Três textos de Luis Fernando Veríssimo sobre os sem terra
Animais Sagrados
E disse o viajante: “Para nós que adoramos a vaca, fica difícil aceitar que em algumas partes do mundo a pes-soa é um animal sagrado. É tudo uma questão de hábito, claro”. De culturas diferentes. Nós nos consideramos seres racionais e damos valor a coisas racionais – a propriedade, o lucro, etc. -, mas alguém criado em outra cultura pode ter outra noção de valores, por mais estranha que ela nos pare-ça. Nenhum de nós concebe adorar um bicho tão comum, tão pouco 'adorável' como a pessoa, que nos acostumamos a ver apenas como um animal de carga, que nos serve, que a gente trata, enfim, com humanidade, mas que não tem nada de sagrado.
E, no entanto, existem culturas em que a pessoa é tratada com a mesma reverência que nós aqui, dedicamos à propriedade. Existem leis, 'tabus' que protegem a pessoa. Ele tem os mesmos direitos que nós, imagine. Maltratar uma pessoa, nessas culturas exóticas, desperta a mesma revolta que aqui despertaria, sei lá, uma invasão de terras. Quem vai a esses lugares se espanta em ver a pessoa passe-ando normalmente nas ruas, como qualquer um. Bem vestido, bem tratado. Provavelmente mora até em casa! Tem atendimento de saúde e de educação assegurados, como qualquer cidadão. Anda muito, sim senhor, certo de que nada lhe acontecerá. E que, se acontecer, terá todo um sistema jurídico montado para proteger seus direitos. Chega a ser chocante.
“É uma questão de cultura. Se você tivesse nascido num desses lugares, aprenderia a respeitar a pessoa desde pequeno e tratá-la com a deferência que nós tratamos a vaca, e não veria nada de estranho nisto. Da mesma maneira, alguém que vem de um desses lugares para o nosso país estranha os nossos hábitos. Provavelmente vê agricultores protestando porque não têm terras num lugar com tanta terra e não compreende. Acha inexplicável, monstruoso, sei lá. É porque não nasceu aqui, não se habituou ao nosso jeito, não conhece nossas tradições e nossos costumes. Para nós uma pessoa é só uma pessoa, e só. Se fôssemos sacralizá-la, determinar que ela não pudesse ser sacrificada de forma alguma, alimentá-la e tratar de sua saúde como se engorda e cuida de uma vaca, não só estaríamos contrariando a nossa formação cultural como ameaçando a nossa própria estrutura econômica. Imagine, dar terra a um agricultor sem terra, como se ele fosse um, um... um proprietário rural!
“Enfim”, disse o viajante, “a variedade é o tempero da vida. Este seria um mundo muito chato se todos tivessem os mesmos hábitos e pensassem da mesma maneira. O bom de viajar é que a gente pode conhecer o exotismo de outros lugares, mas sempre voltando para a terrinha, que é nossa e é onde a gente se sente bem. Podemos não entender que em algum lugar a pessoa, logo a pessoa, seja um animal sagrado, mas temos que respeitar. Há tanta coisa estranha no mundo...”
Luis Fernando Veríssimo.
Veja, 5 de julho de 1989.
Provocações
A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos bebês fazem assim, mesmo os que nascem na maternidade, ajudados por especia-listas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus irmãos, por doença e falta de a-tendimento.
Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme.
Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda vida.
Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça.
Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para onde teve que ir com a família, era pro-vocado por todo lado. Resistiu a todas.
Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava aonde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria emprego, só conseguiu subemprego. Queria casar, conseguiu uma sub-mulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. os que foram substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando numa fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal de reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que lhe faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. Conclui que era provocação.
Mais uma.
Finalmente ouviu falar que a reforma agrária vinha mesmo. Pra valer. Garantida.
Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava disposto a agüentar provocação.
Aí ouviu falar que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Na décima milésima provocação, reagiu...
E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência não!).
Luis Fernando Veríssimo.
O Pior Crime
Os sem-terra cometeram vários crimes além dos que o Efe Agá diz que eles precisam explicar. O primeiro foi o de existir. Este podia ser classificado como um crime menor, quase uma contravenção. Seria uma inconveniência tolerável, se não passasse disso. Mas quando, não contentes em existir, os sem terra começaram a existir em grande número, a coisa tornou-se grave. Alguns não só existiam como se manifestavam. Outros foram ainda mais longe: se transformaram em vítimas. Morreram, num claro desafio à ordem estabelecida. Em muitos casos, de tocaia, só para aparecer mais. Finalmente deixaram para trás qualquer escrúpulo e cometeram um crime imperdoável: se organizaram. São justificados os protestos contra mais esta afronta. Organizando-se, os sem-terra mudaram as regras do jogo, demonstrando - além de tudo - falta de esportividade. Eram regras antigas, combinadas e aceitas por todos. Organizando-se, os sem-terra pisotearam uma tradição brasileira defair-play, que é o termo inglês para “não esquenta que depois a gente vê isso”. Enquanto não estavam organizados era fácil enfrentá-los, controlá-los e derrotá-los - ou pedir calma, que era quase a mesma coisa. Organizados, eles ganharam uma força inédita capaz até de - nada detém a audácia desses marginais! - dar resultado.
Mas o pior crime dos sem-terra, o que deve estar atrapalhando o sono do Efe Agá, para não falar nas suas viagens ao exterior, é o literalismo. Sua perigosa adesão ao pé da letra, sua subversiva pretensão que a prática siga a teoria. É um crime hediondo, pois coage as pessoas a serem fiéis à sua própria retórica, o que no Brasil é antinatural. Como se sabe, todos no Brasil são a favor da reforma agrária. Fala-se em reforma agrária há gerações. Na saída da primeira missa o assunto já era a reforma agrária, e ninguém era contra. E vêm esses selvagens destruir todo um passado de boas intenções e melhores frases, querendo que nobre tese vire reles fato e princípio intelectual vire terra e adubo. E ainda pedindo pressa. Polícia neles.
Luís Fernando Veríssimo.
13/03/97, Jornal do Brasil
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