A revista Caros Amigos de setembro de 2010 contém uma entrevista com a boliviana Domitila Barrios de Chungara e começa citando uma palavra de Eduardo Galeano:
“Recordo-me de uma assembléia de trabalhadores, nas minas da Bolívia, já faz um tempinho, mais de 30 anos: uma mulher lançou-se entre os homens e perguntou qual é nosso inimigo principal. Escutaram-se vozes que respondiam: ‘o imperialismo’, ‘a oligarquia’, ‘a burocracia’... E ela, Domitila Chungara, esclareceu: “Não companheiros. Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós’. Eu tive a sorte de escutá-la. Nunca esqueci”.
Sobre o medo temos uma palavra de Jesus em Jo 16.33: “tende bom ânimo; eu venci o mundo”. Em outras palavras Jesus diz “não tenham medo, eu venci o mundo”.
O medo é inimigo do Evangelho do Reino de Deus. Mas, é o medo que reina entre a pastorada da IECLB: medo que a direita na igreja a persiga. Como a direita persegue? Ela persegue com as leis baixadas para controlar a pastorada: TAM, avaliação periódica, desemprego, etc. A direita persegue o Evangelho impondo a sua forma de pregação que não fala mais da realidade opressora em que o povo vive. O Espírito da Época, a teologia pentecostal - se instalou nas igrejas históricas - e as comunidades da IECLB querem não um/a pastor/a, mas um ‘showman’. E, um ‘showman’ não fala do sofrimento do povo e nem do imperialismo que nos subjuga pelo agronegócio e pelo hidronegócio para sermos produtores de commodities e mercadorias semi-industrializadas baratas mantendo um modelo econômico suicida que vai eliminar a vida humana do Planeta Terra se não houver uma mudança radical no processo econômico. O showman fala da alegria, ilusiona, engana, mascara a realidade, ajuda a fugir da realidade, aliena. As comunidades querem um/a pastor/a (de preferência pastor e não pastora porque o patriarcado está mais forte do que nunca) que saiba música para animar o povo a esquecer a opressão e não louvar o Cristo crucificado e ressurreto que viveu e pregou o Reino de Deus que aponta para a construção de uma nova sociedade não capitalista.
Interessante notar que os/as camponeses/as quando reunidos em grupinho não se cansam de reclamar do preço baixo do leite, do milho, do trigo, da soja e do preço do porco, mas não querem uma igreja que fale contra este sistema capitalista que os oprime e os escraviza. Querem uma igreja alienada porque também tem medo. Medo de participar da construção do Movimento Popular que luta contra o sistema capitalista que os escraviza. Medo de construir um novo sistema econômico que eles não sabem exatamente como será. Então, é mais fácil não fazer nada e apenas reclamar, já que isto não ameaça ninguém.
O tema do ano para 2011: “Paz na Criação de Deus” é ideal para se falar do sistema econômico suicida que é o capitalismo na sua fase imperialista que acaba com a biodiversidade via economia que produz o aquecimento global e conseqüentemente isto vai levar ao fim da própria humanidade, se o processo não for bloqueado. Mas, como nós sabemos, nem sempre um bom tema tem uma reflexão clara, como também o foi em 2005 quando o lema bíblico era Rm 12.2: “não vos conformeis com este século”, onde o material enviado pela igreja também não falou que “este século” é o capitalismo que é coisa do diabo, por isso o material não explicou como o “nosso século”, a nossa sociedade funciona. Por que? Por medo da direita que iria gritar e reclamar que isto não é assunto de igreja. Que não se pode falar mal de nosso deus verdadeiro, o capital. Onde já se viu explicar como o capitalismo funciona, como é que fica a burguesia diante da classe trabalhadora que de repente sabe como é explorada? A classe trabalhadora é capaz de querer construir um novo sistema econômico onde o resultado de seu trabalho fique com ela e não com a burguesia. E, conseqüentemente, os meios de produção que a burguesia amealhou a custa da classe trabalhadora vão ficar com quem os custeou: a própria classe trabalhadora. De repente a classe trabalhadora vai descobrir que não se fica rico apenas com o seu próprio trabalho, mas que somente se fica rico com o uso e abuso do trabalho alheio. Como é que a igreja vai contar isto para o povo explorado e empobrecido de suas comunidades? Isto vai gerar conflito. A igreja não pode gerar conflito. Na verdade, a igreja nunca gera conflito, ela apenas mostra e aponta para o conflito existente na sociedade, e que este conflito (luta de classes) não combina com o Projeto do Reino de Deus. Este conflito tem que ser eliminado. Este conflito só será eliminado quando acabar com a opressão de uma classe sobre a outra. Este conflito a Bíblia chama de pecado. A origem deste pecado coletivo está na existência de classes sociais na sociedade.
