16 de agosto de 2011

Leitura da Realidade II 1 Parte


O pobre sabe, mas nem sempre sabe que sabe. Frei Betto

Este material foi confeccionado no início dos anos 2000, portanto os dados estatísticos estão desatualizados, mas o resto dá para usar, principalmente as questões históricas e o conteúdo básico de cada assunto. Este curso segue o anterior Leitura da Realidade. Pode-se também escolher os temas dos dois e mesclar conforme o interesse.

Índice

1 Parte
1o Dia
1. Conjuntura Internacional
2. Um pouco de História
3. A grande transformação
4. A opção brasileira pela integração no 1º Mundo.
2o Dia
5. O Golpe Militar de 64
6. Evolução do Modelo Econômico Brasileiro
7. Entre a Humanização e a Superação do Capitalismo
8. O capital transnacional
3o Dia
9. Panorama da História Latino Americana
10. Dinâmica e ideologia dos EUA no mundo
11. América do Sul, Ásia e África: o mundo mudou pouco para eles
12. Em época de Globalização e ALCA
4o Dia
13. Renda do trabalhador caiu nos últimos três anos
14. Os Novos Pobres
15. Brasil: O País que não tem Direitos
16. O emprego e o desemprego
17. 11,4 milhões sem trabalho no Brasil
5o Dia
18. As Migrações
19. A escravidão não acabou
20. O Brasil rural que não está nas estatísticas
21. O absurdo da agricultura moderna
22. Os conflitos no campo
6o Dia
23. Consumo e Pobreza
24. Consumo
25. Agricultura Camponesa
26. O Custo do Trabalho

2 Parte
7o Dia
27. Lições da revolução verde
28. Agrotóxicos e a Agricultura no 3º Mundo
29. Agroecologia
30. Dez motivos porque os transgênicos não salvam o mundo da fome
31. Transgênicos
8o Dia
32. Do Discurso da Ditadura à Ditadura do Discurso
33. Uma porta de entrada para compreender o Movimento Sem-Terra
34. Um ponto de vista, uma vista de um ponto
35. A nova cara do sindicalismo brasileiro
9o Dia
36. Culturas, Cultos e Etnias
37. A multiplicação dos índios
38. Ecologia
39. Meninos, eu vi...
40. A Fé Cristã
10o Dia
41. A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado
42. Mulheres: Movimentos Sociais e Partidos Políticos
43. A Mídia
44. Os Jovens
45. Valores que deve cultivar um lutador do povo
46. Desafios à Nova Esquerda
47. Educação, Meio Ambiente e Globalização
48. Brasil: 500 anos de luta pela terra
49. A raiz dos problemas agrários do Brasil


Erros Capitais
O ex-líder do movimento pacifista que libertou a Índia, Mahatma Gandhi, deixou entre seus ensinamentos uma lista contendo os sete erros capitais do mundo. São eles:
1. riqueza sem trabalho;
2. prazeres sem consciência;
3. conhecimento sem caráter;
4. comércio sem moralidade;
5. ciência sem humanização;
6. adoração sem sacrifício;
7. política sem princípios.
Anos mais tarde, seu neto Arun Gandhi acrescentou um oitavo erro:
8. direitos sem responsabilidades.
E o que dizer
 da democracia sem participação;
 dos governantes sem legitimidade;
 da Justiça sem celeridade;
 da imprensa sem escrúpulos;
 da Independência sem soberania;
 das eleições sem lisura;
 dos políticos sem vergonha?

1. Conjuntura Internacional
Década de 80
A conjuntura internacional foi marcada pelo acentuado contraste entre a crescente agressividade dos governos norte-americanos de Ronald Reagan (1981-1988) e George Bush (1989-1992) e a cada vez mais evidente crise da URSS.
Fundamentando-se na Doutrina Reagan, nunca definida claramente a não ser pelo manifesto anticomunismo, os EUA multiplicaram intervenções militares diretas ou veladas contra governos e movimentos guerrilheiros acusados de comunistas. Foram os casos das intervenções ocorridas em El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Jamaica, Suriname, Granada e Panamá. Isto sem esquecer o reforço de operações visando a desestabilização do regime cubano. O Documento de Santa Fé, de maio de 1980, elaborado antes mesmo da eleição de Reagan, concluiu que o principal inimigo dos EUA era a URSS, por intermédio de Cuba, contra quem os norte-americanos não hesitaram em usar armas biológicas provocando epidemias, como a dengue, a conjuntivite hemorrágica, a ferrugem da cana-de-açúcar... Quando eles fazem guerra química é legal!
O plenário da Câmara aprovou (21/3/2002) moção da Comissão de Relações Exteriores em solidariedade à gestão do embaixador José Maurício Bustani na Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq). A manifestação, que condena a pressão exercida pelos Estados Unidos com a finalidade de destituir o diplomata, deu-se a pedido do deputado Paulo Delgado (PT-MG). O embaixador defende inspeções em todos os países produtores de armas químicas, o que inclui os EUA.
O deputado Delgado lembra que, desde a criação da Opaq, em 1997, Bustani é o diretor-geral da entidade, que já destruiu dois milhões de armas químicas. Ainda existem no mundo cerca de 70 mil toneladas de armas químicas, das quais 30 mil toneladas são dos EUA. Bustani tornou-se "persona non grata" para os EUA ao recusar que espiões da agência de inteligência americana (CIA) fizessem parte da comitiva de inspetores que investigou as armas químicas no Iraque. Outra atitude do embaixador irritou os EUA: o convite para que o Iraque e o Sudão ratificassem o tratado da Opaq. "Como eles querem uma desculpa para invadir o Iraque, se Saddam Hussein aceitar os termos do tratado, os EUA perdem sua retórica", afirma Paulo Delgado.
A Guerra dos Malvinas (1982) momentaneamente complicou as relações diplomáticas inter-americanas, mas a derrota da Argentina diante da Inglaterra contribuiu para o colapso da ditadura militar implantada desde Buenos Aires. Ambas, a desestabilização e o fim de ditaduras militares dominantes na América Latina possibilitou a restauração democrática burguesa na Argentina, Brasil, Peru, Uruguai.
A Comunidade Econômica Européia, mais conhecida como Mercado Comum Europeu, admitiu Portugal e Espanha. (1986), reunindo assim 12 Estados associados na atual União Europeia.
Na URSS as diretrizes adotadas pelo governo Mikhail Gorbachev (1985-1991), conhecidas pelas denominações de Perestroika e Glasnost, repercutiram sobretudo no mundo socialista, especialmente nas assim chamadas “democracias populares” européias (que de democracia e de popular nada tinham). A ascensão do Solidariedade na Polônia e a derrubada do Muro de Berlim patentearam o eminente colapso da hegemonia soviética.
Terminou a invasão soviética no Afeganistão (1979-1988) e a Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Contudo, a crescente influência dos fundamentalistas no mundo muçulmano resultou em conflitos que ameaçaram a estabilidade de governos árabes; no Egito e na Argélia.
No continente africano começou a desintegração do apartheid na África do Sul, cujos governos apoiavam movimentos contra as autoridades socialistas de Angola e Moçambique.
O crescimento econômico do Japão evidenciou o fortalecimento de novo polo de poder na política internacional.
Esses acontecimentos, em geral, influíram na sociedade brasileira onde se iniciou a chamada Nova República (1985).

Década de 90
A última década do século XX teve, de maneira surpreendente e como acontecimento marcante, a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1991, o que implicou a extinção do Pacto de Varsóvia e do COMECON.
Essas transformações contribuíram para mudanças na Europa Centro Oriental, onde ocorreu o fim das chamadas “democracias populares” e a ascensão de governantes empenhados em substituir o socialismo real pela adoção do capitalismo, agora chamado de economia de mercado (para disfarçar a exploração).
Já em 1990 havia ocorrido a reunificação da Alemanha, em que a República Democrática Alemã foi absorvida (anexada) pela República Federal da Alemanha. Deu-se, ainda, a divisão da Tchecoslováquia em dois Estados independentes: a República Tcheca e a República Eslovaca.
Bem mais grave foi a fragmentação da Iugoslávia, reduzida apenas à união entre Montenegro e Sérvia, à qual se ligam as províncias do Kosovo e de Voivodina. Independentes tornaram-se a Eslovênia, a Croácia, a Bósnia e a Macedônia.
Esta separação foi traumática. Inclusive porque acompanhada de guerras em que a limpeza étnica esteve presente, especialmente na Guerra da Bósnia (1992-1995) e na Guerra do Kosovo (1999). Nesta última houve, de maneira alarmante, a agressão da OTAN, liderada pelos Estados Unidos, a um Estado soberano, sofrendo o agredido terríveis perdas humanas e materiais enquanto o agressor não lamentou nenhuma baixa militar. Recorreu-se a barbárie para combater a condenável barbárie da limpeza étnica.
Afirmou-se, então, que se estava em uma Nova ordem Mundial, em que a globalização foi apresentada como a grande novidade. Nesse contexto, avultou o poderio global dos Estados Unidos, evidenciado na supremacia econômica, militar, técnica e política.
Viu-se crescer nessa década a organização de megablocos. Um deles inclui 15 Estados europeus integrados à União Européia, criada pelo Tratado de Maastricht (1992) e com raízes no anterior Mercado Comum Europeu. O Acordo do Livre Comércio para a América do Norte (NAFTA) reúne os Estados Unidos, o Canadá e o México, em tratado assinado em 1993. O terceiro megabloco e liderado pelo Japão que pontifica na área do Pacífico.
Embora tenha surgido com Friedrich Hayek, na Inglaterra, na década de 1940, foi nos Estados Unidos que o neoliberalismo - nova face do imperialismo - ganhou maior expressão.
Apregoou-se, então, ser o neoliberalismo fundamental para nortear o desenvolvimento das nações. O curioso foi que os países mais ricos, integrados ao Grupo dos Sete (G-7), não abriram mão de o Estado continuar a intervir na economia. Em contrapartida os governantes das sociedades periféricas, sobretudo latino-americanas, empenharam-se em adotar diretrizes privatizantes da economia, segundo o receituário neoliberal.
Mesmo assim, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai criaram o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), em 1991.
Os governantes dos Estados Unidos empenharam-se em tornar realidade a Cooperação Econômica para a Ásia e Pacífico (APEC) e o Acordo de Livre Comércio para a América (ALCA), reforçando ainda mais sua hegemonia econômica.
Marcante foi a sucessão de crises econômicas abalando o capitalismo existente em sociedades asiáticas e latino-americanas. A busca de solução para essas crises envolveu até a concessão de ajuda financeira do Banco Mundial e do FMI, o que contrariava preceitos neoliberais.
A derrota da Revolução Sandinista na Nicarágua, em 1990, e a continuação de guerras esquecidas, como o conflito entre o governo angolano e a União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA), o massacre dos timorenses pelas forças militares da Indonésia ou a continuação dos ataques ao Iraque pelos Estados Unidos, representaram manifestações de contradições globalizadas.
E nessa verdadeira desordem mundial permaneceram vivos inúmeros movimentos guerrilheiros, destacando-se o Exercito Zapatista de Libertação Nacional, no México, e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Além do mais, Cuba continua socialista apesar da pressão dos Estados Unidos, com seu bloqueio econômico já durando 40 anos.

Opressão e Exploração a nível mundial
A partir dos anos 90 o capitalismo se sente como vitorioso: não há mais futuro, pois o presente é o futuro, não há mais história, não existe mais a Guerra Fria , o 1º Mundo fez a sua paz de cemitério (500.000 crianças mortas no Iraque desde a Guerra do Golfo por causa do bloqueio econômico imposto pelos USA por falta de comida e remédios) e o 3º Mundo não conta mais.
O Império (do capital) está em todos os lugares, tem todo o poder e ele sabe disto. E pela primeira vez o 3º Mundo está sozinho pois não pode mais contar, frente aos países ricos, com a ajuda de outros países do Segundo Mundo (ex-países socialistas). Agora o Segundo Mundo se dissolveu e em parte se juntou ao Primeiro contra o 3º Mundo. Assim se perde a perspectiva de que haja uma alternativa. Agora o 3º Mundo não pode mais dizer que existe uma alternativa, que pode ser melhorada, frente ao capitalismo e apontar para o Leste Europeu e a URSS.
O capitalismo que até então teve que manter uma face reformista e manter um estado social razoável, agora não precisa mais desta careta. O 3º Mundo ficou visivelmente enfraquecido pela crise do socialismo real.
Aqui vem a pergunta: o 1º Mundo ainda precisa do 3º Mundo?
O 3º Mundo sempre foi importante ao Primeiro pois fornecia mão de obra na exploração das matérias primas e estas sempre foram a questão central do desenvolvimento do Primeiro. Hoje muitas destas matérias primas foram substituídas totalmente ou em parte por materiais sintéticos e muitos produtos diminuíram de tamanho e de peso; assim as matérias primas e a mão de obra acabam sobrando.
Mas o 3º Mundo ainda é necessário pelos seus mares e rios, seu ar, sua natureza (mesmo para ser local de desova do lixo) e também ainda pelas suas matérias primas. Mesmo que muitas matérias primas percam seu valor o 3º Mundo continua fundamental para o Primeiro. O que não se necessita mais são as populações do 3º Mundo. Vejam o “Muro da Vergonha” que separa os USA do México e as leis anti-imigração dos países do 1º Mundo. Esta população excedente é um perigo e não algo que se possa explorar como era no passado (vejam as migrações clandestinas para a Europa e USA e a volta brutal do tráfico e trabalho escravo, na verdade ele nunca deixou de existir). Estamos num mundo agora em que se é um privilegiado quando se é explorado e isto muda a consciência da classe trabalhadora. Como fica o grito: “Proletários de todos os países, uni-vos” dentro desta realidade, pois muitos não são mais proletários, mas desempregados?
Assim o 1º Mundo ainda necessita do 3º Mundo, mas não de suas populações. É fundamental nesta relação 1º Mundo e 3º Mundo a questão da Dívida Externa, que se tornou o elo fundamental de exploração e de trava do desenvolvimento do 3º Mundo.
Como diz a frase: “O Segundo Mundo só se pode erguer economicamente se ele for admitida no banquete no qual o 3º Mundo vai ser devorado”.
Na verdade o 1º Mundo perdeu o interesse no desenvolvimento do 3º Mundo e, não só isto, ele bloqueia o seu desenvolvimento.
Resumindo: Agora o capitalismo novamente se tornou selvagem como no século 19, pois não precisa mais temer outra alternativa a curto prazo. O 3º Mundo é importante economicamente, sua população não interessa mais. O desenvolvimento de países do 3º Mundo é visto como uma ameaça e usam a dívida externa como instrumento de freio do desenvolvimento.
Sobram populações não só no 3º Mundo mas também no Primeiro e por isso é importante que esta populações se sintam sobrantes e assim se auto-destruam via violência urbana e rural ou guerra civil.
O Fórum Social Mundial visa procurar esta nova alternativa, apesar de sua grande diversidade.

As mudanças na economia mundial
Os principais aspectos que caracterizam as mudanças na economia mundial são a financeirização da riqueza, a forte expansão dos fluxos de comércio e investimentos, a transformação da base técnica das estruturas produtivas, do comércio e dos serviços, liderados pelas grandes empresas multinacionais, a instabilidade do crescimento e a concentração de renda entre classes e países.

1. A financeirização da riqueza e a desintermediação bancária.
A crise monetária e do petróleo nos anos setenta criou uma fantástica soma de recursos financeiros à procura de maior rentabilidade e mobilidade em escala mundial. Essa soma crescente de recursos financeiros gestou o desenvolvimento de novas modalidades de títulos privados dirigidos à alavancagem das operações das empresas multinacionais e ao fortalecimento dos principais mercados, tanto de ações como de títulos, do mundo, entre os quais o mais célebre é o Euromercado.
Estima-se que circula diariamente um estoque de mais de US$ 2,5 trilhões no mercado financeiro internacional (BIS,98) no qual a sua maior parte é representada por modalidades de títulos privados, chamados commercial papers, desenvolvidos e transacionados sem a intermediação do sistema financeiro internacional e muitas vezes à revelia dos Bancos Centrais.

2. A expansão do comércio Internacional e do Investimento externo direto (IDE)
A corrente comercial cresceu 56% na década de 90. Os países desenvolvidos (1º Mundo - imperialistas), que detinham no início da década cerca de 84% do comércio internacional de bens e serviços apresentaram pequeno recuo para 80% em 1999. Já os países em desenvolvimento (3º Mundo – subdesenvolvidos) aumentaram sua participação no comércio mundial em 83%, revelando uma expansão relativamente equilibrada das exportações e importações.
A expansão dos Investimentos Externos Diretos (IDE) nos anos noventa foi muito mais vigorosa que as transações comerciais. Enquanto o comércio internacional cresceu pouco mais de 50%, o crescimento do investimento direto externo foi superior a 301 % e os maiores “beneficiários” deste processo foram os países em desenvolvimento para quem os ingressos líquidos cresceram 482%.
Além disso, esse crescimento do investimento direto externo para os países em desenvolvimento concentra-se na China, Brasil, Coréia do Sul, Taiwan, Malásia, Indonésia, Hong-Kong, México e Argentina. A África, parcela do Leste Europeu, Rússia e boa parte da Ásia não foram incluídas neste ciclo de expansão do crescimento do investimento externo. E, apesar do maior ingresso do investimento direto externo nos países em desenvolvimento nos anos noventa, os países desenvolvidos somam ainda mais de 73% do total mundial do investimento, especialmente os EUA.
Essa forte expansão dos investimentos externos diretos para os países em desenvolvimento está vinculada à desregulamentação global (privatização) dos setores de serviços de telecomunicações, energia, transportes, informática e software, de saúde, previdência, bancos e dos próprio sistemas financeiros domésticos, que até o final dos anos oitenta estavam submetidos à políticas de regulação estatal e ainda contavam com mecanismos restritivos à participação do capital externo na maioria dos países em desenvolvimento.
Além disso, o aumento do investimento direto externo para a indústria de transformação e comércio está relacionado à abertura comercial, especialmente dos países em desenvolvimento, que favoreceu a formação de cadeias produtivas regionais e globais lideradas pelas grandes empresas dos setores de bens de consumo duráveis (veículos, eletroeletrônicos, etc) e das principais agroindústrias da alimentação (leite e derivados, carnes e grãos e derivados) e do comércio, especialmente dos supermercados.
As contrapartidas, desta tendência de crescente ingresso de recursos é a desnacionalização da matriz produtiva, de bens e serviços, deslocando cada vez mais as decisões estratégicas para além dos limites e do alcance dos estados nacionais e tem aumentado ainda as transferências externas sob a forma da remessa de lucros e dividendos.

3. A forte concentração de capitais e a liderança dos setores intensivos em tecnologia da informação o comunicação
O processo de abertura e desregulamentação econômicas em escala global forjou um gigantesco processo de concentração de capitais na década passada, especialmente nos seus últimos anos. Esse processo de aquisições e fusões é distinto daquele dos anos setenta em razão dos valores envolvidos e também pela mudança dos setores que estão liderando este processo.
Segundo a Securities Data, somente no ano passado, os processo de aquisições e fusões somaram no mundo mais de US$ 2,3 trilhões (89% são empresas européias e norte-americanas), o equivalente a cerca de 25% do PIB dos EUA, enquanto nos anos setenta essa cifra era inferior a 5%. As fusões e aquisições nos últimos anos vinculadas à fantástica valorização na Bolsa de New York das empresas intensivas em tecnologia da informação e comunicação (TIC), formou empresas (Microsoft, AOL, Vodafone, Pfizer, etc) com valor de mercado entre US$ 250 bilhões a US$ 350 bilhões. Esse valor é maior que o PIB da maioria dos países do mundo, sendo superado apenas pelas dez maiores economias.
Nos anos setenta a liderança deste processo foi exercida pelas empresas multinacionais do setor automotivo, química básica e petróleo. Já nos anos noventa, a liderança do processo de globalização econômica é exercida pelas empresas mais representativas dos setores intensivos em tecnologia da informação e comunicaçao (UNCTAD e Forbes, 99) e que estão redefinindo não só a organização da produção e do trabalho, mas também o papel e a organização dos setores econômicos fundados na segunda revolução industrial (complexos químicos e metalmecânicos) e também o comércio e os serviços.

4. A maior instabilidade do crescimento e a liderança dos EUA entre os países desenvolvidos
A década de noventa revelou forte instabilidade das condições para o crescimento da economia mundial, em particular para os países em desenvolvimento. De 1994, com a crise do México, os países em desenvolvimento mais importantes (tigres asiáticos e latino-americanos) foram arrastados por crises cambiais que exigiram mais de US$ 260 bilhões dos órgãos multilaterais (UNCTAD) para estancar a repatriação de capitais para os países desenvolvidos.
A destacada liderança dos EUA no crescimento deve-se as maiores condições que detém de coordenação dos fluxos financeiros internacionais, da sua liderança nos setores intensivo em tecnologias da informação e comunicação (software, equipamentos de informática e telecomunicações, os serviços de telecomunicações, etc), de outros setores intensivos em tecnologia (química fina, biotecnologia, novos materiais) e do papel que exerceu em transformar o seu padrão de desenvolvimento em regras mundiais para a desregulamentação dos fluxos financeiros, comerciais de bens e serviços e de tecnologia, especialmente por meio do Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio.
O aumento da pobreza o do desemprego nos anos noventa foi maior nos países em desenvolvimento. Os EUA que apresentaram taxas positivas de crescimento durante a década passada viu a participação dos pobres aumentar de 15% do total da população no final dos anos oitenta para 18% no final dos anos noventa (Banco Mundial, 1999).
Há um alerta generalizado no sentido de que a economia mundial não pode continuar crescendo às custas da especulação, pois tal procedimento é absolutamente irracional.
Alguns dados da economia dos EUA (de 1999) mostram como a situação pode caminhar em direções perigosas e arrastar o mercado financeiro mundial. “Uma vez que o investimento industrial está lento, o país importa massivamente: seu déficit comercial poderá ultrapassar, em 1999, os 200 bilhões de dólares. E a sua dívida externa atingir 2 trilhões de dólares! Estima-se que a Bolsa de Nova Iorque, dinamizada por dinheiro barato, está sobrevalorizada em 25%...”
A realidade parece ser mais dramática do que se imagina. É difícil prever se as economias mais fortes do mundo ficarão imunes às sucessivas ondas de propagação. Há uma causa comum: a especulação generalizada, a volatilidade da circulação do dinheiro, a distância, cada vez maior, entre a riqueza real produzida e essa mesma riqueza transformada em papel.
Entende-se porque, onde há crise, cada vez mais forte se torna a ingerência das nações financeiramente privilegiadas. As suas ajudas às nações em crise visam, não tanto a restaurar os países atingidos, mas a impor sacrifícios, cada vez mais insuportáveis, às suas populações. As contas dos desequilíbrios financeiros mundiais tendem a ser pagas pelos mais pobres, num esforço generalizado de fortalecer um sistema financeiro com um futuro também bastante duvidoso.

