3 de agosto de 2011

O Reino de Deus e o reino do mundo.

Ou de como a Igreja Cristã se deixou cooptar pelo capitalismo, reproduzindo-o e fortalecendo-o em nível mundial, em vez de ser fiel ao Evangelho do Reino de Deus.

A esmagadora maioria dos cristãos é fiel ao capitalismo, achando que assim está sendo fiel ao Evangelho do Reino de Deus. Reproduzem o capitalismo achando que promovem o Reino de Deus. Ex.: os ditadores latino-americanos dos anos 60 a 80 eram cristãos; todos os presidentes dos USA eram cristãos e não vacilaram em invadir, massacrar e apoiar e implantar ditaduras sangrentas pelo mundo afora. Algumas vezes fizeram isto em nome de Deus, como foi o caso da invasão do Afeganistão e do Iraque.
“Os de baixo”, o povo cristão pobre do 3º Mundo acaba aceitando este pensar e esta prática como sendo legitimamente cristã; pois é movido pela ideologia dominante. Esqueceram o que diz em Ap 18.4-5: “Ouvi outra voz do céu, dizendo: Retirai-vos dela, povo meu, para não serdes cúmplices em seus pecados e para não participardes dos seus flagelos; porque os seus pecados se acumularam até ao céu, e Deus se lembrou dos atos iníquos que ela praticou”. Aqui se fala da queda de Roma (que aconteceu, como previu profeticamente o Apocalipse, em 476 d.C.), símbolo maior do sistema deste mundo da época. Este texto mostra a transitoriedade e provisoriedade dos sistemas implantados pelas pessoas; não devemos esquecer isto. E nem esquecer isto que diz em 1 Coríntios 2.6: “Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada”.
Diz o Manifesto Chapada dos Guimarães aprovado pelo Concílio da Igreja em 2000 em Chapada dos Guimarães, MT:
“A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura, para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa auto-suficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro (“Mâmon”). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje. Somos testemunhas de que esse sistema requer sacrifícios, faz suas vítimas e promove dor, sofrimento e morte”.

O que a Bíblia diz sobre o mundo e sobre as propostas do mundo? E o que ela diz sobre o Reino de Deus, que é a Proposta de Jesus Cristo frente ao poder do mundo?

Introduzindo com alguns textos bíblicos:
Jo 12.31: Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso.
Jo 14.30: Já não falarei muito convosco, porque aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim;
Rm 1-2: Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
Tg 1. 27: A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo.
2 Coríntios 4.3-4: Mas, se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus.
Colossenses 3.1-3: Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus.

O que hoje é o “mundo”, “este século”?
O mundo hoje é organizado no assim chamado sistema econômico capitalista neoliberal globalizado, hoje ainda sob a hegemonia dos USA. Esta é a ordem vigente que determina a economia, a política, as relações sociais, a cultura, a ideologia (o jeito de pensar) e também quer determinar a nossa prática e compreensão de fé. Se deixarmos, ele acaba virando deus, quando as pessoas não admitem que este sistema seja questionado e mudado. No entanto, o capitalismo é apenas obra humana passageira, por mais que diga que é eterno vai ser extinto e vai desaparecer por ser obra humana. Eterno é o trino Deus e o seu Reino.
Quando denunciamos a realidade injusta no mundo no qual vivemos somos acusados de fomentar a luta de classes ou até de criar a luta de classes. Não criamos as divisões na sociedade e nem fomentamos a luta de classes apenas denunciamos que ela existe e de que ela não é da vontade de Deus. Quem cria a luta de classes é a própria dinâmica da economia e por isso ela está em situação de pecado, que precisa ser denunciado. O chamado à conversão e fé no evangelho (Mc 1.15) exige o fim da sociedade de classes e, portanto o fim do próprio sistema capitalista. Nós apenas denunciamos a sociedade divida em classes sociais e mostramos que o projeto de Jesus é o reino de Deus onde todos são um como Jesus é um com o Pai. Por isso os/as cristãos/ãs se chamam de irmãos/irmãs porque querem a igualdade e a comunhão, por isso não podem aceitar uma sociedade divida em classes sociais que legitima a desigualdade entre as pessoas, que Deus criou livres e iguais (Gn 1.27). Sonhamos com uma sociedade onde as classes sociais foram abolidas e por isso lutamos para acabar com toda e qualquer sociedade dividida em classes sociais antagônicas. Isto o capitalismo não pode permitir, pois seria sua extinção. As tribos de Israel na Palestina viviam numa sociedade sem classes sociais, sem estado, sem templo, onde todos participavam da assembléia popular que se reunia no local de culto em frente à tenda da congregação e onde a propriedade dos meios de produção era da coletividade, pois a terra é de Deus (Lv 25.23: “Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois para mim estrangeiros e peregrinos”. Terra não é mercadoria. Sl 24.1 “Ao SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que nele habitam”.). Este é o Projeto de Deus no AT.
Qual a base do “mundo”, do “século”?
Aqui o famoso resumo de Milton Friedman da Escola de Chicago nos ajuda a entender isto: “O único propósito das empresas e corporações privadas é ganhar o máximo de dinheiro possível para seus acionistas”.
Gostaria aqui de citar uma palavra de Maurício Botelho, ex-presidente da Embraer (empresa que foi privatizada e que fabrica aviões e que foi vendida para o capital francês): “Não temos nenhum interesse especial pela aviação; nosso objetivo é o lucro” (Revista Reportagem nº 6, janeiro de 2000, página 10).
João Uchoa Cavalcanti Netto, dono da Universidade Estácio de Sá disse: “Estou interessado no Brasil? Não, não estou interessado no Brasil. Na cidadania? Também não. Na solidariedade? Também não. Estou interessado na Estácio de Sá”. (Revista Caros Amigos Especial nº 26, outubro de 2008) A Universidade Estácio de Sá tem 48 campi em 6 estados com 110.000 alunos e faturou em 2003 R$ 482,3 milhões. Educação é mera mercadoria que produz muito lucro, e apenas neste ele está interessado.
A ética do capitalismo é o lucro; e o lucro não tem ética, é o que nos mostra a história, pois o lucro não recua diante de nada e se alimenta da exploração, da prostituição, do tráfico de drogas e de armas, da escravidão, da ditadura, do saque, da pirataria, da guerra e do genocídio.
Lord Keynes disse para se sair da grande depressão dos anos trinta: "Durante pelo menos cem anos devemos simular diante de nós mesmos e diante de cada um que o belo é sujo e o sujo é belo porque o sujo é útil e o belo não o é. A avareza, a usura, a desconfiança devem ser nossos "deuses", porque são eles que nos poderão guiar para fora do túnel da necessidade econômica rumo à claridade do dia. Depois virá o retorno a alguns dos princípios mais seguros e certos da religião e da virtude tradicional: que a avareza é um vício, que o capricho da usura é um crime e que o amor ao dinheiro é detestável”. Isto nos lembra Isaías 5.20 que diz: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!” A dinâmica do sistema capitalista é exatamente esta, a de inverter as coisas; por isso as coisas viram gente e a pessoa viram coisa – vira mercadoria, é a reificação. Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem sob forma de coisas. Como os seres humanos não percebem esta reificação (res = coisa; que o ser humano vira coisa, objeto, mercadoria)? Isto nos leva à ideologia.
O que é determinante para a compreensão e a prática da fé dos cristãos? O Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo? Para a esmagadora maioria não! Para a esmagadora maioria o que determina a compreensão e prática da fé é a sua compreensão do mundo (sua filosofia) que é dada a partir de sua prática econômica. Por isso quem assume a prática econômica capitalista como sendo a única possível vai usar o Evangelho para legitimar a sua prática econômica. A sua compreensão e prática, daquilo que ele acha que é fé em Jesus Cristo, vai ser determinada pela sua ideologia capitalista. E, a ideologia capitalista vai determinar a sua leitura da realidade, do mundo e da própria Bíblia. Por isso a maioria dos cristãos sente desprezo e ódio das pessoas empobrecidas (mesmo sendo elas empobrecidas) como os sem terra, sem teto, favelados, desempregados e a isso ainda se junta o racismo. Pequenos agricultores até 200 hectares de terra são contra a reforma agrária, mesmo sendo os seus filhos sem terra que tem que migrar para a cidade porque não tem terra para nela trabalhar. Deveriam ser a favor da reforma agrária porque os seus filhos dela se beneficiariam, mas porque o seu pensamento é determinado pela ideologia capitalista se colocam contra seus próprios filhos. Não conseguem entender que Deus se colocou e continua se colocando ao lado dos empobrecidos, como nos mostra o relato do Êxodo e a Cruz de Cristo, porque o determinante de sua fé não é o Evangelho do reino de Deus, mas a sua prática econômica capitalista, mesmo sendo eles da classe trabalhadora. Por isso quando alguém lhes diz que o capitalismo é obra do diabo ficam fora de si de raiva. Reagem da mesma forma como os fariseus, escribas e saduceus reagiam diante da pregação e prática de Jesus, queriam expulsá-lo de sua aldeia e matá-lo. Assim, normalmente, não é o Evangelho que determina a fé e a prática dos chamados cristãos, mas a ideologia da classe dominante do sistema econômico vigente. No feudalismo os cristãos legitimaram o feudalismo, nos escravismo eles legitimaram a escravidão e no capitalismo legitimam o capital e na prática o adoram como seu deus, mesmo negando veementemente este fato. Mas, a prática, que é a verdade última, mostra isto. Jesus fala sobre isto em Mateus 7.20: “Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis”. Jesus continua dizendo em Lucas 3.8: “Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”. Paulo lembra em Gl 5.22-23: “Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei”.
O que, no entanto, nos incomoda é a opção de Deus; ele optou no Êxodo pela classe camponesa escrava e não pelo Faraó. Na luta de classes entre o Estado e a classe camponesa Deus optou pela classe camponesa, por ser oprimida. Isto já nos deveria dizer muito. Também na Páscoa Deus optou em confrontar uma ação política do estado romano, em crucificar Jesus, quando ele o ressuscitou dos mortos. Deus anulou e contrapôs esta ação política do estado romano com a ressurreição de Jesus. Assim como Deus interveio no estado egípcio, no Êxodo, ele interveio no estado romano, na Páscoa. Sempre em favor dos massacrados e oprimidos pela classe dominante. Isto está escrito lá na Bíblia, não é invenção minha. É só uma questão de saber ler o que lá está escrito.
A avareza, a cobiça e a ganância que são virtudes no capitalismo mostraram nesta crise de 2008 de Wall Street a sua verdadeira face, cujas conseqüências vão ser desastrosas para os pobres do mundo todo que vão pagar um alto preço por esta crise cíclica do capitalismo com fome e desemprego. Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam para um aumento do número de desempregados no mundo de 5 milhões, soma que, dependendo do aprofundamento da crise, poderá ser ainda maior. O pior é que o Estado vai usar o dinheiro público para salvar os caloteiros, quando o deveria usar para fazer reforma agrária e gerar empregos na cidade, melhorar a saúde e a educação. Assim o capitalismo premiou o calote, a cobiça e os desonestos. Esta crise mostrou que os mitos do neoliberalismo caíram por terra e a tese liberal do mercado como aquele que se auto-regula se tornou uma falácia. Quando interessa aos capitalistas então o Estado tem que intervir, quando não interessa o Estado tem que se abster de intervir. Agora do mesmo os capitalistas já conseguiram o que queriam: se apoderaram a preço de banana de quase todas as empresas estatais e controlam de fato a economia com o processo de privatização que ocorreu nos anos 90. A função do estado é sempre favorecer o capital. Trabalhadores, suas famílias e comunidades têm tanto direito de serem salvos desta crise quanto às instituições financeiras que nos colocaram nesta confusão. A crise financeira, na esteira da crise do aumento dos preços dos alimentos e do petróleo, significará um retrocesso nos esforços de diminuição da pobreza no mundo. Pelo contrário, pelo menos 100 milhões de pessoas voltarão à pobreza este ano de 2008, cifra que poderá aumentar ainda mais. Dá para defender um sistema que premia a cobiça e a ganância, os ladrões e os caloteiros e deixa as vítimas deitadas nas valetas das estradas, como nos conta a parábola do Bom Samaritano? A crise descortina ainda um outro aspecto não menos intrigante: com que rapidez os governos dos países ricos e alguns ‘emergentes’ obtêm bilhões de dólares para salvar o sistema financeiro, mas não conseguem menos dessas metades para tirar os pobres da miséria ou para acabar com várias doenças no mundo. Por quê? Porque o Estado está a serviço do capital e não dos pobres.
