3 de agosto de 2011

Entendendo a Bíblia

O conteúdo central do Antigo Testamento está na confissão de fé do Povo de Deus que está em Dt 6.20 – 23. Este credo fala da escravidão gerada pelo Estado egípcio e da luta motivada por Deus para sair desta escravidão. A liberdade somente é possível quando o camponês tem a sua terra após ter acabado com o Estado (Js 6-8). O Estado surgiu por causa da formação de classes sociais na sociedade para defender os interesses da classe economicamente dominante. Neste texto a própria Bíblia diz de que ponto de vista ela quer ser lida e entendida. Ali se conta a história dos escravos hebreus e como Deus interveio na história a favor de uma classe social: os escravos (os hebreus no Egito, não são um povo mas uma classe social); e agiu contra a outra classe social: o Estado, comandado pela Monarquia egípcia. Assim este credo israelita define que Deus é como ele age (Ex 3.14 – Eu sou o que sou).
Assim a Bíblia diz que o ponto de partida da História do Povo de Deus é o Êxodo (saída dos escravos do Egito e travessia do deserto para chegar na Terra Prometida); só a partir disto podemos entender melhor o Antigo Testamento. O Êxodo é a chave que abre a compreensão do Antigo Testamento. Mas, antes do Êxodo também teve História! Vamos ver agora a evolução histórica do Povo de Deus.

O 1º Período vai do ano de 1800 a 1250 a.C. – Terra de Escravidão.
Neste período a Palestina era colônia egípcia. Era o tempo dos patriarcas e matriarcas do Povo de Deus: Sara e Abraão, Rebeca e Isaque, Raquel e Jacó. Era um tempo em que o Império egípcio saqueava a Palestina pelos impostos pagos em produtos produzidos pela classe camponesa e pelos trabalhos forçados realizados pela mesma (também em forma de envio de escravos e escravas para o centro do Império). A Palestina era colônia do Egito. Quem recolhia estes impostos eram as cidades-estado da Palestina que eram comandadas por um rei e seu exército. Parte destes impostos ficavam para a manutenção das cidades-estado e o resto ia para o Egito. O que eram as cidades-estado? Eram pequenos países cuja capital ficava numa cidade fortificada. Nesta morava o rei e o seu exército que controlavam as aldeias dos camponeses de toda esta região que abrangia a cidade-estado.
O sistema econômico desta época se chamava de Tributário (tributo = imposto), pois a exploração da classe do Estado sobre a classe Camponesa acontecia pela cobrança do imposto em forma de produtos (trigo, cevada, olivas, frutas e gado) e na forma de trabalhos forçados (os camponeses tinham que trabalhar nas obras públicas [palácios, templos, muros da cidade] sem receber pagamento). Os camponeses decidiam o que e como produzir mas boa parte do resultado de sua produção tinha que ser entregue na forma de impostos para manter a classe do Estado.
Textos que ajudam a entender este período: Gn 11.31–12.9; Gn 47.13–26; Ex 1.8–14

O 2º Período vai do ano de 1250 a.C. até 1033 a.C. – Terra Liberta
Por volta de 1250 a.C. o exército egípcio é derrotado e expulso da Palestina pelos povos do mar, dentre os quais os filisteus. Estes não conseguiram se impor em todo o território e este ficou ao seu próprio encargo. Foi neste período que se desenvolveu o que chamamos de: O Projeto de Deus. Como era este projeto? Se desenvolveu novamente ali o sistema econômico Tribal; que se caracteriza por uma sociedade igualitária, sem ricos e pobres, sem Estado, sem classes sociais e a propriedade coletiva dos meios de produção (a terra).
A Bíblia descreve este Projeto de Deus a partir do livro do Êxodo, quando os escravos saíram a partir da iniciativa e do auxílio de Deus da escravidão do Egito. O Povo de Deus se formou a partir de três grupos: o Grupo Abraâmico (Gn 12.1-9; 13.14-18) que habitava as montanhas da Palestina e havia fugido da opressão das cidades-estado da planície; o Grupo Sinaítico (Dt 33.2) que veio da Península do Sinai fugindo dos edomintas; o Grupo Mosaico (Ex 3.1–22) que veio da escravidão do Egito. Estes grupos se fixaram nas montanhas e na convivência descobriram que tiveram experiências semelhantes de libertação (das cidades-estado e do Egito) e descobriram que tinham uma história semelhante e o mesmo Deus. Adotaram, assim, o relato do Êxodo como sua história oficial. Na caminhada em direção à Terra Prometida estes grupos se encontraram e ali são elaboradas a proposta econômica (Ex 16.11–21), política (Ex 18.13–27), sócio-religiosa (Ex 20.2–17) e ideológica (Ex 32.1–10) que deveriam nortear a vivência do povo na nova terra e na nova sociedade. Este projeto é descrito do livro do Êxodo até o livro de Juízes e marcou tão profundamente o povo que em toda a sua história futura sempre haveriam de se basear por este período. Não dá para entender o Antigo Testamento se não entendermos o Êxodo (Ex 1-15). O Êxodo é a chave de leitura do AT. Textos deste período: Ex 1.8 –14 ; Ex 5.1-6,1; Nm 27.1-11; Js 8.1-35; Jz 2.10-18; Jz 6–8; Dt 15.6; Lv 25.