O eixo maléfico
O eixo maléfico – o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio – continua a impor ao mundo a ditadura do mercado, a supremacia do setor privado, o culto ao lucro, provocando, no planeta inteiro, uma terrível devastação
As pessoas devem conscientizar-se de que a globalização ataca as sociedades, daqui em diante, em três frentes. Isto é fundamental porque envolve o conjunto da humanidade.

A primeira frente é a da economia. Continua localizada sob a condução do que deveria ser chamado o “eixo do mal”, composto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse eixo maléfico continua a impor ao mundo a ditadura do mercado, a supremacia do setor privado, o culto ao lucro, provocando, no planeta inteiro, uma terrível devastação: da hiperfalência, fraudulenta, da Enron, à crise monetária na Turquia, do calamitoso colapso da Argentina à destruição ambiental por toda parte... É particularmente escandaloso que os chefes de Estado e de governo, em especial os da União Européia, se recusem a adotar, em favor do desenvolvimento, as únicas medidas indispensáveis para salvar da miséria dois terços da humanidade.
Podem ser citadas dez medidas: cancelar totalmente a dívida dos países pobres; criar um sistema de avaliação – amplo, justo e imparcial – das dívidas de todos os países do hemisfério Sul; definir garantias para que futuros financiamentos sejam aplicados em condições satisfatórias e em favor do desenvolvimento sustentável; obter, junto aos países ricos, o compromisso de que destinem um mínimo de 0,7% de sua riqueza ao financiamento do desenvolvimento; reequilibrar os termos de intercâmbio comercial entre o hemisfério Norte e o hemisfério Sul; garantir a soberania alimentar a cada país; controlar os movimentos irracionais de capitais; proibir o sigilo bancário; declarar ilegais os paraísos fiscais; e, finalmente, criar uma tarifa internacional para as transações financeiras.

A segunda frente, clandestina, silenciosa e invisível, é a ideológica. Com a colaboração atuante de universidades, de institutos de pesquisa famosos (Heritage Foundation, American Enterprise Institute, Cato Institute) e dos grandes meios de comunicação (o canal CNN, The Financial Times, The Wall Street Journal e The Economist, imitados por quase toda parte por uma multidão de jornalistas subservientes), foi criada uma verdadeira indústria da persuasão com o objetivo de convencer os habitantes do planeta que a globalização liberal traria, por fim, a felicidade universal. Apoiando-se no poder da informação, ideólogos construíram, dessa forma, e com a cumplicidade passiva dos dominados, o que se poderia chamar um delicioso despotismo.

A terceira frente, por enquanto inexistente, é militar. Nasceu logo após o traumatismo do 11 de setembro de 2001. Tem por objetivo dotar a globalização liberal de um aparelho de segurança adequado. Embora, por algum tempo, parecessem tentados a confiar essa missão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os Estados Unidos decidiram assumir sozinhos, dotando-se de meios consideráveis para exercê-la com a mais impressionante das eficiências
Esse império aspira a certas realizações no âmbito da globalização liberal. Quaisquer oponentes, dissidentes ou resistentes devem, a partir de agora, saber que serão combatidos nessas três frentes: econômica, ideológica e militar. E que os tempos de respeito pelos direitos humanos parecem ultrapassados, como demonstra o escandaloso estabelecimento de uma “prisão tropical de trabalhos forçados” em Guantanamo, onde vários europeus (franceses, ingleses, espanhóis...) estão enclausurados em jaulas. O eixo do mal (o FMI, o Banco Mundial e a OMC) estava escondendo seu rosto. Agora, já o conhecemos. (Ignacio Ramonet, Diretor geral de Le Monde diplomatique)
Quais são, face às mobilizações crescentes, as novas estratégias desenvolvidas pelas instituições da mundialização liberal:
 a colonização dos organismos das Nações Unidas pelas forças econômicas;
 a cooptação de ONGs voluntárias, em particular das organizações de caridade e religiosas;
 o aumento da repressão local e internacional;
 a folclorização do movimento antimundialização liberal;
 a utilização dada vez mais freqüente do discurso e do vocabulário dos movimentos de contestação.

A nova ordem econômica mundial
A nova ordem econômica mundial é constituída por três elementos básicos, a saber:
(I) a revolução tecnológica que centraliza o poder econômico global nas poucas e grandes corporações transnacionias;
(II) as políticas neoliberais que subordinam, principalmente, os países periféricos ao curso de apenas três moedas internacionais (dólar, euro e iene); e
(III) o poder militar que, através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), exerce uma nova função de polícia do mundo.
Por conta disso, poucas são as economias nacionais com capacidade de participar, neste final do século, do forte e concentrado processo de inovação tecnológica que tende a se localizar nas grandes corporações transnacionais. Além disso, a concorrência internacional, sem regulação pública, faz com que várias nações sejam excluídas do espaço econômico de produção e distribuição de riqueza. As nações ricas concentram hoje cerca 2/3 do comércio mundial, 3/4 do fluxo financeiro internacional e mais de 4/5 do total dos investimentos em pesquisa do planeta.
O maior impulso da concentração da produção e da pesquisa no centro do capitalismo mundial ocorre a passos largos, apesar da existência de baixas taxas de crescimento econômico, de múltiplas formas de valorização financeira do capital e de elevada instabilidade nas finanças governamentais. Os ganhos de produtividade existentes são relativamente pequenos e, na sua maioria, absorvidos por uma parcela restrita de países, principalmente naqueles onde operam as matrizes das corporações transnacionais, produtoras e, por isso, detentoras das novas tecnologias.
Na prática, constata-se a conformação de uma nova Divisão Internacional do Trabalho que faz com que a produção, com elevado conteúdo tecnológico, maior valor agregado e geradora de empregos modernos, seja de quase exclusiva responsabilidade dos países ricos. As nações pobres, além de dependentes dessa produção moderna, estão subordinadas à dinâmica do comércio mundial, por intermédio da necessidade de exportar produtos primários ou, no máximo, de bens manufaturados com baixo conteúdo tecnológico, menor valor agregado e gerador de empregos, geralmente precários e de baixa qualificação.
Pode-se verificar, guardada a devida proporção, que a nova ordem econômica mundial apresenta traços cada vez mais similares àqueles que predominavam até o início do século XX, quando a Divisão Internacional do Trabalho e também da Produção ocorria em apenas dois blocos distintos de países. De um lado, as poucas economias que conformavam o centro do capitalismo mundial, geradoras da produção e exportação de produtos manufaturados e responsáveis pelo controle de seus preços no mercado internacional, através da oferta de mercadorias condicionada pelos oligopólios (poucas e grandes empresas ofertantes de mercadorias). Os melhores postos de trabalho, com maior remuneração e qualificação estavam, em geral, vinculados à esse padrão de produção industrial.
De outro lado, o resto do mundo, formado por economias periféricas, especializadas na produção de bens primários e importadoras de produtos manufaturados. Como a oferta de produtos primários no mercado internacional era basicamente concorrencial (muitas e pequenas empresas ofertantes de produtos), o controle sobre a quantidade e preço era praticamente inexistente, o que favorecia a perda dos termos de troca em relação aos preços dos bens manufaturados produzidos no centro do capitalismo mundial e contribuía geralmente para a geração de postos de trabalho precários e de reduzida qualificação.
Atualmente, com o predomínio das políticas neoliberais, que decorrem do chamado Consenso de Washington, as nações periféricas passam a estar cada vez mais submetidas a programas de ampla abertura comercial e de desregulamentação dos seus mercado financeiros e de trabalho. Com isso, tendem a apresentam indicadores de retrocesso produtivo e social – se comparados aos avanços obtidos a duras penas durante o segundo pós guerra, que foi marcado pela bi-polaridade (Guerra Fria). Em outras palavras, as economias periféricas tornam-se mais dependentes das importações e do ingresso de capitais internacionais, o que tem contribuído tanto para o enfraquecimento de suas moedas nacionais quanto para a perda de capacidade de fazer políticas públicas soberanas.
Inicialmente, os programas de estabilização monetária com âncora cambial ou com conselho de moedas atuam contra os sistemas financeiros nacionais da periferia, tornando-os mais facilmente vinculados a uma das três grandes moedas de curso internacional (dólar, euro e iene). Posteriormente, as nações pobres passam a deter condições fragilizadas de produção e a estar cada vez mais associadas ao crescimento do desemprego e da pobreza mundial.
Em 1998, por exemplo, 86% do desemprego mundial estava concentrado nos países periféricos, enquanto em 1979 era de 2/3. Para melhor precisar o que isso representa, deve-se acrescentar que nas duas últimas décadas, o desemprego mundial foi multiplicado por 3,3 vezes.
Neste contexto de agravamento do quadro socioeconômico para a maior parte das economias subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento, o fato de o poder policial em termos mundiais passar a ganhar maior evidência não representa uma novidade. Atualmente, as forças armadas constituídas nas nações periféricas tendem a se tornar praticamente inexistentes, compelidas que são pelos programas de contenção orçamentária impostos direta ou indiretamente pelas receitas do Fundo Monetário Internacional.

Globalização - Conseqüências sociais ou culturais e resistências
O processo de globalização tem como conseqüência uma série de destruições do atuar coletivo da humanidade.

1- Destruição da economia:
Se a economia é a ação humana destinada a estabelecer as bases materiais da vida física e cultural de todos os seres humanos no mundo inteiro, o capitalismo é o sistema mais ineficaz da história humana. Nunca houve tantos pobres, nunca houve tantas distâncias sociais. Isso constitui a primeira base das revoltas e das resistências.

2- Destruição da natureza:
A exploração com a idéia do proveito a curto prazo significa desastres ecológicos, tanto no clima como no esgotamento dos recursos naturais, o que tem provocado, nos últimos anos, o desenvolvimento de muitos movimentos ecologistas.

3- Destruição social que é dupla:
a) Extensão das relações diretas capital/ trabalho, o que quer dizer o assalariado, que agora estende se no mundo inteiro, mesmo se não de maneira majoritária em todos os setores da atividade coletiva. Movimentos sindicais e camponeses têm aparecido em novas áreas geográficas e em novos setores das atividades econômicas.
b) Extensão da relação indireta capital/trabalho, que afeta sempre cada vez mais grupos sociais no mundo. Trata-se dos mecanismos indiretos da lógica da organização capitalista da economia, como a fixação dos preços das matérias primas, a dívida externa, a reexportação de capital, os paraísos fiscais, etc., todos os obstáculos ao verdadeiro desenvolvimento das economias locais e dos quais as conseqüências afetam bilhões de pessoas. É assim que assistimos a um número sempre maior de resistências e de movimentos sociais.
4) Destruição cultural:
Assistimos a um verdadeiro desvio do sentido da educação, dos meios de comunicação, da filosofia e mesmo das religiões, em função dos valores do capitalismo, com a definição própria que ele tem da modernidade, e pela instrumentalização dos aparatos culturais para apoiar seu projeto e legitimar seus objetivos. Também, como resistências neste domínio, notamos novos movimentos de idéias, resistências culturais, elaboração de teologias da libertação, etc. Ao mesmo tempo se desenvolvem movimentos culturais saudosistas, que se expressam em vários tipos de fundamentalismos, como mecanismos de defesa frente a uma modernidade que deprecia as tradições culturais.

5) Destruição política:
A democracia, já relativamente limitada na perspectiva da organização política parlamentar, tem cada vez menos sentido, quando os poderes políticos, emanações dos votos populares, vêm seu poder de decisão diminuir, especialmente na ordem econômica. Em reação, assistimos também a novos esforços de descentralização das decisões, de democracia participativa, de reconstrução de uma política com bases populares.

Agora a resistência.
Globalmente, os problemas comuns identificados são:
1. um crescimento da mobilização da juventude radical, pouco ou nada integrada;
2. proporcionalmente a sua base militante, os sindicatos não camponeses são pouco presentes no terreno da luta antiglobalização. A conjugação só foi obtida em alguns países (Brasil, Coréia, Estados Unidos).
Os objetivos comuns são:
1) melhorar a integração dos excluídos e dos jovens nas alianças nacionais, quer eles sejam ou não organizados (para estes últimos, deve-se propiciar sua participação nos debates);
2) desenvolver as alianças nacionais ao máximo;
3) desenvolver as alianças internacionais, tanto a nível setorial como em terrenos transversais, a nível regional e mundial. Estas alianças devem ser construídas por baixo, enraizando-se nas alianças locais.
É necessária uma articulação prioritária entre as lutas do Norte e do Sul, porque se os movimentos do Sul são muito poderosos e enraizados nas populações, são as mobilizações no Norte que tem mais visibilidade política. O FSM responde a esta última necessidade. Ele também permitiu o êxito das alianças internacionais sobre a ALCA e sobre Gênova e permitirá novas.


2. Um pouco de História
Aqueles que conhecem um pouco da nossa história, da antiguidade até os dias de hoje, sabem que a aventura colonizadora de alguns povos sempre foi, em essência, movida pela sanha da pilhagem e da violação. Não se tem notícia ou registro de conquistador zeloso da cultura e da riqueza do povo colonizado. O princípio de toda colonização é a exploração até o completo esgotamento dos recursos do país ocupado, chamado então de colônia. Desde os romanos aos norte-americanos de hoje, passando pelos espanhóis, holandeses, portugueses ou pelos cruzados na Idade Média, são fartos os relatos de destruição e pilhagem das riquezas naturais e culturais de alguns povos. Os índios, por exemplo, foram assassinados ou escravizados e suas mulheres, violentadas. O que falar então dos povos africanos?

A era de ouro e sua ruptura histórica
Entre 1968 e 1973 um conjunto de fatos nos planos ideológico, militar e econômico provocou uma verdadeira ruptura histórica na trajetória dessa segunda metade do século. Por volta de 1968, entre a revolução de maio dos estudantes e dos sindicatos, em Paris, e o fim do padrão dólar, para usar duas coisas aparentemente desconectadas, estava-se fazendo uma rachadura na história contemporânea.
A verdade é que, a partir de 73, o mundo central, isto é o conjunto dos países mais ricos, entra em crise, perde suas referências anteriores e entra numa longa transição, que ainda não acabou nem se sabe como acabará.
O período que vai do fim da segunda guerra mundial até 1973 é o que quase todos hoje chamam de a era de ouro do capitalismo e da democracia. Eles alcançam os patamares possíveis de igualdade social. Quanto mais os anos passam, mais parece que aquilo foi completamente excepcional na história do capitalismo. O que é que aconteceu ali? A economia cresceu continuamente e a taxas muito altas e universais ou quase universais. Nós aqui no sul também crescemos. E os países socialistas, hoje em degradação econômica e social, cresceram mais do que ninguém naquele período. Houve aumento da produtividade do trabalho. Houve pleno emprego. Houve crescimento da renda per capita. Constituiu-se o sistema de proteção social e solidariedade mais sofisticado que a humanidade já conseguiu construir. E conseguiu-se manter funcionando os sistemas democráticos com participação maciça da população por meio da intermediação dos partidos políticos.
Pois bem, essa era de ouro do capitalismo era, do ponto de vista ideológico, predominantemente social-democrata ou keynesiana, como dizem alguns. Os grandes objetivos que a humanidade se colocou foram: crescimento, eqüidade e pleno emprego. (Quando venceram as idéias do neoliberalismo, os objetivos serão outros: equilíbrio macroeconômico, eficiência e competitividade. Completamente diferentes).

E quais eram as bases dessa era de ouro?
1. consenso ideológico promovido pelo próprio efeito da guerra, da social- democracia e dos liberais keynesianos, em torno àqueles objetivos.
2. mesmo os liberais dessa época, reconheceram a necessidade e a indispensabilidade de um papel ativo do Estado, nos países centrais, no controle das crises econômicas, e nos países periféricos, no comando do desenvolvimento.
3. um pacto implícito ou explícito, rigorosamente antiliberal; entre o capital, o trabalho e o Estado, que se chamou, na época, de neocorporativismo.
4. esse pacto foi possível graças à existência de uma ordem mundial político-ideológica bipolar e conflitiva mas, ao mesmo tempo, do lado ocidental-capitalista, uma ordem econômica perfeitamente regulada pelos acordos de Bretton Woods, e conduzida pelo comportamento hegemônico dos EUA, que, durante esse tempo, por generosidade ou por interesse, colocou os interesses dos seus pares antes dos seus próprios. Talvez por medo do comunismo, mas pouco importa.
Pois bem, em torno de 1973 rompeu-se esse tempo de sucesso. O que aconteceu?
1. as mudanças políticas e sindicais européias, isto é, a rebelião dos sindicatos e o fim do pacto capital-trabalho
2. a derrota americana no Vietnã e de Israel, parcial, na guerra do Yon Quipur e, como conseqüência, a formação da OPEP e a chantagem em torno do preço do petróleo
3. no plano econômico, o choque do preço do petróleo e o fim da paridade ouro/dólar, isto é, o fim do acordo de Bretton Woods. Daí, a subida da taxa de juros norte-americana e a revalorização do dólar.

A crise dos anos 70
Como conseqüência, entre 73 e 80, a economia e a política mundial passam a ver uma situação de crise e instabilidade. As coisas ficam destrambelhadas nas relações entre as grandes potências. Nós aqui em baixo, até que nos damos bem, é o período em que aproveitamos e demos um salto no sentido industrializador. Mas entre as grandes potências, a situação é ruim. Pela primeira vez, desde a 2a guerra mundial, elas vivem um período de recessão prolongada: desaceleração do crescimento, aumento da inflação, aumento do desemprego, aumento do gasto público de natureza social e as políticas de estabilização implementadas não funcionando. Isso em 73/79. É esse impasse que explica a virulência da virada conservadora, que ocorre entre 1979 e 1982. O que aconteceu ali nesses anos? No plano econômico, o segundo choque do petróleo; no plano político-militar, a intensificação da corrida armamentista pelos USA levando a União Soviética à falência (a 2a guerra fria).

O neoliberalismo no poder
Com essas mudanças geopolíticas e monetárias, as idéias liberais traduzidas em programa de governo chegam ao poder no eixo anglo-saxônico (Thatcher é exemplar). Nos EUA, o receituário neoliberal é adaptado aos interesses militares do governo Reagan. Está aberto o caminho para os EUA tornarem-se o centro do poder mundial. Pode-se discutir se é supremacia, hegemonia, ou império; o fato é que hoje a capacidade de contestação dos demais países ficou reduzida a quase nada, diante do dólar como moeda mundial e do poderio militar estadunidense.
A partir daí, na Europa e nos países centrais, vem um processo de difusão desse mesmo pacote, dessas mesmas idéias neoliberais transformadas em programa de governo. Ele vai se difundindo, como ondas ou como dominó, até alcançar, o momento apoteótico da derrota do mundo socialista, da invasão de espaços até então reticentes às idéias liberais e à adesão das suas elites a esse programa.

Um balanço do neoliberalismo
Mas, afinal, que matriz é essa? O que propõe o neoliberalismo?
Sua origem teórica está num livrinho "O Caminho da Servidão", publicado em 1944 por um economista austríaco (Hayeck) que viveu parte de sua vida nos EUA. Nessa primeira etapa, de 44 a 60, esse movimento neoliberal não passou de um pequeno grupo que todo ano se reunia para falar mal do modelo social- democrata.
Entre 60 e 80, o neoliberalismo assume um formato mais científico. Ganha espaço e prestígio nas universidades norte-americanas quando seus adeptos recebem prêmios Nobel.
Em 80/90, eles se instalam nos quadros de governo. Daí em diante o neoliberalismo ganha o consenso mundial – o Consenso de Washington.
Os ideais dessa nova ideologia são os mesmos desde o século XVIII. Há variações na forma de implementação, mas os ideais são os mesmos:
• a despolitização da economia
• a desregulação de todos os mercados, em particular os mercados do dinheiro e do trabalho
• mínimo de Estado possível
• igualdade aceita, apenas, como condições iguais para todos.
Não existe o conceito de justiça social, porque não há como determiná-lo. Tudo que se pode fazer é criar condições iguais na largada; daí para frente, cada um por si. (O problema nunca enfrentado é: dado que os cavalos já estão aí, como colocá-los na largada de novo?).
Pois bem, isso vem do século XVII/XVIII, dos fisiocratas franceses, que achavam que a sociedade seria perfeita se tudo fosse mercado. O problema é que o mercado precisa do Estado para garantir a moeda (na época, o “déspota esclarecido”). Nos séculos XVIII e XIX, os liberais combateram o estado absolutista junto com os democratas. Já no século XX seu alvo principal não foi o autoritarismo socialista, mas o estado do bem-estar social, o que revela serem muito pouco democratas.
O neoliberalismo recebeu seu grande impulso ao casar-se com a globalização do mercado. Foi então visto como um fato implacável, inevitável, inscrito na natureza das coisas. Esse casamento levou as idéias neoliberais até o oriente, ao mesmo tempo que fez das idéias neoliberais o veículo da globalização conforme as receitas do FMI.
A sua força política, na segunda metade dos anos 70, decorreu do fato de estar a economia mundial em crise: havia recessão com inflação, aumentava o desemprego e com isso aumentava também o gasto social do Estado. O diagnóstico neoliberal era (e é): tudo isso é resultado do excesso de democracia, do excesso de estado, do excesso de regulação e do excesso de força dos organismos sindicais. E suma, a culpa da crise eram, exatamente, os pilares do wellfare state, nos países centrais, e do desenvolvimentismo em países periféricos.
Diante disso, a política neoliberal propõe a desmontagem do Estado de bem-estar e a redução do trabalho à condição de mercadoria, com preço e nível de ocupação determinados pelo mercado.

