais, políticas e antropológicas para ver quais as diretrizes que melhor expressam os valores da fé. Diretrizes essas que não podem ser confundidas com “receitas” ou práticas econômicas concretas, pois esse é o campo da discussão e de resultados sempre provisórios. Devemos evitar a tentação de absolutizar as “nossas” propostas econômicas, negando diálogo e debate com grupos que, mesmo tendo valores convergentes, pensam de modo diferente os caminhos concretos da economia.
Por tudo isso, para uma boa reflexão teológica socialmente relevante hoje, é fundamental estudarmos as interfaces entre a teologia e economia.
(No próximo artigo, espiritualidade nas experiências econômicas do cotidiano).
[Autor de “Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social”].
Economia e vida (III): o espírito do capitalismo e a conversão
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No primeiro artigo desta série sobre “economia e vida”, eu abordei a dimensão material da vida, no segundo, a dimensão teológica da economia. Completando a primeira parte (sobre as questões de fundo desta relação), eu quero propor neste artigo algumas reflexões sobre a dimensão espiritual da economia.
No passado, não tão distante, quando as pessoas se sentiam “impuras” ou, na linguagem mais contemporânea, deprimidas, iam às igrejas ou outros lugares sagrados para rezar ou participar de algum rito. A ida a um lugar sagrado e a participação em ritos sagrados lhes fazia sentir mais puras, mais fortes e dignas para enfrentar a vida. Hoje em dia as pessoas preferem ir a um Shopping Center fazer compras ou ver vitrines. E o mais interessante é que saem de lá com mais vigor e ânimo para viver. É como se o desejo de viver tivesse sido fortalecido. Não é à toa que a arquitetura dos shoppings tem muitos elementos que nos lembram templos e catedrais.
Esse pequeno exemplo nos mostra que há um tipo de experiência espiritual que acontece na vida cotidiana das pessoas através do mundo da economia. Essas experiências econômico-espiritual é tão marcante nos dias de hoje que, mesmo nas igrejas a questão do consumo tem uma presença muito forte. Isso não se dá somente na já bastante conhecida e criticada teologia da prosperidade – presente no mundo protestante, evangélico e católico – que ensina que a benção de Deus se manifesta através de ou garante a prosperidade econômica. Mas também em outras manifestações como o orgulho por causa de um padre ou pastor da sua igreja vender muitos CDs ou fazer muitos shows. Padres e pastores de sucesso (espiritual-econômico?) que costumam usar roupas e carros de marcas famosas e caras estão se tornando modelos para novos candidatos ao sacerdócio ou pastorado e também para jovens cristãos.
Com isso não estou querendo dizer que freqüentar um shopping ou comprar roupa de moda é viver a espiritualidade do mercado. Isso seria cair em outro extremo. O problema não está em comprar algo bom e bonito em um centro de compras (shopping center), mas em sentir-se mais digno e “puro” por causa disso. A questão espiritual não está no ato de comprar ou na mercadoria que compra, mas no sentido mais profundo que encontra e vive nessa experiência. O que esse tipo de experiência espiritual, que acontece em quase todas as partes do mundo hoje, mostra é que esta não é uma questão meramente individual, de algum erro moral ou espiritual de alguns indivíduos, mas tem raiz em uma transformação profunda que ocorreu no mundo moderno capitalista.
Max Weber sintetizou isso ao dizer que a obtenção de mais e mais dinheiro se tornou o supremo bem que norteia a vida no capitalismo. Antes, as pessoas trabalhavam e lidavam com as questões econômicas em função da satisfação das necessidades de viver (a dimensão material da vida). Agora, ganhar dinheiro passou a ser a finalidade última da vida. Hoje, com a cultura do consumo, consumir e ostentar o consumo passou a ser o sentido último da vida. Por isso, quando se sentem “perdidas”, “impuras” ou “menos-gente”, as pessoas vão aos shoppings. Elas não têm consciência do que estão fazendo; isto é, não sabem que estão indo às compras ou ver vitrines para realizar o sentido último das suas vidas. Elas são simplesmente levadas lá por uma força maior. Assim como o capitalista que busca cada vez mais dinheiro para ganhar mais dinheiro também não tem consciência de que faz isso movido pelo “espírito do capitalismo”. Da mesma forma, o pobre que se sente como não-humano, sem dignidade, porque não é capaz de consumir o que a sociedade lhe exige para que lhe reconheça a sua dignidade.
Essa força espiritual – que Weber chamou corretamente de “espírito do capitalismo – que move hoje as pessoas e a sociedade para essa obsessão pelo consumo e por ganhar dinheiro sem fim é o que o Novo Testamento chama de poderes de destruição ou que Paulo chama de principados e potestades do mal.
As pessoas são compelidas a viver a espiritualidade do consumo ou do mercado porque estão imersas no espírito do capitalismo. Mesmo que carregam externamente símbolos espirituais cristãos ou de outras religiões mais tradicionais, muitos estão mergulhados e movidos pelo espírito do capitalismo.
Neste mundo, a conversão cristã, no nível pessoal, significa abrir os olhos para enxergar as mentiras dessa espiritualidade idolátrica (cf Jo 8,44) e perceber que os “shows da fé”, por mais grandiosos que sejam, não expressam a fé de Jesus Cristo, assim como a dignidade humana não vem da riqueza ou das marcas caras e famosas. Significa também desejar encarnar o amor de Deus neste mundo, assumindo Jesus como nosso modelo de vida e de ser humano.
Só que sabemos que a conversão pessoal é necessária, mas não suficiente. Precisamos também que o “mundo” se converta”! E como isso é possível? (esse será o tema dos próximos artigos.)
(Autor, entre outros, de “Sujeitos e sociedades complexas”)
Economia e Vida (IV): a boa intenção e o sistema
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior eu afirmei que, diante do sistema econômico e social em que vivemos, a conversão pessoal é necessária, mas não suficiente. Também é preciso a conversão do mundo. O problema é que a “conversão do mundo” ou de “sistemas econômicos, sociais e políticos” requer lógicas muito diferentes das conversões ou transformações pessoais. Eu quero dedicar este artigo e os próximos sobre esse assunto.
Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a conversão do mundo não deve ser entendida como a conversão de todas as pessoas que habitam o mundo. Ainda hoje, há muitas pessoas, grupos e Igrejas que pensam que levar o evangelho ao mundo ou proclamar a conversão ao mundo significa buscar a conversão pessoal de todas as pessoas. Isto é, pensam que o mundo nada mais é que a soma de todas as pessoas; que a sociedade é resultado da soma de todas das ações e atitudes de todas as pessoas. Assim sendo, a mudança das pessoas e de suas ações levaria a mudança no mundo.
Na verdade, o mundo e os sistemas econômicos e sociais são muito mais do que a soma das ações dos indivíduos. O conceito de “sistema” pressupõe que há algo além das ações individuais ou de grupos, que a vontade e ações bem intencionadas de indivíduos ou de agentes coletivos não são suficientes para produzir resultados desejados. Mesmo que esse indivíduo ou grupo tenha muito poder.
Esse tipo de equívoco é mais comum do que se imagina. Por exemplo, muitas das críticas feitas ao governo Lula, por parte da chamada “esquerda”, cristã ou não, pressupõe que ele não rompeu com o capitalismo ou não fez reformas sociais e políticas profundas por simples falta de vontade política. Como se a vontade política de um indivíduo ou grupo poderoso fosse suficiente para produzir os resultados sociais e políticos desejados.
Nós começamos a desconfiar ou reconhecer que existe algo que se chama “sistema” exatamente quando as nossas ações não produzem os efeitos desejados. As ações humanas são humanas na medida em que elas são intencionais, isto é, não são resultados meramente de impulsos determinados pelo nosso código genético. Todas ações produzem conseqüências. No caso das ações humanas intencionais produzem dois tipos de efeitos: os efeitos que estão de acordo com as intenções que moveram a ação (efeitos intencionais) e os que não estão de acordo (efeitos não-intencionais, que podem ser bons ou maus). No primeiro momento, pensamos que os efeitos não-intencionais são resultados da má execução da ação. Se o aperfeiçoamento da ação fizer desaparecer os efeitos não-intencionais, está provado que não há nada entre o sujeito da ação e os resultados esperados. Nesse caso, bastaria converter a pessoa e/ou aperfeiçoar a técnica da ação para obter as mudanças desejadas.
Mas, se mesmo o aperfeiçoamento da técnica da ação não evitar os efeitos não-intencionais, começamos a perceber que entre a ação e os resultados existe algo que interfere no processo. Esse algo tem a ver com o sistema. Começamos a perceber que as nossas ações se dão no interior de algum sistema. Um exemplo muito comum se dá quando, em uma conversação, as pessoas entendem equivocadamente o que queremos dizer. Nesses casos costumamos dizemos: “não foi isso que eu quis dizer!” A nossa intenção era comunicar uma mensagem bem intencionada que foi entendida de forma diferente da intenção e provocou, talvez, um mal-estar ou algo pior (um efeito não-intencional). No caso aqui, algo do sistema cultural e/ou do sistema de crenças e de pensamento das pessoas envolvidas interferiu na conversação e nos seus resultados.
Isto significa que não basta convencer todas as pessoas que precisamos de uma economia socialmente mais justa e ecologicamente sustentável. Também não é suficiente fazer as pessoas passarem do convencimento para mudanças nas suas ações e hábitos cotidianos. É claro que essas mudanças são necessárias e importantes, mas não são suficientes. Em uma sociedade escravagista, por ex., mesmo que todas as pessoas se convençam do mal da escravidão e os senhores passem a tratar melhor os seus escravos, o sistema permanece escravocrata. Se o sistema produtivo (economia) continua escravocrata e sem mão-de-obra livre, não há como um fazendeiro de boa intenção continuar sendo dono de fazenda e ao mesmo tempo libertar todos os escravos. Se ele efetivar a sua boa intenção, o resultado é que ele se tornará um ex-fazendeiro produtor.
Muito dos discursos em favor de um “outro mundo possível” centram fundamentalmente na tarefa de convencer as pessoas dessas necessidades. Mas, ao esquecerem ou não darem ênfase suficiente na necessidade paralela de mudança sistêmica, esses discursos acabam se tornando discursos moralistas, discursos que apelam somente para a consciência moral das pessoas. No campo dos problemas econômicos e sociais, boas intenções e consciência ética são importantes, mas não suficientes se não houver ações políticas que geram transformações no sistema sócio-econômico-político. (No próximo artigo, o sistema econômico e a divisão social do trabalho.)
(Autor entre outros de “Sujeito e sociedades complexas”, Ed. Vozes.)
Economia e Vida (V): a produção da vida e a DST
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior vimos que as boas intenções e as conversões pessoais são importantes para uma sociedade mais justa, mas não são suficientes porque todas as ações humanas produzem efeitos intencionais e não-intencionais. Esses efeitos não intencionais, que podem ser bons ou maus, são resultados das interferências da dinâmica do sistema no qual se dá a ação. Por isso, boas intenções são importantes, mas não suficientes. É preciso também levar em consideração o sistema econômico-sócio-político-cultural.
Por isso, vamos continuar a nossa reflexão sobre o sistema econômico. Na verdade, se pensarmos na sociedade como um todo, a expressão correta seria subsistema econômico, porque está dentro de um sistema maior, a sociedade. Mas, como vamos nos concentrar na economia, vamos usar aqui a expressão sistema econômico.
Todos os seres vivos precisam retirar do seu meio ambiente o necessário para reproduzir a sua vida. No caso dos seres humanos, nós fazemos isso através do trabalho. Nós humanos precisamos de um mínimo de conjunto de bens materiais para nos mantermos vivos: comida, bebida, roupa (pelo menos para nos proteger do frio), habitação, remédios para enfermidades ou traumas, segurança contra os perigos que nos ameaçam (por ex., animais selvagens, criminosos que querem roubar os nossos bens de subsistência). Produção desses bens abaixo do mínimo necessário significa a morte de uma parcela ou de todo o grupo. Na medida em que indivíduo não consegue produzir sozinho todos esses bens (a não ser em casos muito excepcionais), viver e trabalhar em coletividade se torna uma questão de sobrevivência. No grupo, cada um produz uma parte do conjunto de bens necessários ou faz uma parte do conjunto de trabalhos necessários para a sobrevivência do grupo. Estamos falando aqui da divisão social do trabalho (DST).