O 3º Período vai de 1033 a.C. até 597 a.C. – Terra Ocupada
Este é o período da monarquia. Os livros de Samuel, Reis e Crônicas falam deste tempo. Voltou-se ao antigo sistema econômico Tributário, como no Egito, com suas duas classes sociais em constante confronto: o Estado (rei, ministros, príncipes, funcionários, soldados e sacerdotes) e os Camponeses. O texto de I Sm 8.1- 22 denuncia os privilégios da classe do Estado. O Estado surgiu para defender aqueles setores que haviam concentrado mais renda e terras e que precisavam uma instituição que defendesse e legitimasse esta concentração. Esta instituição é o Estado.
As estruturas de produção e de relacionamento que se davam nas aldeias ficaram as mesmas de antes, só mudou o fato de que agora uma parte da produção era apropriada pela classe do Estado e os anciãos perderam a maior parte do poder político. As decisões político-econômicas aconteciam agora na cidade e não mais no campo. A religião que antes defendia o sistema econômico Tribal agora defende o sistema econômico Tributário, por isso Salomão mandou construir o Templo. O Templo mudou a compreensão de Deus: Antes Deus lutava a favor da classe camponesa, era contra o Estado, a escravidão e lutava pela conquista da terra. Agora o Templo diz que Deus abençoa os que tem mais posses, legitima o Estado e a sociedade dividida em classes sociais e fortalece o culto de ritos relacionados apenas com a natureza e sacrifícios de animais e não com acontecimentos históricos como era antes. Agora é um Deus que abençoa os que tem e fortalece o culto de ritos e não de acontecimentos históricos. A classe do Estado ainda não tinha o poder de escravizar os camponeses e lhes expropriar totalmente a terra, apenas lhes tirava parte da produção na forma de impostos.
As Causas externas que ajudaram no surgimento da Monarquia foram: Monarquias vizinhas - I Sm 8.1-7; Novas Tecnologias - Ferro - I Sm 13.19-22; Invasão Estrangeira - Jz 6.1-6 + 8.22-23; Exército Permanente - I Sm 13.1-7 + Jz 4.1-3.
As causas internas foram: Enriquecimento de alguns - I Sm 25.2-13; Empobrecimento de muitos - I Sm 22.1-5; Servos - I Sm 25.40 + I Sm 25.18-19; Escravos - Ex 21.1-11 + 21.20-21 + 26-27; Boi - I Sm 11.1-7 + Ex 21.28-36 + 22.1-15; Corrupção - I Sm 2.12-17 + 8.1-5; Exército Popular - Jz 6.34-35 + 7.1-9+23; Rompimento da Aliança - I Sm 8.7-8 + 7.2-4; Idolatria - Jz 10.6-18 + 8.33-35.
A primeira fase deste período vai até a morte do rei Salomão (932 a.C.) onde há apenas um país. Após Salomão o país se divide em dois: Judá (sul) e Israel (norte) como nos relata o texto que fala da Revolta Camponesa em I Rs 12.1–20. Porque houve a divisão? Porque as tribos, principalmente do norte, não mais agüentavam a exploração via tributos, como lemos em I Rs 4.20–28 (produtos) e I Rs 5.1–18 (trabalhos forçados e produtos). O reino do norte (Israel) acaba quando da invasão da Assíria em 722 a.C. (II Rs 17.1–41). O reino do sul, Judá, acaba quando da ocupação babilônica em 597 a.C (II Rs 24.8–17).
Com a sociedade dividida novamente em classes, com a desigualdade, com a exploração de uma classe sobre a outra e com o fim do chamado Projeto de Deus surgem os profetas para:
denunciar - a concentração e expropriação da terra e renda, a profanação da terra, a idolatria, a divisão da sociedade em classes e as injustiças do sistema.
Os profetas vem também para anunciar - o novo céu e a nova terra, a vinda do Messias e o fim do Rei, do Estado e do Templo. Textos para entender este período: I Rs 21-22; Am 2.6-16; Mq 3.1-12; 6.1-8; Is 2.21-26; Is 10.1-4.