Quais são os resultados concretos dessas políticas neoliberais?
Nesses 20 anos de políticas neoliberais a economia mundial teve um crescimento extremamente medíocre. Comparado à era de ouro do capitalismo, vemos que o modelo keynesiano hoje considerado intervencionista, distributivista e pouco competitivo, fez crescer a produtividade, os salários e a produção muito mais: o dobro ou o triplo do que cresceram no período neoliberal.
É certo que as inflações foram contidas em quase todos os países da OCDE e em muitos países da periferia. Os lucros aumentaram e diminuiu a carga fiscal do capital. Mas o custo social foi alto:
• redefinição dos gastos públicos: aumento com os encargos da dívida e redução dos gastos sociais (saúde, educação, previdência)
• perda de poder dos organismos sindicais
• redução dos salários e diminuição dos direitos trabalhistas
Em suma, o redirecionamento do capital, privilegiando hoje o setor financeiro, concentrou a riqueza de uma forma nunca dantes vista na história humana. Este é o resultado do embate entre capitalismo e socialismo no século XX. Pelo menos, é o resultado que temos nesta altura do campeonato...

O Consenso de Washington
Olhando retrospectivamente, vemos que este resultado não foi imposto pela força das armas, nem por alguma forma de chantagem, mas, de modo geral, por eleições livres e respeitando aos quesitos da democracia. Basta lembrar a queda do socialismo soviético: surpreendentemente tranqüila. Tudo se passou como se, no período de uma ou duas gerações, a Humanidade tivesse optado por um sistema de mercado mundializado no qual todos competem contra todos para que ganhe o melhor e mais forte.
De fato, esse consenso (de Washington) não significa algum tipo de conspiração internacional, nem uma macroorganização clandestina capaz de manejar os instrumentos de poder mundial. Não é tampouco um pacto entre os poderosos, nem o resultado de reuniões de organismos internacionais e menos ainda estadunidenses. Os “centros de pensação" de Washington e do circuito do poder mundial apenas explicitaram a prática de milhões e milhões de indivíduos imaginados como uma viúva suíça que perguntasse: onde é que eu aplico meu dinheiro, para não perder o pouco que tenho e assegurar uma velhice tranqüila? A resposta está nas "condicionalidades".
Quando uma economia periférica negocia um empréstimo junto ao sistema financeiro internacional, é usual que as agências imponham certas condições. P.ex: só financiar a construção de uma hidrelétrica sabendo qual será o preço da tarifa, como será equilibrado o orçamento e quem vai receber subsídios. A partir de 1985/1989, o pacote de condicionalidades vai-se tornando cada vez mais frondoso. Inclui equilíbrio fiscal, austeridade monetária, estabilização monetária, mas também reformas estruturais que acabam com o modelo desenvolvimentista, o estado intervencionista, a economia fechada, o mercado de trabalho protegido e o mercado financeiro regulado. Enfim, para ingressar no sistema financeiro internacional as condições são: desregulação, privatização, abertura comercial e desmontagem do estado desenvolvimentista.
Posto que estas são as condições para ingressar no mercado mundializado e “ser primeiro mundo” (mesmo porque já não há mais como ser “segundo mundo” fora de Cuba e do Vietnã) nossas elites se curvam ao ideário neoliberal. Se não por convicção, curvam-se devido ao peso das dívidas a pagar. Assim, os governantes foram esterilizados: seu poder de decisão é cada vez menor diante das condicionalidades impostas pelas instituições financeiras internacionais, em nome dos interesses e da segurança dos pequenos investidores que a elas confiaram sua poupança.
Pode-se concluir que a hegemonia neoliberal, resultante da vontade de milhões e milhões de investidores representados pelo sistema financeiro, é incontestável?
Os fatos ocorridos neste último quartil do século parecem dizer que sim. Pelo menos, é o que mostrou a análise da realidade tomada em nível macro.

As mudanças na sociedade
Desafios econômico
Constatamos nos últimos anos notáveis avanços tecnológicos, cujos efeitos, porém, são muitas vezes prejudiciais a grande parte da população, que viu diminuir as oportunidades de trabalho e, freqüentemente, o nível de vida, também pela decadência de serviços públicos vitais, como a escola e a assistência sanitária. Na maioria dos Países americanos aumentou a concentração da renda, que já era grande, e surgiu uma "nova pobreza".
À origem desses fatos está também a mentalidade economicista predominante, que coloca acima de tudo o mercado, açulado pela maximização dos lucros. Manifestações extremas e criminosas desse interesse pelo dinheiro são os tráficos ilícitos: de drogas, de armas, até de pessoas ou órgãos humanos. As nações mais poderosas não hesitam em recorrer - contra suas próprias doutrinas ditas "neoliberais" - ao protecionismo e ao boicote econômico, para subjugar as nações menos poderosas. Os preços das matérias-primas tendem a cair em relação aos produtos industrializados. A tecnologia incorpora novas formas de saber, cujo monopólio é detido por um restrito número de Países e de grupos econômicos. As desigualdades entre os Países estimulam a migração de mão-de-obra, em condições precárias, em busca de sobrevivência ou emprego.
As desigualdades internacionais reforçam as desigualdades internas, que também são gritantes e talvez mais graves e prejudiciais à maioria da população. O Continente mais rico do mundo ainda não consegue nutrir dignamente todos os seus filhos e crianças pequenas e desnutridas já lutam para ganhar o pão de cada dia, em trabalhos pesados e mal remunerados, sem receber a educação e a assistência médica que são direitos fundamentais de toda pessoa humana.
Configura enorme desafio para as Igrejas o fenômeno da globalização com sua grande ambigüidade. Outro traço importante do processo econômico atual de repercussão sobre as relações humanas consiste na procura da "qualidade total".

Desafios políticos
A situação política, apesar dos progressos registrados com a superação dos regimes militares, é caracterizada por novas ameaças à democracia e pela ambigüidade como ela é exercida através de representantes eleitos, desligados dos interesses populares e freqüentemente envolvidos em escândalos de corrupção. O poder econômico, organizado em empresas mais poderosas que muitos Estados nacionais, esvazia o poder político nacional ou o instrumentaliza em favor do interesse de poucos. Por outro lado, a economia corrompe os políticos e aumenta a desconfiança do povo, que se sente impotente face às grandes questões nacionais e se reduz à reivindicação de benefícios imediatos, numa atitude corporativista que tende a sacrificar ainda mais os pequenos e fracos. Em casos extremos, o povo desesperado recorre à violência para defender os que acredita serem seus direitos. Grupos organizados recorrem ao terrorismo e a espúrias alianças com os comerciantes da droga. A falta de um "ethos" democrático enraizado, particularmente nas sociedades latino-americanas de origem colonial e tradicionalmente sujeitas ao autoritarismo político, é ulteriormente reforçada pelo uso inescrupuloso da informação e da comunicação social, à procura da manipulação da opinião pública, particularmente da massa menos instruída da população. O princípio da autodeterminação dos povos, tantas vezes exaltado como patrimônio da tradição americana, é esquecido para impor, com toda forma de pressão, a vontade de um País sobre outro.

Brevíssimo Balanço - José Luis Fiori
Não é fácil fazer um balanço sintético e objetivo da "era desenvolvimentista" (1937-1990). Foram 29 anos de regime autoritário, e durante suas cinco décadas, apesar do crescimento da economia, a desigualdade na distribuição da riqueza e da renda aumentou de forma quase contínua. Na maior parte do tempo, foi um projeto hegemonizado pelas forças conservadoras, sustentando-se numa coalizão extremamente heterogênea, e arbitrada pelo poder militar. Mas neste período e sob estas condições, a ação integrada dos capitais estatais, associada aos capitais privados estrangeiros e nacionais, construiu uma economia industrial diversificada e relativamente integrada. O Estado, suas políticas publicas e seus capitais cumpriram um papel decisivo na indução do projeto industrializante, e na construção do mercado nacional. Como produtor e coordenador dos grandes blocos de investimento e principal agente interno de financiamento, o Estado brasileiro acabou montando extensas burocracias econômicas, em geral competentes na sua gestão setorial. A história desta industrialização começou antes, nos anos 20 e se acelerou na década de 30, mas foi sobretudo nos anos 50 que a indústria se consolidou como eixo dinâmico da economia brasileira. Entre 1945 e 1980 o Produto Interno Bruto cresceu a uma taxa anual média de 7,1%, o crescimento do setor manufatureiro foi de 9% ao ano, e a participação do setor industrial na Renda Interna passou de 26%, em 1949, para 33,4% em 1970. Nesse período, assistiu-se, igualmente, uma notável diversificação da pauta de exportações, e os produtos manufaturados chegaram a representar, no final dos anos 80, mais de 60% do total exportado pelo Brasil. Essas mudanças fizeram com que a população economicamente ativa empregada pelo setor secundário passasse de 10,3%, em 1940, para 25,3%, em 1980. De tal maneira que, quando sobreveio a crise econômica dos anos 80, o caso brasileiro singularizava-se no contexto latino-americano, pela extensão de sua indústria, pelo porte de seu setor de bens de consumo duráveis e de bens de produção ¾ os quais, em conjunto, representavam mais que 30% de sua produção industrial ¾ pelo seu grau de articulação interindustrial, e finalmente, pelo dinamismo de seu setor externo. Do ponto de vista dinâmico, a industrialização brasileira foi marcada por uma sucessão de ciclos expansivos potentes, mas de curta duração, interrompidos por crises que resultaram, quase sempre da situação do balanço de pagamentos e que acabaram se transformando, quase invariavelmente, em crises políticas ou institucionais. A permanência do problema cambial e financeiro erodiu com rapidez e de forma recorrente o cenário macroeconômico. Mas, ao primeiro sinal de mudanças na política econômica visando a reforma ou reestruturação do modelo, repunha-se a discórdia entre as várias frações do capital, capazes de defender politicamente seus direitos assegurados pelo ‘pacto conservador’. Além disto, nos momentos de desaceleração dos ciclos, acompanhados pelo aumento da inflação e estreitamento fiscal do Estado e pelo agravamento do conflito distributivo foi quando o Estado desenvolvimentista deixou mais claro a sua fragilidade frente às pressões empresariais e políticas responsáveis pelo aprofundamento das crises. Durante a ‘era desenvolvimentista’, a presença estatal foi decisiva, mas a verdade é que o estado mostrou-se - quase sempre - fraco e submisso frente às demandas econômicas e políticas das oligarquias tradicionais, e do big business que adquiriu condições e vantagens monopólicas, sem nunca comprometer-se com metas claras no plano da produtividade e da competitividade. Em raros momentos do ciclo desenvolvimentista, a burocracia econômica do Estado conseguiu resistir às pressões externas e à sua própria balcanização interna, e sua articulação com o empresariado jamais assumiu a forma de uma coordenação estratégica que permitisse falar na existência no Brasil de um ‘capitalismo de estado’. Essa fragilidade política das burocracias do Estado, frente aos interesses conservadores das classes dominantes, foi uma nota distintiva do desenvolvimento brasileiro, conduzindo-o muitas vezes, pelos caminhos de menor resistência, com forte conotação anti-popular e conseqüências sociais desastrosas, no longo prazo. Talvez porque, ao contrário de outras experiências históricas desenvolvimentistas, no caso brasileiro, não houve nenhuma ideologia de tipo nacionalista que tenha reunido as elites e o povo em algum tipo de "comunidade imaginária" indispensável, por exemplo, à construção e fortalecimento de um estado- potência, mesmo que fosse apenas a nível regional. Ao contrário da Europa e da maior parte das Ásia, suas elites puderam acumular e preservar suas riqueza articulados aos circuitos financeiros e de poder internacionais, sem necessidade de solidarizar-se ou de contar com o apoio do seu próprio povo. (José Luis Fiori)

3. A grande transformação
José Luiz Fiori
Uns falam em "fim da história" ou "pós-modernidade"; outros, em pós-fordismo ou sociedade pós-industrial; e quase todos falam em globalização. De que se trata afinal esta mudança que ocorreu no último quarto de século e que tem tantas faces e interpretações? De onde veio e para onde vai este tufão que virou mais uma página da história?
Em 1944, o economista e historiador húngaro Karl Polanyi publicou uma obra clássica sobre as mudanças que permitiram, no século 19, o pleno desenvolvimento da economia de mercado e a época de ouro da "civilização liberal". Mas Polanyi percebeu, no momento em que escrevia A Grande Transformação, os sinais inequívocos de que estava em curso uma nova mudança radical do capitalismo e que apontava para o nascimento, depois da II Guerra Mundial, do que se chamou de welafre state. O resultado de uma reação de sobrevivência e autoproteção da sociedade, contra os efeitos entrópicos dos mercados auto-regulados, que ele chamou de "moinho satânico". Hoje, não é difícil perceber que está em curso uma nova e grande transformação da sociedade capitalista e da economia de mercado mundial, uma espécie de retorno às idéias, crenças e políticas da época de ouro do liberalismo econômico.

Os cinco anos que mudaram o mundo
Entre 1968 e 1973, ocorreu um verdadeiro "cluster" de decisões e acontecimentos, cujas conseqüências mais duradouras acabaram mudando a face do sistema capitalista e as coordenadas em que se dará, neste novo século, a disputa entre povos, estados e nações pelo poder e as riquezas mundiais. Foi naquela conjuntura histórica que começou a escalada dos conflitos sociais nos países centrais; a vitória de várias lutas de libertação nacional, na periferia da "ordem americana"; e a "indisciplina" dos capitais privados em fuga na direção do euromercado, junto com um incipiente questionamento da política externa norte-americana, por parte de seus principais aliados europeus e asiáticos. Estes fatos e a resposta a estes desafios estão na origem das mudanças responsáveis por esta "terceira grande transformação" da ordem capitalista que se cristalizou nos últimos vinte e cinco anos do século 20. De forma extremamente simplificada, elas podem ser agrupadas em sete campos ou dimensões fundamentais:
1) A primeira ocorreu no campo geopolítico mundial. A derrota militar norte-americana, no sudeste asiático, foi seu ponto de partida. Mas sua trajetória passou por uma sucessão de fracassos políticos e militares que levaram o mundo acadêmico e a imprensa mundiais a falar, nos anos 70, de uma "crise da hegemonia americana". Na década seguinte, contudo, a grande ofensiva ideológica anti-comunista e a corrida tecnológico-militar da administração Reagan culminou com o fim da URSS e da Guerra Fria e foi seguida de uma monopolização do poder político-militar que vem redesenhando os espaços e as hierarquias mundiais sob a égide de uma espécie original de "império anglo-saxão".

Pensamento único e liberdade para o dinheiro
2) A segunda - que foi condição desta ofensiva geopolítica - ocorreu no campo político-ideológico. Suas raízes remontam à "década rebelde" mas adquiriram musculatura enquanto o pensamento conservador diagnosticava, nos anos 70, o problema da ingovernabilidade democrática e propunha o fim das políticas keynesianas e de bem-estar social. As primeiras manifestações desta restauração conservadora ocorreram nos Estados Unidos, na administração Nixon, mas só se disseminaram pelo mundo depois das vitórias eleitorais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, provocando uma convergência no campo das idéias e das políticas econômicas que consagrou em pouco tempo a nova hegemonia mundial, chamada de "pensamento único" neoliberal.

3) A terceira grande transformação ocorreu no campo econômico - mais precisamente na área monetário-financeira, onde se concentra o núcleo duro do que veio a se chamar globalização. Suas origens também remontam aos anos 60, ao início do processo de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em Bretton Woods. Sua expansão, contudo, só ocorreu nos anos 80 e foi obra das políticas desregulacionistas iniciadas pelos governos anglo-saxões, que se universalizaram, nos países centrais, através do efeito em cadeia – "desregulação competitiva" – provocado pela competição entre os estados pelo capital financeiro internacionalizado; e nos países periféricos, como decorrência de sua "crise externa" e como imposição das políticas de ajuste patrocinadas pelos seus credores e governos dos países centrais. Como produto final nasce, nos anos 90, uma finança mundial privada e desregulada, por cujas veias circula e se acumula uma riqueza financeira que já está na ordem de 3 a 4 trilhões de dólares por dia.
A tese central é de que o mundo capitalista está vivendo uma terceira "grande transformação", que vem mudando sua face e funcionamento, mas não suas estruturas e leis fundamentais. A primeira, ocorreu no século 19 e deu origem à "civilização liberal"; a segunda, ocorreu depois da II Guerra Mundial, e deu origem ao welfare state e aos "estados desenvolvimentistas’’; e a terceira, começou no início dos anos 70 e alcançou sua plena maturidade na década de 1990, quando ficaram mais nítidas as suas mudanças fundamentais. As três primeiras foram elencadas na primeira parte deste artigo.

4) A quarta grande mudança responde pelo nome de "revolução tecnológica", cujas invenções e descobertas fundamentais ocorreram durante a 2ª Guerra Mundial, mas sua utilização econômica só ocorreu a partir da crise econômica dos anos 70. Os resultados, sobretudo no campo da microeletrônica, dos computadores e da telecomunicação afetaram diretamente a extensão, o custo e a velocidade de circulação das informações, facilitando a integração em tempo real de todos os mercados financeiros e provocando alterações produtivas e gerenciais que têm permitido aumentos de produtividade e lucratividade, sobretudo depois de 1990, à custas, em grande medida, de um redução gigantesca dos postos de trabalho.

Crise do trabalho, submissão da periferia
4) A quinta transformação vem ocorrendo no campo do trabalho ou do emprego. Depois de 25 anos de alto crescimento sustentado e baixos índices de desemprego, a crise dos anos 70, seguida das políticas deflacionistas e das mudanças tecnológicas, provocou, em quase todo mundo uma desaceleração do crescimento e uma reestruturação produtiva que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, do ponto de vista do número de empregos, de sua remuneração, da sua organização sindical e dos direitos sociais e trabalhistas. Em poucos anos cai vertiginosamente o número do operariado fabril clássico e cresce o universo do trabalho precarizado, sub-contratado, terceirizado, etc. A participação salarial na renda nacional também cai em quase todo mundo, e o desemprego estrutural global somado ao trabalho precarizado já atingiu, no final deste século, a casa do 1 bilhão de trabalhadores, ou 1/3 da População Economicamente Ativa mundial.

5) A sexta transformação ocorreu no espaço da periferia capitalista. Representou uma mudança radical da estratégia, seguida pelos seus principais estados, desde a 2ª Guerra Mundial, com objetivo de promover seu desenvolvimento econômico. Esta grande mudança de estratégia foi mais um resultado da crise econômica mundial que se alastrou a partir dos países centrais, desde o fim do Sistema de Bretton Woods. Ao atingir as principais economias periféricas, ela provocou em conseqüência, nos anos 80, uma crise generalizada de balanço de pagamentos. Crise que os obrigou a submeterem-se às políticas de ajuste de corte neoliberal impostas pelos credores, organismos internacionais e governos centrais, em troca da renegociação de suas dívidas e do retorno ao sistema financeiro internacional. De forma mais ou menos generalizada, estes países, depois de uma década, aparecem, no final dos anos 90, como um universo relativamente homogêneo do ponto de vista de suas políticas econômicas e de sua forma de inserção desregulada e subordinada às finanças privadas internacionais.