Por isso Deus guiou os hebreus sem terra para as montanhas da Palestina para ali conquistar as cidades e com isto tomar o poder político e mudar o sistema econômico tributário para tribal, para que os sem terra pudessem ter acesso aos meios de produção, a terra, e serem livres, como nos relatam os capítulos 6-8 de Josué. Nesta luta se acaba com as classes sociais existentes nas cidades-estado da Palestina e se constrói uma sociedade sem classes e sem Estado. Este é o Projeto de Deus no AT. Com o ressurgimento de classes sociais surge a monarquia que Deus combate via o profetismo.
Será que o material que a Igreja vai distribuir para o estudo que vai orientar o tema do ano de 2011 vai mostrar que não haverá paz na criação de Deus enquanto o sistema capitalista existir (se inclui aqui o capitalismo de estado stalinista que era tão predador da natureza e para a vida humana como aquele), e que este sistema é o responsável pela destruição sistemática da criação de Deus, inclusive a vida humana?
Conhecendo a IECLB como conheço acho difícil isto acontecer, pois o medo impede de isto se concretize. Medo de quem? Medo da direita na igreja que defende o capitalismo até debaixo da água. Alguns ficam bastante nervosos quando se fala que há direita e esquerda na igreja, mas é assim que é. Em outras palavras a direita são os capitalistas e seus apoiadores (que podem ser também pessoas da classe trabalhadora que não sabem quem e o que apóiam, porque nunca ninguém explicou à eles como a sociedade funciona ou porque fizeram a sua opção a favor deste sistema, mesmo sendo explorados por ele. O judaísmo - seguidores da prática de Judas - é um movimento forte na igreja e na sociedade.). A sua luta é para que a igreja não invente de começar agora a explicar como o capitalismo funciona, pois, segundo estes, não existe outra forma de organizar a vida e a sociedade além do capitalismo. Pois, me alegro em lhes dizer que há outra forma de organizar a vida e a sociedade, esta forma Jesus chama de Reino de Deus. Quando Jesus falou em Reino de Deus ele está exatamente apontando que existe outra forma de organizarmos a sociedade: a política, a economia a cultura e o jeito de pensar (ideologia). Parece que as pessoas lêem a Bíblia com os olhos, ouvidos e mentes fechadas e não conseguem ver e ler que a proposta do Reino de Deus, que é a mensagem central de Jesus, está exatamente apontando para uma outra sociedade, para uma saída de nossa forma pecadora de nos organizarmos como sociedade.
A mensagem central de Jesus que é o Reino de Deus nos coloca inevitavelmente em confronto com o sistema capitalista. É este sistema que Jesus disse que venceu, quando diz: eu venci o mundo. Mas os cristãos não se cansam de defender o mundo em vez de defender o projeto do Reino de Deus. Muitos cristãos pensam que o capitalismo e o Reino de Deus são a mesma coisa, mas não o são; são opostos que se eliminam.
O medo que está também dentro da igreja impede que se explique como a nossa sociedade funciona e se motive que o povo empobrecido e explorado de nossas comunidades se organizem junto com o Movimento Sindical combativo, o Movimento Popular e os partidos verdadeiramente de esquerda para acabar com este sistema econômico injusto por princípio, pois produz a mais valia, o lucro, a partir de parte do trabalho realizado que não é pago, que é a essência do capitalismo. A Domitila, porém, mostrou que a esperança vence o medo. Ela e mais quatro mulheres começaram uma greve de fome em 1978 que virou um movimento nacional que derrubou a ditadura militar na Bolívia. Não sei se ela é cristã, mas fez o que cada cristão deveria fazer.
A “esperança vence o medo” é o que a mensagem da Páscoa nos relata. Nós cremos na ressurreição do corpo e por isso não precisamos ter medo do sistema que pode matar o corpo, mas não pode matar a vida (Mt 10.28) e a salvação que já nos foi dada de graça pela fé em nosso Senhor Jesus Cristo. A mensagem bíblica da salvação por graça e fé é a grande motivadora para enfrentar o sistema deste mundo, o capitalismo; pois a salvação já a temos, o que nos poderá fazer mal? Como diz Luther na 4ª estrofe do seu hino chamado: Castelo Forte:
“O Verbo eterno vencerá as hostes da maldade.