Quando a pessoa entrega a mediação de suas relações sociais a um objeto externo, ao dinheiro, esse objeto converte-se em algo superior a ele mesmo e como se tivesse poderes derivados de sua própria natureza de objeto. A pessoa torna-se escravo desse objeto e o objeto passa a ser cultuado como se fosse o próprio deus ou o maior deles.
Ele, o capital, compra, vende, emprega, desemprega, paga, faz os preços subirem ou baixarem, provoca crises, destrói nações, mata de fome, confia ou fica preocupado, desconfia, elege ou destitui presidentes. Mais do que tudo isso, ele gera, por si mesmo, mais riqueza, lucro, mais capital. O capital é o nosso fetiche-deus-fantasma todo poderoso.
O dinheiro é capaz de comprar todas as coisas do mundo. Por isso, ele é visto como a própria encarnação da riqueza. Quando olhamos para ele, não vemos um pedaço de papel; vemos a própria riqueza capitalista. Por isso é que ele compra tudo: qualquer tipo de mercadoria e até, muitas vezes, coisas que, por sua natureza não são mercadorias, como a consciência, a honra, a lealdade, a traição e até o voto de congressistas para mudanças na lei e mesmo na constituição.
O fetichismo é mecanismo regulador das relações sociais na sociedade capitalista, permite o funcionamento e a regulação indireta do processo de produção, da distribuição e da apropriação através do mercado. Além disso, o fetichismo é um fenômeno indispensável na preservação da ordem capitalista. Através dele, o conjunto dos seres humanos, em particular os subalternos, acreditam que o mundo é regido por determinações naturais, por leis naturais e imutáveis, e que, portanto, nada podem fazer contra isso. Acreditando-se dominados por forças naturais, tais seres (e todos eles, mas especialmente os subalternos) convertem-se em escravos: ‘o mundo sempre foi assim e nada há a fazer’. Sua impotência, atribuída por si mesmos, torna-se real, concretiza-se.
Declaração do presidente da Semp Toshiba: "Nós somos súditos do mercado. O mercado não quer saber se nós somos inteligentes, se somos competentes, se nós fomos competentes, se nós seremos competentes. O mercado é diferente. Nós estamos sujeitos às regras do mercado. E quando não nos sujeitamos às regras do mercado, geralmente nos damos mal. Tanto os funcionários quanto as empresas”.
Napoleão Bonaparte disse em relação à religião como aparelho ideológico do Estado: “No que me toca, eu não vejo na religião o segredo da encarnação, mas o segredo da ordem social: A religião empurra a idéia da igualdade para o céu, o que impede que os ricos sejam massacrados pelos pobres. A religião é como uma espécie de vacinação, conseqüentemente uma vacina, que sempre beneficia os charlatões e vilões, pelo fato de satisfazer a nossa queda pelo milagroso. Os sacerdotes são mais valiosos que muitos Kants e todos os sonhadores alemães. Como se pode manter a ordem num Estado sem religião? A sociedade não pode subsistir sem uma desigualdade das riquezas, relativamente, de bens, e a desigualdade das riquezas, relativamente, de bens, não pode subsistir sem a religião. Se uma pessoa morre de fome enquanto que seu vizinho nada em fartura, então lhe é impossível achar uma explicação para esta desigualdade, se não há uma autoridade que lhe diz: Deus quer que assim seja; tem que existir ricos e pobres no mundo; mas na eternidade finalmente tudo será dividido de maneira diferente!”. (Casalis, Georges. Methodologische Überlegungen zu einer Theologie der Befreiung für Westeuropa. Página 77; in: Geschichte – Theorie – Praxisberichte. 5 ed. Münster, 1992)
O que fala Martim Lutero sobre o “mundo”?
“Se me fosse possível começar, hoje, a pregar o evangelho, eu o faria de modo bem diferente. Deixaria toda essa grande e rude massa de gente debaixo do regime do papa. Eles não se emendam mesmo, pelo Evangelho, mas só abusam de sua liberdade. Em vez disso pregaria o Evangelho e o consolo especialmente para as consciências temerosas, humilhadas, desesperadas e simples. Por isso o pregador deve conhecer o mundo muito bem e reconhecer que ele é desesperadamente mau, propriedade do diabo, na melhor das hipóteses. Eu é que fui estupidamente ingênuo, não sabendo quando comecei, como eram as coisas, pensando que o mundo seria muito piedoso e, tão logo ouvisse o evangelho, viria correndo para aceitá-lo com alegria. Mas agora descubro, com grande dor, que fui vergonhosamente enganado” (Martim Lutero).

Queremos discutir o poder deste século, deste mundo sobre a Igreja e na Igreja e o perigo de os cristãos se deixarem usar, também hoje, para legitimar o sistema deste mundo, que é o capitalismo.
A serviço de quem a Igreja já esteve durante a história?
A igreja cristã legitimou a ganância, no período do Mercantilismo, que levou à escravidão e ao massacre de milhões de pessoas. No passado para legitimar o capitalismo mercantil a igreja cristã ocidental escreveu uma bula para Portugal:
1. Uma bula para Portugal:
Bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, do papa Nicolau V:
“Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto filho infante d. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos mesmos d. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado”.
Opressão, escravidão e massacre como método de evangelização. Isto depois se estendeu aos povos indígenas no Brasil. A partir do ano de 1444 Portugal reiniciou o tráfico de escravos da África para a Europa. A bula papal legitima esta escravidão em nome do Cristo crucificado e ressurreto. Escravizar é igual a converter para Cristo! Religião como aparelho ideológico do Estado e para legitimar os interesses da classe economicamente dominante.
O cronista Gomes de Zurara foi testemunha ocular da primeira leva de escravos africanos vendidos em Portugal em 1444 e escreveu sobre isto o seguinte: "Qual o coração, por duro que pudesse ser, que não seria tocado de pungente sentimento ao ver aquela cena? Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados de lágrimas, outros gemiam dolorosamente (...) Para aumentar sua dor, chegaram os homens encarregados da partilha e começaram a separar uns dos outros: os filhos dos pais, as mulheres dos maridos, os irmãos de irmãos. Nem de amigos nem de parentes se guardava lei alguma: somente cada um caía onde a sorte o levava".
Segundo a ‘igreja cristã ocidental’ isto apenas foi um ato de fé.
2. Uma bula para a Espanha:
No passado, a igreja também escreveu uma bula para a Espanha, para legitimar a Conquista das Américas que viabilizou a acumulação primitiva do capitalismo que possibilitou um salto de qualidade deste que desembocou na Revolução Industrial com o dinheiro do tráfico de escravos, do trabalho escravo indígena e dos povos africanos, da pirataria, da matança dos povos originários das Américas, do comércio monopolizado pelas metrópoles e do saque das riquezas da América, da África e da Ásia:
Bula Inter Coetera, de 4 de maio de 1493 (não por acaso meio ano depois da “descoberta” da América por Colombo):
“... por nossa mera liberalidade, e de ciência certa, e em razão da plenitude do poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio-Dia, fazendo e construindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes e ilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção a qualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o Ocidente e o Meio-Dia [...] A Vós e a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em S. Pedro, assim como do vicariado de Jesus Cristo, a qual exercemos na terra, para sempre, no teor das presentes, vô-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. [...] sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes delas, e reduzi-los à Fé Católica”.
O relato de 1552 de Frei Bartolomé de Las Casas fala dos resultados desta bula:
(...) Os espanhóis entravam nas vilas, burgos e aldeias não poupando nem crianças e velhos, nem mulheres grávidas e parturientes, e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços (...) sempre matando, incendiando, queimando, torrando índios e lançando-os aos cães (...) e assassinaram tantas nações que muitos idiomas chegaram a desaparecer por não haver ficado quem os falasse (...) e no entanto ali teriam podido viver como num paraíso terrestre, se disso não tivessem sido indignos... (Paraíso Destruído. Frei Bartolomé de Las Casas. L&PM Editores)
Sobre a situação semelhante no Brasil o jesuíta Cardim registra a mortandade da população indígena que vinha ocorrendo e diante da qual ele próprio se espanta: "Eram tantos os dessa casta que parecia impossível poderem-se extinguir, porém os portugueses lhes têm dado tal pressa que quase todos são mortos e lhes têm tal medo, que despovoam a costa e fogem pelo sertão adentro até trezentas a quatrocentas léguas" (Cardim. Tratados de terra e gente do Brasil, 1584)
Cardim assinala o progressivo extermínio. Dos Viatã, da Paraíba, que eram muitíssimos, diz que "já não há nenhuns porque sendo eles amigos dos Potiguara e parentes os portugueses os fizeram entre si inimigos, dando-lhos a comer para que dessa maneira lhes pudesse fazer guerra e tê-las por escravos e, finalmente, tendo uma grande fome, os portugueses em vez de lhes acudir, os cativaram e mandaram barcos cheios a vender a outras capitanias". Acrescenta que "assim se acabou essa nação e ficaram os portugueses sem vizinhos que os defendessem dos Potiguaras". (O povo brasileiro. Darcy Ribeiro)
O plano de colonização e catequese do jesuíta Nóbrega em 1558 legitimando a exploração da mão de obra escrava:
“... Se S.A. os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer estender aos cristãos por a terra dentro e repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outras partes de terras novas ... Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa e terão serviços de avassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta terra porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata”.
O resultado o jesuíta Anchieta constata em 1587:
“... nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca. Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros da Guiné e muito poucos da terra e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu”. (O povo brasileiro. Darcy Ribeiro)
Resultado geral: 70 milhões de mortos nas Américas em nome da fé no Salvador Jesus Cristo.

Legitimação da escravidão pela religião cristã:
Por volta de 1880, a viajante francesa, Adèle Toussaint-Samson, visitando uma fazenda escravista no Rio de Janeiro, presenciou o seguinte diálogo entre o proprietário e seu feitor:
“- O que se plantou esta semana?
-Arroz, senhor
- Começaram a cortar a cana?
- Sim, senhor; mas o rio inundou e nós devemos consertar os canais.
- Mande vinte negros para lá amanhã de manhã. O que mais?
- Henrique escapou.
- Cachorro! Ele já foi pego?
- Sim senhor, ele está no tronco.
- Dê-lhe vinte golpes com o chicote e coloque a argola de ferro no seu pescoço (...) Isso é tudo?
- Sim, senhor
- Muito bem. Chame os negros agora para rezar
O senhor tocou um pesado sino, então bradou numa voz descomunal:
- Salta para a reza!”
No século XIX, numa conversa com outro viajante, Thomas Ewbank, um escravo reclamava de um duplo cativeiro. A senhora tinha por hábito acordá-los (ele e a seus companheiros) de madrugada para as orações: “Trabalhar, trabalhar e trabalhar o dia todo, rezar, rezar e rezar a noite inteira. Nenhum negro deveria agüentar isso”.