Velha utopia dos mercados perfeitos
7) É esta uniformidade que cria a impressão de que esteja ocorrendo também uma fragilização generalizada dos estados nacionais e de que esta seja mais uma das mudanças irreversíveis deste final de século. Trata-se contudo de uma verdade apenas parcial. O número de estados nacionais aumentou nestes últimos vinte e cinco anos e o que ocorreu no campo da soberania foi um aumento da distância entre o poder e a riqueza dos estados do "núcleo central" do sistema e os da sua periferia.
Existe um relativo consenso de que estas foram as principais transformações que alteraram, neste último quarto de século, a geopolítica e a geoeconomia do mundo tal como foram organizadas depois do fim da 2ª Guerra, sob a égide da competição interestatal entre os Estados Unidos e a União Soviética. A grande divergência não está aí mas na forma em que cada um interpreta o movimento mais geral, hierarquizando suas determinações e suas conseqüências. Para alguns, trata-se de uma conseqüência necessária e inapelável das transformações tecnológicas que, somadas à expansão dos mercados, derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam os projetos econômicos nacionais promovendo uma redução obrigatória e virtuosa da soberania dos estados. A partir daí, eles supõem que a própria globalização econômica e a força dos mercados promoverá uma homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento das nações. Alguns mais otimistas ainda, acreditam inclusive, que em algum tempo mais será possível que a humanidade alcance uma forma de governo global com uma "democracia cosmopolita". Não é necessário dizer que esta leitura dos acontecimentos reproduz a velha utopia liberal que desde o século 18 vem anunciando e propondo o projeto de um mercado global, desvencilhado dos problemas impostos pelos particularismos nacionais e pelos protecionismos estatais.
A tese central é de que o mundo capitalista está vivendo uma "grande transformação", responsável pela mudança de sua face e de alguns aspectos do seu funcionamento, mas não de suas estruturas e leis fundamentais. A primeira destas grandes transformações ocorreu no século 19 e deu origem à "civilização liberal" e mais tarde à era imperialista; a segunda ocorreu depois da II Guerra Mundial, e deu origem ao welfare state e aos “estados desenvolvimentistas”, e a terceira começou no início dos anos 70 e alcançou sua plena maturidade na década de 1990, quando ficaram mais nítidas as mudanças fundamentais que podem ser agrupadas em sete campos fundamentais: geopolítico; ideológico; econômico-financeiro; tecnológico; mercado de trabalho; estratégias de desenvolvimento; e papel dos estados.
Sobre isto existe um certo consenso entre os analistas. As divergências estão na forma de hierarquizar e interpretar estas mudanças. De um lado, está a visão hegemônica e liberal que nos parece insuficiente ou mesmo equivocada.
Para nós, a globalização econômica não é uma imposição tecnológica, nem um fenômeno puramente econômico, envolvendo novas formas de dominação social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de determinados interesses. E o que é essencial: estas transformações, que se aceleram a partir da década de 1970, não suprimiram nem as leis de movimento e tendências de longo prazo do sistema capitalista, nem sua forma de evoluir disruptivamente, impulsionado pelos movimentos simultâneos e inter-relacionados da acumulação do poder e da riqueza, alavancados, a um só tempo, pela competição interestatal e pelas relações e conflitos de dominação entre os poderes dominantes e os grupos sociais e países subordinados.
Desde a constituição do capitalismo como um sistema econômico global e nacional, a um só tempo, e durante toda sua expansão, nestes últimos cinco séculos, a partir da Europa do Norte, os estados territoriais e os capitais demonstraram a mesma vocação compulsiva e competitiva ao império e à globalidade. E todas as grandes transformações do sistema capitalista envolveram, simultaneamente, decisões e mudanças no campo da concorrência e acumulação do capital e da luta e centralização do poder político.
Por isto, a "grande transformação" deste final de século não poderá jamais ser entendida se não se tiver em conta a estratégia de poder imperial que vem se impondo ao mundo a partir do seu eixo anglo-saxão. E o fato de que – como diz Fernand Braudel, no seu livro O Tempo do Mundo – neste como em outros momentos da história, "o resultado de uma crise longa e generalizada é muitas vezes o de clarificar o mapa do mundo, de devolver brutalmente cada um a seu lugar, de reforçar os fortes e inferiorizar os fracos".

De um mundo sem vontade à coragem de dizer não
É esta interpretação que os economicistas chamam de visão "conspiratória" do mundo. Para eles, tudo que não seja resultado das forças impessoais do mercado ou do progresso tecnológico é teoria ou explicação "conspiratória". Pensam assim porque transferem para o plano analítico o que é sua obsessão ideológica: a eliminação da política e do conflito de interesses das classes e dos estados. Por isto, vêem intenções ou construções "conspiratórias" onde na verdade o que existe é o desenvolvimento histórico de um sistema de criação da riqueza que é inseparável do processo de acumulação do poder político.
Razão pela qual a explicação dos acontecimentos e da evolução de médio e longo prazos do próprio sistema envolve o acompanhamento e a análise permanente do seu "jogo" de poder, no plano internacional como no plano local. E este é um "jogo" que – para o desconforto de muitos -- não se dá na forma de um "mercado político" e não é compatível com a linguagem dos modelos de equilíbrio e das "decisões racionais".
Na luta pelo poder, a hierarquia e objetivos diferentes e contraditórios dos "decisores" - individuais ou coletivos - são fundamentais e é isto que não entra ou não pode entrar nos esquemas teóricos das interpretações mecanicistas, sejam elas de orientação neoliberal ou social-democrata. Para eles é bem mais simples desqualificar o poder político como "conspiração", e as próprias conspirações concretas como se elas tampouco existissem e não fossem um processo de decisão política absolutamente corriqueiro. Com isto conseguem descartar tanto o mundo dos interesses contraditórios, como o das hierarquias estabelecidas dentro do capitalismo, e ao mesmo tempo desvalorizar o momento da vontade, da organização, da decisão e da coragem para questionar e mudar os rumos daquilo que consideram ser uma mera imposição tecnológica ou do mercado.

Poder político e sistema capitalista
Não é possível assegurar que a expansão imperial norte-americana, que se acelera na década de 1990, conduzirá a uma nova grande guerra. O que, sim, é possível dizer é que por trás desta incerteza internacional esconde-se um problema histórico e teórico antigo e complicado. O das relações entre o poder político e a economia, no desenvolvimento do sistema capitalista mundial, e entre a "vocação" expansiva do capital e o projeto imperial das grandes potências.
Há várias formas de entrar na discussão desse tema. Uma delas, talvez a mais interessante e instrutiva, seja o recurso às lições da história. Os grandes projetos imperiais modernos, que se originaram na Europa, junto com a formação do sistema capitalista mundial e dos Estados e mercados nacionais. Quais a principais lições desta história?
Em primeiro lugar, que o casamento do poder político com o capital privado foi um fato decisivo na origem da modernidade e do sistema capitalista. E que foi esta união que transformou a Europa no centro dominante do mundo, e no lugar onde a riqueza mundial começa a concentrar-se de forma geométrica, a partir do século XVI.
Em segundo lugar, que foi deste casamento que nasceram, de forma quase simultânea, os Estados territoriais, as economias "nacionais" e os primeiros impérios mercantis ou coloniais. Um fato que contradiz o senso comum de que os Estados nacionais teriam sido sempre um freio - ainda que impotente -- ao movimento de globalização do capital. A lição da história aponta numa direção oposta: se é verdade que o capital sempre teve uma propensão incontida à globalidade, os Estados territoriais já nasceram tentando expandir seu poder na direção da "extra-territoritorialidade", competindo entre si e tentando construir impérios cada vez mais globais. Esta tendência se impôs nos séculos XVI e XVII, no momento em que se consagrava o direito à soberania dos Estados europeus e, ao mesmo tempo, espraiavam-se pelo mundo os impérios ibéricos. Mas essa mesma "lei" seguiu atuante, depois da revolução industrial inglesa, e durante a segunda grande expansão colonial européia, no século XIX, transformando-se no comportamento normal de todos os Estados que vieram a fazer parte das grandes potências do sistema político mundial.

Aliança entre príncipes, mercadores e banqueiros
Em terceiro lugar, a história ensina que esta competição político-econômica entre os Estados europeus provocou uma convergência crescente de interesses e uma aliança duradoura entre os príncipes, os mercadores e os banqueiros. Aliança que também se manteve através dos séculos seguintes, na medida em que a competição entre os Estados e a expansão de seus impérios transformaram-se numa formidável alavanca de acumulação e concentração de riqueza. O espaço em que sempre atuaram os "grandes predadores" capitalistas de que fala o historiador Fernand Braudel.
Lugar onde "o dono do dinheiro encontra-se com o dono, não da força de trabalho, mas do poder político (...) e onde se pode desvendar (...) o segredo da obtenção dos grandes e sistemáticos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar e se expandir indefinidamente, nos últimos quinhentos ou seiscentos anos, antes e depois de suas incursões nos domicílios ocultos da produção". Verdadeiro ponto de encontro e lugar de reprodução ampliada do poder e da riqueza, mas sobretudo do capital financeiro.
Uma quarta lição da história é que a competição entre esses "blocos" - formados pela aliança entre Estados e capitais privados - acabou gerando uma estrutura permanente e hierarquizada, de poder e riqueza, dentro da própria Europa. De forma que, depois do século XVII, o poder econômico e político concentrou-se cada vez mais no norte do continente, enquanto as regiões do Mediterrâneo e do Leste Europeu iam se constituindo na primeira periferia do sistema capitalista mundial. Desde então, a composição deste núcleo central do sistema se alterou muito pouco. Um pequeno número de jurisdições políticas européias e autônomas (ao qual se agregaram, no século XX, os Estados Unidos e o Japão), pode ser considerado como o "núcleo orgânico" de gestão política do capitalismo.
Esse também foi o epicentro das guerras mais violentas da história moderna. Mas o que é fundamental é entender é que estas guerras foram, até hoje, absolutamente decisivas para a expansão dos mercados, a difusão do progresso tecnológico e a acumulação e distribuição da riqueza mundial. E nesse sentido, também foram decisivas para a criação das "janelas de oportunidade" que permitiram -- quando bem aproveitadas -- o aumento da participação na riqueza mundial de alguns poucos Estados e territórios situados fora deste núcleo central do sistema. (José Luiz Fiori)


4. A opção brasileira pela integração no Primeiro Mundo.
Dois processos eleitorais marcaram a opção brasileira pela globalização, isto é, por uma política que permitisse a integração da economia brasileira no moderno mercado capitalista. Grosso modo, os governos de F. Collor, Itamar Franco e o primeiro mandato de Fernando H. Cardoso voltaram-se para a criação de condições que tornassem viável tal projeto. Elas poderiam ser resumidas em 3 grandes pontos:

1. Estabilidade da moeda:
Esta é sem dúvida a primeira condição a ser cumprida por um País que pretenda ingressar no mercado capitalista mundial, uma vez que o sistema financeiro internacional rejeita moedas corroídas pela inflação. O "Plano Real" veio cumprir essa exigência, assegurando uma taxa de inflação baixa e sob controle do Banco Central. Além disso, ele trouxe muitos benefícios internos, como a redistribuição de renda para as camadas inferiores de assalariados e a estabilidade ou mesmo a regressão de preços de produtos essenciais. Seu custo, contudo, foi o endividamento público (Durante o primeiro governo de FHC, a dívida mobiliária federal passou de R$61,8 bilhões, em dezembro de 1994 para R$462,6 bilhões no final de 1999. A crise de 1999 acelerou seu crescimento, chegando a R$555 bilhões em abril de 2001), já que o Real teve que lastrear-se em reservas no Banco Central nunca inferiores a US$30 bilhões.

2. Abertura de mercados:
A política de abertura e desregulamentação de mercados foi implementada desde o governo Collor, que favoreceu as importações ("carro nacional é carroça") e eliminou as "reservas de mercado" (notadamente no campo da informática). O governo FHC levou adiante essa política, restringindo o campo da proteção legal ao mercado de trabalho e assim ampliando as possibilidades de contratação temporária e a "terceirização" dos serviços. A eliminação de muitas barreiras legais favoreceu a competição entre a produtos nacionais e importados, o que por um lado contribuiu para a queda de seus preços, mas por outro lado representou a falência das indústrias não competitivas. O custo social dessa política foi o fechamento de muitos postos de trabalho, fazendo aumentar o desemprego e o trabalho informal.

3. Equilíbrio fiscal e redução do Estado:
Condição essencial para conquistar a confiança dos investidores, o equilíbrio das contas públicas assegura os superávites que permitem o serviço da dívida pública (pagamento de juros e resgate ou "rolagem" do empréstimo). Este tem sido o maior feito do segundo governo FHC, notadamente com a aprovação da Lei de "responsabilidade fiscal", que impede ao poder público gastar mais do que arrecada, só podendo endividar-se para saldar dívidas.
Intimamente associadas à política de equilíbrio fiscal, estão as políticas de "privatizações" e de "enxugamento do Estado", já iniciadas durante o governo Collor e, apesar de certas restrições, também no governo de Itamar Franco. Ao transferir suas empresas para o capital privado, o Estado diminui de tamanho tanto em pessoal quanto em suas contas (em apenas uma década o Estado brasileiro vendeu 76% do seu patrimônio) e com isso adequa-se ao ideário neoliberal para ganhar a confiança dos investidores que adquirem títulos da dívida pública.
O resultado do cumprimento dessas condições deveria ser o ingresso maciço de capitais interessados em investir numa promissora economia "emergente". De fato, desde 1989 o Brasil tem atraído um grande número de investidores devido à conversibilidade do real em dólar e as facilidades oferecidas pela política cambial. Mas, contrariamente ao esperado, só uma pequena parte desse capital foi destinada a novos investimentos produtivos (como foi o caso da indústria automobilística). A maior parte do capital voltou-se para a aquisição de empresas já existentes (no caso das empresas estatais, contando com generoso financiamento do BNDES) ou, nos piores casos, para a especulação financeira (jogando com títulos da dívida pública e no mercado de câmbio).
Ou seja, mesmo tendo o Brasil cumprido rigorosamente suas obrigações - fez o "dever de casa", como gostam de dizer os jornalistas especializados - não encontrou junto ao sistema financeiro mundial a correspondente acolhida.
Em outras palavras: nos ferramos!

As Transformações no Mundo do Trabalho
Segundo a OIT (Organização internacional do Trabalho), no ano 2000, mais de um bilhão e 100 milhões de pessoas estavam desempregadas, ou trabalhando em condições precárias, ou ainda mal remuneradas. Entre as causas estão as constantes transformações no mundo do trabalho.
Após a 2ª Guerra Mundial, vencida a etapa da expansão das indústrias e sua elevada capacidade de produzir bens de consumo, começam a sobrar produtos nos depósitos das empresas. Os donos do capital resolveram iniciar uma profunda reciclagem no sistema de produção.
O grande salto veio do Japão, com suas novas experiências em tecnologia e em reestruturação do trabalho. As inovações produziram forte impacto no sistema produtivo, gerando alterações profundas em toda a economia mundial. Eis alguns dos seus fatores básicos:
1) A entrada em cena das máquinas numéricas que reduziram o número de trabalhadores na produção. Por exemplo: um tear produzia 2.500 m de tecido. Passados 20 anos, o moderno tear produz 25.000 m do mesmo tecido;
2) Os robôs foram criados para substituir o trabalho humano. Cada robô implica na exclusão de vários trabalhadores;
3) Os computadores foram ocupando espaços em todos os campos, desde a produção, passando pelos serviços, chegando até os setores administrativos e de direção das empresas, gerando desemprego em todos os setores;
4) As técnicas de controle de tempo e do material mínimo necessário à produção em curto prazo permitiram que fossem economizados espaços e estoques, além de ocasionar enxugamento da mão-de-obra;
5) Diminuída a produção, foi possível unificar setores e secções, ocasionando demissão de encarregados, chefes e gerentes de áreas;
6) Iniciou-se a terceirização de parte da produção. As empresas prestadoras de serviços ganham pelo trabalho contratado, pagam salários inferiores e contratam seus funcionários pelo sistema temporário. Com isso, evitam encargos sociais, promovem grande rotatividade e contribuem para o aumento do desemprego.

Trabalhos alternativos
Todas essas mudanças, ocorridas nos últimos anos, geraram o que se convencionou chamar de desemprego estrutural: posto de trabalho fechado não abre mais. Ainda que surjam novas indústrias, elas virão com tecnologia mais avançada, exigindo menor número de trabalhadores.
Particularmente no Brasil, o desemprego - que já atinge a mais de doze milhões de trabalhadores - gerou enorme corrida em busca de trabalhos alternativos. O trabalho informal, principalmente o ambulante, ganhou proporções nunca imagináveis. Milhões vivem de "bicos" esporádicos, insuficientes para a manutenção da casa.
Várias experiências têm sido desenvolvidas no campo da micro-empresa, onde o desempregado emprega seus últimos recursos financeiros para tentar sobreviver. Salvos uns poucos casos, a experiência não tem sido boa porque falta preparo administrativo para a imensa maioria, assim como é difícil concorrer com os produtos das grandes empresas e com os importados. Há ainda o fator concentração de renda que deixa a imensa maioria da população sem poder aquisitivo. Vender para quem?
Experiências positivas têm ocorrido com empresas que passaram a ser administradas pelos próprios trabalhadores, em sistema de cooperativas. Parte obtém sucesso. Parte não vinga, pelos mesmos motivos comentados no parágrafo anterior Há ainda os casos daqueles que trabalham fazendo reparos como encanador, eletricista etc. Esses, em geral se dão bem por algum tempo. Aos poucos passam a concorrer com outros e a encontrar os mesmos obstáculos que os demais.

Saídas para o povo
Por tudo isso, entendo que a saída para o povo brasileiro está na luta por políticas públicas que gerem desenvolvimento interno, capaz de aquecer todos os setores da economia, gerando vários milhões de postos de trabalho. Esses campos de desenvolvimento são por demais conhecidos: Reforma Agrária, Moradias Populares pelo sistema de mutirão, reformulação dos sistemas de Saúde e de Educação pública, Saneamento Básico, sistema de Transporte sobre trilhos (coletivo e de carga) e investimentos nas áreas de atendimento social (recuperação de detentos e drogados, por exemplo). Os recursos para tais empreendimentos? Estão no pagamento da criminosa agiotagem internacional.
Waldemar Rossi, metalúrgico aposentado e membro da Pastoral Operária da arquidiocese de São Paulo.
Mundo Jovem nº 335, abril de 2003


5. O Golpe Militar de 64 #
A primeira vitória capitalista foi a Proclamação da República, a segunda vitória foi a Revolução Burguesa de 1930, a terceira foi o Golpe Militar de 1964 e a quarta foi a vitória do Collor em 1989 com a implantação do neoliberalismo que o FHC concluiu e viabilizou de vez.

A POLÍTICA INTERNACIONAL
"Atravessamos horas das mais conturbadas que a Humanidade já conheceu. O colonialismo agoniza, envergonhado de si mesmo.
"Ao Brasil cabe estender as mãos a esse mundo jovem, compreendendo-lhes os excessos ou desvios ocasionais ( ... ) Compreender significa auxiliar no que for possível e no que for preciso.
"( ... ) Abrimos nossos braços a todos os países do continente. Abrimo-los, também, as velhas coletividades européias e asiáticas sem prevenções político-Filosóficas. Os nossos portos agasalharão os que conosco queiram comerciar ( ... ) Temos plena consciência da nossa pujança para que nos arreceemos de tratar com quem quer que seja." (Discurso lido no Programa a Voz do Brasil, na noite de 1º de fevereiro de 1961 in: PINHEIRO, LUIZ ADOLFO. Jânio, Jango & Cia, Brasília, Editora Eco, 1988, págs. 16 e 17.)
As palavras da Jânio Quadros denunciam o intento de adoção de uma política independente - garantindo assim a ampliação de mercados externos -, justamente em uma conjuntura de aguçamento da Guerra Fria. Neste continente, as tensões entre os governos de Cuba e dos Estados Unidos tornavam-se graves e resultariam não só na ruptura de relações diplomáticas entre os dois países, mas também na adesão de Cuba ao bloco socialista, liderado pela URSS.
A busca de reatamento de relações diplomáticas com Estados socialistas, em especial a URSS e a China, alem do envio de missão diplomática a Alemanha comunista, constituíram manifestações claras de uma política externa independente. Ainda que esse reatamento somente se concretizasse em outros governos republicanos. Contudo, a recepção calorosa a Fidel Castro e a condecoração de Iuri Gagárin, astronauta soviético, de Ernesto Che Guevara e de integrantes de missão soviética em visita ao Brasil, foram atos concretos desencadeadores de crescente oposição interna. Violentos pronunciamentos de civis, militares e eclesiásticos assemelhavam-se a verdadeira cruzada anticomunista.
"Em várias oportunidades, o Ministro da Guerra, Odilio Denys, também chegou a adverti-lo sobre a insatisfação da alta hierarquia militar ( ... ) Em abril de 1961, a tentativa de desembarque, na Baía dos Porcos, de tropas recrutadas entre exilados cubanos e treinadas pelos Estados Unidos, reacendeu o clima de Guerra Fria. Jânio Foi então convidado a optar claramente por um dos dois blocos. Sofreu nesse sentido pressão de diplomatas norte-americanos, devido a sua resistência em apoiar o bloqueio a Cuba. Esta posição chegou a envenenar as relações com os Estados Unidos, agravada ainda mais por pequenas descortesias diplomáticas, como Fazer os enviados norte-americanos esperarem durante horas." (Nosso Século: 1960-1980 - Sob as ordens de Brasília, o. cit., pag. 10.)
Se tudo isso não bastasse, o apoio à admissão da China na Organização da Nações Unidas (ONU) e, sobretudo, a condenação do colonialismo rompiam com anteriores diretrizes da diplomacia brasileira, marcadas pelo apoio à continuidade do domínio português na África. E tal ruptura inovadora ocorreu justamente quando o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), de orientação marxista, empreendia as primeiras ações contra o colonialismo português. Daí as manifestações de descontentamento da forte comunidade portuguesa residente no Brasil.
Em postura claramente terceiro-mundista e independente, o presidente reuniu-se em Uruguaiana, cidade fronteiriça no Rio Grande do Sul, com Arturo Frondizi, então presidindo a Argentina. Na oportunidade, foi assinado o Convênio de Amizade e Consulta, fixando a integração política, econômica e cultural entre os dois Estados.
Vivia-se o mês de abril do ano de 1961.
"Contudo, os Congressos do Brasil e da Argentina não ratificaram o Convênio de Uruguaiana, que mereceu o desagrado de Washington e o ciúme ou desconfiança de muitas chancelarias latino-americanas." (PINHEIRO, LUIS ADOLFO, op. cit., pág. 24)

Conjuntura Política Interna
Durante o governo Jango, a polarização Política entre os setores progressistas e conservadores no interior do Congresso se refletiu na sociedade brasileira. Assim, a maior mobilização da sociedade resultou em, pressão sobre o governo, que se viu acuado diante da radicalização da luta de classes por parte dos movimentos populares. Foi o caso das ligas camponesas e greves operárias.
Além disso, as eleições de 1962, para governos estaduais e parlamentares explicitaram. a falta de representatividade política dos partidos existentes* Aumento dos votos brancos e nulos, ausência de maior coerência na defesa dos projetos partidários, inúmeros casos de corrupção, coligações que ignoravam o quadro de tensão em Brasília - PTB e UDN chegaram a formar chapas conjuntas em estados nordestinos -, e divisões no interior dos Partidos entre facções reformistas, nacionalistas, entreguistas, moderadas etc., reforçaram a descrença da sociedade no papel dos partidos em uma sociedade democrática.
Dentro desse quadro, a eleição de 1962 mostrou-se desfavorável para o governo João Goulart, na medida em que UDN e PSD somaram 54% das representações na Câmara Federal. Diante disso, os canais de negociações entre o governo e a Câmara foram ocupados por setores fisiológicos que buscavam ampliar seu controle sobre o aparelho administrativo do Estado.
Visando contrabalançar o quadro partidário favorável ao fisiologismo e fortalecer uma política de reformas que sustentasse o governo, rearticulou-se a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN).
"Caracterizada por uma expressiva heterogeneidade, reunia o apoio de diversos setores da sociedade e de políticos de extração partidária diferenciadas socialistas, católicos, petebistas e udenistas nacionalistas. As entidades que se Faziam representar pela FPN eram a UNE, diversos sindicatos e outras organizações da sociedade civil, como as ligas camponesas e as Comunidades Eclesiais de Base." (NEVES, LUCÍLIA DE ALMEIDA. "Trabalhadores na crise do Populismo: utopia e reformismo", in: TOLEDO, CAIO NAVARRO, 1964. Visões críticas do Golpe, Campinas, Editora da UNICAMP, 1997, pág. 61)
A FPN, originalmente surgida nos anos 50, durante o governo de Juscelino, transformou-se de um bloco nacionalista em um instrumento de pressão pró-reformas dentro do Congresso Nacional. Em oposiÇão ao crescimento da FPN, processou-se uma articulação conservadora originando a Ação Democrática Parlamentar (ADP), composta por congressistas do PSD, UDN, PSP e pequeno grupo fisiológico e conservador do PTB.
Com isso, o Congresso rachou, dividido entre os dois blocos políticos, pulverizando os partidos e gerando uma polarização nos debates, o que agravou a imobilização do governo Jango. Ao mesmo tempo, o quadro de Polarização no interior do Congresso deslocou do seu interior a possibilidade de alternativas à resolução da crise que não passassem pela interrupção da legalidade institucional.
Para o governo, o avanço das reformas e o ingresso das massas populares na arena política seriam a alternativa viável. para a sua permanência no poder; para os setores conservadores, a ampliação da participação política das massas populares reforçava a opção golpista e a derrubada de João Goulart do poder. Assim, o quadro congressual cada vez mais pendeu em direção aos militares e ao golpe armado.