As armas, o Senhor nos dá: Espírito, Verdade.
Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder:
Que tudo se vá! Jesus conosco está.
Seu Reino é nossa herança!”
Na verdade nós nem deveríamos cantar esta estrofe, por causa de nossa covardia.
Como a igreja está permeada pelo medo da direita (os capitalistas) ela não vai explicar como a nossa sociedade funciona com a desculpa que isto vai criar conflito nas comunidades. Este conflito já está nas comunidades, porém escondido e camuflado, porque o nosso povo vive neste sistema que está estruturado em classes sociais antagônicas em constante luta, que a ideologia da classe dominante não deixa enxergar e entender. Esta é exatamente a função da ideologia: impedir que se enxergue a luta de classes e a exploração a que o povo está sujeito. Como a igreja é (não pela sua essência), melhor dito: foi tornada, parte do aparelho ideológico do Estado (que tem a função de garantir que as bases do sistema econômico opressor se perpetuem) ela não vai esclarecer nada, nem neste tema do ano nem em outro qualquer, como não o fez em 2005. Afinal, na vida real o projeto do capital está acima do Evangelho, mesmo que o Manifesto Chapada dos Guimarães diga o contrário. Isto mostra que temos bons documentos na igreja, mas que são apenas documentos, que poucos conhecem e são pouco estudados por serem perigosos para os interesses da classe dominante que controla a direção da igreja através de seus cabeças de ferro, pois a classe capitalista não se digna de ela fazer parte da direção da igreja, tem seus “peões” para defendê-la.
O nosso medo é a força da direita. O nosso medo transfere poder para a direita. O poder da direita provém do nosso medo. A Domitila mostrou que dá para vencer a direita, mesmo com medo, assim como Israel sob o comando da juíza Débora venceu o exército do rei cananeu Jabim ((Jz 4).
A eleição presidencial deste ano de 2010 mostrou como uma grande parte da igreja cristã é reacionária, pois conseguiu desfocar a discussão de um Projeto para o Brasil se restringindo na discussão sobre a liberdade religiosa e o aborto, como se isto fosse o centro da nação. A direita sempre tem este discurso de “defesa intransigente a vida”, mas suprime a vida diariamente pela exploração capitalista sobre a classe trabalhadora e suprime a vida (biodiversidade) no Planeta Terra por causa de sua ânsia pelo lucro a qualquer custo, se for preciso faz guerra, como foram as “guerras justas” contra os povos indígenas no período da Conquista para conseguir escravos e para poder se apossar da terra e como o é a guerra do Iraque e do Afeganistão e a guerra no Congo que já ceifou 3 milhões de vidas, da qual ninguém fala, pois é financiada por empresas mineradoras transnacionais cujos acionistas certamente são cristãos. É a velha prática colonialista com outra aparência. Não esquecendo que o Colonialismo também foi defendido pelos cristãos capitalistas, onde as sociedades missionárias tiveram um grande papel de alienar os povos originários pela pregação daquilo que eles chamavam de Evangelho de Jesus Cristo, que na verdade era pura ideologia colonialista.
É só estudar a História da Igreja para ver como ela sempre de novo legitima o capital. Afinal, o capital, é o grande deus de nossa Era. Assim como o povo de Israel na Palestina adorava Javé e os deuses cananeus ao mesmo tempo, assim é hoje: se adora Jesus Cristo (de boca para fora), mas ao lado se adora pela prática da vida o deus capital como o grande onipotente e onipresente deus de nosso tempo. Estamos esquecendo de pregar sobre o Primeiro Mandamento. Quando o fazemos o fazemos pela metade. Em 1983 a igreja tinha como tema do ano “Eu sou o Senhor teu Deus” com o lema bíblico: “Para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós também para ele” (I Co 8.6). Esqueceu-se de colocar todo versículo como tema, pois o todo mostra e define quem é Deus: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Nosso Deus é aquele que liberta da escravidão e luta contra o Estado opressor e contra a economia opressora que escraviza. Assim se prega, se esquece o essencial. Se fala das coisas, mas ao mesmo tempo não se diz tudo, por medo de se confrontar com a direita. Isto nos caracteriza, conforme o Apocalipse 3.16: “Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca”.