Os escravos da Fazenda São José, visitada por Toussaint-Samson, também não escaparam do dever católico das orações. Estavam obrigados a isso, assim como estavam obrigados diariamente ao trabalho. Era o repicar dos sinos, pelo feitor ou pelo fazendeiro, que exigia a presença e o cumprimento de ambos os deveres. (Tempo e Presença, nº 310, abril de 2000)
Após o Golpe de Pinochet em 1973 a Igreja Luterana do Chile se dividiu em duas: uma a favor da ditadura e outra contra; como no tempo do Hitler na Alemanha, e com isso legitimou a tortura e o assassinato em massa que ali ocorreram. Isto acontece quando a ‘igreja’ defende o sistema deste mundo, que é o capitalismo.
Não esquecendo a Conferência de Berlim (1884 - 1885), proposta por Bismarck e Jules Ferry (estadistas ‘cristãos’), que dividiu a África entre as potências européias e promoveram um massacre sem precedentes das populações nativas.
Em 1830, a França invadiu a África e iniciou a conquista da Argélia, completada em 1857. Dez anos mais tarde, Leopoldo II da Bélgica deu novo impulso ao colonialismo ao reunirem Bruxelas, a capital, um congresso de presidentes de sociedades geográficas, para difundir a civilização ocidental dizia o rei; mas os interesses eram econômicos.
Outros países europeus se lançaram à aventura africana. A França, depois da Argélia, rapidamente conquistou Tunísia, África Ocidental Francesa, África Equatorial Francesa, Costa Francesa dos Somalis e Madagascar. A Inglaterra dominou Egito, Sudão Anglo-Egípcio, África Oriental Inglesa, Rodésia, União Sul-Africana, Nigéria, Costa do Ouro e Serra Leoa. A Alemanha tomou Camarões, Sudoeste Africano e África Oriental Alemã. A Itália conquistou Eritréia, Somália Italiana e o litoral da Líbia. Porções reduzidas couberam aos antigos colonizadores: a Espanha ficou com Marrocos Espanhol, Rio de Ouro e Guiné Espanhola; Portugal, com Moçambique, Angola e Guiné Portuguesa. Era o Neocolonialismo em sua forma pura praticado por ‘cristãos’ motivados pela ganância de acumular capital. Basearam-se na teoria da cultura superior européia que era uma atitude racista a serviço da expansão e reprodução do capital. Quem resistia a esta invasão era fisicamente eliminado ou confinado em guetos.
Os relatos das expedições de conquista trazem descrições como essa, sobre a ocupação do Chade: "Dundahé e Maraua foram as principais etapas antes da Birni N'Koni. Aqui pudemos ler no solo e entre as ruínas da pequena cidade as diversas fases do assalto, do incêndio e da matança... Em torno da grande aldeia de Tibery, os cadáveres de dezenas de mulheres pendiam das árvores próximas... Em quase todas as aldeias por que passamos, os poços estavam fechados ou contaminados por montões de cadáveres que apenas se podia distinguir se pertenciam a animais ou a homens."
Já os missionários cristãos se encaixavam nos fatores religiosos e culturais. Eles desejavam converter africanos e asiáticos. Havia gente que considerava mesmo dever dos europeus difundir sua civilização entre povos que julgavam primitivos e atrasados. Tratava-se mais de pretexto para justificar a colonização. Uma meta dos evangelizadores era o combate à escravidão. Dentre eles, destacaram-se Robert Moffat e Livingstone. Suas ações, em suma, resultaram na preparação do terreno para o avanço do imperialismo no mundo afro-asiático. A missão de Jesus se transformou na missão de subjugar tudo e a todos debaixo do poder do capital. E o sangue dos sacrifícios humanos jorrou aos cântaros do altar do deus capital, legitimado pelo Evangelho libertador de Jesus Cristo, cujo sangue também jorrou da cruz porque ameaçou a opressão do Templo de Jerusalém aliado ao poder do império romano.
A fase seguinte ao Colonialismo é o Imperialismo inglês que após a Primeira Guerra Mundial foi substituído pela hegemonia estadunidense que dura até hoje. Cujo resultado foi e continua sendo devastador:
Os EUA nas décadas de 60, 70, 80 em nome da sua democracia e da civilização cristã ocidental e do chamado mundo livre ajudaram a implantar e manter ditaduras militares pelo mundo todo. A morte financiada pela CIA, no dia 11 de setembro de 1973, do presidente do Chile eleito democraticamente, Salvador Allende, e mais 3.000 pessoas que foram assassinados pela ditadura de Pinochet a serviço do capitalismo americano; além dos 30.000 argentinos assassinados pela ditadura militar de 1976 apoiada pelos americanos; dos 50.000 nicaragüenses mortos pelos contras e pela ditadura de Anastácio Somoza financiados pelos americanos; não esquecendo os 117 mortos durante a ocupação americana da ilha de Granada, no Caribe nos anos 80; nem esquecendo os 75.000 mortos em El Salvador, os 200.000 mortos na Guatemala e os milhares em Honduras cujas ditaduras e suas repressões eram financiadas pelos americanos; na República Dominicana de 1916 a 1924 houve a matança de 10.000 pessoas a serviço dos USA, a tudo isto somam-se 90.000 desaparecidos na América Latina vítimas das ditaduras militares. Lembremos ainda do Presidente do Congo Patrice Lumumba morto pela CIA nos anos 60 porque não se subjugou aos interesses americanos; muito menos esquecendo os 365 brasileiros mortos pela repressão sob tortura e execução sumária da nossa ditadura militar de 64 que recebeu orientação direta de torturadores estadunidenses (esta ditadura que resultou em 30.000 pessoas torturadas foi apoiada pelas igrejas cristãs na famosa Marcha por Deus, pela Família e pela Liberdade; cerca de 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses da ditadura; 7.367 acusados e 10.034 atingidos na fase de inquérito em 707 processos judiciais por crimes contra a segurança nacional), quem apoiou a ditadura deu o seu aval a todas estas atrocidades (e não me venha dizer, como disseram muitos alemães sobre Auschwitz: eu não sabia disto! Não sabia porque não quis saber, não quis se informar. Um cristão uma vez me disse que a ditadura era o preço do progresso.); além disto, devemos lembrar os milhares de mortos das ditaduras do Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Colômbia que foram financiadas e apoiadas pelos EUA nos anos 70 e 80.
Desde que se criou a Doutrina Monroe, em 1823, os EUA anexaram Porto Rico ao seu domínio em 1898, anexaram uma parte do México e invadiram o México em 1914, Cuba em 1902, 1920 e 1960, a Sumatra em 1831, o Haiti em 1915, a República Dominicana em 1916 e 1956, a Rússia em 1918, o Irã em 1953, o Líbano em 1958 e em 1958, a Guatemala em 1954 e ocuparam o Canal de Panamá e o Panamá quando depuseram o General Noriega, implantaram ditaduras militares no Cone Sul, sem esquecer a invasão das Filipinas e Guan, fomentaram o terrorismo contra a Nicarágua sandinista através dos “contras”, já o haviam invadido em 1910, treinaram torturadores em suas escolas militares. Considerando apenas o período que vai de 1945 a 1978 os USA utilizaram as forças armadas por 215 vezes para solucionar impasses políticos com a finalidade de garantir seus interesses.
Desde a segunda Intifada (insurreição palestina contra a ocupação) iniciada em setembro de 2000 temos 4.005 palestinos mortos (destes 883 crianças) e 701 israelenses mortos; Israel mantém sob custódia (presos) 9.075 palestinos incluindo 345 menores.
250.000 japoneses mortos diretamente em Hiroshima e Nagazaki (fora os que morreram depois por causa da radiação) por causa da bomba atômica jogada pelos americanos, quando a guerra já estava no fim. 2 milhões vietnamitas mortos na guerra do Vietnã, além dos 58.000 soldados americanos, da qual os americanos não gostam de ser lembrados; incluímos nesta memória de 700.000 pessoas da Indonésia mortos depois do golpe de 1965 para o qual o EUA deram 50 milhões de rúpias somente para o grupo paramilitar Kap-Gestapu e os EUA também esqueceram que deram irrestrito apoio ao ditador indonésio Suharto para invadir Timor Leste em 1975, onde ocorreu outro genocídio com 533 mil vítimas civis; não esquecendo que em 1982 o secretário de Estado americano Alexander Haig deu o aval à Israel para invasão do Líbano o que custou a vida de 17.500 pessoas, quase todos civis, incluindo o massacre feito por paramilitares aliados de Israel nos campos de refugiados em Sabra e Chatila que matou 1800 pessoas; lembrando que o governo americano sustentou a ditadura do sanguinário Idi Amim Dada, que literalmente comia seu próprio povo; os americanos também defenderam o Xá Reza Pahlevhi no Irã e apoiaram incondicionalmente o regime do apartheid na África do Sul que invadiu Angola a serviço dos americanos e financiaram a guerrilha de direita da UNITA em Angola e a Renamo em Moçambique que arruinaram estes países. Cerca de duzentas guerras ocorreram no século XX, 200 milhões de mortos, 2% da população do século: o século XX está dentro da média dos séculos que o precederam. De abril a junho de 1994 se produziu 900 000 mortos, em noventa dias, o que dá uma média de 10 000 por dia, o último genocídio do milênio, o dos Tutsis ruandeses pelos hutus, vem nos recordar que a machadinha pode se revelar tão «eficiente» quanto a câmara de gás. Nos anos 70 Idi Amin Dada Oumee massacrou 500.000 pessoas em Uganda. O mundo nem se importa com o massacre que acontece atualmente em Darfur no Sudão que já ceifou mais de 400.000 vidas em quatro anos (2003-2006); O Chade desestabilizou-se com a chegada de 250 mil refugiados de Darfur; 7 milhões de pessoas foram mortas no Congo desde 1996 por causa da guerra promovida pelas forças armadas de Ruanda, Burundi e Uganda financiada pelas corporações multinacionais que querem controlar as riquezas minerais e os diamantes.
Não se mata só com armas: a ordem econômica mundial mata 100 mil pessoas de fome por dia, apesar de o mundo ter hoje a capacidade de alimentar 12 bilhões de seres humanos, o dobro de sua população atual. Na África, um continente onde 36% da população é subnutrida, 186 milhões de africanos sofrem de fome grave e, em 20 anos, o número de famintos passou de 91 para 186 milhões de pessoas.
Esta é a dinâmica da reprodução do capital. A fome por sacrifícios humanos executados no altar do deus capital não tem limites.
Temos, na verdade, o problema que o primeiro mandamento levanta, a idolatria:
“Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim”. Ex 20.2-3
Jesus nesta direção fala:
“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”. Mt 6.24
Isto lembra Ex 32 quando se fala da adoração do bezerro de ouro; onde o boi (a tecnologia mais avançada de produção da época) e o ouro (símbolo maior da riqueza) são tornados deuses. Não apenas isto, mas são adorados como se fosse o Deus verdadeiro, Javé; porque falam: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito” Ex 32.4b.
Martim Lutero quando explica o Primeiro Mandamento no Catecismo Maior diz:
“Se é verdadeira a fé e a confiança, verdadeiro também é o teu Deus. Inversamente, onde a confiança é falsa e er­rônea, aí também não está o Deus verdadeiro. Fé e Deus não se podem divor­ciar. Aquilo, pois, a que prendes o coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus. Por isso, o sentido desse mandamento é exigir fé genuína e confiança de coração, que vai certeiramente ao verdadeiro e único Deus e se apega exclusi­vamente a ele. Isso quer dizer tanto como: toma cuidado no sentido de apenas eu ser o teu Deus e de forma nenhuma procures outro. Isto é: o que te falta em matéria de coisas boas, espera-o de mim e procura-o junto a mim, e se sofres desdita e angústia, arrasta-te para junto de mim e apega-te comigo. Eu, eu te quero dar o suficiente e livrar-te de todo aperto. Tão-só não prendas a nenhum outro o coração, nem o deixes em outro descansar.