AS BASES DO PROJETO ECONÔMICO
O golpe militar de 1964 consolidou um modelo de Estado marcado pelo autoritarismo e caracterizado por uma dupla faceta: excludente no campo político aos setores populares, mas defensor de um projeto de modernização da economia com nuances nacionalistas, em que coube ao próprio Estado o gerenciamento, e planejamento desse modelo econômico.
Para isso, o governo procurou, após 1964, criar uma série de planos que tinham por objetivo delimitar as metas a serem seguidas. A partir daí, assistiu-se à adoção dos seguintes planos governamentais: Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG - 1964-1966); Plano Decenal - Desenvolvimento Econômico e Social (1967-1976); Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970); Metas e Bases para a Ação Governamental (1970-1972); além dos três Planos Nacionais Desenvolvimento (1972-1985).
A concretização desta série de propostas foi garantida pelo uso constante da LSN, que na pratica permitiu o cerceamento da sociedade brasileira através da censura aos meios de comunicação, do atrelamento do Congresso Nacional aos interesses do Executivo, além da imposição de nova carta constitucional, que conferia uma excepcionalidade de prerrogativas ao Poder Executivo.
Além disso, o governo procurou ampliar a participação do capital internacional na economia brasileira através de subvenções, isenções fiscais e concessão de financiamentos privilegiados, o que configurou o predomínio de empresas estrangeiras no processo de modernização da economia. A conjuntura internacional, marcada pelo aumento da acumulação de capital (graças a especulação com o dólar nas principais Bolsas de Valores do mundo), favoreceu a expansão dos investimentos estrangeiros no país.
E se somarmos as outras garantias dadas pelos militares ao capital internacional (como, por exemplo, o discurso da estabilidade política, o da inexistência de conflitos trabalhistas devido à repressão, as obras infra-estruturais etc.) melhor compreenderemos o porquê do desenvolvimento de um modelo econômico tão dependente do capital exterior.

A DURA REALIDADE
A política econômica adotada no governo Castelo Branco, segundo diretrizes fixadas por Roberto Campos, ministro do Planejamento e Coordenação Econômica, e por Otávio Bulhões, ministro da Fazenda, atendia às determinações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e aos interesses do capital estrangeiro.
O primeiro Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) propunha-se a fixar a estabilização econômica (1964-1966). Quatro estratégias foram consideradas essenciais para combater a inflação: urna política de controle salarial mediante reajustes somente anuais, o corte dos gastos públicos possibilitando a redução do déficit governamental, a adoção de rígida política de crédito ao setor privado e o fim dos subsídios ao trigo, ao papel e ao petróleo importados.
A liberação dos aluguéis dos imóveis residenciais igualmente atendia aos objetivos de captar o apoio de setores burgueses vinculados a especulação imobiliária.
Três importantes medidas destinavam-se a assegurar a tranqüilidade e o interesse do grande capital, sobretudo estrangeiro: a revogação da Lei de Remessa de Lucros, aprovada pelo Congresso Nacional em 1962; a sanção do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que punha fim à estabilidade por tempo de serviço do assalariado (atendendo principalmente às exigências das indústrias automobilísticas) e possibilitava maior rotatividade da mão-de-obra (1966); e a aprovação de legislação que proibia as greves dos trabalhadores. Foi a Lei 4.330, de 11 de junho de 1964, conhecida como Lei Anti-greve, porque a greve somente seria legal quando o empregador atrasasse o pagamento de salários ou deixasse de cumprir decisões judiciais.
Ora, as novas diretrizes econômicas da ditadura militar contribuíram para o fechamento de pequenas e médias empresas, para a elevação dos índices de desemprego e do subemprego, para elevação do custo de vida e para a desnacionalização da economia brasileira.
A ascensão do marechal Artur da Costa e Silva à Presidência da República (1967-1969), imposto pela linha dura a um Congresso castrado e amedrontado, evidenciava que os militares não estavam dispostos a abrir mão do comando da nação.
Embora o novo governo acenasse para a oposição a bandeira da conciliação, manteve-se nos limites do Estado de Segurança Nacional, como fora definido na Constituição de 1967.

A Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e o AI-5
A Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, no final dos anos setenta, foi o primeiro movimento nacional e unificado contra a ditadura militar e representou a maior frente política de caráter progressista da história brasileira.
A imagem é banal, mas muito precisa: a luta pela Anistia foi um rio caudaloso, de águas abundantes trazidas por muitos outros rios que, no subsolo da terra brasileira, teimaram em continuar fluindo, apesar da aridez e da crueldade do regime militar que penalizou milhares de brasileiros, como nunca antes na história do Brasil.
O golpe militar de 1964 determinou às forças populares a prioridade da luta pela democracia. Brasileiros de norte a sul, de leste a oeste, passaram a engendrar novas formas de luta, a definir novos processos organizativos, a se expressar por meios alternativos, garantindo oxigênio às consciências democráticas que jamais foram vencidas no longo período ditatorial.
Com o endurecimento político que sobreveio ao Ato Institucional n.º 5 mais sofrimentos e angústias foram impostos à sociedade brasileira. Ainda assim, permaneceram latentes, mas fortes, os anseios por liberdade, por democracia, por dignidade da maioria do povo brasileiro, apesar da interdição da ação política e apesar dos riscos que expressar pensamentos ou palavras contrários à nova ordem, desumana e antinacional, representavam para os brasileiros.
A prática, iniciada logo após a edição do AI-5, de prisões indiscriminadas, de torturas sistemáticas, embora aterrorizante, não impediu que as pessoas se organizassem de alguma forma para resistir como pudessem. Em primeiro lugar, familiares, amigos e advogados das primeiras vítimas começaram a tecer redes de informação e proteção, nem sempre suficientes para impedir a morte ou o desaparecimento de valorosos patriotas. No mínimo, a resistência dos primeiros anos da década de '70 esculpiu em pedra o testemunho dessa época de trevas, terror e miséria.
O Ato Institucional nº 5 (AI-5) acentuou o caráter ditatorial do governo militar instalado em 1964 no Brasil. Com ele, o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais foram colocados em recesso, e o presidente, à época o general Costa e Silva, passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas autoritárias. Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do assassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da "segurança nacional".
Mas, sobretudo, o AI-5 atingiu o que restava de esperança de mudar o Brasil, fazê-lo voltar ao caminho democrático, após o desvio de rota causado pelo golpe de 1964.
Focos de resistência ao arbítrio, que afastou das Universidades, da Imprensa, da Política e das mais diversas atividades profissionais preciosos talentos, apareciam por todo o país, ainda que silenciados pela força da censura. As igrejas, de diferentes credos, foram sempre uma trincheira avançada na proteção de pessoas e instituições. Os estudantes, com a generosidade que lhes é própria, formaram as primeiras fileiras no movimento pela reconquista da liberdade e da democracia, pagando às vezes com a perda da sua liberdade, às vezes com a própria vida. Artistas e intelectuais encontraram novos meios e modos de expressar sua revolta contra a ditadura.
As mortes, em São Paulo, do jornalista Vladimir Herzog (outubro/75) e do operário Manuel Fiel Filho (janeiro/76) deram ponto final ao medo que atormentava amplos setores da sociedade brasileira quanto à ação e mobilização políticas. Significaram um enorme basta! ao terror que parecia sem fim.
Pressionado, o regime militar, à moda da elite brasileira de sempre se antecipar às conquistas populares para não partilhar o poder, enviou o projeto de lei da anistia ao Congresso Nacional. O projeto atendia parcialmente aos objetivos da Campanha da Anistia e contrariava um de seus mais fortes princípios - o de que não poderia existir anistia para os algozes do povo brasileiro. Ainda assim, sua tramitação pelo Congresso Nacional, foi responsável por muitas páginas heróicas do movimento de Anistia.
Finalmente, em 28 de agosto de 1979, foi aprovada a Lei nº 6.683, a Lei da Anistia. Os presos começaram a ser libertados, a maioria beneficiada por recursos jurídicos e não pela Lei da Anistia, que não foi ampla nem irrestrita. Ainda quando alguns segredos da ditadura começaram a ser revelados, deixando clara a autoria dos crimes de torturas, assassinatos e desaparecimentos, foi impossível responsabilizar os criminosos do regime militar porque a Lei da Anistia os protegia. Poucos dos atingidos pelos Atos Institucionais, cassados, aposentados, demitidos, retornaram ao exercício profissional porque a Lei da Anistia impôs condições tais para sua readmissão que a muitos apenas restou o caminho da aposentadoria, o mais das vezes proporcional. Quase a totalidade dos políticos que tiveram seus mandatos cassados e direitos políticos suspensos já havia cumprido suas penas antes, ou poucos meses depois, da promulgação da Lei.

6. Evolução do Modelo Econômico Brasileiro #
Uma leitura estrutural
Há mais de 10 anos, ao fazer a análise de conjuntura se trabalhou sobre a hipótese da permanência estrutural do binômio casa grande / senzala. Ao afirmar que este é um problema não resolvido desde a colônia, não estamos endossando o discurso de quem não admite mudanças estruturais, mas buscamos entender criticamente a gênese de uma ordem social injusta, para assim superá-la.
De fato, Portugal criou aqui uma classe de proprietários de terra e escravos, capaz de comandar a produção de mercadorias (açúcar, ouro, café e outras) e servir ao comércio com a metrópole. Para compor a força de trabalho, os povos indígenas foram desestruturados enquanto nações, sendo incorporados à sociedade brasileira enquanto famílias ou indivíduos, livres ou escravos. Os africanos, todos escravizados, sofreram um processo ainda mais forte de desestruturação política, social, familiar e cultural. Formou-se, então, uma sociedade onde uma elite submete a enorme massa de indivíduos que, mesmo livres, foram destituídos de meios de subsistência e dos direitos de cidadania. Em pelo menos três momentos cruciais de nossa formação econômico-social a elite jogou politicamente contra a justiça:
1. em 1850, quando a Lei de Terras substituiu o regime das sesmarias pelo regime da compra de glebas;
2. em 1888, quando a Lei Áurea aboliu o trabalho escravo e
3. quando, no pós-guerra, a industrialização e a urbanização pouco alteraram os regimes agrários e de trabalho.
A estratégia sempre foi de evitar que a massa viesse a se tornar um povo, no sentido de cidadãos em igualdade de direitos e deveres. As reações e revoltas em favor de uma cidadania nacional, foram sempre frustradas pela implacável repressão.
Para entender tal poder sobre a massa, é preciso ter em conta que ele foi respaldado pelo crescimento econômico desde a proclamação da República, em 1889, até por volta de 1980. Os dados disponíveis (a partir de 1930) indicam que a economia brasileira cresceu em média 7% ao ano, puxada pela indústria que fazia dobrar a riqueza nacional a cada 10 anos, beneficiando também as camadas populares. Só no século XX, após os movimentos operários do início do século, emerge o processo popular de conquista da cidadania, no qual podem ser distinguidos quatro momentos:

1. Nas décadas de 1940 e 50, o movimento popular vem embutido na aliança populista de Vargas.
2. Nas décadas de 1960 a 80, consolidam-se os movimentos sociais com reivindicações contra a carestia, pela Reforma Agrária, por melhores condições de infra-estrutura, por melhores salários e condições de trabalho, e em defesa dos Direitos Humanos. Esse florescimento recebe o apoio da Igreja Católica e alia-se à reação da sociedade contra a ditadura militar.
3. Na década de 1990 os movimentos sociais entram em crise, devido à mudança de suas relações com o Estado, que adota o modelo neoliberal e faz políticas compensatórias para fugir das responsabilidades sociais. O confronto com instâncias governamentais - em nível municipal, estadual ou federal – cede lugar a tentativas de cooptação da organização e das bandeiras do movimento social, fazendo que este se preste a substituir órgãos governamentais em tarefas de assistência.
4. No momento atual, as lutas por cidadania são retomadas num horizonte mais amplo, que incorpora elementos até então ignorados ou esquecidos, como a questão das dívidas sociais em confronto com a dívida financeira, questões étnicas, de gênero e culturais, tornando-se mais aberto e pluralista. O Fórum Social Mundial figura como momento emblemático dessa visão mais abrangente.

Hoje se percebe que a Constituição "Cidadã" de 1988 é o referencial desse processo. Nela desembocaram as reivindicações populares por Democracia e Cidadania para todos. Apesar dos casuísmos (Congresso em vez de Assembléia Constituinte) e da pressão conservadora (o famoso Centrão), ela incorporou também as demandas populares, reconhecendo Direitos como a demarcação das terras indígenas e de quilombos, os conselhos populares de controle de políticas públicas, a universalização da assistência e previdência social, a função social da propriedade, e outros avanços na área dos Direitos Sociais. Muitos desses Direitos, porém, ficaram inscritos na Constituição mas não se efetivaram. Cabe aqui uma tentativa de explicação para o fato.
A efetivação dos Direitos Sociais exigiria uma real redistribuição da renda e da riqueza, operando uma mudança profunda na secular estrutura social e política brasileira. Dados de 1999 indicam que 400 mil unidades familiares - 1% da população brasileira - detêm 53% da riqueza e 17% da renda nacional. Em vez de olhar para as outras 39,6 milhões de famílias, essa minoria abre-se para o exterior e busca integrar-se no mercado globalizado. As eleições de 1989 (F. Collor), 94 e 98 (F.H. Cardoso) deram o respaldo eleitoral a essa opção, unindo a "moderna" elite de São Paulo a oligarquias regionais (notadamente da Bahia, Pará e Maranhão), hoje ameaçadas em sua sobrevivência política. Essa política tem sua maior bandeira no Plano Real, que mantém baixa a taxa de inflação, mas paga elevado custo social devido às restrições impostas ao crescimento econômico. Pouco capital foi aplicado em investimentos de longo de prazo, e mesmo os investimentos na produção em geral foram aquisições de empresas já existentes e com rendimento garantido. O caso dos bancos, com lucros extraordinários, ilustra perfeitamente o tipo de capitais atraídos pelo Brasil. Endividado, o país submete-se às orientações do FMI, para continuar recebendo capitais externos que cubram o déficit nas transações correntes (US$23 bilhões em 2001) e aumenta a dívida pública. O serviço dessas dívidas retirou dos cofres públicos, em 2001, nada menos que R$106,9 bilhões, o que significa R$203.000 por minuto, 24 horas por dia, 365 dias no ano. A maior parte desse desembolso vem de novos empréstimos, mas cerca de R$44 bilhões vieram do superávit primário resultante do aumento de impostos e de cortes nas despesas do Estado, para alcançar o chamado "equilíbrio fiscal".
O País está diante de um impasse. De um lado, uma minoria quer dar prosseguimento à atual política econômica de integração na globalização, apostando que no futuro ela beneficiará também a grande maioria. Por outro lado, nossa consciência ética e a fidelidade aos movimentos sociais pela cidadania, nos desafiam a construirmos uma nação de pessoas responsáveis pelo seu destino – condição para a globalização da solidariedade.

O PACTO CONSERVADOR
Só se compreende a adesão das elites brasileiras ao desenvolvimentismo, logo depois da 2º Guerra Mundial, e sua rápida conversão ao neoliberalismo, na década de 1990, quando se tem presente a posição subalterna do país dentro da "ordem americana". Mas a heterogeneidade e as desigualdades sociais, que aumentaram continuamente, com o desenvolvimento econômico e a urbanização, não foram uma conseqüência necessária ou inevitável do contexto internacional, nem foram uma imposição imperial de quem quer seja. O desastre social brasileiro é de inteira responsabilidade dos próprios brasileiros, das suas classes dominantes, e da forma reacionária com que exerceram o poder e seu autoritarismo anti-popular. Neste campo, das relações entre o capital privado, o estado e a classe trabalhadora, sempre existiu uma espécie de "pacto conservador", cujas raízes últimas remontam ao Brasil agrário e oligárquico , mas cujas "regras básicas" se mantiveram vivas e intocáveis, durante toda a modernização industrial da sociedade brasileira, mesmo depois da inflexão liberal dos anos 90. Reconhecer a existência è a permanência deste pacto, entretanto, não significa desconhecer as profundas transformações sociológicas que ocorreram, sobretudo a partir de 1950. Nesse período, expandiu-se e fechou-se a fronteira agrícola, criaram-se novos e poderosos complexos agro-exportadores e agro-industriais e, simultaneamente, desfez-se e fragmentou-se a pequena propriedade tradicional, liberando ou expulsando populações forçadas a uma migração interna descontrolada, a qual mudou o panorama sócio-econômico e cultural de nossa mão-de-obra. Oligopolizaram-se e internacionalizaram-se novos setores produtivos, dando origem ou expandindo os complexos metal-mecânicos e petroquímicos responsáveis pelo surgimento de uma moderna classe operária. Ao mesmo tempo, cresceram as cidades, as massas marginais e as classes médias, ligadas ou não a uma burocracia estatal em expansão com o crescimento do setor público da economia.
Mas a intervenção do estado no mercado de trabalho começou muito antes, já no século XIX, mantendo o sistema escravista, e patrocinando a vinda dos primeiros emigrantes europeus. A partir dali, e mesmo depois das primeiras iniciativas legislativas, de tipo previdenciárias - que datam de 1923 - a regra básica que organizou a relação do Estado e dos capitais privados com a força de trabalho, foi a repressão, substituída ou complementada intermitentemente por várias formas de cooptação, sobretudo dos trabalhadores urbanos. A moderna legislação trabalhista brasileira- sindical e salarial – foi construída durante o período autoritário do Estado Novo, mas manteve-se vigente, quase intacta, entre 1945 e 1964, e ainda durante o regime militar que se estendeu até 1985. Durante todo esse tempo, coube ao Estado a gestão coercitiva dos salários, exercida na fase democrática, através da definição do valor referencial do salário mínimo, ou do estabelecimento dos salários do setor público, e durante a maior parte do regime militar, através de uma fórmula oficial de cálculo de correção do valor da totalidade dos salários do setor privado. Portanto, não apenas houve uma permanente intervenção do Estado nas relações trabalhistas, como houve uma opção de longo prazo por uma industrialização com baixos salários e com a utilização extensiva e rotativa da mão-de-obra, cuja qualificação nunca foi vista como peça importante, no desenvolvimento da competitividade microeconômica. A conseqüência estrutural, dessa opção política do ‘pacto conservador‘ - não foi apenas uma enorme dispersão salarial e segmentação dos mercados de trabalho, foi também a formação de um quadro de desigualdade social crescente. Desigualdade ampliada pela impotência do Estado frente aos interesses ligados à estrutura fundiária e à monopolização do espaço urbano, onde a acumulação de capital, nos marcos de uma expansão metropolitana desenfreada, acabou relegando uma parcela expressiva da população a um estado quase completo de marginalidade com relação ao acesso aos serviços sociais básicos. O mesmo tipo de política e relacionamento social que se manteve, durante a década de 1990, apesar da redemocratização e do abandono radical da estratégia desenvolvimentista. Uma "pauperização relativa" que conviveu, durante todo o século XX, com o processo simultâneo e gigantesco, de acumulação e concentração da riqueza privada. Foi olhando para este tipo de desenvolvimento com desigualdade social crescente, que Celso Furtado cunhou, nos anos 50, o conceito de subdesenvolvimento, que segue válido e vigente. Fazia referencia à economias e países como o Brasil, cujas elites econômicas nunca atrelaram a defesa e acumulação de sua riqueza mercantil e patrimonial a qualquer tipo de projeto de homogeneização social e integração popular. (José Luiz Fiori)