‘Nosso inimigo principal é o medo, e o levamos dentro de nós’, (diz Domitila) mesmo o levando dentro de si ela e mais quatro mulheres iniciaram um processo que derrubou a ditadura na Bolívia em 1978. Parece que esquecemos o relato de Atos 2 que conta que com a vinda do Espírito Santo os discípulos medrosos começaram a falar. Deixemos o Espírito Santo falar e agir através de nós.
Se falarmos pelo poder do Espírito Santo vai ser como o foi com Paulo, como diz em At 24.5-6: “Porque, tendo nós verificado que este homem é uma peste e promove sedições entre os judeus esparsos por todo o mundo, sendo também o principal agitador da seita dos nazarenos, o qual também tentou profanar o templo nós o prendemos [com o intuito de julgá-lo segundo a nossa lei”. Se falarmos pelo poder do Espírito Santo vamos ser chamados de desordeiros, de peste, de agitadores, de promover sedição, assim como Jesus o foi, conforme Lc 23.2,5.
Comblin numa palestra em El Salvador sob o tema: “O que está acontecendo na Igreja?” diz: “O evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo”. Aí entra o comentário de José María Castillo (publicado na página da IHU): “E isto, o que tem a ver com o que está acontecendo na Igreja? Muito simples: na vida e no funcionamento da Igreja, a religião ocupa mais espaço e tem maior importância do que o evangelho. O evangelho expressa a vontade de Deus que busca o homem. A religião expressa a vontade do homem que busca a Deus. Portanto, de entrada, evangelho e religião são dois movimentos radicalmente contrapostos. A religião é um “fato cultural”, ao passo que o evangelho é um “fato contracultural”. O que acabo de indicar explica como e por que, no cristianismo, ocorre que a presença da religião (elaborada na cultura do Ocidente) é mais forte e mais determinante que o evangelho, que teria que ser a força de contestação e transformação da nossa cultura do Ocidente, que é, até hoje, a cultura dominante num mundo sobrecarregado de desigualdades, injustiças e violências. O fato é que, como disse Comblin, as coisas chegaram a colocar-se de maneira que Jesus é mais “objeto de culto” do que “modelo de seguimento”. Mas, sabemos de sobra que o culto não muda a vida das pessoas, mas que antes a tranquiliza. Só o seguimento – que é o que Jesus pediu aos discípulos – seria capaz de mobilizar as pessoas para reorganizar uma Igreja mais de acordo com o evangelho, mesmo que isso tivesse o enorme custo do enfrentamento com tantos elementos anticristãos que marcaram a cultura em que vivemos”.
Está aí a explicação da situação em nossa igreja onde a religião se sobrepõe ao Evangelho. Está aí a explicação porque o nosso culto não muda as pessoas e nem as faz se engajar na luta para a transformação de nossa realidade. O nosso culto faz parte da “religião”, que tranqüiliza, acomoda, aliena, e não do “Evangelho”, que transforma, revoluciona, subverte, agita (At 24.5-6) a partir da fé em Jesus Cristo. Essa é duro de engolir. Mas parece que é assim. E aí, o que sobra? O que faremos? Essa é pancada na cabeça!
Estamos destinados como sacerdotes a “tranqüilizar” o povo? É esse o papel que a direita quer para nós e espera de nós. A direita na igreja quer que promovamos a religião e não o Evangelho. Mas, a fé cristã não é religião. Eu já disse isso uma vez e alguém me perguntou: O que você tem contra a religião, pois fé cristã é religião? Agora eu posso responder: Tudo! Contra a religião eu tenho (eu não tenho, mas Deus tem) o Evangelho do Reino de Deus anunciado e vivido por Jesus Cristo, que morreu na cruz e foi ressurreto, que aponta, contra o pensamento único do neoliberalismo que diz que o capitalismo é o fim da história, inevitavelmente para uma nova sociedade não capitalista. Ponto!
Qualquer cristão que disser que o capitalismo é o fim da história, que não existe uma outra forma, além desta, de organizar a vida e a sociedade, demonstra que nunca leu a Bíblia ou nunca a entendeu e muito menos conhece qualquer coisa de história! Pois Jesus diz no Evangelho que há uma outra forma de organizar a vida e a sociedade que é o Reino de Deus. No Evangelho (toda a Sagrada Escritura: AT e NT, como diz no artigo 5º da Constituição da IECLB) Deus ainda aponta como deve ser a organização de nossa vida e de nossa sociedade; está lá, é só ler e descobrir. Esta parece ser a nossa dificuldade.
Condor, 31 de outubro de 2010.
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