Devo explanar isso algo mais claramente, a fim de que se entenda e per­ceba a coisa à luz de exemplos cotidianos de comportamento oposto. Há muito quem pensa que tem Deus e o bastante de tudo quando possui dinheiro e bens. Tão inabalável e confiadamente deles se fia e jacta, que ninguém lhe vale coisa nenhuma. Eis que tal homem também tem um deus, Mâmon de nome, isto é, dinheiro e bens, em que põe o coração todo. Esse aliás é o ídolo mais comum na terra. Quem possui dinheiro e bens sabe-se em segurança, e é alegre e deste­mido como se estivesse assentado no meio do paraíso. Por outro lado, quem nada possui, duvida e desespera, como se de nenhum Deus tivesse notícia. Pois a gente vai encontrar bem poucas pessoas que estejam de bom ânimo e não se lastimem nem se queixem quando não têm Mâmon. Isto se gruda e adere à na­tureza até a sepultura.” (Livro de Concórdia, 1ª edição, 1980, página 395. Coedição Editora Sinodal e Concórdia) Esta também é uma palavra clara contra a teologia da prosperidade muito divulgada pelas igrejas pentecostais que dizem que tem Deus somente aquele que tem dinheiro e muitos bens; e que pobre é pobre porque não tem fé e está longe de Deus, por isso não tem bens e riquezas. O diabo se delicia com tais teologias.
No capitalismo é semelhante, em que o capital vira deus e é adorado como tal, também por muitos cristãos, mesmo que o neguem veementemente, mas a sua prática os denuncia, como também o denuncia o seu apoio irrestrito ao capitalismo. Quando alguém diz que não se pode questionar o capitalismo, que é obra humana, ele está dizendo que o capitalismo é sagrado e é da vontade de Deus. O capitalismo é a expressão real daquilo que a Bíblia chama de “mundo”, “século”, portanto criação humana, falho, injusto, passageiro e vai desaparecer como tudo que as pessoas criam. Somente Deus é eterno.
Pedro alerta: “Portanto, se, depois de terem escapado das contaminações do mundo mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, se deixam enredar de novo e são vencidos, tornou-se o seu último estado pior que o primeiro”. 2 Pedro 2.20
“Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele”. 1 João 2.15
Sabemos do AT que o povo de Israel não foi monoteísta, mas politeísta na prática. As Sagradas Escrituras relatam da luta que se travou para que o povo adorasse apenas a Javé e deixasse de adorara os deuses cananeus, que trouxeram e legitimaram o Projeto dos Reis que se contrapôs ao Projeto de Deus que está embasado em Dt 6.21-23 em sua ruptura e enfrentamento com o Estado, por ser o resultado da luta de classes existente. Reis e comandantes militares israelitas chegaram até a sacrificar seus filhos em altares pagãos como relatam II Rs 16.3; 17.17; 21.6; Jr 7.31; 32.35; II Rs 23.10; Jz 11.29-40.
Jr 32.35: “Antes, puseram as suas abominações na casa que se chama pelo meu nome, para a profanarem. Edificaram os altos de Baal, que estão no vale do filho de Hinom, para queimarem a seus filhos e a suas filhas a Moloque, o que nunca lhes ordenei, nem me passou pela mente fizessem tal abominação, para fazerem pecar a Judá”. Assim Israel praticou a idolatria em toda a sua história e nós, igreja cristã, a continuamos praticando, mesmo o negando veementemente. Em nome e sob a ordem da Igreja Cristã também se matou no altar do deus capital em nome de Jesus Cristo como atestam as bulas papais, anteriormente citadas e o atesta a história da ocupação cristã nas Américas, África, Ásia e Oceania. Todo o processo do colonialismo foi legitimado pelas igrejas cristãs que trouxe milhões de vítimas que foram massacradas pelas tropas dos países ‘cristãos’ da Europa e mortas pela superexploração do trabalho forçado e escravo. Quem se rebelava contra a opressão estrangeira era massacrado pela superioridade bélica européia. Como exemplo lembro da Revolta Maji-Maji na Tanzânia contra a ocupação alemã onde morreram 58 soldados alemães e 300 mil pessoas da população local, a maioria de fome, pois não os deixavam cultivar a terra. Estas histórias mostram a idolatria dos cristãos, pois prática do Evangelho é que isto não foi. O rei cristão Leopoldo II da Bélgica em 40 anos de dominação conseguiu reduzir a população do Congo de 20 milhões para dez milhões de habitantes. Ele considerava o Congo como sua propriedade particular e quem não produzia conforme as exigências tinha uma mão cortada. Existem fotos de homens, mulheres e até de crianças com a mão direita cortada. Todo esse processo do colonialismo possibilitou o avanço espetacular do capital a nível mundial, como o mostra a história. O deus capital exige o sacrifício de sangue humano em seu altar.
Em Jz 11.30-31 o general Jefté promete sacrificar a Javé a primeira pessoas que sair de sua casa quando ele voltar vitorioso: “Fez Jefté um voto ao SENHOR e disse: Se, com efeito, me entregares os filhos de Amom nas minhas mãos; quem primeiro da porta da minha casa me sair ao encontro, voltando eu vitorioso dos filhos de Amom, esse será do SENHOR, e eu o oferecerei em holocausto”. E acaba sacrificando sua filha num altar dedicado a Javé para cumprir esta promessa. É a forma mais horrenda e insuportável de idolatria, em Gn 22 Deus determina para que não se sacrifique seres humanos, pois esta era uma prática do Estado monárquico cananeu que os israelitas imitaram (II Rs 3.27: Então, tomou [o rei de Moabe] a seu filho primogênito, que havia de reinar em seu lugar, e o ofereceu em holocausto sobre o muro; pelo que houve grande ira contra Israel; por isso, se retiraram dali e voltaram para a sua própria terra.). Também hoje muitos cristãos cometem idolatria quando colocam o capital acima da vida humana e não questionam a dinâmica do sistema capitalista que gera a exploração e a miséria, mas a adotam como sendo a única forma de organizar a sociedade, como se fosse vontade de Deus. Nós, porém, proclamamos, há uma outra forma de organizar a vida e a sociedade: é aquela que Jesus chama de reino de Deus, cujas características encontramos nos Evangelhos. Pela ressurreição de Jesus Cristo Deus rompeu com todo e qualquer sistema econômico ou político de dominação e de opressão legitimado pelo Estado, que tem a função de legitimar o sistema de classes que pressupõe a exploração de uma pessoa sobre a outra. No capitalismo é permitido e é legal explorar alguém, por isso se paga o salário mínimo e não o salário justo. Usa-se muito o termo: explorar este negócio. No entanto, Marcos 10.43 lembra “Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva”.
Lutero lembra que a nossa liberdade a partir da graça e da fé nos leva a servir ao próximo e não explorar o próximo. Ele parte de Paulo em I Co 9.19: “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível”. Lutero junta a isto Rm 13.8: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei”. Quem ama não explora e nem legitima uma sociedade de classes baseada na exploração de uma classe sobre a outra. Este amor nos concede liberdade de nos dispomos a ser servos do outros.
A fé luterana resume isto nesta frase:
O cristão é um senhor livre de tudo, a ninguém sujeito – pela fé.
O cristão é um servo dedicado a tudo, a todos sujeito – por amor.
“Quando lemos periódicos ou artigos especializados sobre a conjuntura atual, chama a atenção a presença de conceitos nitidamente religiosos para desenhar a crise atual, bem como para visualizar possíveis saídas. Fala-se que é preciso crer nas forças reguladoras do mercado, que deve-se ter fé nas possibilidades de vencer as crises, que é imperioso não abalar a credibilidade do sistema econômico e financeiro, que é necessário estar disposto a realizar sacrifícios para que o futuro seja melhor, e assim por diante. Percebo ainda entre alguns analistas uma linguagem entre vacilante e de expectativa, como se esperassem vislumbrar uma luz no fim do túnel, que ao final não chega nunca. Esta referência a conceitos religiosos ajuda a entender a forma do mercado atual, com suas características de ídolo, no sentido bíblico do termo. Sabemos que o ídolo se caracteriza por sua pseudo-realidade, pelos enganos que anuncia e pela pretensão de ocupar o lugar de Deus na realidade, nas mentes e corações. Quer dizer, o mercado se afirma como realidade totalitária, inquestionável, que abarca tudo, tanto em suas bases quanto em seus efeitos. Se por acaso houver erros, pontos negativos, gente sobrante, isto é assim mesmo, não há como mudar a natureza dos fatos. Entra aqui sutilmente uma idéia capciosa: a naturalização do mercado, portanto, sua deshistorização”. (Roberto Zwetsch. A igreja e o desafio da fé em tempos de globalização. Sinodal 2000)
Quais os fundamentos reais da igreja hoje? São quatro: batismo, enterro, chopp e churrasco. Para isto se junta facilmente 300 a 500 pessoas, pois a diretoria e outras pessoas da comunidade vão de casa em casa fazendo propaganda e oferecendo fichas de churrasco e entradas para o baile de chopp. Para estes fundamentos muitas pessoas trabalham uma semana inteira, se preciso, para organizar uma festa. Para os fundamentos verdadeiros que, segundo Lutero conforme as Escrituras Sagradas, são: somente a graça, somente a fé, somente a escritura e somente Cristo, normalmente nem a diretoria e muito menos outras pessoas da comunidade saem para fazer propaganda de casa em casa e se tiver sorte se junta 10 ou 15 pessoas. Somos, pois, uma “Associação Cultural e Recreativa com fins Religiosos” e não uma Igreja, uma assembléia do povo de Deus. Por quê? Porque o que nos move é a manutenção financeira, o capital. O que deveria ser conseqüência da fé como gratidão pela salvação por graça e fé está em primeiro lugar: o dinheiro. É o fetiche do capital, o deus de fato e real que é o motor da comunidade, aliado à fuga da realidade pela festa, para fugir e esquecer os problemas do dia a dia. Para não transformar, a partir da fé em Jesus Cristo, e enfrentar os problemas da vida, gerados pelo capital. Para a alienação sempre há tempo! Transforma-se assim a religião em ópio para o povo. Adora-se Deus de uma maneira falsa como nos apontam os profetas em Is 58.6-7 (Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura, não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu semelhante?), Am 5.21 e 24 (Aborreço, desprezo as vossas festas e com as vossas assembléias solenes não tenho nenhum prazer... Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene.) e Mq 6.6-7 e 8 (O que é que eu levarei quando for adorar o SENHOR? O que oferecerei ao Deus Altíssimo? Será que deverei apresentar a Deus bezerros de um ano para serem completamente queimados?... Será que deverei oferecer o meu filho mais velho como sacrifício para pagar os meus pecados e as minhas maldades? ... Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus.)
Lembrando ainda que:
“Aquilo que anunciamos a vocês não se baseia em erros ou em má intenção; e também não tentamos enganar ninguém. Pelo contrário, sempre falamos como Deus quer que falemos, porque ele nos aprovou e nos deu a tarefa de anunciar o evangelho. Não queremos agradar as pessoas, mas a Deus, que põe à prova as nossas intenções. Pois vocês sabem muito bem que não usamos palavras bonitas para enganar vocês, nem procuramos tapear vocês para conseguir dinheiro. Deus é testemunha disso”. (I Ts 2.3-5 NTLH)
O que acontece quando a Igreja mostra como funciona o nosso mundo, o capitalismo? As pessoas dizem que disto não se deve falar, pois se deve falar de esperança, do amor de Deus, etc. Isto é parecido com o caso do responsável pela comunicação da Cotripal que foi preso por pedofilia. Muitas pessoas sabiam disto, mas como ele era uma das pessoas influentes da Cotripal nunca ninguém mexeu nisso. Quando ele foi preso até as rádios e jornais nem citaram o nome dele e nem o nome da Cotripal. Os empregados da Cotripal foram proibidos de comentar isto em serviço. Operação abafa. Faz-se de conta que nada aconteceu. Com a denúncia da exploração sob o sistema capitalista é a mesma coisa: os camponeses vivem falando que são explorados no preço do leite, no preço da soja, do milho e do trigo e no preço dos insumos. Quando a Igreja começa a explicar como funciona esta exploração que o povo sofre (explicando como funciona o capitalismo) então se quer proibir isto, porque a Igreja tem que falar de outras coisas; das coisas lá do céu, mas esquecem que Deus se fez pessoa em Jesus Cristo e desceu para viver no meio do povo sofrido aqui na Terra dentro da classe camponesa explorada que mantinha o Templo e o Estado com o pagamento de impostos. Parece que nunca leram os livros proféticos e nem os Evangelhos onde Jesus denuncia o sofrimento do povo e começa a mudar este sofrimento com as curas e milagres. Por ele denunciar o sofrimento do povo (Mt 20.1-16; 20.29-34) e a exploração realizada pelo Templo (Jo 2.13-21) e pelo Império Romano (Mt 25,14-28 que mostra que quem não entra na dinâmica do sistema é castigado) ele foi crucificado, os motivos estão em Lc 23.1-7.