A somatória dos trabalhos individuais não forma necessariamente um sistema econômico. Para que o conjunto dos trabalhos constitua um sistema, é preciso que cada trabalho se articule com um outro e a totalidade desses trabalhos se “feche” em um sistema. Por ex., na produção de uma enxada, o responsável pelo cabo de madeira precisa levar em conta o formato e o tamanho da lâmina de metal produzido pelo ferreiro, especialmente o do orifício onde o cabe vai ser encaixado. E essa enxada precisa chegar à mão dos agricultores que a necessitam e sabem lidar com esse instrumento. E assim por diante.
Quando falamos de trabalhos parciais dentro de um sistema, é preciso perguntar pelo processo de coordenação desses trabalhos. Nas antigas comunidades pequenas, a decisão de o que, quanto, como e para quem produzir era tomada em reuniões do conselho de anciãos, ou algo parecido. Decisões equivocadas significavam fome. Por isso, os antigos tinham muita resistência em abandonar os métodos que tinham dado certo no passado. Novidades eram vistas com suspeita. Só que quando o meio ambiente se modifica, seja pelo próprio trabalho da comunidade, pelo desenvolvimento de tecnologias, pelas mudanças climáticas ou interferência de um grupo externo, é preciso readequar partes do conjunto do trabalho e, com isso, refazer o sistema como um todo. Grupos que não são capazes de produzir respostas adequadas a essas mudanças passam por fome e/ou acabam sendo dominados ou se submetendo a outros mais fortes.
Na medida em que pequenos grupos, como clãs, se aliam com outros para formar uma tribo, uma nação e estabelecem relações comerciais de média e longa distância para ter acesso aos bens que não conseguem produzir, o sistema cresce e se modifica e o método anterior da coordenação da DST não dá mais conta.
Uma decisão baseada somente na situação local, sem levar em conta a totalidade do sistema dentro do qual está localizado e conectado, produz muitos efeitos não-intencionais negativos. Não por causa da boa ou má vontade de quem decide ou propõe uma decisão, mas porque esse “local” não é um sistema isolado, mas é um subsistema inserido em um sistema mais amplo. Assim sendo, suas ações afetam outros grupos e interesses que compõem o sistema, e as ações e reações desses também afetam e afetarão o “local”.
Um exemplo contemporâneo dessa questão é a discussão sobre construções de hidrelétricas no Brasil. É claro que as represas que se formam com as hidrelétricas causam problemas para os moradores das ribeirinhas e impactam no meio ambiente. Mas, a economia e o modo como vivemos hoje no Brasil requer mais fontes de energia elétrica. Sem novas fontes de energia (hidrelétrica, nuclear ou térmica), haverá problema, por ex., na geração de novos empregos. E sem isso, o número de desempregados aumentará, sem falar em apagões. O que devemos evitar é cair em dois extremos: a) defender de modo absoluto os moradores locais e a natureza como está hoje; b) impor as construções sem levar em conta a realidade local e o meio ambiente.
Voltamos assim à pergunta: no nosso sistema econômico que é global, como se dá a decisão sobre o que, quanto, como e para quem vai se produzir? (tema do próximo artigo.)
(Autor de “Sujeitos e sociedade complexa”, Ed. Vozes.)
Economia e Vida (VI): escolher é preciso
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Eu terminei o artigo anterior perguntando como se dá, no nosso mundo globalizado, o processo de decisão sobre o que, quanto, como e para quem produzir. Isto é, como se dá o processo de coordenação da divisão social do trabalho (DST) na economia globalizada e quais são as instâncias e agentes de decisão?
Para tentarmos responder a essas questões, precisamos continuar a reflexão sobre a divisão social do trabalho. Quando eu iniciei esta série de artigos sobre “Economia e vida” como uma contribuição para as discussões em torno da Campanha da Fraternidade, eu tinha me comprometido manter uma regularidade em termos de tempo, isto é, eu tinha a intenção de publicar um artigo por semana. Mas, infelizmente eu não pude cumprir isso na semana passada por causa de falta de tempo.
Na verdade, eu tinha, como sempre, as mesmas 24 horas por dia. O que ocorreu é que eu tive muitos trabalhos e me faltou tempo para escrever este artigo para Adital. Aqui temos um exemplo que pode nos ajudar a entender um pouco melhor o nosso tema. Eu tive que fazer uma opção entre usar o tempo para escrever este artigo ou para realizar outros trabalhos “urgentes”. Em que sentido esses outros trabalhos eram mais urgentes do que o meu compromisso pessoal de escrever para Adital?
A simples resposta de que aqueles eram do meu emprego e escrever para Adital é voluntário não explica tudo. Pois há trabalhos do nosso emprego que não são tão urgentes; e eu tenho escrito estes artigos sem deixar o meu emprego. A urgência dos meus trabalhos profissionais tinha a ver com o fato de que havia um prazo limite para serem feitos. E esses prazos são determinados pelo andamento do processo dentro do qual o meu trabalho está inserido. Se eu não cumpro o prazo, o resto do trabalho de outras pessoas e instituições fica prejudicado. Com isso o dano pode se estender para âmbitos maiores. O fator tempo é um dos componentes fundamentais de um sistema de produção, distribuição e consumo de bens e serviços necessários para a vida das pessoas e da sociedade. Soluções “perfeitas” que demorarão muito tempo para serem concretizados não são soluções reais se vêem fora do tempo necessário.
Ocorreu um conflito entre o cumprimento do prazo das minhas atividades relacionadas com a minha função na universidade onde trabalho e o da Adital. Eu poderia ter escolhido cumprir o prazo deste artigo, mas isso significava colocar o Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista, onde sou coordenador, em situação difícil (sem falar na minha situação profissional). Eu fiz uma escolha, por isso o artigo atrasou. Tanto na vida, quanto na economia, estamos sempre fazendo esse tipo de escolhas. Pois o tempo é um dos fatores escassos da vida e do sistema econômico.
Além do cumprimento do prazo, é preciso que o resultado do meu trabalho chegue até o segmento seguinte. Se por acaso eu termino o trabalho, mas não há conexão na internet (ou outros meios) para ser enviado ao destinatário (por ex., o modo como o meu artigo escrito em São Paulo chega a sede do Adital em Fortaleza), o processo fica truncado. Por isso, a manutenção da rede de internet e dos servidores (que eu não sei quem faz e nem como) é crucial para o processo de trabalho em que estou localizado. Isso vale também para eletricidade, o fornecedor de computadores, sanduíche que como no intervalo, transporte da casa ao emprego etc. Imagine o que significa juntar todos os processos de trabalho e de consumo de todas as pessoas do mundo inteiro de um modo que o sistema como um todo funcione de um modo minimamente eficiente para produzir os bens materiais e serviços necessários para a vida de toda a população. Não temos bem a idéia de como tudo isso funciona.