7. Entre a Humanização e a Superação do Capitalismo
François Houtart
A criação destruidora, característica da globalização, ganha dimensões planetárias, carregando contradições cada vez mais insuportáveis. A questão é: que alternativas se colocam a este sistema econômico.)
A atual globalização da economia capitalista é bem mais do que o fruto da tecnologia, como muitas vezes é apresentada para que se destaque seu caráter inevitável. Ela se inscreve num processo de recomposição da acumulação do capital que responde pelo nome de Consenso de Washington. Essa nova fase caracteriza-se, no plano instrumental, pela integração mundial de diversas etapas da produção e distribuição em distintos locais geográficos, principalmente graças às novas técnicas da comunicação e da informática. Isso teria tornado a globalização, como diz Michel Beaud, um movimento organicamente global. Ela provoca uma gigantesca concentração de poder econômico, assim como um inchaço da "bolha financeira", facilitado pelo abandono do padrão-ouro.
O objetivo do processo de globalização foi reforçar a participação do capital privado na renda produzida - em comparação com a do trabalho e a do Estado -, após 30 anos de uma política keynesiana (ou fordista) nas sociedades ocidentais e da busca de um tipo de desenvolvimento nacional e populista na maioria dos países do Hemisfério Sul. A queda de produtividade, no primeiro caso, e o custo da transferência de tecnologia e know how, no segundo, foram os fatores decisivos nessa mudança de orientação.
É evidente que essa política permitiu manter um crescimento econômico importante, embora frágil, como demonstraram as diversas crises. Também incentivou um desenvolvimento tecnológico considerável. Porém, também resultou no fortalecimento mundial do poder de uma minoria, com uma medíocre conseqüência para as camadas médias e a exclusão de milhões de seres humanos que se encontram na pobreza. Na realidade, para aumentar sua possibilidade de acumulação - diante de uma produtividade decrescente nos setores socialmente desenvolvidos da economia -, o capital desfechou uma ofensiva contra os outros beneficiários do produto social, o trabalho e o Estado, com os resultados que se conhecem, principalmente no Hemisfério Sul.
Uma das bases ideológicas do sistema econômico capitalista é afirmar e fazer crer que não existem alternativas, que é preciso empurrar a liberalização mais para a frente, para que se resolvam os problemas pendentes, e que o mercado é o verdadeiro regulador da sociedade. Os mais abertos de seus partidários dirão que é preciso garantir o restabelecimento das leis da concorrência para enfrentar os monopólios. Alguns chegam a afirmar que importantes setores da atividade humana pertencem ao não-mercado e que um mínimo de presença do Estado é indispensável para se fundar, com eficiência, um contexto legal de mercado, garantindo as tarefas da educação e da saúde, as infra-estruturas coletivas e os serviços de segurança pública. E, finalmente, diante dos inquietantes níveis de miséria, todos eles concordam em criar programas de luta contra a pobreza e mobilizar organizações de voluntários, principalmente religiosos, como paliativo.
No entanto, o que continua não sendo reconhecido nesses meios é que o mercado é uma relação social que, no atual sistema econômico, constrói desigualdades, e precisa delas para se reproduzir. Isso faz parte de sua lógica: a concorrência, a competição, a maximização do lucro, a redução dos custos de produção, a flexibilização do trabalho, o processo de privatizações... Nessa perspectiva, a relação social entre parceiros tende, necessariamente, à desigualdade, principalmente a relação capital-trabalho. E, mais ainda, a relação mercantil tende a tornar-se a norma de todas as atividades coletivas da humanidade, da educação e da saúde à seguridade social, às aposentadorias, aos serviços públicos, ao sistema carcerário...
Alternativas em pauta
A questão fundamental é saber se existem realmente alternativas ao sistema econômico atual, que, na prática, domina todo o planeta, inclusive alguns países socialistas em transição para o mercado.
Para muita gente, a história do bloco soviético parece, na realidade, comprovar o fracasso das soluções de mudança. O socialismo real deixou de ter credibilidade como referência. Daí o vazio ideológico que deu lugar ao "pensamento único". E, a bem da verdade, apenas começamos agora a estudar os múltiplos motivos, internos e externos, que provocaram o colapso dos regimes da Europa Oriental. Por outro lado, a criação destruidora, característica do capitalismo, ganha dimensões planetárias; e as contradições que carrega nos planos ambiental e social - tornam-se cada vez mais insuportáveis. Multiplicam-se resistências nos mais diversos lugares, em inúmeros planos e no mundo inteiro. No entanto, ninguém acredita em uma mudança em curto prazo, por uma revolução política. O fracasso do socialismo real teve, pelo menos, o mérito de nos conscientizar de que toda e qualquer transição é um processo de longo prazo.
Por ora, o fascínio pelo mercado está onipresente. Basta lançar um olhar à China ou ao Vietnã para constatar que o mercado se tornou objeto da derradeira palavra de ordem do Partido Comunista e a integração à globalização é apresentada como um objetivo nacional. Ainda que nesses países algumas soluções originais tenham sido buscadas para conciliar mercado e socialismo, a integração dessas perspectivas no projeto político fica submersa à lógica do capitalismo, que jamais dá margem de manobra.
No entanto, diante da opção neoliberal, apresentam-se atualmente duas correntes de alternativas: o neo-keynesianismo e o pós-capitalismo.

Remediar abusos
O neo-keynesianismo defende, em seu modelo teórico, a aceitação da lógica do mercado como motor da economia, embora na condição de regulador do sistema, limitando seus efeitos perversos e impedindo abusos. Isso, para muita gente, parece uma solução razoável e realista.
O modelo de referência seria a sociedade européia pós-Segunda Guerra Mundial, com seus pactos sociais entre capital e trabalho, e o Estado servindo de aval e de árbitro na distribuição das riquezas. A idéia consiste em aplicar os princípios do keynesianismo em escala mundial e, conseqüentemente, regular o sistema econômico capitalista. Depois do ultraliberalismo - que levou à desregulamentação dos mercados, dos fluxos financeiros, da organização do trabalho e que gerou os programas de ajuste estrutural, desestruturando as funções do Estado - o pêndulo começaria, a partir de agora, a trajetória oposta. Trata-se de restabelecer as condições da concorrência, tentando, ao mesmo tempo, diminuir a destruição do meio ambiente e as injustiças sociais. Como, atualmente, esse problema não se coloca mais no plano de Estados, é preciso encontrar os meios que permitam uma regulamentação mundial e, portanto, construir para isso os instrumentos adequados. Para os neo-keynesianos, é nesse nível que se coloca o problema das alternativas.
Coexistem, nessa corrente, inúmeras variantes - daqueles que enfatizam. regulamentações com o objetivo de salvar o capitalismo aos que defendem a criação de referenciais destinados a respeitar um princípio de precaução (caso do meio ambiente) e a salvaguardar direitos elementares (caso dos trabalhadores, da soberania dos Estados). Na primeira categoria, poderiam ser incluídos alguns dos porta-vozes do Fórum Econômico Mundial, que se reúne anualmente em Davos, ou ainda George Soros o genial especulador e filósofo da economia, sem esquecer alguns dirigentes do Banco Mundial e do FMI. Na segunda, o leque é muito amplo e vai dos que defendem a Terceira Via, Anthony Blair e William Clinton - que, no fundo, estão bastante próximos da primeira categoria – à social-democracia e à democracia-cristã. Ambos defendem uma "economia social de mercado".
O que caracteriza essas posições é que elas não questionam a lógica do capitalismo, mas tentam remediar seus abusos e excessos. O capitalismo selvagem é rejeitado, seja porque põe em perigo o sistema propriamente dito, seja porque seus custos ambientais e sociais são muito altos. No primeiro caso, toma-se por base uma ética interna do sistema: as regras do jogo devem ser respeitadas, mas para fazê-lo funcionar melhor. No segundo, o julgamento, mais ou menos rigoroso, refere-se aos efeitos perversos do sistema, principalmente atribuídos ao comportamento de agentes econômicos que devem ser enquadrados em normas determinadas. A ética consiste, portanto, em apelar à consciência dos atores envolvidos e estabelecer um quadro normativo para o funcionamento da economia.

Crítica da lógica do capitalismo
Os defensores do pós-capitalismo imaginam a organização da economia sobre bases que não as do capitalismo, ou daquilo que hoje se chama, para parecer mais civilizado, a economia de mercado (segundo Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia, trata-se precisamente da mesma coisa). A própria lógica do capitalismo é questionada - uma economia centralizada sobre si mesma ou uma atividade capaz de gerar um máximo de lucro, fonte da atividade produtiva e, portanto, do crescimento. A isso, o pós-capitalismo opõe uma definição distinta da economia: a de uma atividade que permitiria garantir as bases materiais do bem-estar físico e cultural a todos os seres humanos.
Enquanto a primeira definição destaca o esforço dos indivíduos - que, nessa perspectiva, constituem a sociedade -, a segunda salienta o fato de que a economia é uma construção coletiva e lembra que o mercado é uma relação social. Trata-se, portanto, de uma crítica mais fundamental que a da posição neo-keynesiana e que acarreta, inevitavelmente, propostas de alternativas mais radicais.
Entre os defensores do pós-capitalismo existem, logicamente, muitas divergências. Há uma esquerda revolucionária que avalia que a tomada do poder é a chave para uma mudança rápida e radical. Há os que, curiosamente, são chamados "conservadores" e, nos países ex-socialistas ou ainda oficialmente socialistas, defendem a volta às soluções soviéticas – e até ao stalinismo, num esforço de exorcizar, ou evitar, o caos mafioso do mercado desenfreado por que passa hoje a Rússia, por exemplo. Os outros, no entanto, concordam, em sua maioria, que a transição para um modelo alternativo de economia é um processo de longo prazo.
Pode-se pensar que se trata de uma utopia. Os protagonistas desse projeto aceitam, mas dão à palavra um sentido distinto - o que Paul Ricoeur chama a utopia necessária, ou seja, um objetivo não preciso no tempo, mas que sintetiza as aspirações coletivas. Nessas condições, utopia não é sinônimo de irrealizável. Mas a teoria não pode parar aí. Deve examinar os dados da análise social e econômica, permitindo, dessa forma, explicitar as experiências do passado e avaliar as múltiplas resistências ao sistema capitalista que se manifestam nos dias de hoje. Na realidade, nem todas essas resistências são contra o sistema nem necessariamente capazes de formular hipóteses de ações alternativas.
Para que uma alternativa concreta tenha credibilidade, não basta que funcione. É preciso que se insira num conjunto mais amplo e que forme um dos elementos da construção do objetivo final. Sem isso, pode rapidamente transformar-se num dos elementos do sistema existente, já que este possui uma enorme capacidade de adaptação e absorção.

Premissa ética
Uma iniciativa dessas também implica um juízo ético. Como já dissemos, os partidários do neoliberalismo ressaltam, por um lado, o incentivo à iniciativa individual e, por outro, a convergência de interesses contraditórios, que se anulam no mercado e confirmam, dessa forma, o caráter auto-regulador deste último. Michael Novak, por exemplo, vai mais longe: defende a idéia de que o capitalismo é a forma de organização da economia mais próxima do Evangelho, pois alia o respeito pelo ser humano e o bem comum. Michel Camdessus, ex-diretor do FMI, declarou, uma semana antes de sua renuncia, que o FMI constituía um dos elementos da construção do reino de Deus.
A necessidade de superar o capitalismo pressupõe, portanto, uma premissa ética que antecede a busca das alternativas. E nessa medida que se pode deslegitimá-lo e que é possível mobilizar a opinião pública e fazer convergir ações. Na perspectiva pós-capitalista, essa iniciativa vai além de uma mera condenação dos seus abusos. Para que se reproduza em longo prazo, qualquer sistema precisa de instâncias críticas, que lhe permitam corrigir o seu mau funcionamento. Eis porque algumas ações ainda que radicais, mas que não questionem as bases teóricas da sua construção - acabam sendo-lhe úteis.
A deslegitimação proposta pelo pós-capitalismo, antes de ser moral, apóia-se na incapacidade do capitalismo em dar respostas às exigências mínimas da economia, definida como uma engrenagem do conjunto da sociedade, que garante a segurança material de todas as pessoas e de todos os povos. Karl Polanyi, economista norte-americano de origem húngara, compreendeu isso bem, quando explicou que o capitalismo rompeu o isolamento da economia com relação à sociedade. E seria bom acrescentar que o capitalismo tende a impor as suas leis ao conjunto das atividades coletivas da humanidade.
Para a corrente pós-capitalista, a reação ética aos abusos insere-se, portanto, numa visão mais global, pois estes não são meros acidentes de percurso, ou o resultado de perversões individuais. Esta análise considera-os parte da natureza do sistema, o que se confirma facilmente pelo fato de que os mesmos agentes econômicos do "capitalismo civilizado" promovem, no Hemisfério Sul e no Leste Europeu, o "capitalismo selvagem". A maximização dos lucros e a lei da concorrência não conhecem limites senão num contexto de correlação de forças. É quando encontra resistências organizadas que o capitalismo cede terreno, porém não sem apelar para a repressão, para a violência, para ditaduras políticas ou mesmo para a guerra, em defesa de seus interesses. E nessa perspectiva que se enquadra a construção de uma outra globalização, de resistência e de luta. Isso porque, diante da "globalização" do capital, encontram-se movimentos populares fragmentados, os mais diversos tipos de organizações de defesa dos direitos, uma pulverização que se deve à diversidade geográfica e setorial. Somente uma convergência desses movimentos permitirá construir uma nova força.
O progresso tecnológico e as questões ambientais também têm seu lugar na visão pós-capitalista. O primeiro não surge como um objetivo em si, e menos ainda como um meio de maximizar o lucro, mas como um instrumento para melhorar o destino de todos os seres humanos do planeta. justamente por isso, é necessário considerar as condições sociais do desenvolvimento de tecnologias, a sua função, a distribuição de suas contribuições às sociedades, o caráter ético de sua aplicação e suas conseqüências sobre o meio ambiente. Quanto aos fatores ambientais, embora Marx já tenha dito, há 150 anos, que o capitalismo destrói as duas fontes de sua própria riqueza - a natureza e os seres humanos -, nem por isso os regimes socialistas deram a devida atenção às exigências ecológicas. Mais do que nunca é fundamental que a utilização da natureza fuja à lógica da mercadoria.

Conceito ambivalente
Finalmente, como o mercado é uma relação social, em muitos casos é o direito do mais forte que se impõe. Na atual conjuntura, ainda que o pólo central do capitalismo se encontre dividido entre os três elementos de uma tríade composta pelos Estados Unidos, a Europa e o Japão - que, entre si, dominam inúmeros monopólios econômicos, científicos e estratégicos -, a força militar que garante o sistema está nas mãos dos EUA. Thomas Friedman, assessor da ex-secretária de Estado Madeleine Albright, escreveu um artigo, em 28 de março de 1999, para o New York Times Magazine, com o título: "Para que a globalização funcione, os Estados Unidos não devem ter medo de agir como a superpotência invencível que na realidade já são". E acrescentava: "A mão invisível do mercado jamais funcionará sem um punho invisível". A cadeia McDonald's não irá se expandir sem a McDonnel Douglas (fabricante dos aviões F-15). E o punho invisível que garante a segurança mundial das tecnologias de Silicon Valley chama-se exército, força aérea, força naval e corpo de fuzileiros navais dos EUA Uma declaração dessas tem, pelo menos, o mérito da franqueza. A oposição ao hegemonismo norte-americano insere-se, portanto, nessa perspectiva.
Cada um dos projetos citados propõe alternativas. Ou com o objetivo de humanizar o capitalismo, ou de o superar. O conceito de alternativa é, portanto, ambivalente, podendo tratar-se de alternativas situadas dentro da economia capitalista ou defendendo uma alternativa ao próprio sistema capitalista.
Por outro lado, fala-se atualmente, de ambos os lados, em alternativas (no plural), mas em sentidos igualmente distintos. Para uns, não existem mais objetivos globais, já que estes representam o risco de um retorno a outro "pensamento único", mas existe, por outro lado, um conjunto de soluções concretas que permite apresentar alternativas com credibilidade à atual situação, reconhecidamente insustentável. Essa é a concepção que mais se aproxima das posições neokeynesianas. Para outros, as alternativas concretas só terão credibilidade na medida em que se inserirem numa substituição progressiva do sistema capitalista, como se fossem etapas numa longa transição. Afinal, não foram necessários mais de quatro séculos para que o capitalismo construísse as bases materiais da sua reprodução (a industrialização e a divisão do trabalho)? Seria, portanto, normal que um outro modo de produção levasse o mesmo tempo para ser construído.
Em suma, as alternativas existem. Em última instância, a sua concretização está vinculada à vontade de as realizar. Por ora, a credibilidade não se coloca no plano das alternativas, mas no da ação coletiva. Existiriam formas sociais capazes de levar adiante projetos alternativos, em curto e em longo prazo? Existiria a vontade política de realizá-los? Isso é outro debate, que seria bom começar o mais rápido possível.
François Houtart é Diretor do Centro Tricontinental em Louvain-la-Neuve, Bélgica.
Cadernos Le Monde Diplomatique

8. O capital transnacional
"Sabemos agora que um governo do capital organizado é tão perigoso como o governo do crime organizado" (Roosevelt, 1936)
O governo FHC tem sido um servo dedicado e eficaz das exigências do capital internacional, cujo predomínio no mundo tem destruído as fronteiras nacionais e o poder dos Estados nos países periféricos. A lógica é de ampliar e acelerar os ganhos financeiros em escala mundial. Os programas de abertura comercial e financeira, congelamento de câmbio, elevação de juros, privatizações e cortes de gastos têm sido adotados de forma quase idêntica em vários países com os mesmos resultados desastrosos para a economia e a sociedade. Vide a Argentina que está pagando o preço de sua fidelidade canina ao FMI.
Somente os setores vinculados aos capitais financeiros transnacionalizados saem ganhando. Não é coincidência que o primeiro semestre de 2001, no qual se registrou enorme queda do PIB nacional (-1,0% do primeiro para o segundo trimestre, sendo -3,0% na indústria e -3,6% na agropecuária), tenha sido o melhor semestre do Real para os bancos (exceto o de 1999, quando a desvalorização ampliou ainda mais seus ganhos): o retorno médio foi de 22,8%, contra a média histórica de 15%; no 1º Mundo a média é de 5%.
Sobre a concentração do capital e o controle do grande capital sobre o Estado, vejamos um texto de Franklin Roosevelt, em 1932, que consta no livro "Franklin Roosevelt", de Fred C. Israel, editado pela Nova Cultural, 1987: "Vemos que dois terços das indústrias norte-americanas estão concentrados em poucas centenas de corporações, e na verdade dirigidos por não mais que cinco pessoas. Vemos que mais da metade das economias da nação estão investidas em depósitos e hipotecas e fazem da bolsa de valores o esporte dos norte-americanos (...) Vemos que grande parte de nossa população trabalhadora não tem chance de ganhar a vida". E, em 1936, "sabemos agora que um governo do capital organizado é tão perigoso como o governo do crime organizado. Nunca como hoje estiveram estas forças tão unidas contra um candidato como estão agora. São unânimes em seu ódio por mim e eu bendigo seu ódio".
O próprio presidente Clinton, em sua mensagem ao Congresso no ano de 1992, se lamentou de que "... no ano passado, pela primeira vez desde 1920, 1% dos norte-americanos tem mais riqueza que todas as possuídas por 90% da população..." (Minsburg: 1994, p. 17). Este texto foi retirado de Atílio Boron. E algo parecido ocorre no Brasil. Da mesma forma, o livro "Introdução à economia", de N. Gregory Mankiw, professor de economia na Harvard University, livro usado em muitas universidades americanas e européias, ao tratar sobre a "desigualdade de renda ao redor do mundo" diz que "no fim da lista está o Brasil, onde um quinto dos mais ricos aufere uma renda cerca de 30 vezes maior do que o quinto mais pobre". Na verdade, somos mesmo campeões de desigualdade social, de acidentes de trabalho, de devastação ambiental, de submissão ao imperialismo, etc. Por isso, campeões de corrupção.
No mundo existem cerca de quarenta mil multinacionais, oligopólios poderosíssimos. Estas respondem por mais da metade do comércio mundial de manufaturas e três quartas partes da provisão de serviços. Atílio Boron também acrescenta que "a terça parte do comércio internacional consiste simplesmente em transações intrafirma, e as cifras de vendas dessas empresas equivalem aproximadamente à terça parte do produto bruto do planeta". Destas 40.000 multinacionais, cerca de 300 grandes monopólios exercem um "poder de mercado" na economia norte-americana. "E cerca de 150 fazem o mesmo no Reino Unido (Leyes: 1996, p.5). Cinqüenta das maiores transnacionais possuem rendas anuais superiores ao produto bruto das duas terças partes dos países de todo o mundo (Leys e Panitch: 1998, p. 18). Um dos gigantes do capital especulativo mundial, Goldman & Sachs, tem lucros anuais da ordem dos 2.600 bilhões de dólares, que distribui entre seus 161 sócios principais, uma cifra aproximadamente igual ao PIB da Tanzânia, que é distribuída entre seus 25 milhões de habitantes".
Atílio Boron também mostra que "358 supermilionários" dispõem de "rendas equivalentes à renda total dos 2,3 bilhões de pessoas mais pobres do planeta". Diante deste quadro, os liberais no Brasil buscam liquidar o Estado, liquidar nossa moeda com projetos de dolarização e ainda nos inserir numa Alca feita para ampliar nossa situação de colônia. O resultado? O florescimento da corrupção, da lavagem de dinheiro, da devastação ambiental, da exploração dos trabalhadores etc.