O que os apóstolos disseram quando foram proibidos de falar o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo?
“Expressamente vos ordenamos que não ensinásseis nesse nome; contudo, enchestes Jerusalém de vossa doutrina; e quereis lançar sobre nós o sangue desse homem. Então, Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”. At 5.28-29
Os cristãos eram considerados ateus (incrédulos) pelas pessoas do Império, pois não criam nos deuses do império. Pois, na Antigüidade a cidade - polis - se fundava sobre a religião. Cada cidade tinha seu deus ou deusa. Ser contra este deus era ser contra a cidade, contra o Estado. Era impossível separar a política da religião. O ato religioso era ao mesmo tempo um ato cívico e vice-versa. O culto aos deuses dava a união e harmonia a toda a sociedade. Os romanos entendiam que deviam a sua prosperidade e vitórias, contra outros povos, aos deuses.
O crescimento do cristianismo foi considerado uma ameaça à religião romana, o que era o mesmo que uma ameaça política contra o Estado. Considerados ateus os cristãos não adoravam os deuses romanos. O cristianismo foi considerado uma espécie de crime contra o império. Ser cristão era o mesmo que ser criminoso. Lembre­mos das palavras de Paulo em Rm 12.1-2: ‘não vos conformeis com este século’. Por isso de tempos em tempos havia perseguições oficiais contra os cristãos.
O Império Romano perseguiu o cristianismo por ver nele uma ameaça. Por isso queimava os livros sagrados, destruía igrejas, proibia a atividade e difusão, interditava as reuniões e mesmo a freqüência aos cemitérios (que eram locais de reuniões). Os primeiros visados em quase todas as perseguições eram os líde­res, os chefes das comunidades.
Ser cristão era crime. Assim, confessada a fé, a pessoa podia ser imediata­mente julgada e sentenciada. Não havia necessidade de instrução, nem testemunhas, nem prazos. Ser cristão era crime sem direito a defesa. Muitas vezes para conseguir a apostasia - a negação da fé e sacrifício aos deuses - os magistrados determinavam que o réu fosse torturado. Só depois que ele se demonstrasse convicto - o processo podia durar anos - é que era lavrada a sen­tença.
A tortura tinha por finalidade forçar os cristãos a negarem a fé. Visava tam­bém fazê-los delatar outros cristãos, denun­ciar seus nomes e endereços. Era uma nor­ma das comunidades primitivas: não largar em hipótese alguma os que fraquejavam nas torturas e negavam a fé, enquanto hou­vesse possibilidade de uma recuperação.
O cristianismo foi considerado não apenas religião ilícita, mas associação ilícita (collegium illicitum). Todo aquele que formava uma associação não permitida ou fora da lei cometia um crime equiparado à lesa-majestade, para o qual não havia perdão.
O texto que condenou Cipriano, bispo de Cartago, à morte pela espada diz: “Durante muito tempo viveste sacrilegamente e juntaste contigo muita gente numa conspiração criminosa, constituindo-te em inimigo dos deuses romanos e de seus sagrados ritos, sem que os piedosos e sacratíssimos príncipes Valeriano e Galieno tenham conseguido fazer-te voltar à sua religião. Portanto, tendo sido provado que foste cabeça e líder de homens réus dos mais abonáveis crimes, servirás de exemplo para aqueles que juntastes para tua maldade, e com o teu sangue ficará sancionada a lei”. Outro exemplo exprime muito bem a maneira como os cristãos eram vistos: em setembro de 303 d.C. o imperador Dioclesiano promulgou uma anistia que abriu as portas das prisões a numerosos condenados. Ela não se estendeu, porém, aos cristãos. Eles não eram considerados presos comuns, mas rebeldes contra o Estado que era mantenedor do sistema econômico escravista. Não sacrificando aos deuses romanos os cristãos se rebelavam contra todo o sistema vigente: econômico, político, militar, social, religioso e ideológico.
Quando os cristãos hoje se submetem ao capitalismo e o legitimam estão negando a Jesus Cristo, pois ele propõe o Reino de Deus, como forma de organizar a vida e a sociedade toda, e não o capitalismo. Realiza-se o que diz em Jo 1.10: “o mundo não o conheceu” preferiu seguir inquestionavelmente a dinâmica do capital. Jo 10.11 diz: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam”; receberam o jeito de organizar a vida conforme a proposta do capitalismo e rejeitaram a proposta do Reino de Deus, pois não conseguem nem questionar o capitalismo como sendo o que a Bíblia chama de mundo. Cristão que não questiona o mundo e não rompe com o mundo (capitalismo) não é seguidor de Jesus, mas do mundo. É idólatra! Adora Deus de forma errada, que nem Jefté. Diz que tem Jesus no coração, mas vive e pensa segundo a dinâmica do capital. É a idolatria moderna. Temos uma prática semelhante como o povo de Israel que freqüentava o Templo de Javé em Jerusalém e os altares dos baalins nos altos. Adoramos a Jesus Cristo e ao capital ao mesmo tempo (quando não o questionamos). Negamos veementemente que adoramos o deus capital, mas a nossa prática de vida nos denuncia: a nossa prática econômica e o jeito de pensar seguem a dinâmica do capital.
Décio foi o primeiro imperador a decretar uma perseguição geral contra os cristãos. Apesar da curta duração (250-251) a perseguição atingiu uma intensidade e uma extensão nun­ca dantes vista. O objetivo de Décio, assim como o de Se­vero, foi o de reforçar a unidade romana em torno da reli­gião. Daí o interesse em fazer mais apóstatas do que már­tires. O edito determinava que todo cidadão do Império devia sacrificar aos deuses. Depois de ter sacrificado, o cidadão recebia um certificado (libellus) comprovando sua fidelidade à lei. De posse desta, o individuo estava desobri­gado. O certificado continha, além da identificação e data, os seguintes dizeres: “À comissão de sacrifícios... Sempre cumpri com os sacrifícios aos deuses, e agora, em vossa pre­sença conforme ao mandado pelo edito, sacrifiquei, ofereci libações e tomei parte no banquete sagrado, e suplico-lhes que assim o certifiqueis”.
A perseguição foi meticulosamente organizada. As prisões ficaram cheias de cristãos. A primeira vitima foi o Papa Fabiano, martirizado a 20 de janeiro de 250. Os bispos fo­ram especialmente atingidos, pois o edito visava em primeiro lugar os chefes das igrejas. Houve casos inclusive em que os cristãos, em seguida à prisão do bispo, se apresentaram juntos ao governador e declararam a sua condição de cristãos, dispostos a sofrer as mesmas conseqüências que seu pastor.
Na hora de interrogatórios pelas autoridades romanas os cristãos se dão mutuamente apoio moral. Há um serviço de visita aos presos e amparo psicológico para os que tentam suicídio na prisão.
Sobre Orígenes o Eusébio diz que: “Ele ficava junto com os mártires não apenas quando estavam na prisão e a sentença ainda não havia sido dada, mas também quando eram conduzidos para a execução, ele ia voluntariamente junto com os condenados expondo-se abertamente ao perigo”.
Registros oficiais sobre perseguições revelam a predominância das mulheres nas comunidades.
Diante disso olhemos para o exemplo dos mártires cristãos que se negavam a seguir as ordens deste mundo, que era sacrificar aos deuses romanos, segundo a ata de condenação de Justino e seus companheiros:
Vindo ante o tribunal, o prefeito Rústico disse a Justino:
- Em primeiro lugar, vocês acreditam nos deuses e obedecem aos imperadores?
Justino respondeu:
- A coisa impecável e que não admite condenação é obedecer aos mandamentos de nosso Salvador, Jesus Cristo.
O prefeito Rústico disse:
- Que doutrinas você está se agradando, miserável?
Justino respondeu:
- Sim, desde que eu os sigo de acordo com o reto dogma.
O prefeito Rústico disse:
- Que dogma é esse?
Justino respondeu:
- O dogma nos ensina a dar culto ao Deus dos cristãos o qual nós temos por Deus só, o que desde o princípio é o criador e autor da criação inteira, visível e invisível, e para o Deus Jesus Cristo, para o filho de Deus, do qual de antemão falaram os profetas que viria ao gênero humano como o proclamador de salvação e professor de ensinos bonitos. E eu, pequeno homem que eu sou, penso que eu digo muita pouca coisa para o que merece a divindade infinita, enquanto admitindo isso para falar dela isto era necessariamente virtude profética, porque profeticamente foi pregado sobre isto de quem que eu há pouco lhe disse que é o filho de Deus. Porque você tem que saber que os profetas, inspirados divinamente falaram com antecedência da vinda dele entre os homens.
O prefeito Rústico disse:
- Nós já viemos ao assunto proposto, para a pergunta necessária e urgente. Ponham-se juntos e por unanimidade sacrificar aos deuses.
Justino disse:
- Ninguém que está em seu perfeito juízo passa da piedade para a impiedade.
O prefeito Rústico disse:
- Se vocês não obedecerem, vocês serão castigados inexoravelmente.
Justino disse:
- Nosso desejo mais ardente é sofrer para amor de nosso Deus Jesus Cristo para salvar-nos, porque este sofrimento será transformado em salvação e confiança ante o tremendo e universal tribunal de nosso Senhor e Salvador.
No mesmo sentido falaram os demais:
- Faça o que você quer; porque nós somos cristãos e nós não sacrificamos aos ídolos.
O prefeito Rústico pronunciando a sentença disse:
"Esses que não quiseram sacrificar aos deuses nem obedecer ao mandato do imperador, sejam, depois de chicoteados, conduzidos à tortura, sofrendo a pena capital de acordo com as leis".

Foram todos mortos como subversivos por desobedecerem as leis e a estrutura do Estado que estavam legitimados pela religião pagã, assim também Jesus foi morto como subversivo, conforme Lc 23.1-7, como podemos ler nas acusações que ele recebeu. Disseram que Jesus estava:
1. pervertendo a nação – fazendo subversão da ordem estabelecida. – crime político
2. proibindo pagar tributo a César - é um crime contra a economia e a sobrevivência do Estado. – crime econômico
3. dizendo ser ele o Cristo – é um crime contra a religião judaica. – crime religioso
4. dizendo ser rei – é um crime político, pois o único rei era César em Roma ou algum rei fantoche como Herodes que estava fazendo serviço sujo de Roma na Palestina. – crime político
5. disseram que Jesus alvoroça o povo – é um crime político e social que cria a instabilidade política pela agitação.
6. disseram ainda que Jesus estava ensinando desde a Galiléia até Jerusalém - crime político-ideológico de subversão da ordem e do pensamento estabelecido pelo Templo e por Roma.
Temos, assim, acusações de subversões políticas, sociais, econômicas, religiosas e ideológicas que Jesus estaria praticando contra o Templo e contra o Estado Romano.