Não basta gritarmos ao mundo que, em nome da nossa fé cristã ou de valores humanos, somos a favor da vida e contra o mercado que explora os trabalhadores, exclui os pobres e concentra a riqueza nas mãos de poucos. Isso é necessário, mas é também preciso apresentar alternativas para substituir o mercado como o centro e o principal mecanismo de coordenação da divisão social do trabalho no mundo.
O neoliberalismo se caracteriza não pela exploração ou exclusão social, mas pela proposta de fazer do mercado o único coordenador da DST, fazendo do Estado simplesmente um agente de segurança e de garantia do cumprimento dos contratos. Se tudo é decidido baseado somente nos critérios de mercado, os problemas e necessidades de quem não tem dinheiro para consumir a “solução” (os não-consumidores) não serão atendidos e nem levados em conta na economia e na sociedade.
Criticar o neoliberalismo ou o sistema de mercado capitalista global vigente hoje não pode significar simplesmente a negação e a expectativa de que depois da queda do capitalismo não haverá mais a necessidade de coordenação da DST ou que não teremos que fazer escolhas em casos conflitivos.
Quais são alternativas de coordenação da DST para uma outra sociedade? (a continuar)
(Autor de “Cristianismo de Libertação: espiritualidade e luta social”, Paulus.)
Economia e Vida (VII): o lucro e a ambigüidade.
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Continuando a reflexão sobre o tema da CF deste ano, quero continuar a discussão colocada no artigo anterior, sobre um novo tipo de coordenação da divisão social do trabalho (DST), a partir de uma experiência pessoal.
Uns vinte anos atrás, eu era professor em um curso superior de teologia que funcionava à noite nas dependências de uma Igreja no centro da cidade de São Paulo. O curso, com duração de cinco anos, era muito bom, tanto em termos de corpo docente, quanto os estudantes (mais de duzentos), compostos de leigos/as e religiosos/as, mas as dependências eram bastante precárias. Um dos maiores problemas era a falta de uma “cantina” onde o pessoal pudesse tomar café e comer algo no horário do intervalo.
Uma noite, uma das estudantes chegou com uma caixa de isopor cheio de salgadinhos e garrafa de café e começou a vender no horário de intervalo. O pessoal gostou muito. A menina precisava de dinheiro para ajudar a pagar a faculdade e essa iniciativa dela atendia a uma necessidade (demanda) do grupo. Isso foi possível porque havia liberdade para tomar essa iniciativa econômica.
Em uma das aulas de “Teologia e Economia” que eu dava, a questão do lucro foi objeto de discussão e a maioria dos/as alunos/as, que era da linha da Teologia da Libertação, foi frontalmente contra o lucro dizendo que isso era anticristão. Para discutir diferentes tipos de lucro, diversas formas de apropriação do lucro e a necessidade da existência de lucro na economia, eu usei o exemplo da moça que vendia os salgados, que era dessa classe. Perguntado sobre se ela teria tomado a iniciativa de fazer e de trazer no ônibus os salgados e café se não tivesse a possibilidade de obter algum lucro, ela, é claro, respondeu: não! É a possibilidade de obter ganhos que leva a alguém ou a grupos a tomarem iniciativa econômica de risco.
A liberdade de tomar iniciativa econômica gera mais rapidez e eficiência na resposta a demandas e necessidades ainda não satisfeitas. O problema é que isso, com o tempo, gera desigualdade social que pode desembocar em injustiça social e exclusão e a dominação dos mais ricos e poderosos sobre o restante da sociedade.
A discussão então passa para se essas iniciativas privadas são necessárias ou não na sociedade. Em comunidades pequenas antigas, de economia simples, as decisões sobre o que, como, quanto e para quem produzir podiam ser tomadas em discussões coletivas ou no “conselho de anciãos”. Mas, em sociedades amplas, de economias complexas, a discussão coletiva sobre todos os assuntos econômicos não é possível. A saída apresentada pelo socialismo de modelo soviético para evitar a desigualdade social que nasce da “liberdade do mercado” foi a de centralizar todas as decisões econômicas no Estado, sem liberdade para que indivíduos ou grupos privados tomassem iniciativa econômica.
O problema é que o Estado e nem outra instituição têm condição de conhecer todos os fatores que compõe a vida econômica e social da população, da sociedade e da natureza. Mas, se tudo (incluindo desde a construção de grandes usinas geradoras de energia até que tipo de sorvete ou suco vai se vender em uma lanchonete) depende do comitê de planejamento do Estado, a ineficiência toma conta e as necessidades cotidianas da população passam a não serem atendidas. Por ex., no tempo da União Soviética, até uma mudança no sabor da torta vendida no interior distante precisava da autorização do comitê de planejamento econômico de Moscou. Pois, a mudança de maçã para cereja no recheio da torta altera a cadeia produtiva e exige mudança no planejamento geral da economia. Quando a autorização chegava, o pessoal já tinha desistido da torta há muito tempo. É fácil entender que, aos poucos, a ineficiência vai tomando conta também de setores mais estratégicos da vida econômica, social e política do país.
Essa é a razão que os neoliberais mais usam para defender o extremo oposto: toda a economia deve estar subordinada somente às leis do mercado, onde os agentes econômicos (investidores, produtores, trabalhadores e consumidores) teriam a liberdade total para a tomada de suas decisões. Só que à custa da exclusão e injustiças sociais, que consideram como “sacrifícios necessários” para o progresso.
É claro que a grande maioria das Igrejas cristãs e de grupos de cristãos que lutam contra a exclusão social e a deterioração do meio ambiente não aceita a tese neoliberal, ou a versão não tão neoliberal que está dominando o discurso econômico global hoje, como também não aceita o socialismo do tipo soviético ou chinês. Então, qual é a alternativa?
Uma tentação é propor outro modelo “puro” baseado na solidariedade entre os seres humanos e esses com a natureza. Só que a solidariedade, ou harmonia, funciona aqui como critério ou princípio ético, mas não serve como mecanismo concreto para a coordenação da DST e para tomadas de decisões econômicas. E não discutir modelos alternativos concretos é deixar que o mercado continue sendo a principal ou única forma de coordenar as decisões e ações econômicas em escala global.