As fusões – as megaempresas
O que dizem as análises a respeito da amplitude e significado desse fenômeno, que é parte do processo da economia global e neoliberal?
“Por que uma tal efervescência? No quadro da mundialização, os grandes grupos da tríade (América do Norte-União Européia-Japão), aproveitando-se da desregulamentação da economia, querem ter uma presença planetária. Eles procuram tornar-se atores importantes em cada grande país e neles ocupar partes significativas do mercado.”
O que significam a fusões e como elas se apresentam? Na verdade, “... as fusões apresentam, aos olhos dos predadores, inúmeras vantagens”. “Elas permitem reduzir os efeitos da concorrência adquirindo-as, pois a maioria desses acordos aproxima empresas concorrentes que desejam dominar de maneira quase monopolista o seu setor.”
E como acontecem as fusões? “Como vasos comunicantes, na medida em que, pelo processo de fusões, as firmas se tornam gigantes, por meio das privatizações, os Estados tornam-se anões.”
As fusões se processam no bojo da saída dos Estados Nacionais de toda e qualquer presença desses como empreendedores e gestores do bem público. Os grandes conglomerados aproveitam-se da onda de privatizações desencadeadas pela desregulamentação da economia globalizada e liberalizada. Assim, o que antes era bem público torna-se privado, de Norte a Sul, quaisquer que sejam os governantes, de direita ou de esquerda.
“As empresas privatizadas são particularmente cobiçadas pelos investidores pois elas foram objeto de uma reestruturação financiada pelo Estado e, mais ainda, suas dívidas foram amortizadas. Elas representam posições de investimentos bastante atrativos. Em particular aquelas dos setores de primeira necessidade (eletricidade, gás, água, transportes, telecomunicações, saúde), que asseguram uma entrada de recursos regular bastante rentável, imune de risco, e onde os investimentos prévios podem durar dezenas de anos e foram feitos pelo Estado.” Leia-se, obviamente, investimentos que custaram o suor e o trabalho do contribuinte.
Assiste-se, assim, ao crescimentos de grupos gigantescos totalmente fora de controle dos Estados. A mundialização já não é capitaneada pelos Estados. Fica, diante de todo esse processo, uma pergunta básica e fundamental: “Os cidadãos podem tolerar este novo tipo de golpe planetário?”
“Uma feroz competição está em curso entre grandes grupos de comunicação. “Disso é testemunho o acordo sobre as telecomunicações, assinado em 15 de fevereiro de 1997 por sessenta e oito países em Genebra, sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (OMC), que abrirá, particularmente aos grandes operadores americanos, os mercados nacionais de dezenas de países... Mas a batalha decisiva, em escala planetária, tem como meta o controle de três setores industriais - computadores, televisão e telefonia - que convergem, em última instância, na Internet. O grupo que reinar sobre a Internet dominará o mundo da comunicação de amanhã, com todos os riscos que isso traz para a cultura e a liberdade de espírito dos cidadãos”.
O alerta é tanto mais grave quando se vê quem é o intermediário desse acordo. Nada menos que a OMC, velha conhecida por seus interesses exclusivamente comerciais. É preciso estar atento ao desenvolvimento desse acordo. Trata-se de um acordo global e mundial das comunicações. Não se trata apenas de um setor específico. E a questão ética do controle da informação se colocará de uma maneira mais forte do que nunca.”
O referido decreto elimina qualquer limite à participação do capital estrangeiro na privatização. Até então o capital nacional era majoritário sendo que ao capital estrangeiro era reservado o teto máximo de 49%. Era o limite fixado em lei (Lei Mínima das Telecomunicações) que poderia ou não ser alterado pelo Presidente. A Lei Geral das Telecomunicações lhe facilitava essa prerrogativa.
Como complemento desse decreto presidencial, “no mesmo dia, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou que os futuros operadores de serviços locais não vão mais precisar destinar 10% de seus investimentos para compras da indústria nacional e os operadores de serviços de longa distância estarão livres da mesma obrigação no montante de 5%”.
“Os interesses nacionais de vários países estão em jogo. As empresas que dominarem a prestação de serviços de telecomunicações também dominarão a tecnologia e provavelmente a fabricação de equipamentos, passando a dispor de considerável poder de mercado, tanto em relação ao público consumidor como em relação ao poder público.”
(Ignacio Ramonet, “Firmas gigantes Estados anões”, Le Monde Diplomatique, junho de 1998, pág. 1.)

9.Panorama da História Latino Americana#
A fim de melhor compreender o desenvolvimento histórico latino-americano podemos partir da apresentação de um quadro histórico geral, dividindo a história do continente em diferentes momentos que, contudo, só ganham o seu verdadeiro significado se analisados dentro de um mesmo processo.

PERÍODO PRÉ-COLONIAL
A história da América Latina começa muito antes da chegada dos europeus ao continente. Teorias afirmam que a presença humana no continente é datada por volta de 25.000 anos a.C. (quando da glaciação de Wisconsin que propiciou a baixa do nível dos oceanos e a travessia do homem do continente asiático para o americano). A progressiva ocupação do território deu origem a diferentes tipos de organizações sociais, que espalharam-se de norte a sul do continente. Tal organização variou de grupos de ameríndios que permaneceram, até o momento do contato com o homem branco, alicerçados em estruturas caçadora-coletoras até grupos que desenvolveram um complexo sistema político-administrativo, com alto nível "tecnológico" e relações sociais hierarquizadas, que deram origem a imponentes organizações estatais. As areas que abrigaram tais estruturas políticas foram basicamente a MesoAmérica (Maias e Astecas) e a região dos Andes Centrais (Incas). A agricultura possuía um papel destacado nas chamadas "altas culturas americanas". A rica ornamentação de templos e palácios, bem como adornos corporais, demonstram a prática da atividade mineradora em alguns desses grupos. Toda atividade, seja ela econômica, política ou social, nessas "altas culturas", estava atrelada a uma complexa estruturação das sociedades, compostas de diferentes classes sociais que envolvia reis, sacerdotes, funcionários públicos, artesãos, entre outros.

PERÍODO COLONIAL
Este período corresponde ao processo de conquista européia da América e inserção da mesma nos quadros do Antigo Sistema Colonial. Tal sistema impôs ao continente americano a função de produtor de matérias-primas e consumidor de manufaturados, estando sempre em uma condição de subserviência às suas metrópoles através do chamado Pacto Colonial. A América Latina passa, assim, a ser configurada nos moldes de uma colônia de exploração. A colonização do continente passou por um processo de submissão das populações locais a fim de explorar, entre outras, a sua mão-de-obra. No que se refere aos braços que supriram as metrópoles de riquezas colônias, temos basicamente dois tipo de mão-de-obra, a negra escrava africana e a indígena. O trabalho compulsório do indígena, uma adaptação das relações de serviços do período pré-colonial, dava-se através da encomienda e do repartimiento (ou mita). As atividades econômicas estavam centradas na produção de gêneros agrícolas e, principalmente, na mineração de ouro no México e prata no Peru. A fim de controlar todo o território colonial, as metrópoles adotaram sistemas político-administrativos com a criação, na Espanha, de órgãos como, por exemplo, a Casa de Contratação e o Conselho das Índias. A colônia por sua vez receberia uma nova configuração, com a divisão dos territórios em vice-reinados. Existiam, ainda, órgãos de controle local que eram chamados de cabildos.
O início do século XIX será caracterizado pelos processos de independência. Foram fatores determinantes desses processos a ocupação da Espanha por Napoleão, a tentativa de restauração do controle colonial ("reformas burbônicas") a partir da ação dos chapetones (funcionários nascidos na Espanha) e descontentamento da elite criolla. As lutas pela independência podem ser divididas em duas etapas: de 1808 a 1815 com a criação das “Juntas governativas”, organizadas pela elite criolla; e de 1817 a 1824 quando a resistência colonial ganha o apoio dos Estados Unidos (doutrina Monroe) e da Inglaterra. O sonho de Simón Bolivar de construir um grande país fracassou, em detrimento do surgimento de um número grande de diferentes Estados. Cabe destacar que a diversidade dos processos de independência é bastante grande devendo ser analisados separadamente, da rebelião de escravos no Haiti à participação dos padre Hidalgo e Morelos no caso mexicano, ou ainda a ação de San Martín na Argentina e o processo de emancipação da Província Cisplatina do Brasil dando origem ao Uruguai.

PERÍODO DA ANARQUIA
Esta pode ser caracterizada como uma fase intermediária entre as independências e a consolidação do poder nos novos Estados Nacionais. Corresponde a um momento bastante conturbado uma vez que representa as disputas entre os diferentes grupos de interesses, pela tomada de poder nos Estados recém constituídos. Podemos dizer que este período é o próprio momento de constituição dos Estados, com a elaboração das Constituições e o ordenamento da vida política. Dentro da elite que conduzia esse processo podem ser identificados, de um modo geral, dois grupos: os unitaristas (como partidários de um poder centralizador e controlador das províncias) e os federalistas (que buscavam uma autonomia maior para as províncias). Os unitaristas eram identificados, geralmente, com os latifundiários e grandes comerciantes ligados à capital que buscavam exercer uma espécie de controle metropolitano sobre o país; os federalistas vinculavam-se aos latifundiários do interior e alguns setores das camadas médias urbanas.

PERÍODO OLIGÁRQUICO
Os diferentes processos de independência acabaram por romper os laços de dependência dos territórios latino-americanos às metrópoles européias, contudo, os grupos que conduziram estes movimentos não objetivaram alterar as bases econômicas e sociais herdadas. Uma vez consolidada a independência, a elite econômica que agora controlava também o campo político, organiza o Estado conforme seus interesses. O chamado Estado Oligárquico organizou-se com base na preservação do latifúndio agro-exportador que, durante as guerras de independência e o período da anarquia, serviu como pólo de atração das populações desprotegidas, atuando como importante elemento econômico mas também de controle político e social estruturando, desta forma, o que denomina-se caudilhismo. Além do latifúndio e do poder político nas mãos de caudilhos, são características deste momento: a manutenção do modelo agro-exportador, a exclusão de boa parte da população da atividade política, a preservação de técnicas rudimentares tanto no setor rural como nas atividades extrativistas, profunda dependência dos mercados europeus, entre outras.

PERÍODO POPULISTA
Frente a impossibilidade de manutenção das estruturas oligárquicas, devido as pressões sociais e as novas exigências do mercado capitalista internacional, o Estado Oligárquico latino-americano começa a mostrar sinais de desestruturação. O crescimento das cidades e , com elas, o surgimento de novas indústrias, o desenvolvimento de um proletariado e a organização de novas classes sociais (a classe média), monstravam o cenário latino-americano em transformação nas primeiras décadas do século XX. Somam-se a tais fatores os prejuízos causados pelas duas Guerras Mundiais às frágeis e dependentes economias americanas. As novas forças políticas (operários e setores médios: estudantes, intelectuais, militares) passaram a questionar e responsabilizar a estrutura do Estados Oligárquicos pelo atraso e pelas crises econômicas. Como não poderia deixar de ser, cada realidade nacional promoveu a seu modo a transição para o novo modelo de organização político, econômica e social. Por exemplo, o México efetua essa transição a partir da Revolução de 19 10, a Argentina com a eleição de Hipólito Yrigoyen da União Cívica Radical em 1916, e, o Brasil, com o movimento encabeçado por Getúlio Vargas em 1930. Segue-se então, em boa parte dos países latino-americanos, a ruína do Estado Oligárquico, a organização dos chamados regimes populistas. Governos fortes e centralizadores sob a direção de líderes reformistas, carismáticos e com amplo apoio popular. Adotava-se uma política de conciliação entre as classes sociais com o objetivo de promover um desenvolvimento econômico. A fim de manter o apoio popular para seus projetos tais governos lançaram mão de um conjunto de limitadas reformas sociais que, deveriam ter o cuidado de não ameaçar os interesses das elites hegemônicas. Durante tal período foram feitos os investimentos em indústrias de base a fim de fornecer a matéria-prima e energia a baixo custo para a arrancada do desenvolvimento industrial autônomo que era pretendido. A fragilidade do mercado interno latino-americano, a concorrência estrangeira que aumenta progressivamente no pós-guerra, a crise nas zonas rurais e o aumento da dívida pública que acabou redundando em um processo inflacionário demonstravam os limites dos governos populistas. Podem ser apontados como principais representantes do populismo: Getúlio Vargas (1930-1945/ 1950-1954) no Brasil, Juan Domingos Perón (1946-1955) na Argentina e Lázaro Cárdenas, (1934-1940) no México. Percebemos, a partir de então, o desenvolvimento de um número considerável de movimentos sociais, que representavam as insatisfações das classes menos favorecidas ou mesmo, daquelas que foram completamente esquecidas pelo sistema. É importante destacar que o final dos anos 50, além de Já representarem um período de crise e contestação ao modelo populista, foi o momento de eclosão da Revolução Cubana (um referencial de mobilização popular e contestação ao regime que além de depor o governo de Fulgêncio Batista acabou, em 1961, assumindo o caráter socialista.)

PERÍODO DITATORIAL
Temerosa da radicalização política conduzida pelas classes populares, com o triunfo da Revolução Cubana e com a eleição de membros ligados a partidos de esquerda como foi o caso de João Goulart: no Brasil e Salvador Allende no Chile, as burguesias nacionais aliando-se a setores mais tradicionais das sociedades e contando ainda com a apoio dos Estados Unidos, convocam as Força Armadas a fim de manter a ordem econômica e social. Durante as décadas de 60 e 70, os países latino-americanos foram sacudidos com a adoção de governos militares, com raras exceções como o México - que vivia ainda sob a governo do Partido Revolucionário Institucional (PRI)- e a Nicarágua que, em 1979 conhece o triunfo da revolução sandinista (que representava os interesses de vários grupos guerrilheiros de diferentes tendências e formaram a Frente Sandinista). Em resposta a repressão imposta pelos militares e sob o signo da vitória do movimento cubano, houve o surgimento, em quase toda a América Latina, de movimentos guerrilheiros de esquerda. Cassação de direitos políticos e civis, censura dos meios de comunicação, torturas, prisões, foram elementos comuns durante este período graças, em grande medida, às práticas sugeridas pela Doutrina de Segurança Nacional (justificativa ideológica para as intervenções elaboradas nas escolas militares mantidas pelos Estados Unidos). Sob a orientação de governos militares, mandatários dos interesses das elites econômicas nacionais e do capital norte-americano, a economia conhecia um "aparente desenvolvimento". Investimentos em setores de infra-estrutura (que possuíam um papel político importante de legitimação de tais governos junto a sociedade) acabaram possibilitando urna visão de estabilidade e pleno desenvolvimento que, todavia, tentavam esconder as condições de desigualdade social e pobreza de parcelas significativas da população. O desenvolvimento latino-americano fora sustentado por capitais externos que, frente a recessão que assolou os EUA nos anos 80, fizeram, com base nos juros, aumentar significativamente a dívida externa, bem como uma queda das exportações e a evasão de capitais; o projeto econômico implantado pelas ditaduras militares mostrava os seus limites. Somava-se à crise econômica as mobilizações da sociedade civil para a retomada da normalidade democrática da vida pública; o tempo dos militares havia acabado.

A REDEMOCRATIZAÇÃO
Os governos que se seguiram ao período ditatorial acabaram por não promover profundas alterações nas conservadoras bases político-econômicas herdadas. Juntamente com a retomo à normalidade política, as nações latino-americanas observaram, na transição dos anos 80 aos 90, a implementação de um conjunto de práticas econômicas impostas pelo FMI a qual denomina-se neoliberalismo. Redução em gastos públicos, privatizações, abertura dos mercados para importações, arrocho salarial, são algumas das características deste novo modelo econômico. A formação de blocos econômicos como o NAFTA e o Mercosul ajudam a compor o atual quadro econômico no continente. Contrariando muitos críticos que denunciavam o fim da História com a queda do muro de Berlim, essa parece estar ainda mais viva. Novos movimentos sociais, juntamente com os tradicionais partidos de esquerda, buscam dar uma chance as camadas menos favorecidas da população terem acesso as mínimas condições de sobrevivência; são exemplos desses movimentos sociais o MST no Brasil e o Exército Zapatista (EZLN) no México. (ZERO HORA, 8/8/2001)

A atualidade
A América do Sul que, notoriamente, se faz palco de sucessivos conflitos cujos desdobramentos e gravidade podem vir a tornar-se um "cenário de horror" sem precedentes na história de seus povos. Instala-se, passo a passo, o cinturão da miséria, parceiro da insurreição dos segregados, adquirindo contornos sistêmicos:
1. levantes urbanos na Argentina, seguidos de crescentes estados de tensão psíquica nos diferentes segmentos da população, sem a mínima tentativa de um esforço externo, sob a forma de amparo econômico, no sentido de conter o fluxo dos dramas que lá se avolumam;
2. focos de guerrilha na Colômbia, Bolívia e Peru;
3. a rede de narcotráfico plantada e disseminada em diversas regiões do Brasil, afora conexões em rede com demais países sul-americanos;
4. incremento da pirataria econômica (falsificação industrial) como base do sistema financeiro do Paraguai;
5. proliferação de bolsões de excluídos e desempregados em todos os países do Continente;
6. instabilidade política na Venezuela e Argentina;
7. invasões de propriedade, entremeadas por práticas de violência da parte de proprietários e de violação da parte de errantes famílias marginalizadas;
8. aumento progressivo de impostos sobre setores estratégicos da economia e segmentos populacionais assalariados, inibindo numa ponta a produção e, na outra, o consumo, além de deteriorar a massa salarial do país, o que, reunindo os três vetores, inviabiliza a própria fórmula do capitalismo e qualquer política de desenvolvimento da nação;
9. crescimento da "economia informal", afetando, em cascata, a arrecadação pela União, o que acarreta crises crescentes na implementação de projetos sociais e no setor da previdência pública;
10. fragilização dos sistemas educacionais, com a oferta de modelos cada vez mais empobrecedores, sob o ponto de vista da qualidade intelectual, de modo a contribuir para a brutalização cultural;
11. constantes agressões ao ecossistema, gerando sérios problemas de caráter ambiental, o que repercute diretamente na saúde precária de populações majoritárias;
12. indícios de conflitos e de violência contra segmentos minoritários, envolvendo questões raciais e sexuais;
13. aumento de diferenças entre ricos e pobres, fato verificável em todos os países do Continente, em razão da falta de programas governamentais, à altura de redefinirem as políticas tributária e fiscal;
14. impossibilidade de, em meio a tantos impasses, dificuldades, disparidade de recursos e de problemas entre os países, promover-se, no Continente Sul, a homogeneidade monetária. A Europa, por conta de muito menos, adiou em quase uma década a fixação do euro. No caso do Continente Sul, o horizonte desse projeto está cada vez mais distante, para não classificá-lo de impossível;
15. as principais riquezas patrimoniais de que alguns países dispunham já foram sucateadas em privatizações voltadas para repasse de pagamentos da dívida externa, sem nenhum benefício revertido para as respectivas populações, principalmente as carentes em tudo.
Os 15 temas arrolados (e poderiam ser mais) traduzem o quadro de um Continente à deriva e inteiramente ignorado pela sua própria imprensa cuja tarefa tem sido, aqui e ali, pontuar notícias desvinculadas de um olhar sistêmico, impedindo que o leitor médio tenha a possibilidade de realizar criticamente mínimo exercício crítico quanto àquilo que decisivamente diz respeito à sua vida. A mídia oficial insiste na "política do avestruz", omitindo do lead de seu noticiário o "Por Quê", o "Como" e, não raro, o "Quem". Sem tais elementos fundamentais à compreensão dos problemas que atravessam o mundo, o leitor médio se torna refém da consciência do outro, o que avilta o pressuposto básico da democracia. (Ivo Lucchesi)
A média anual de crescimento da AL, entre 1945 e 1980, ficou entre 7% e 8%, e a taxa da década neoliberal ficou em torno de 3%, menor do que a da década de 1980, chamada de "década perdida". E o que é mais doloroso, dezoito anos após o desencadeamento da crise da dívida externa de 1982, a região continua com índices de pobreza e indigência vários pontos percentuais acima dos prevalecentes no início dos 80. No Brasil, o emprego declinou, em média, 0,3% ao ano, e o desemprego saltou de 5,6% para 7,2%. Em síntese, todos os dados apontam na mesma direção: baixo crescimento econômico, e aprofundamento das desigualdades, dentro de cada país, e entre a América Latina e o mundo desenvolvido.