Tanto no Êxodo como na Ressurreição de Jesus na Páscoa Deus rompeu com a estrutura da sociedade de classes. No Êxodo Deus luta contra o Estado (Dt 6. 22: “Aos nossos olhos fez o SENHOR sinais e maravilhas, grandes e terríveis, contra o Egito e contra Faraó e toda a sua casa”), rompe com o que mantém a estrutura de poder libertando os camponeses sem terra escravos. Na Páscoa Deus anula e invalida uma decisão do Estado romano (que condenou Jesus à morte na cruz) quando ressuscita Jesus dos mortos. Nos dois casos é Deus que inicia e executa a subversão anulando e deslegitimando o que mantém a sociedade classista. A essência da prática de Deus é a ruptura com o sistema deste mundo que oprime.
Estamos falando aqui do essencial: a cruz de Cristo, ela é o centro do Evangelho. Jesus Cristo foi crucificado porque ameaçou o essencial do mundo que é e era o sistema econômico legitimado pelo estado e aliado ao Templo de Jerusalém. A religião é fundamental no processo opressivo e de dominação, como nos fala Napoleão. Quem hoje mexer a partir do Evangelho de Jesus Cristo no essencial neste mundo: o sistema econômico, vai ser perseguido. Lembrando o que disse um general ditador brasileiro nos anos 70: Admitimos que haja oposição ao regime (ditadura militar), mas não admitimos que haja oposição ao sistema (capitalismo). Por isso na igreja hoje se fala tanto em estorinhas do velho sábio da montanha, etc. e tal ou de textos da internet que fazem as pessoas suspirarem e exclamar: ‘que lindo!’ mas que não mexem no cerne deste mundo, o sistema econômico injusto na sua essência, por medo da cruz, para evitar a cruz, para fugir da cruz. Se você a partir das Escrituras Sagradas atacar o essencial deste mundo, que é o capitalismo, você vai se dar mal, vai ser mal visto e mal falado; vão tentar colocar uma cruz nas suas costas, por estar pervertendo a nação (“Pegamos este homem tentando fazer o nosso povo se revoltar”, na tradução da NTLH) e alvoroçando o povo (“Ele está causando desordem entre o povo”, na tradução da NTLH) e ensinando o que o sistema não quer que seja ensinado (“ensinando por toda a Judéia, desde a Galiléia, onde começou, até aqui”.). Por isso na igreja hoje se evita falar do essencial: a cruz de Cristo e o que causou esta cruz, para fugir da cruz. Até se fala da cruz de Cristo, mas não se fala de forma clara sobre o que causou a cruz e que conseqüências isto traz. Lc 23.1-5 não é um texto central na igreja nos dias de hoje.
Hoje quem defende o sistema deste mundo vai se sentir agredido pela proposta do reino de Deus que começa, conforme Mc 1.15: arrependei-vos e crede no evangelho. Significa abandonar o apoio ao sistema deste mundo e adotar a proposta do Evangelho que é a proposta do reino de Deus.
A ação pastoral de Jesus Cristo se dirige de forma especial aos empobrecidos, marginalizados e oprimidos como diz Martim Lutero: "Olha para a tua vida. Se não te encontrares, como Cristo, no Evangelho, em meio aos pobres e necessitados, então que saibas que a tua fé ainda não é verdadeira, e que certamente ainda não provaste a ti o favor e a obra de Cristo".
Enquanto os movimentos populares se organizam na perspectiva da construção do novo, o cristianismo nega a possibilidade do novo em sua prática de fé, mesmo que a Bíblia é a essência da procura do novo desde os profetas (Is 9 e 11, Mq 5, Zc 9), passando por Jesus Cristo (pela pregação e vivência do reino de Deus) até o Apocalipse que aponta para o novo pelo Dia do Juízo. Enquanto os movimentos populares brotam do meio dos pobres e necessitados, conforme sugestão de Lutero, os membros da igreja abominam os pobres e necessitados como os sem terra, sem teto, pequenos agricultores/as e desempregados, considerando-os preguiçosos e fracassados por serem empobrecidos. Quem em primeiro lugar deveria organizar a estes seria a igreja, mas quem os procura são os movimentos populares, que é a sua base existencial. Sobre isto Jesus adverte em Lucas 17.2: “Melhor fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e fosse atirado no mar, do que fazer tropeçar a um destes pequeninos”. Isto é palavra de juízo para a igreja. Apesar de que o Concílio Geral da IECLB de 1982 recomenda em sua Mensagem:
“...Para que todos possam usufruir das dádivas do Criador, agindo responsavelmente diante delas, propomos o seguinte:
- realizar campanha de ampla informação e conscientização dos problemas agrários e urbanos:
- apoiar o agricultor na sua luta pela permanência no campo:
- assumir e defender com responsabilidade evangélica as reivindicações dos movimentos sociais, fazendo um trabalho de base com associações de bairros, atingidos por barragens, colonos sem terra, bóias-frias, sindicatos, proteção ambiental, além de inúmeras outras formas de atuação onde o amor de Deus quer se tornar vivo e real entre as pessoas”. O Concílio recomenda a igreja assumir as reivindicações dos movimentos sociais, quando são justas, como o são a luta pela moradia e pela terra, pela saúde e pelo emprego. O que a igreja fez? Ignorou estas recomendações de fazer um trabalho de base com os movimentos populares e as comunidades ainda perseguem e desprezam membros e obreiro/as que procuram viabilizar estas recomendações conciliares. Por quê? Porque ameaçam a ideologia e a dinâmica do capital. Assim, o capital se sobrepõe ao Evangelho e manipula a pregação deste Evangelho.
Paulo lembra quanto a qualidade de nossa pregação: “Porque nós não estamos, como tantos outros, mercadejando a palavra de Deus; antes, em Cristo é que falamos na presença de Deus, com sinceridade e da parte do próprio Deus”. II Co 2.17
Para os mais afoitos em recorrer aos tribunais do estado para acusar os que não defendem o sistema deste mundo, criticam o capitalismo e se negam a adorar o deus capital, Paulo diz:
“Quando algum de vocês tem uma queixa contra um irmão na fé, como se atreve a pedir justiça a juízes pagãos, em vez de pedir ao povo de Deus que resolva o caso? Será que vocês não sabem que o povo de Deus julgará o mundo? Então, se vocês vão julgar o mundo, será que não são capazes de julgar essas coisas pequenas? Por acaso vocês não sabem que nós julgaremos até mesmo os anjos? Muito mais, então, devemos julgar as coisas desta vida! Portanto, se surgir alguma questão dessas, será que vocês vão procurar pessoas que são desprezadas na igreja para julgarem esses casos? Que vergonha! Será que entre vocês não existe alguém com bastante sabedoria para resolver uma questão entre irmãos?” I Co 6.1-5
Lembrando que durante a ditadura militar brasileira pessoas do presbitério delataram seus pastores ao DOPS como sendo subversivos porque eram a favor da democracia. Pastores foram expulsos de paróquias da IECLB porque eram contra a ditadura militar. Na Argentina um padre dava a extrema unção aos presos políticos antes de serem jogados algemados e nus do avião para o mar. Assassinados com a bênção da Igreja. Isso tem explicação? Quem apoiou a ditadura apoiou também este ato bárbaro. Duplamente bárbaro: legitimou a tortura e o assassinato e transformou o assassinato num ato sagrado: os opositores da ditadura têm que ser sacrificados para a honra e glória do deus capital e a perpetuação deste sistema econômico, agora divinizado e sacralizado. É o sacrifício que requer que o sangue das vítimas seja aspergido no altar do deus capital, pois as ditaduras foram implantadas para viabilizar, consolidar e dar um salto qualitativo ao capitalismo na América Latina, cujo objetivo maior é o lucro; assassinou-se em nome do lucro. Além de tentar perpetuar o imperialismo estadunidense e sua influência na América Latina à força.
Hoje os métodos de perpetuação do capitalismo via igreja cristã se viabilizam assim, como diz o PAMI 2008-2012: A ética de algumas igrejas é baseada na teologia da prosperidade e na batalha espiritual. A “vontade de Deus” é que seus filhos e filhas prosperem na vida, aqui e agora, de modo que toda a prosperidade é bênção de Deus e sinal de fé. Ao mesmo tempo, o crente precisa ser fiel e combater os espíritos do mal que o atrapalham ou o impedem de receber as bênçãos divinas. Deus dá a prosperidade como sinal de sua bênção para o fiel que a mereça participando do mercado religioso e esforçando-se para vencer satanás. Apropriando-se de modos midiáticos de apresentar as suas mensagens, novas igrejas instituem novos modos de ser religioso, onde ser cristão é participar do mercado de produtos religiosos, com características do mercado secular de produtos culturais. Ou seja, comprar um CD de música gospel, ou ler um romance “cristão”, ou, ainda, assinar uma revista feminina religiosa, é o que torna o crente um “verdadeiro cristão”.
Adora-se Jesus Cristo? Não, adora-se o deus capital! É a idolatria do capital.
Nos lembra o Manifesto Chapada dos Guimarães aprovado pelo Concílio da Igreja em 2000: “Ao mesmo tempo, confessamos nossos limites e nossa precariedade quando se trata de viver e experimentar a partilha e a promoção da justiça e de vida digna para todos. Estamos conscientes das contradições, fracassos e tentações presentes nas comunidades e na Igreja. Sentimo-nos também envolvidos pelo sistema político-econômico vigente, a ponto de sermos co-participantes de um jogo com regras e fins dos quais até discordamos. A crise de valores traz em seu bojo outras graves conseqüências, como o tráfico e o consumo de drogas e o crescimento da corrupção no âmbito público e privado, em escala nunca imaginada. Nessa ambigüidade vivemos. Carecemos todos de libertação, renovação e mudança de rumo. Necessitamos de arrependimento e nova vida”. (...) “Conforme o testemunho bíblico e o Reformador Martim Lutero, a fé jamais ficará ociosa. Por conseguinte, os cristãos de confissão luterana são chamados a:
Renegar a ideologia que dá suporte à acumulação e concentração de riqueza em benefício de minorias e em detrimento do atendimento das necessidades básicas do ser humano e da manutenção da boa criação de Deus.
Renegar a adoração do capital e da religião do consumo como definidora do sentido da vida.
Renegar modelos econômicos que desconsideram a necessidade e urgência de um desenvolvimento auto-sustentável que preserva a vida no planeta.
Renegar todas as formas de individualismo voltado tão-somente para a auto-satisfação, desconsiderando a importância das relações coletivas e comunitárias, bem como o serviço mútuo e a solidariedade. ”
Lutero lembra: “Maldita e condenada ao inferno seja a vida que vive exclusivamente para si mesma, pois isso é próprio do gentio, e não do cristão” e “Amaldiçoada e condenada é toda a vida que vive e se preocupa em proveito próprio e em seu favor” e “Tudo que temos deve estar a serviço (do próximo); não estando a serviço, estará roubando”.
Os membros da IECLB assumirão estas propostas conciliares para serem fiéis a Jesus Cristo ou se dobrarão frente a vontade do capital?
Jesus venceu o mundo porque este é inimigo de Deus; e nós ainda vamos defender o mundo que Jesus venceu? Vamos apoiar um projeto já derrotado por Deus na Páscoa?
“Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo”. Jo 16.33
“Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta” Ap 12.12. Não adianta defender o mundo, pois ele já foi vencido pela ressurreição de Jesus Cristo. Quem defende o mundo está defendendo uma causa já perdida.
Falando de seus discípulos Jesus diz: “Eles não são do mundo, como também eu não sou”. Jo 17.16
“Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui”. Jo 18.36
Por que, então, defender algo que não é de Jesus?