Eu penso que devemos abandonar a busca de “soluções puras” e assumir que a ambigüidade e contradições são partes da condição humana e que, portanto, devem também estar presentes nas propostas de alternativas. Em outras palavras, devemos pensar um modelo econômico-social onde o Mercado, o Estado e a Sociedade Civil estejam em relação de tensão e conflito permanente, para que nenhuma dessas lógicas possa se tornar a única na sociedade. E isso exige a ver a ambigüidade e conflito como valores sociais e humanos. (a continuar)
[Autor do “Sujeito e sociedades complexas”, Vozes.
Economia e Vida (VIII): ambigüidade e conflito como valores sociais
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Eu terminei o artigo anterior para afirmando que devemos aceitar que a ambiguidade e contradição são partes da condição humana e que devemos desistir de “soluções puras”. Isto é, sair da lógica da razão moderna ocidental que propõe sempre um único princípio organizativo para a economia, a sociedade e a vida, assim como propõe que uma única cultura seja assumida como a universal, uma só religião (seja o cristianismo, o islamismo,..., ou uma nova religião resultado da união de todas as religiões) que seja universal, capaz de colocar todos os povos e culturas diferentes dentro dela, etc.
É este tipo de racionalidade que explica porque os neoliberais propõem a solução do “mercado puro, total” –todos os aspectos da economia e também da vida social dirigido pela lógica do mercado– e reduzem o ser humano ao “homem econômico” para “purificá-lo” e retirar a ambigüidade humana; e o socialismo do tipo soviético buscou colocar toda a vida econômica, política e social sob o controle e planejamento do Estado e reduziu o ser humano ao “homem político”; e há hoje setores do cristianismo de libertação propondo que a solidariedade ou a harmonia entre os seres humanos e esses com a natureza deve ser a única lógica a dirigir a economia e a vida social, e assim propõe um “novo ser humano” sem ambigüidades e sem interesses e desejos conflitivos. Apesar de serem propostas muito diferentes, essas três compartilham do mesmo princípio de que deve haver somente um único princípio organizador, seja na economia, política, na sociedade e até mesmo no campo religioso, e que a ambigüidade humana deve ser superada.
Para se ter uma idéia da influência desse princípio da razão moderna ocidental em lugares menos suspeitos, quero trazer aqui uma expressão que foi muito forte no cristianismo de libertação nas décadas de 1980-90: “as CEBs são (ou devem ser) o novo jeito de ser de toda a Igreja”. Isto é, toda a Igreja deveria ter um único princípio organizativo, as CEBs, enquanto os setores hegemônicos do Vaticano queriam e ainda querem impor o modelo romano para toda a Igreja. É um conflito entre partes que assumem o mesmo princípio como verdadeiro.
Para superarmos essa lógica de um único princípio e de uma solução definitiva que supere todas as ambigüidades e contradições da condição humana, precisamos passar a ver a ambigüidade e conflito como valores sociais e humanos. Para muitos essa afirmação pode soar como muito estranho ou até herético. Mas, eu penso que, na nossa reflexão sobre economia e vida, é fundamental discutirmos e revermos essa questão.
Para isso, precisamos começar com uma rápida reflexão sobre a condição humana. Os seres humanos são seres com capacidade de compreender, interpretar e criar o seu mundo utilizando-se dos instrumentos que a sua cultura oferece. Todos nós sabemos que culturas diferentes produzem explicações e soluções diferentes para os problemas inerentes a vida humana, como por ex., como produzir e distribuir os bens necessários para viver, como organizar a sociedade e o sistema de leis e de valores morais, como dar sentido a vida, como explicar e legitimar as diferenças sociais e individuais, etc. Pessoas de culturas diferentes compreendem, explicam e dão respostas diferentes para os mesmos problemas ou fatos sociais. Isto é, quando pessoas ou grupos de culturas diferentes se interagem, sempre haverá conflito de interpretações sobre a realidade e também conflito de interesses.
Quando o conflito é visto como um mal, a solução buscada é o conflito que acabe com os conflitos, isto é a vitória de um lado e a imposição da versão do mais forte sobre todos os envolvidos – gerando assim uma aparente paz e harmonia. Se o conflito é visto como parte da condição humana e um valor social, busca-se formas de “diálogos possíveis”, que serão marcados por conflitos e ambigüidades, mas agora aceitos como parte da convivência humana e da busca de uma solução que não passe pela destruição ou submissão do outro. Não há diálogo sem nenhum tipo de conflito ou ambigüidade; e quando não há ambigüidade ou conflito, o diálogo não é necessário.
Na medida em que grupos humanos precisam de uma cultura concreta e não de “a cultura universal abstrata” para viver a sua vida, não é possível e nem desejável que a diversidade cultural (e com isso os conflitos) desapareça. O que significa, por ex., que a diversidade religiosa, que produz conflitos (pelo menos de interpretações) entre as religiões se manterá e deverá ser visto como um valor. Um mundo sem conflitos culturais e religiosos seria um mundo em que um grupo social conseguiu impor sobre todo o mundo os seus interesses, o seu modo de ver e de organizar o mundo e o sentido da vida. Um mundo que viveria uma “paz imperial”.
Para superarmos a atual “paz imperial global”, precisamos assumir a ambigüidade humana, as contradições humanas e sociais, paradoxos e a tensão entre diversos princípios organizativos como valores sociais.
Nesse sentido, Milton Schwantes nos ensina que a dispersão dos camponeses, na narrativa da Torre de Babel, que resultou na diversidade lingüística e, portanto, cultural, não foi um castigo, mas uma ação libertadora de Deus contra a tentativa do “império” de impor, sob o poder militar expresso na Torre, a sua língua/cultura como a única. (A continuar)
(Autor de “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, a sair)
Economia e Vida (IX): condição humana e a esperança ilusória
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior defendi a idéia (para muitos, no mínimo, estranha) de que a busca de superação de todos os conflitos e tensões entre grupos econômicos e sociais, países, religiões e culturas é uma tentação perigosa, pois isso implica em impor a cosmovisão, os interesses e a cultura de um único grupo sobre o restante da população mundial. Em outras palavras, a imposição de uma “paz imperial”. E contra a “paz imperial”, a alternativa não é uma “paz imperial benevolente” (como de ditadores/reis bons), mas aceitação da nossa ambigüidade e contradições humanas sociais como a condição humana e como valores sociais a serem preservados. Só assim grupos e culturas diferentes poderão ter o seu lugar devido na sociedade global.