O 4º Período vai de 597 a.C. até 538 a.C. – Terra Internacionalizada
A monarquia israelita acabou quando os interesses imperialistas da Babilônia acabaram com o reino de Judá em 597 a.C. e levaram para o cativeiro a Classe do Estado (II Rs 24.8–17). A causa do cativeiro o profeta Zacarias explica (Zc 7.8 – 14). Este é um período tão importante para o Povo de Deus como o Êxodo, pois aqui os escravos fazem uma revisão de sua história. Estes escravos, que antes eram a classe dominante em Judá, tinham que responder para si mesmos à pergunta: porque estamos aqui no exílio e na escravidão? Eles analisam criticamente a sua história nas reuniões e celebrações nos sábados a partir da Lei, da História, dos Salmos e dos Profetas. Estes elementos formarão a parte principal do que mais tarde conheceremos como o Antigo Testamento. Textos para entender este período: Gn 1.1-2.3 que fala da luta contra os falsos deuses que legitimam a escravidão e Ez 37.1-14; Sl 137; Is 40-55

O 5º Período vai de 538 a.C. até 332 a.C. – O Pós-Exílio
Os escravos judeus se aliaram aos persas e por isso o rei Ciro, quando tomou a capital da Babilônia, os deixou voltar para casa. Mas Judá continuou sendo apenas uma colônia do Império Persa.
Os assírios e os babilônios dominavam pela força e pelo massacre; os persas dominam pela cultura e reorganizam o seu império em novos moldes. Cobram os impostos não mais em produtos, e sim, em moeda, o que aumenta a exploração e o empobrecimento. Assim os camponeses tiveram que trocar primeiro os produtos, sempre a preços baixos, por dinheiro; desta forma tiveram que entregar mais produtos que anteriormente.
Começam agora novos problemas: alguns não querem voltar para Judá, os que voltam encontram tudo abandonado e devastado, tem que reconstruir os muros da cidade, a própria cidade e o templo. Os camponeses que ficaram na Palestina (II Rs 25, 8 – 12) não tomam nenhuma iniciativa em reconstruir a cidade e o templo, pois sabem muito bem o que isto significa: exploração. O povo neste período passa por situações de muita miséria e tem que reconstruir não apenas uma nação como também um povo. Entra aí o projeto de Esdras que visa purificar o povo pela raça e pela Lei. Os profetas falam da necessidade de reconstruir o Templo como único espaço de identidade própria e de resistência dentro do Império Persa. Para entender este período: Ed 1.1-11; Ne 5.1–13; Ag 1.1–15; 2.20–23.

O 6º Período vai de 332 a.C. até 167 a.C. – Dominação Grega
O general macedônio Alexandre conquistou todo o mundo conhecido de então, inclusive o Império Persa. Agora quem mandava eram os gregos que introduziram um novo sistema econômico: o escravismo. Sua dominação também se dava pela cultura e tirou das aldeias a sua importância econômica e política, centrando isto nas cidades. Tudo foi organizado nos moldes da cultura grega. Alexandre morreu em 323 a.C. e o seu Império foi subdividido entre seus generais. Primeiro a Palestina ficou subjugada à administração dos Lágidas, com sede no Egito, até 199 a.C. e depois à dos Selêucidas do Oriente.
Começou-se a forçar os povos subjugados a se aculturar e a adotar a religião dos opressores. Disto brotou a Guerra dos Macabeus: contra o saque do Templo e a tentativa de forçar os israelitas a abandonarem a sua fé em Javé. Esta guerra de independência durou de 167 até 142 a.C. quando Israel ficou independente e foi governado pela dinastia asmonéia até 63 a.C. com a vinda dos romanos. Texto que ajuda a entender este período: II Macabeus 2.1-36.

O 7º Período começa em 63 a.C.– A Dominação Romana entra pelo NT adentro.
Roma entra na Palestina pela briga que há pelo poder em Israel. Vieram para ajudar uma facção da dinastia asmonéia que lutava pelo poder e acabaram ficando para dominar a todos. Neste período nasce Jesus Cristo e é crucificado no ano 30 d.C. pelo Templo e pelo Estado Romano. O sistema econômico continua escravista. A exploração que a classe camponesa sofre é dupla: pelo Templo e pelo Estado Romano, pois pagam aos dois até 60% de sua produção em impostos. Em 49 a Igreja Cristã realiza o seu primeiro concílio em Jerusalém para discutir a sua missão. As cartas de Paulo foram escritas entre os anos 50 e 60. Em 64 a 67 o Imperador Nero organiza a primeira perseguição geral no império contra os cristãos. De 64 a 70 acontece a Guerra Judaica com a destruição de Jerusalém e do Templo. Entre os anos 70 a 100 são escritos os Evangelhos e em 95 ocorre a perseguição aos cristãos organizada pelo imperador Domiciano. Deste período fala o livro do Apocalipse para dar esperança e clareza ao povo. De 132 a 135 ocorre a 2ª Guerra Judaica com a expulsão dos judeus da Palestina que durou até 1949. Em 313 o imperador Constantino legaliza a fé cristã no império e mais tarde ela se torna religião oficial do estado.

É fundamental que nós tenhamos uma visão global da Bíblia para que possamos entender os textos isolados que lemos. Todo o texto bíblico surgiu a partir de um acontecimento concreto e quer nos ajudar a entender e a viver a nossa vida concreta. Todo texto bíblico quer que nós olhemos, a partir dele, para a nossa própria vida e para toda a sociedade e se esta nossa vida e a da sociedade está dentro do Projeto de Deus. Assim como também olhamos para o texto bíblico a partir de nossa vida concreta. Na leitura se interrelacionam o texto e a vida e vice-versa. O texto exige arrependimento e conversão pessoal e coletivo para o Projeto do Reino de Deus.

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