O exemplo da rebeldia do passado de Israel pode nos ajudar quando fala dos motivos porque o povo de Israel foi levado para o Exílio; onde a idolatria, a injustiça e a opressão dos fracos são o centro das acusações:
II RS 17.7-14: “Tal sucedeu porque os filhos de Israel pecaram contra o SENHOR, seu Deus, que os fizera subir da terra do Egito, de debaixo da mão de Faraó, rei do Egito; e temeram a outros deuses. Andaram nos estatutos das nações que o SENHOR lançara de diante dos filhos de Israel e nos costumes estabelecidos pelos reis de Israel. Os filhos de Israel fizeram contra o SENHOR, seu Deus, o que não era reto; edificaram para si altos em todas as suas cidades, desde as atalaias dos vigias até à cidade fortificada. Levantaram para si colunas e postes-ídolos, em todos os altos outeiros e debaixo de todas as árvores frondosas. Queimaram ali incenso em todos os altos, como as nações que o SENHOR expulsara de diante deles; cometeram ações perversas para provocarem o SENHOR à ira e serviram os ídolos, dos quais o SENHOR lhes tinha dito: Não fareis estas coisas. O SENHOR advertiu a Israel e a Judá por intermédio de todos os profetas e de todos os videntes, dizendo: Voltai-vos dos vossos maus caminhos e guardai os meus mandamentos e os meus estatutos, segundo toda a Lei que prescrevi a vossos pais e que vos enviei por intermédio dos meus servos, os profetas. Porém não deram ouvidos; antes, se tornaram obstinados, de dura cerviz como seus pais, que não creram no SENHOR, seu Deus”.
Zc 7.8-14: “A palavra do SENHOR veio a Zacarias, dizendo: Assim falara o SENHOR dos Exércitos: Executai juízo verdadeiro, mostrai bondade e misericórdia, cada um a seu irmão; não oprimais a viúva, nem o órfão, nem o estrangeiro, nem o pobre, nem intente cada um, em seu coração, o mal contra o seu próximo. Eles, porém, não quiseram atender e, rebeldes, me deram as costas e ensurdeceram os ouvidos, para que não ouvissem. Sim, fizeram o seu coração duro como diamante, para que não ouvissem a lei, nem as palavras que o SENHOR dos Exércitos enviara pelo seu Espírito, mediante os profetas que nos precederam; daí veio a grande ira do SENHOR dos Exércitos. Visto que eu clamei, e eles não me ouviram, eles também clamaram, e eu não os ouvi, diz o SENHOR dos Exércitos. Espalhei-os com um turbilhão por entre todas as nações que eles não conheceram; e a terra foi assolada atrás deles, de sorte que ninguém passava por ela, nem voltava; porque da terra desejável fizeram uma desolação”.

Qual a proposta do Evangelho, como ele quer a nossa sociedade? O que a Bíblia diz sobre isto?
Qual a missão de Jesus Cristo?
“E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia”. Jo 6.39
Jesus quer salvar a todos!
“Ele, porém, lhes disse: É necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois para isso é que fui enviado”. Lc 4.43
Se alguém diz que o capitalismo é a única forma de organizar a sociedade e que não há outra forma ele está negando o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo que diz que o reino de Deus é a proposta de Jesus e não o sistema que reina neste mundo. O projeto de Jesus é o Reino de Deus e este também deve ser o projeto de todas as pessoas que foram batizadas em seu nome. Este nós temos que defender e não o capitalismo que gera a morte e não salva ninguém, pois só Jesus salva!
Jesus diz em Lc 4.18-19 colocando o seu Programa do Reino: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor”. E em Lc 7.22 mostra como ele executa este Programa: “Então, Jesus lhes respondeu: Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres, anuncia-se-lhes o evangelho”. É uma atenção especial em libertar as vítimas do sistema deste mundo. Isto leva conseqüentemente ao enfrentamento com o sistema deste mundo, pois, por exemplo: libertar os cativos e oprimidos vai se chocar com aqueles que dominam no plano econômico e político, como já nos relata o processo do Êxodo (Dt 6.21-23): “Então, dirás a teu filho: Éramos servos de Faraó, no Egito; porém o SENHOR de lá nos tirou com poderosa mão. Aos nossos olhos fez o SENHOR sinais e maravilhas, grandes e terríveis, contra o Egito e contra Faraó e toda a sua casa; e dali nos tirou, para nos levar e nos dar a terra que sob juramento prometeu a nossos pais”. Deus agiu contra o Estado e contra a prática escravista egípcia e a favor dos camponeses sem terra escravos. Deus intervém na política econômica do Egito e comanda a saída do sistema opressivo egípcio e conduz os camponeses escravos para a conquista da terra.
Is 65 lembra que Deus sonha com uma nova sociedade onde - não haverá lembrança das coisas passadas; nunca mais se ouvirá nela nem voz de choro nem de clamor; não haverá mais nela criança para viver poucos dias; morrer aos cem anos será morrer moço; eles edificarão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu fruto; não edificarão para que outros habitem; não plantarão para que outros comam; não trabalharão debalde; seus filhos não acabarão na desgraça.
Mc 7.24-30 lembra que – uma mulher estrangeira muda o conceito de Jesus sobre reino de Deus - abertura para mudar a prática e os conceitos por causa da realidade.
Jesus diz em João 17.11: “Já não estou no mundo, mas eles continuam no mundo, ao passo que eu vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós”. Esta é a proposta de Jesus frente a divisão da sociedade em classes sociais. No tempo de Jesus havia a classe dos senhores de escravos e de terra e os escravos, além da classe dos camponeses livres e os comerciantes. Hoje no capitalismo temos a classe capitalista, dona dos meios de produção (terra, bancos, indústria, grande comércio, tecnologia) e a classe trabalhadora, dona apenas de sua mão de obra que ela tem que vender e com isso é igualada a uma mercadoria; no meio ainda há uma classe média que pende uma vez para este e outra vez para o outro lado conforme os interesses momentâneos. O reino de Deus pressupõe uma sociedade sem classes sociais antagônicas.
Jesus no Evangelho de João denuncia esta sociedade de classes por ser desigual e opressora e propõe que todos sejam um, como ele é um com o Pai e propõe a igualdade e a fraternidade. Por isso em Gl 3 diz que não há escravo e nem livre, nem homem e nem mulher porque todos são um em Cristo. O reino defende a igualdade entre os seres humanos e combate a sociedade dividida em classes sociais. A partir do batismo somos todos sacerdócio real, nação santa, propriedade exclusiva de Deus e não propriedade do capital e de sua dinâmica. Por sermos pelo batismo propriedade de Deus nos negamos a ser propriedade do capital, pela compra e venda de nossa força de trabalho, não somos mercadoria, mas criação de Deus à sua imagem e semelhança. Servimos a Deus e não ao capital. A nossa função é denunciar o capital que virou deus e se impõe como tal, pior ainda é quando os cristãos defendem este deus e a dinâmica por ele imposta em nosso mundo.
Jo 13.16-17 diz: “Eu afirmo a vocês que isto é verdade: o empregado não é mais importante do que o patrão, e o mensageiro não é mais importante do que aquele que o enviou. Já que vocês conhecem esta verdade, serão felizes se a praticarem”. Aqui Jesus mostra a proposta da igualdade que o Evangelho propõe. Esta igualdade não admite uma sociedade dividida em classes sociais. Felicidade vem da igualdade. Infelicidade vem da desigualdade que é característica do capitalismo que se baseia em classes sociais antagônicas em constante luta.
Paulo lembra em 1 Coríntios 7.23: “Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens” e de seus sistemas organizativos. O preço de nossa liberdade foi o sangue de Jesus Cristo na cruz. Somos propriedade dele e não do capital. Defender o sistema deste mundo é desprezar o sangue de Cristo derramado na cruz.
Como Deus quer que expressemos a nossa fé?
Am 5.21-24 diz: “Aborreço, desprezo as vossas festas e com as vossas assembléias solenes não tenho nenhum prazer. E, ainda que me ofereçais holocaustos e vossas ofertas de manjares, não me agradarei deles, nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais cevados. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene”.
Mq 6.8 fala sobre a prática da fé dizendo: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus”.
Qual a missão dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, de ontem e de hoje?
“Também os enviou a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos” Lc 9.2. Pregar o reino é falar da cruz de Cristo e daquilo que o levou à cruz.

Como a Escritura Sagrada quer que seja a nossa sociedade?
Ex 3.15: “Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração”.
Deus sempre será lembrado como o libertador da escravidão, seja do tipo que for.
Que Projeto Econômico Deus propõe?
Ex 16.16-20 diz: “Eis o que o SENHOR vos ordenou: Colhei disso cada um segundo o que pode comer, um gômer por cabeça, segundo o número de vossas pessoas; cada um tomará para os que se acharem na sua tenda. Assim o fizeram os filhos de Israel; e colheram, uns, mais, outros, menos. Porém, medindo-o com o gômer, não sobejava ao que colhera muito, nem faltava ao que colhera pouco, pois colheram cada um quanto podia comer. Disse-lhes Moisés: Ninguém deixe dele para a manhã seguinte. Eles, porém, não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte; porém deu bichos e cheirava mal. E Moisés se indignou contra eles”.
O acúmulo fede, é podre! Acumular denuncia a falta de confiança na graça de Deus! Quem defende o acúmulo (que é a essência do capitalismo) quer se garantir a si mesmo (pelo seu trabalho e pelo trabalho dos outros), não confia em Deus e nega a graça de Deus e a salvação por graça por meio da fé em Jesus Cristo.
Jesus em Mc 6.38-43 propõe: “E ele lhes disse: Quantos pães tendes? Ide ver! E, sabendo-o eles, responderam: Cinco pães e dois peixes. Então, Jesus lhes ordenou que todos se assentassem, em grupos, sobre a relva verde. E o fizeram, repartindo-se em grupos de cem em cem e de cinqüenta em cinqüenta. Tomando ele os cinco pães e os dois peixes, erguendo os olhos ao céu, os abençoou; e, partindo os pães, deu-os aos discípulos para que os distribuíssem; e por todos repartiu também os dois peixes. Todos comeram e se fartaram; e ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços de pão e de peixe”. Organização política em grupos para praticar a partilha econômica a partir do que as pessoas têm e produzem.
Que Projeto Político Deus propõe?
Ex 18.19-23: “Ouve, pois, as minhas palavras; eu te aconselharei, e Deus seja contigo; representa o povo perante Deus, leva as suas causas a Deus, ensina-lhes os estatutos e as leis e faze-lhes saber o caminho em que devem andar e a obra que devem fazer. Procura dentre o povo homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que aborreçam a avareza; põe-nos sobre eles por chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinqüenta e chefes de dez; para que julguem este povo em todo tempo. Toda causa grave trarão a ti, mas toda causa pequena eles mesmos julgarão; será assim mais fácil para ti, e eles levarão a carga contigo. Se isto fizeres, e assim Deus to mandar, poderás, então, suportar; e assim também todo este povo tornará em paz ao seu lugar”.
Mt 20.25-28 lembra: “Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.
Partilha do poder; democratização do poder, assembléia popular são as propostas da Bíblia.
Jo 10.10b: “eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”.
At 2.42: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações”. Este é o resumo da prática básica da fé em Jesus Cristo.
Como os primeiros cristãos viviam o Projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo?
I Co 16.1-2 diz: “Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for”.
O livro da Didaqué (Catecismo dos Primeiros Cristãos da época de ±100 d.C.) fala: “Não seja como os que estendem a mão na hora de receber e a retirar na hora de dar. Se você ganha alguma coisa com o trabalho de suas mãos, ofereça-o como reparação por seus pecados. Não hesite em dar, nem dê reclamando, pois você sabe quem é o verdadeiro remunerador da sua recompensa. Não rejeite o necessitado. Divida tudo com o seu irmão, e não diga que são coisas suas. Se vocês estão unidos nas coisas que não morrem, tanto mais nas coisas perecíveis”.