Estamos tão acostumados com a tese de que devemos lutar por uma paz mundial, entendida como a superação de todos os tipos de conflitos, e por uma economia justa e fraterna, pensada como o fim de todos os tipos de concorrências, tensões e desigualdades, que o que estou propondo aqui soa como a aceitação das lógicas de dominação. A tese que estou propondo para reflexão é a de que esse tipo de pensamento de “paz universal”, por mais atraente que seja, é uma reprodução da lógica imperial, que aparece, por ex., na “Pax Romana” e no projeto expansionista da Europa Ocidental a partir do século XVI.
Há um consenso entre os críticos do atual capitalismo global de que, para superarmos a nossa crise social e ecológica, devemos superar o paradigma da modernidade que está na base da atual civilização. Estou completamente de acordo. O que estou argumentando é que a proposta de mudar o princípio de “livre concorrência” no e do mercado que rege o atual capitalismo pelo princípio da solidariedade/compaixão ou da “comunhão entre todos os seres humanos e desses com natureza” não é uma proposta que supera o paradigma da civilização moderna Ocidental. Parece, mas não é. Pois, o que há é somente a mudança do conteúdo do único princípio que deve reger a vida humana e o sistema social. No lugar da proposta de único princípio de livre concorrência no mercado, a solidariedade ou a comunhão como o único novo princípio. A lógica de fundo permanece: um único princípio organizativo para toda a sociedade e para todos os aspectos da vida.
É claro que essa última proposta é bastante sedutora e desejável, mas o problema é que nós seres humanos não somos assim. Nem somos tão puramente solidários ou compassivos, e nem temos a capacidade de conhecermos todos os elementos da divisão social do trabalho para podermos coordenar e planejar conscientemente todos os aspectos da vida econômica. E sem a solução alternativa para a coordenação da divisão social do trabalho (tema tratado nos artigos anteriores), as boas intenções individuais e suas ações econômicas pressupõem a coordenação inconsciente do mercado. E caímos de volta à tese neoliberal de que cada um deve viver a sua vida e deixar ao mercado a tarefa da coordenação da divisão social do trabalho.
Eu tenho insistido nesses dois temas, a coordenação da divisão social do trabalho e a condição humana, porque são dois dos principais “nós” na elaboração de uma alternativa para o sistema capitalista global. Propostas belas, agradáveis aos nossos desejos, mas que (a) pressupõem um ser humano que transcendeu a condição humana (e por isso não é mais humano), e (b) não indicam o modo alternativo de como coordenar bilhões de decisões e ações que ocorrem nos processos de produção, distribuição e consumo que compõem a economia global hoje são propostas bem intencionadas, mas ilusórias. Essas propostas podem satisfazer algum tipo de desejo dos grupos que anunciam e dos muitos que consumem esses tipos de discursos. Aliás, o que não falta no mercado hoje é o consumo desse tipo de “discursos libertadores ilusórios”. O que prova que o mercado capitalista continua com a capacidade de transformar quase tudo, mesmo discursos aparentemente anticapitalistas em mercadorias, especialmente para a classe média.
Eu penso que precisamos superar mais radicalmente a civilização Ocidental moderna e pensar a nova sociedade em termos de vários princípios em tensão permanente e assumir a nossa condição humana. A concorrência econômica (que gera um tipo de eficiência) em tensão com as metas sociais baseadas no princípio da solidariedade (que gera sustentabilidade social); a lógica do mercado em tensão com o papel indutor, regulador e fiscalizador do Estado; a sociedade civil com a sua diversidade cultural em tensão com as lógicas do mercado e a lógica da acumulação do poder do Estado; as diferentes religiões com suas visões conflitantes convivendo em tensão e diálogo na sociedade global...
Como escrevi no artigo anterior, a busca do fim do conflito e tensão exige uma luta mortal contra o “outro” que pensa diferente, e que nunca vai ser igual a mim, e a negação da própria condição humana. A única forma de criar uma alternativa à “paz imperial capitalista” e possibilitar a vida digna de todos/as é criar uma nova economia, uma nova política e uma nova sociedade onde os conflitos aceitáveis (aqueles que não buscam a morte do outro) e as tensões entre as várias lógicas e culturas que compõe a sociedade sejam vistas como saudáveis. (a continuar)
(Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus.)
Economia e Vida (X): lutas, frustrações e a espiritualidade
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior eu sintetizei as últimas reflexões desenvolvidas nesta série afirmando que, para construirmos uma sociedade alternativa a atual “paz imperialista capitalista”, precisamos superar mais radicalmente o pensamento moderno que propõe uma ordem social baseada em um único princípio organizativo. Para isso precisamos criar um novo tipo de economia, de política e de política onde os conflitos aceitáveis (aqueles que não propõem a paz através da morte do outro) e as tensões entre as várias lógicas e culturas que compõem a sociedade sejam vistas como saudáveis.
Eu tenho consciência que para muitas pessoas essas idéias não fazem muito sentido. Parece que estou propondo uma solução no máximo “reformista”, que abdicou da noção de libertação, da construção de uma sociedade realmente nova ou da construção do Reino de Deus. Mas o que estou propondo é assumirmos radicalmente a nossa condição humana e buscarmos soluções possíveis dentro das condições da história, ao invés de confundirmos os nossos melhores desejos com possibilidade histórica. Faz parte da condição humana a nossa capacidade de desejarmos para além do que é possível. (Para uma discussão mais profunda desse tema, eu remeto ao livro “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, escrito por mim e Hugo Assmann.)
Na luta pela vida das pessoas concretas (e não por uma visão abstrata da vida), é fundamental a distinção entre o que é possível e o que é impossível. Há objetivos que são humana e historicamente possíveis, mas impossíveis dentro de condições históricas dadas ou dentro de um determinado tipo de sistema social. Nesses casos, precisamos lutar para mudar as condições históricas para tornar possível o que no momento é impossível. Em situações assim, a luta pela vida dos mais vulneráveis se dá em dois níveis: a) luta pela conquistas de objetivos concretos que são possíveis dentro do sistema ou condições históricas dadas; b) lutas para modificar o sistema social para tornar possíveis conquistas que só são possíveis em outro sistema. Um exemplo disso pode ser a luta pelo fim do sistema escravagista para que todas as pessoas sejam livres. Mas há também objetivos que estão além da condição humana e dos limites da história. Um exemplo disso é acabar com a morte.
Na maioria dos casos, nós não sabemos de antemão qual é o limite das possibilidades humanas. É através da ação que vamos descobrindo esses limites. É por isso que pessoas que estão realmente na luta concreta conhecem melhor os limites da condição humana. Por outro lado, pessoas que estão distantes das lutas concretas e se contentam em criticar tudo o que existe e defendem a vida de uma forma abstrata tendem a anunciar o seu desejo como objetivo possível de ser alcançado e costumam não reconhecer e nem aceitar os limites da ação humana.
Na verdade, aceitar os limites da condição humana frente aos nossos desejos não é algo fácil. Mesmo as pessoas que aprendem através das suas lutas, vitórias e derrotas os limites da condição humana e da história sabem que esse aprendizado não é algo fácil em termos existenciais. É um aprendizado que sempre traz junto frustração e muitas vezes somos tentados a achar que a luta não vale a pena porque não realizará plena e totalmente os nossos desejos. Nesses momentos pode ocorrer um grande aprendizado espiritual: a descoberta de que a luta, mesmo com frustrações, vale a pena porque mais importante do que os “meus” desejos e “minhas” frustrações é a vida concreta dos/as nossos/as irmãos/ãs. Essa é a experiência espiritual que nos faz continuar na luta, apesar de tudo...
Sem esse aprendizado espiritual, não é possível desenvolver as nossas (a minha, a do meu grupo e a dos pobres) potencialidades e alcançar objetivos possíveis. Quem busca objetivos impossíveis não realiza nem os possíveis, pois não sabe a diferença entre os dois, muito menos o caminho para realizar o impossível. Geralmente se contenta em fazer discursos grandiosos e, o pior, costuma “atrapalhar” aqueles/as que estão lutando de modo concreto.
A luta pela vida e, por isso, por uma economia que possibilite uma vida digna para todas as pessoas exige uma visão mais concreta da vida e da realidade social. Para as comunidades (eclesiais ou não) e grupos sociais isso significa em primeiro lugar práticas sociais e lutas no seu contexto social, contextos em que há rostos e corpos de pessoas que sofrem e tem esperanças de vidas melhores. Experiências espirituais e lutas que se dão no âmbito micro da economia e sociedade. Sem o nível concreto, micro, não há corpos de pessoas, não há vidas concretas. Mas como a própria palavra diz, o micro pressupõe a macroeconomia, e vice-versa. As lutas concretas se iniciam no nível micro, mas é preciso articulá-los, seja na análise ou na luta concreta, com o nível macro. E a luta no ambiente macro precisa estar conectada com as preocupações e a vida concreta que se vive no ambiente micro.
Um tipo de experiências que, no “campo da economia, vida e fé”, encarnam essas relações e tensões que estamos tratando aqui é o da “economia solidária”. Tema que abordaremos no próximo artigo.
[Autor, junto com Hugo Assmann, do livro “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Paulus].
Economia e Vida (XI): economia solidária e o reinado de Deus
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior eu afirmei que a luta pela vida das pessoas concretas sempre começa no nível das interrelações humanas e sociais, isto é, no nível micro-social. A luta pela nossa vida e a experiência de compaixão que leva a solidariedade sempre se dão em contextos locais, onde as pessoas interagem entre si e com a natureza. A noção de sociedade ou de macro-economia é resultado de uma abstração intelectual. Nós só chegamos a descobrir a noção de sociedade ou de estruturas econômicas quando percebemos que as “causas locais” ou as intenções das pessoas não são mais suficientes para explicar os acontecimentos que afetam as nossas vidas. Ninguém jamais viu “a sociedade”. Nós vemos pessoas, prédios e outras coisas, mas não a sociedade. Sabemos que a sociedade existe, que vivemos dentro dela, mas não a vemos com os nossos olhos. Podemos dizer que a vemos com a nossa “cabeça”, porque temos internalizada em nossas cabeças a noção de sociedade.
É no âmbito micro-social das relações humanas e sociais concretas que surgiram e surgem os projetos de economia solidária. Entre as características dos mais diversos tipos de projetos econômico-sociais que fazem parte do que hoje se chama de economia solidária, podemos destacar: a) a solidariedade ou a cooperação como o espírito que move os empreendimentos locais e a rede que vai se construindo entre esses; b) participação dos “associados/trabalhadores” nas discussões e decisões, subvertendo a relação vertical que domina nas empresas capitalistas ou socialistas; c) o objetivo imediato de melhorar as condições de vida dos participantes e da sua região.
O grande valor desses empreendimentos econômicos é que neles se realizam concretamente alguns dos aspectos fundamentais da relação economia e vida na perspectiva da fé: a) melhoria nas condições materiais da vida; b) a afirmação do ser humano como um ser de dignidade, com auto-estima e reconhecimento mútuo. Projetos econômicos e sociais que atendem somente um desses dois aspectos são, na perspectiva da fé cristã e também na perspectiva humanista, falhos. É por isso que não basta uma comunidade (de fé ou de outro tipo) ajudar os pobres se não resgata ou promove a auto-estima e o senso de dignidade dessas pessoas marginalizadas ou diminuídas pela sociedade; assim como não se pode resgatar a dignidade dessas pessoas sem preocupar com as condições materiais da sua vida. Como disse Jesus, “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus” (Lc 4,4), isto é, de pão e da Palavra que resgata a dignidade de todas as pessoas. Resgate da dignidade que só pode acontecer na medida em que se luta pelo seu pão e pelo do próximo, dos mais necessitados.
O grande número desses empreendimentos e das suas conquistas, no meio de dificuldades e desafios, traz para nós uma nova questão. Na medida em que essas experiências são realmente gratificantes e torna a vida de todos/as os/as participantes melhores, muitos propõe que a economia solidária deva ser o projeto de uma nova sociedade, substituindo o socialismo como uma alternativa ao capitalismo. Isto é, projetam no nível macrossocial, global, a experiência micro ou ainda marginal na economia. É como se não houvesse diferenças qualitativas entre o âmbito micro da economia e sociedade e o do macro.