Aristides, cidadão romano (um não cristão) de 125 d.C. escreve sobre a prática de fé dos cristãos dizendo: “Eles andam em humildade e bondade: não existe falsidade entre eles; amam uns aos outros, se ouvem que alguém dentre eles é preso ou oprimido por causa do nome do seu Messias, todos providenciam para suas necessidades, e quando possível de ser liberto eles o libertam e se há alguém entre eles pobre e necessitado, jejuam dois ou três dias para suprirem-no com alimento de que precisa”. “Eles não desviam a sua atenção das viúvas, e os órfãos eles libertam de quem os violenta”. Aqui temos, pois um exemplo da prática da primeira comunidade cristã: visitar e ajudar os órfãos e as viúvas e economizar para poder colocar algum dinheiro na coleta para ser ajuda para os empobrecidos. Esta prática brota da fé.
Justino (um líder cristão do primeiro século) recomenda: “Os que possuem bens e quiserem, cada qual segundo sua livre determinação, dão o que lhes parecer, sendo colocado à disposição do que preside o que foi recolhido. Ele por sua vez socorre órfãos e viúvas, os que por enfermidades ou outro qualquer motivo se encontram abandonados, os que se encontram em prisões, os forasteiros de passagem; em uma palavra, ele se torna provedor de quantos padecem necessidade”.
Tertuliano um cristão do norte da África que viveu no ano 200 depois de Cristo pergunta sobre a situação de uma mulher cristã que está casada com um pagão: “Ele lhe permitirá ir rua por rua e penetrar em casas de estranhos e principalmente nos barracos dos mais pobres para visitar os irmãos?”
Esta prática de visitar e ajudar viúvas e órfãos e cuidar de doentes e de dar um enterro digno aos mortos era critério para ser aceito como membro da comunidade cristã como está escrito na Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, do século III: “Escolhidos os que receberão o batismo, sua vida será examinada: se viveram com dignidade enquanto catecúmenos, se honraram as viúvas, se visitaram os enfermos, se só praticaram boas ações. E, ao testemunharem sobre eles os que os tiverem apresentado, dizendo que assim agiram, ouçam o Evangelho”.
Um relato do ano 100 feito por Clemente romano: “Conhecemos muitos dentre nós que se entregam às cadeias (da escravidão) para libertar outros. Não poucos se entregam como escravos e, com o preço da venda, dão alimento a outros”. Parece que isto não foram ações de comunidades, mas de ações individuais de pessoas.
Tertuliano diz: “A preocupação pelos desamparados, que nós praticamos, nossa atividade de amor, se transformou em uma característica para nós entre nossos oponentes”.
O imperador Juliano quer corrigir a política do seu antecessor Constantino, protetor do cristianismo, recomenda que as autoridades locais criem centros de assistência social e hospedagem como um dique contra a avassaladora penetração do cristianismo em meios populares.
O bispo Dionisius escreve sobre o período da peste em Alexandria em 259 d.C.: “A maioria de nossos irmãos não poupavam, por grande amor ao próximo, a sua própria pessoa e permaneciam unidos e firmes. Sem medo visitavam os doentes, os serviam com muita dedicação, cuidavam deles por amor à Cristo e morriam alegres com eles. Sim, muitos morriam após terem curado os outros e terem transplantado a sua morte para si mesmo. Desta forma morreram os mais nobres de nossos irmãos, alguns presbíteros, diáconos e leigos muito considerados. Entre os pagãos acontecia exatamente o contrário. Eles expulsavam de si os que começavam a ficar doentes, fugiam do caminho mais caro e atiravam os moribundos na rua e deixavam os mortos sem enterro.”
Eusébio escreve sobre a grande peste do tempo do imperador Maximinus Daza:
“Eles se revelavam aos pagãos em plena luz do dia; pois os cristãos eram os únicos que em meio a tão grande sofrimento mostravam o seu sentimento e seu amor às pessoas através de seus atos. Alguns trabalhavam dia após dia com o cuidado e com o enterro dos cadáveres (havia inúmeros pelos quais ninguém mais se importava), outros reuniam pela cidade afora os que estavam sofrendo por causa da fome num lugar só e distribuíam entre todos pão. Quando isto foi divulgado, se glorificava o Deus dos cristãos e reconheciam que somente estes eram os verdadeiros religiosos e piedosos porque eles mostraram isto pelos seus atos.”
At 2.44: “Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum”.
4.32-35: ‘Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade”.
Comunhão, fraternidade, igualdade é a Ceia do Senhor vivida diariamente.
Gl 3.26-28: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.
A partir do batismo o Evangelho do reino de Deus é nossa meta e não a dinâmica do capitalismo, que é o projeto deste mundo. O batismo nos torna propriedade de Jesus Cristo e a fé nele nos liberta do projeto deste mundo; somos pois livres para dizer que o projeto deste mundo é do diabo, conforme Lutero. Paulo diz em Gálatas 5.1: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão”. Não nos deixemos escravizar pelo capital que só traz a morte e não salva a ninguém, pois só Cristo salva. O capital ainda hoje usa da escravidão como forma de se reproduzir, como nos mostram as denúncias de trabalho escravos em muitas empresas do agronegócio brasileiro.
No final de junho de 2007, 1.106 trabalhadores da cana no Pará, no município de Ulianópolis, foram resgatados pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho em condições análogas ao trabalho escravo. As palavras de um trabalhador resumem as condições de trabalho: "Tratavam a gente igual a porco". Destaque-se que a empresa autuada, a Pará Pastoril e Agrícola S.A. (Pagrisa), vendia álcool a BR Distribuidora, empresa subsidiária da Petrobras, que anunciou a suspensão da compra após a denúncia de trabalho escravo.
O site do Ministério Público do Trabalho registrou o resgate de 120 trabalhadores em quatro fazendas, em Campo Novo do Parecis, MT, no dia 18 de junho de 2006. Segundo o procurador do Trabalho Eder Sivers, que acompanhou a ação, os integrantes do grupo móvel ficaram surpresos com o contraste visto nas propriedades. “Vimos a alta tecnologia que empregam no campo: colheitadeiras e tratores modernos equipados com GPS, muitos ainda nem tinham sido usados; mas não dá para entender o tratamento dispensado aos trabalhadores. Eles ocupavam alojamentos improvisados no meio do mato, sem a menor condição de higiene e segurança e sem a possibilidade de deslocamento”. As contradições do capitalismo: alta tecnologia e trabalho escravo; o que na verdade não é nenhuma contradição, pois o objetivo primeiro e último é o lucro a qualquer custo.
II Pd 3.9-13: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão. Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça”.
Tudo nesta terra será derretido por Deus no dia do Juízo Final. Assim toda organização humana também vai sumir e será criado tudo de novo por Deus. Esta é a nossa esperança e é isto que defendemos e proclamamos.
I Co 1.26-29: “Agora, meus irmãos, lembrem do que vocês eram quando Deus os chamou. Do ponto de vista humano poucos de vocês eram sábios ou poderosos ou de famílias importantes. Para envergonhar os sábios, Deus escolheu aquilo que o mundo acha que é loucura; e, para envergonhar os poderosos, ele escolheu o que o mundo acha fraco. Para destruir o que o mundo pensa que é importante, Deus escolheu aquilo que o mundo despreza, acha humilde e diz que não tem valor. Isso quer dizer que ninguém pode ficar orgulhoso, pois sabe que está sendo visto por Deus”. (NTLH)
O que o mundo pensa que é importante? O capital é o centro do mundo. Deus vai reduzir a nada o que é. O que é? O sistema deste mundo guiado pelo capital. Deus escolheu as coisas humildes e desprezadas para reduzir a nada o que é: hoje o capital.
Karl Marx denuncia nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844:
“O que posso pagar, ou seja, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o dono do dinheiro. Meu poder é tão grande quando o poder do dinheiro. ... Portanto, o que sou e o que posso não está determinado por minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar a mulher mais formosa. Logo, não sou feio, já que o efeito da fealdade, seu poder de dissuadir, foi aniquilado pelo dinheiro. Eu, segundo minha individualidade, sou paralítico, mas o dinheiro me dá vinte e quatro pés; logo não sou paralítico. Sou um homem mau, desonesto, inescrupuloso, desalmado, mas como se prestam honras ao dinheiro, o mesmo se estende ao seu proprietário. O dinheiro é o bem supremo, e por isso quem o possui é bom. Além disso, o dinheiro me põe acima da condição de desonesto; pressupõe-se que eu seja honesto. Sou um desalmado, mas se o dinheiro é a verdadeira alma de todas as coisas, como pode ser desalmado quem o possui? Com ele se podem comprar os homens de espírito, e o que constitui um poder sobre os homens de espírito não é ainda mais espiritual que os homens de espírito? Eu, que através do dinheiro posso conseguir tudo a que o coração humano aspira, por acaso não possuo todas as faculdades humanas? Acaso meu dinheiro não transforma todas as minhas incapacidades em seu contrário?”
É o fetiche do capital! Este é o espírito do mundo.
Paulo diz em 1 Coríntios 2.12: “Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente”.
“Marx, há muito tempo atrás, observou a forma pela qual o capitalismo selvagem se tornou uma espécie de mitologia, atribuindo realidade, poder e função para coisas que não tinham vida em si mesmas; ele estava certo quanto a isso, dentre outras coisas. E o fato de que atribuir uma realidade independente àquilo que você tem realmente tornou-lhe o que você é, é uma definição perfeita daquilo que as escrituras judaicas e cristãs chama de idolatria”. (Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams)
Defender o capitalismo é defender o trabalho do diabo.
I Tm 6.6-11 fala: “De fato, grande fonte de lucro é a piedade com o contentamento. Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão”.
Nossa proposta é o Reino de Deus e não o reino deste mundo, este século comandado pelo diabo (na sua forma atual: o capitalismo; que no tempo do NT foi o Escravismo e o Império Romano) [Jo 16.8-11: Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado, porque não crêem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais; do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado]. O capitalismo diz que não há outra proposta além da sua; nós dizemos que temos outra proposta: a proposta do Evangelho do Reino de Deus; esta nós procuramos viabilizar. Pelo batismo em nome do triúno Deus Pai, Filho e Espírito Santo fomos marcados por esta proposta. Pregando e defendendo o reino de Deus vamos estar automaticamente combatendo o capitalismo e toda a sua estrutura, pois é o que a Bíblia chama de “mundo”.
Tiago 4.4 lembra: “Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus”.
Finalmente II Timóteo 3.16-4.4 ainda nos lembra:
“Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino: prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas”.
Nós, pessoas batizadas, não proclamamos belas fábulas que fazem as pessoas suspirar e também não falamos apenas o que as pessoas querem ouvir, mas anunciamos o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, gostem as pessoas ou não (pois o Evangelho de Jesus sempre cria duas reações: de aceitação ou de rejeição), pois o Evangelho entra em choque com este mundo organizado no sistema econômico capitalista, por ser inimigo de Jesus Cristo e desta nova sociedade que Jesus chama de reino de Deus. A Palavra de Deus sempre é anunciada na forma de Lei e Evangelho. A Lei denuncia o nosso pecado, põe o dedo na ferida, e o Evangelho anuncia o amor e a graça de Deus, o seu perdão e a possibilidade da reconciliação. A Palavra de Deus como Lei nos avisa que seguir o capitalismo é pecado, pois é o projeto do mundo, do diabo; a Palavra de Deus como Evangelho nos convida a seguir o projeto do reino de Deus que viabiliza o amor de Deus e a comunhão com ele e com os irmãos e irmãs na fé.
Martim Lutero diz: “Por isso, é só a partir do evangelho que chegamos a conhecer bem o diabo”. Quanto mais leio o Evangelho do reino de Deus mais claro fica que o capitalismo é obra do diabo. Obra que muitos cristãos defendem com unhas e dentes.
Condor, 12 de outubro de 2008 – Dia da invasão espanhola nas Américas.

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