Outros, por não concordar que se possa construir uma economia solidária em nível nacional ou global, não reconhecem os valores desses trabalhos e empreendimentos. No fundo, os dois grupos baseiam-se no mesmo princípio. O primeiro diz: como funciona bem no nível macro, também deve ser o modelo para o macro. O segundo diz, como não é possível funcionar no nível macro, não tem valor nem mesmo para o âmbito local e regional. Os dois grupos continuam buscando uma única solução para âmbitos e problemas diferentes.
Eu penso que devemos sair desta polarização e reconhecer que a economia solidária é uma proposta importante, necessária e muito boa para vida de muitas pessoas, mesmo que não possa ser aplicada – pelo menos sem grandes adaptações que a modificariam– à economia em escala global. É fundamental conhecer os limites e os valores de projetos e trabalhos concretos para não cairmos no erro de nos cobrarmos ou cobrar de outros objetivos que estão além das possibilidades. Quem se cobra ou cobra de outros a realização de objetivos não-factíveis acaba só semeando frustração e paralisia.
Na perspectiva da fé cristã, um trabalho não vale porque cria uma solução definitiva para os problemas do mundo, mas porque é expressão do amor solidário e resgata a vida das pessoas que viviam na morte. Essa passagem da morte para a vida pode ser chamada de reinado de Deus que acontece no meio de nós. Não importa quão pequeno é o resultado em termos de estatística, o que conta é o que significou e significa na vida das pessoas. Mas, é claro também que a compaixão (a dor que sinto pela dor do/a outro/a) nos leva a queremos ampliar ao máximo os resultados e os alcances de trabalhos como o da economia solidária.
(Autor, com Hugo Assmann, do livro “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”. Ed. Paulus)
Artigo - Economia e Vida (XII): Fé, economia e formação
Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Neste último artigo da série “Economia e vida” eu quero propor algumas reflexões sobre as contribuições que a fé cristã e a teologia podem dar na construção de um sistema econômico-sócio-político que seja capaz de possibilitar vida digna para todas as pessoas.
Em primeiro lugar, é preciso ter claro os limites da fé e da teologia. A fé é, acima de tudo, uma aposta em um modo de viver e de ver a vida. Ela nos dá sentido ao viver e uma perspectiva para entender a vida e o mundo. Teologia cristã é uma reflexão crítica e sistemática sobre a vida e o mundo a partir da fé de que na pessoa de Jesus de Nazaré se revelou para nós a “face” de Deus.
Na medida em que o objeto da reflexão teológica é a vida humana e o mundo – na perspectiva da revelação assumida pela fé –, sempre corremos a tentação de achar que podemos tratar de todos os assuntos só com argumentos religiosos ou teológicos, sem necessidade de auxílio de outras ciências. Isso aparece, entre outros casos, quando vemos pessoas de fé fazendo críticas ou propostas econômicas usando somente argumentos éticos ou teológicos, sem mostrar um mínimo conhecimento das ciências econômicas. É como se a economia pudesse ser bem entendida só com bom senso, as experiências econômicas do cotidiano e a algum conhecimento teológico.
Imaginemos esse problema por outro ângulo. Se um grupo de economistas emitisse opiniões sobre o cristianismo e a Bíblia baseado somente nas suas experiências religiosas do cotidiano e senso comum sobre a religião, sem menor conhecimento, por ex., da diferença entre linguagem analítico-descritiva e a simbólica, de como a Bíblia foi sendo escrita ao longo de mil anos e da complexa história dos dois mil anos de cristianismo e coisas assim, a comunidade teológica não levaria esse grupo a sério.
Para entender a tradição bíblico-cristã, é preciso conhecer minimamente as ferramentas teóricas que nos dão uma visão adequada do assunto, para além do conhecimento imediato ou do senso comum. O mesmo vale para a economia.
Isso não quer dizer que as pessoas de fé que não tenham conhecimento das ciências econômicas não possam ou não devam emitir nenhum comentário ou juízo sobre economia. Pelo contrário. A fé deve incidir sobre todos os aspectos da vida, também no campo econômico, e por isso ela deve nos impulsionar a defender os direitos e a justiça em favor dos pobres. Mostrando assim que o sentido da vida está em viver na comunidade onde há lugar para todos/as, e não na acumulação de riquezas. E esta é a principal contribuição que podemos dar.
Porém, devemos reconhecer que a fé nos dá o espírito dessa luta, mas não nos oferece as estratégias concretas ou respostas adequadas para as questões operacionais da economia ou da política. Se não distinguirmos bem as especificidades da teologia e das ciências econômicas e sociais, corremos o risco de transformar a teologia em uma sociologia ou economia de segunda categoria.
Para evitar esse risco e também o de separar a fé e a teologia dos problemas concretos e reais das pessoas e da sociedade, a teologia deve dialogar com a economia e outras ciências do social e da vida Este é o segundo ponto.
Em terceiro lugar, para que lideranças cristãs, agentes pastorais e teólogos/as possam exercer com mais eficiência a missão de anunciar a boa-nova aos pobres, precisamos superar a tendência que existe na área de formação de se voltar para “dentro” do campo religioso, para afirmação das doutrinas religiosas (incluindo a doutrina social) da Igreja. É preciso assumir a formação teológico-pastoral como um meio para a missão no mundo. E para atuar e dialogar no mundo, o estudo das ciências econômicas e sociais precisa fazer parte da formação teológico-pastoral e da educação permanente. Não para formar economistas ou sociólogos, mas sim para formar agentes pastorais e teólogos/as capazes de práticas e reflexões teológicas relevantes e pertinentes no mundo de hoje.
Na verdade, essa lógica já acontece há muito tempo em outras áreas da formação teológica. Para entender a doutrina católica da transubstanciação, que ocorre na consagração eucarística, os estudantes de teologia aprendem também o pensamento filosófico sobre substância e acidente, assim como para estudar e praticar o aconselhamento pastoral é preciso aprender as noções básicas da psicologia.
O desafio colocado pela Campanha da Fraternidade de construirmos um sistema econômico que possibilite uma vida digna para todos/as não deve ser mais um entre tantos outros, que por serem muitos acabam sendo todos esquecidos ou relegados ao segundo plano. A vida é o maior dom que recebemos de Deus e “a vida em abundância para todos/as” é o objetivo maior da missão de Jesus e da sua Igreja.
(Autor, juntamente com Hugo Assmann, de “Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres”, Ed. Paulus.)
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=44884
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