“Segurança para as Américas”
Após o fim do período das ditaduras e a partir da década de 90, a democracia de mercado se desgastou, a crise social se agravou e a instabilidade voltou.
O terrorismo internacional, o tráfico de drogas, os fluxos migratórios e o desmatamento, definidos como “ameaças transnacionais não tradicionais”, representam o novo inimigo. Na verdade, é a instabilidade política e econômica – que sempre serviu de pretexto, historicamente, para legitimar a intervenção dos Estados Unidos e de outras nações – que “reaparece como uma ameaça potencial à segurança da região”, constatam os pesquisadores norte-americanos Joseph Tulchin e Ralph Espach E isso porque “a guerra contra os insurrectos colombianos, que controlam quase a metade do território, corre o risco de se alastrar para a Venezuela, Panamá, Equador e Brasil, provocando, dessa forma, um aumento de tensões e a presença de um excedente de tropas junto a essas fronteiras. Além do que, a política norte-americana em relação à Colômbia aponta para uma extensão das dimensões do conflito”.
A resposta a essas ameaças “não tradicionais” torna-se ainda mais urgente à medida que a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) encontra-se, atualmente, em vias de se concretizar, após a aprovação da Trade Promotion Authorityi (ex-fast track) pela Câmara dos Representantes norte-americana. Os vínculos entre a construção da Alca e uma nova “Arquitetura de segurança para as Américas” são, na realidade, estreitos, segundo constata o Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos (CSIS): “As mudanças econômicas foram mais rápidas que as mudanças em matéria de segurança, provocando uma escalada de violência por parte de populações que sobrevivem por meios ilegais.” Em se tratando de um novo desafio, “que os Estados, enfraquecidos, não podem enfrentar sozinhos”, a situação envolve a elaboração de uma política de defesa coerente para o hemisfério, definindo os objetivos e intermediários institucionais necessários para reforçar o sistema de segurança interamericano. O corte do dia 11 de setembro poderia contribuir para isso, acelerando as reformas, já iniciadas, das instituições continentais criadas no começo da guerra fria.
A aquisição de equipamento militar aumentou 300% no México e, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz (SIPRI), de Estocolmo, as despesas com armamento por parte dos países latino-americanos aumentaram em 59% desde a década de 80.
E quem irá dizer quem são os terroristas? No Brasil, os militares já acusaram inúmeras vezes o Movimento dos Sem Terra (MST) de se enquadrar nessa definição. No México, os zapatistas sofrem acusações semelhantes. O Conselho Nacional de Informações, da CIA, e o Centro de Pesquisas Militares, do Chile, identificaram “um novo desafio à segurança interna”: a ameaça indígena do México à Terra do Fogo. No dia 20 de setembro de 2001, a Inter-American Defense Board previa um cenário em que a ampliação de um conflito “poderia levar a uma guerra supra-regional de conotações étnicas e religiosas”. “Eu disse a Hugo Chávez e aos guerrilheiros colombianos que é bom tomarem cuidado”, comenta Darc Costa, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra, do Brasil.
Para Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da paz e presidente do Serviço de Justiça e Paz (Serpaj), os Estados Unidos forçam, dessa forma, “uma remilitarização da América Latina, prevendo o aumento de conflitos sociais vinculados ao aprofundamento dos acordos de livre comércio no continente”. Em setembro de 2001, o relatório do Conselho Interamericano de Defesa confirma essa preocupação, ao apontar “a pobreza extrema”, “a escalada de movimentos nacionalistas indígenas” e “o aumento do desemprego” como causas potenciais da instabilidade e da violência na região. Prevista para 2004, no México, a Conferência Especial sobre Segurança deveria homologar o papel do Conselho como única organização militar do hemisfério, “responsável pela administração das forças multilaterais” e “garantindo uma ligação efetiva entre as autoridades políticas e militares”. Uma evolução que há quem chame “recolonização”.

América Latina – pobreza e educação
A América Latina foi citada com freqüência nos eventos anti-G8, devido à gravidade de seus índices sociais. De seus 442 milhões de habitantes, 220 milhões vivem abaixo da linha da pobreza.
Duas características preocupam os analistas: é o continente onde a pobreza mais cresceu nos últimos vinte anos e onde são mais acentuados os níveis de desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres. Em apenas três anos, de 1997 a 2000, o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou em 16 milhões.
A ONU considera que são necessários no mínimo dez anos de escolaridade para uma pessoa sair do atoleiro da pobreza. A média latino-americana é de 5,2 anos. São altos os nossos índices de evasão e repetência. Os professores são mal preparados, mal pagos e pouco valorizados, como se o investimento em educação fosse a fundo perdido.
Um dado curioso levantado no ciclo de conferências da Faculdade de Arquitetura de Gênova é a rentabilidade do investimento na educação de meninas. Está provado que quanto maior o nível de escolaridade da mãe, menor o índice de mortalidades materna e infantil. Cuidados elementares de saúde estão associados à cultura.
Reduz-se ainda o risco de gravidez na adolescência quando a menina ocupa-se com os estudos. E considerando que na América Latina a tendência, sobretudo entre a população carente, é a mulher assumir a chefia da família (cerca de 30% das famílias do continente), o enfoque ganha maior relevância.
De educação o G-8 entende. O Japão, que é do tamanho do Maranhão e abriga população equivalente à do Brasil, saiu da guerra destroçado. Graças ao investimento em educação (cerca de 12% do orçamento anual), conquistou o capital de maior valor: os recursos humanos.
Nos EUA, grandes fortunas rompem o ciclo da herança para engordar fundações voltadas à educação ou criar novas universidades. Na Europa ocidental, os alunos passam, em média, oito horas por dia na escola. No Brasil, quatro.
Educação, distribuição de renda e políticas públicas de combate ao desemprego são citadas como urgentes para estancar a pobreza de nosso continente. Segundo Albert Hirschman, as políticas sociais são, quando existem, "políticas pobres para pessoas pobres". Nunca atingem as causas estruturais. (Frei Betto)

Economia – Exportações e importações
Em quase todos os países da Ásia, Europa e América do Norte a relação entre importações e exportações entre 1990 e 1997 deu-se de forma equilibrada, com taxas muito próximas, não se registrando qualquer exemplo de pais que tenha introduzido políticas de abertura unilateral dos seus mercados. Assim, apenas as economias latino-americanas praticaram o liberalismo comercial e conseqüentemente ampliaram explosivamente suas importações (estimuladas pelos subsídios cambiais e tarifários), enquanto as exportações, além de enfrentar os esquemas protecionistas do mundo rico, eram travadas as face à perda de competitividade eram determinada ela valorização artificial da moeda: as exportações da Argentina, por exemplo, cresceram 105,6 % no citado período, enquanto a expansão das importações chegou a 644,6%; as exportações brasileiras se expandiram em apenas 68,8% para um aumento de 188, 1% das importações; as vendas do Chile cresceram 101,0% e as importações 154,0%; as exportações e importações do Peru se expandiram em 110,5% e 195,7%, respectivamente; e em 34,5% e 98,6% no intercambio comercial da Venezuela.
O único caso de equilíbrio entre as taxas de crescimento do comércio no período 1990/97 no rol das economias latino-americanas de maior porte ocorreu no México (variação próxima de 140,0%); que, em situação de insolvência externa, desde 1995 já havia interrompido o programa de liberalização comercial.
A abertura comercial unilateral praticada na América Latina em meados dos anos 90 - que foi precedida da experiência mexicana de 1990/94 - provocou grandes déficits nos balanços de pagamentos dos países da região, que desaguariam em rápido crescimento do endividamento externo, além da desnacionalização das economias.

Comércio Mundial Expansão nos Anos 90
Discriminação do aumento nas exportações e importações nos anos 90/97
Exportações Importações
90/97-% 90/97-%
Total Mundial 60,1 58,7
Estados Unidos 74,7 76,1
Rússia – 1992/97 108,1 82,7
União Européia 38,3 27,2
Alemanha 24,2 27,4
Reino Unido 52,0 61,9
França 36,0 15,3
Itália 39,9 13,2
Holanda 25,6 23,8
Espanha 87,9 38,9
Ásia 147,2 141,9
Japão 45,9 43,9
Coréia do Sul 110,2 117,8
Indonésia 110,0 114,9
Filipinas 207,3 198,4
América Latina 84,3 160,8
Argentina 105,6 644,6
Brasil 68,8 188,6
Chile 101,2 154,0
México 140,6 134,7
Peru 110,5 195,7
Venezuela 34,5 98,6
Fonte: Internacional Financial Statistics, FMI, set /1998 e Yearbook de 1998.

América Latina, adios?
A América Latina nasceu para o mundo no século XX. Antes disso, pouco ou quase nada do continente tinha importância. No começo do século, alguns grandes acontecimentos fizeram o mundo descobrir a América Latina e ela descobrir a si mesma. O primeiro foi o massacre da Escola Santa Maria de Iquique, no norte do Chile, em que milhares de trabalhadores mineiros em greve foram fuzilados. Os tiros foram disparados do navio em que estavam os “negociadores” do governo chileno. As ruas de Iquique jorravam sangue pelas calçadas. Era a demonstração do governo de que não podia suportar a paralisação da principal atividade econômica do país, controlada por empresas norte-americanas.
Poucos anos depois, explodiu a maior revolução social do continente até então – a revolução mexicana, de Zapata e Pancho Villa, que determinou a pauta dos movimentos populares na América Latina durante meio século, por seu caráter nacionalista, agrário e antiimperialista. Ainda na segunda década do século, em Córdoba, na Argentina, surgiu a primeira reforma universitária, um movimento que colocava o tema da democratização da educação e da incorporação do movimento estudantil às mobilizações sociais que viriam a se generalizar nas décadas seguintes.
O continente mostrava que o novo século seria um século de revoluções e de contra-revoluções. Foi no século XX em que países do continente protagonizaram um dos mais importantes movimentos históricos dentro do capitalismo – a industrialização de países da periferia, rompendo a dicotomia que identificava países ricos com a industrialização e países da periferia com economias agrárias. Foi também o período do surgimento de projetos nacionais, de economias voltadas para o mercado interno, da construção de lideranças e de partidos populares com ideologias de raízes nacionais. Também de movimentos revolucionários na esteira da revolução mexicana, como a salvadorenha de Farabundo Martí, a nicaragüense de Augusto Cesar Sandino, a boliviana de 1952, e da mais importante de todas – a revolução cubana, de Fidel Castro e Che Guevara.
Paralelamente, a cultura latino-americana se afirmou com perfil próprio, conquistando espaço própria no cenário mundial. Prêmios Nobel de Literatura, como os da poetisa chilena Gabriela Mistral e do romancista guatemalteco Miguel Angel Asturias prenunciavam o surgimento do chamado boom latino-americano, que além de Gabriel Garcia Marquez, Júlio Cortazar e Mario Vargas Llosa, revelou ao mundo Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, entre tantos outros, além da afirmação da pintura latino-americana.
Essa grande aventura latino-americana no século XX desembocou na virada liberal das duas últimas décadas do século e desta entrada do novo século. Nunca um modelo se generalizou tanto no continente e nunca um modelo fracassou tão estrepitosamente na história da região como o modelo neoliberal. Os resultados estão à mostra: regressão nos graus de industrialização avançados, debilitamento geral dos sistemas políticos, polarização e exclusão social como nunca a América Latina havia conhecido, desemprego recorde, entrega do destino dos países do continente ao Fundo Monetário Internacional.
Decadência que se estende a vários outros planos, como o da penetração da influência cultural norte-americana como nunca havia existido, mercantilização da vida e da mentalidade de amplos estratos da população, enfraquecimento dos projetos com raiz nos países e na realidade continental, violência cotidiana, desestruturação social e comunitária, empobrecimento da educação e da saúde públicas, crises generalizadas e extensão do desalento e da baixa auto-estima.
A América Latina, nascida para o mundo no século XX, morreu neste começo de século XXI? Se continuar a se submeter ao FMI e aos bancos internacionais, se não afirmar sua identidade e integração diante da agressiva política dos EUA, se não renovar seus projetos e lideranças, se não fomentar sua cultura e todas as suas formas de expressão popular, teremos regredido ao que fomos até o século XIX. Acabou a fase dos mandatários neoliberais, tipo Menem, Fujimori, FHC. Quem os substituirá? As eleições próximas do Brasil e da Argentina podem ser esse marco de renovação ou um passo a mais no caminho da tumba.
http://agenciacartamaior.uol.com.br/boletim/boletim.asp?id=491 6/8/2002

300 perguntas e respostas sobre Cuba
Emir Sader
Cuba possuía, em 2000, um médico para cada 168 habitantes, um médico de família para cerca de 700 pessoas e um dentista para cada 1119 habitantes. A expectativa de vida no país é de 74,8 anos para os homens, e de 78 para as mulheres. A taxa de mortalidade infantil foi de 6,2 por mil nascidos vivos. Nesse ano cada cidadão cubano teve, em média, 7,2 consultas médicas. 97,8% da população tinha acesso à água potável, 96,3% tinha saneamento básico, 99,9% dos partos foram atendidos em instituições hospitalares. Todo o tratamento de saúde é gratuito, para todos, incluídos os transplantes de órgãos. A incidência de aids em Cuba é de 15,1 doentes para cada milhão de habitantes, com um total de 373 doentes.
Estes dados e muitos outros podem ser encontrados no livro Cuba - 300 perguntas - 300 respostas, de Jorge Lezcano Pérez, embaixador de Cuba no Brasil, recém publicado pela Casa Editora da Embaixada de Cuba no Brasil, com apoio do Sindaspp, do Paraná. O livro contém capítulos sobre a história de Cuba, sua geografia, economia, comércio, orçamento, colaboração e integração, investimento estrangeiro, turismo, transporte, política, economia, salário, saúde, direitos humanos, educação, esporte, cultura, biotecnologia, sistema jurídico, família, divórcio, herança, religião, habitação, migração, imprensa e meios de comunicação e relações Cuba/Estados Unidos.
O livro informa, entre outros tantos dados sobre Cuba, que no país, que registrava 23,6% de analfabetos em 1958, um ano antes da revolução, reduziu-a a 3,8% atualmente. Um em cada 7 trabalhadores é graduado universitário. Em Cuba, existem 700 mil pessoas com título universitário, o que significa que um em cada 15 cidadãos possui nível universitário. Em 2001, se graduaram nas universidades cubanas 16.472 estrangeiros.
Nesse ano estavam cursando estudos gratuitos (todo o sistema educacional cubano é gratuito e universal), com bolsas pagas pelo governo cubano, na Escola Latino-americana de Ciências Médicas, 4.856 estudantes de 24 países (incluído os EUA), que representam 42 etnias. Na Escola Internacional de Educação Física e Esportes estudavam, em 2001, com todos os gastos pagos pelo governo cubano, 891 estudantes de 71 países.

10. Dinâmica e ideologia dos EUA no mundo
Os Estados Unidos teriam a missão civilizatória de liderar todas as nações do Universo e levá-las a remodelar suas sociedades, fazendo com que “aceitem” reformar suas instituições, suas leis, seus costumes, suas economias (e até suas religiões) de acordo com os modelos norte-americanos.
A situação dos Estados Unidos da América, maior potência econômica (20% do PIB mundial e 20% das importações), tecnológica (40 mil patentes solicitadas em 2001), militar (7 mil ogivas nucleares, dezenas de bases em todo o mundo), ideológica (CNN, agências de notícias, indústria cinematográfica) e política do mundo, e a estratégia do governo George W. Bush diante das tendências do sistema mundial serão os dois principais fatores que definirão o contexto internacional das eleições brasileiras de 2002.
A dinâmica atual da sociedade norte-americana e a ideologia nela predominante têm efeitos desestabilizadores para o sistema mundial. A primeira poderia ser caracterizada pelo fato de que a economia dos Estados Unidos é a única com interesses comerciais, financeiros e de investimentos em quase todos os países do mundo, profundamente integrada em termos de fluxos comerciais (importação e exportação, com enorme déficit comercial) e financeiros (juros, amortizações, dividendos), detentora da principal moeda de reserva e dependente de forma perigosa do petróleo (50% do consumo), produto essencial a seu funcionamento. As megaempresas multinacionais americanas, por meio de fusões e aquisições, lograram alcançar posição dominante nos mercados mundiais e nacionais de serviços, de bens em geral e de produtos de alta tecnologia.
Essa situação dominante contribui para a capacidade dessas empresas de gerar “megalucros” e a permanência dessa situação depende de manter sua capacidade competitiva a qual, por sua vez, torna necessários elevados investimentos em pesquisa científica e tecnológica. Esses investimentos em pesquisa científica avançada e tecnologia de ponta são financiados pelo Estado, especialmente em programas do orçamento de Defesa, que atingiu nível recorde para o próximo ano de 2003, cerca de US$ 390 bilhões. Outra parte desse orçamento se destina à aquisição de equipamentos, o que representa uma forma de subsídio indireto às indústrias de base (siderurgia, metalurgia, computação, ótica etc), que produzem os insumos para as indústrias diretamente produtoras de armamentos. As despesas incluídas no orçamento de Defesa são financiadas pelos impostos aprovados pelos congressistas, cuja atuação é acompanhada de perto pelos eleitores, ONGs sociais e lobbies de toda sorte. E vale lembrar que o mandato dos deputados é de dois anos.
Mas há algo que tem de existir para tornar possível a aprovação legislativa desse orçamento militar e a sobrevivência daquilo que o Presidente Eisenhower denominou de “complexo industrial-militar”. É indispensável a existência real ou imaginada de um inimigo que ameace de forma crível a segurança e o bem-estar da sociedade americana e de seus interesses nacionais no exterior, os quais vão desde as vias de acesso ao petróleo até à sustentação de governos em terceiros países que sejam “simpáticos” e cooperativos com as iniciativas políticas dos Estados Unidos e que executem políticas que atendam aos interesses das megaempresas americanas. A adesão da União Soviética ao capitalismo e à democracia e a sua desintegração política e militar, bem como a nova política chinesa de atração de capitais estrangeiros e promoção do comércio exterior, geraram a necessidade de identificar um novo inimigo crível, uma nova ameaça, para a sociedade americana.
Por outro lado, a produção em grande escala de armamentos cada vez mais sofisticados e caríssimos gera a necessidade de testá-los em “condições reais” e de vender os excedentes de “gerações” ultrapassadas de equipamentos - o que, por sua vez, contribui para a instabilidade em regiões de alta tensão, como o Oriente Médio, onde o próprio aumento da tensão em conseqüência “comprova” a necessidade de elevados gastos com segurança, de um amplo orçamento de Defesa e tranqüiliza os contribuintes quanto à utilidade e ao “bom uso” dos impostos que recolhem.
Há, assim, um círculo vicioso que inclui os altos níveis de bem-estar material e o extraordinário desperdício na sociedade americana; a liderança tecnológica e econômica das empresas dos Estados Unidos nos diversos mercados; a proteção de seus interesses e do acesso a mercados externos de bens e capitais; as despesas com segurança; os investimentos em pesquisa científica e tecnológica; a “necessidade” de um inimigo crível; o clima de ameaça e de insegurança nos Estados Unidos; a instabilidade política e os conflitos armados regionais.
A ideologia predominante na sociedade americana considera que os EUA constituem a democracia mais perfeita e longeva, o mais poderoso Estado de todos os tempos, a sociedade melhor sucedida da história da humanidade, igualitária e justa, detentora dos valores da civilização judaico-cristã, liberal e religiosa, temente a Deus e por Ele abençoada. A sociedade norte-americana estaria cercada ou por sociedades que, mesmo quando reconhecidas como mais antigas - como certos países europeus e asiáticos -, seriam menos justas, menos democráticas e mais esclerosadas; ou por sociedades atrasadas, arcaicas em seus costumes, violentas e desiguais, habitadas por povos inferiores, mestiços e adeptos de religiões exóticas (e heréticas).
Assim, os Estados Unidos teriam a missão civilizatória de liderar todas as nações do Universo e levá-las a remodelar suas sociedades, fazendo com que “aceitem”, por força da persuasão ou cooptação ou coerção, reformar suas instituições, suas leis, seus costumes, suas economias (e até suas religiões) de acordo com os modelos bem sucedidos da sociedade americana.

O contexto internacional das eleições de 2002
Antes do início da desaceleração americana em 2000, as políticas econômicas neoliberais haviam começado a emitir sinais de fracasso. A rapidez da introdução das tecnologias da informação e da comunicação aliada à desregulamentação radical dos mercados de capital e de trabalho e aos programas de privatização e desnacionalização provocaram profundos desequilíbrios nos mercados e nas sociedades.
De 1945 a 1980, os Estados Unidos, diante das circunstâncias da competição ideológica, econômica, tecnológica e militar da União Soviética, procuraram defender seus interesses através do sistema das Nações Unidas, que incluiam os mecanismos de segurança coletiva, complementado por uma rede de tratados e de bases militares no mundo.
A estratégia americana incluía a contenção da União Soviética, a reconstrução econômica e política da Europa e do Japão, a difusão do “modo de vida americano” pelo controle da mídia em termos de notícia e entretenimento e a descolonização controlada, para que a independência formal e o desenvolvimento capitalista dos novos Estados periféricos se tornassem um instrumento para conter a influência comunista e nacionalista. A derrota no Vietnã, a revolução no Irã, as crises do petróleo, a estagflação nos Estados Unidos vieram preparar o terreno para o ataque ideológico e político ao keynesianismo e ao Welfare State.
A partir de 1980, os defensores do neoliberalismo econômico e de uma estratégia militar agressiva conquistaram o poder nos Estados Unidos com a vitória do presidente Ronald Reagan, sucedido por seu vice-presidente George Bush, do Texas, ex-diretor da CIA, que teve como Secretário de Defesa Dick Cheney e a Donald Rumsfeld como importante auxiliar, ambos vinculados a mega empresas texanas de petróleo. A contra-revolução ideológica neoliberal reaganiana adotou na esfera da competição Leste-Oeste uma política agressiva de supremacia militar e tecnológica (cujo símbolo era o programa Guerra nas Estrelas), de promoção e financiamento dos movimentos liberais anti-russos nos países socialistas e de auxílio financeiro e militar a movimentos contra revolucionários, como na Nicarágua e às guerrilhas fundamentalistas que lutavam contra a invasão soviética no Afeganistão.
Na esfera econômica, a contra-revolução neoliberal atribuiu as dificuldades americanas à intervenção do Estado, que distorcia e inibia o livre jogo das forças de mercado, e à competição desleal (unfair trade) de países desenvolvidos (como o Japão) ou subdesenvolvidos (como o Brasil), que fechavam seus mercados aos capitais e aos produtos americanos e se “aproveitavam” das oportunidades oferecidas pelo enorme e aberto mercado americano. Daí a legislação retaliatória para abrir mercados e supervisionar políticas econômicas de terceiros países (Trade Laws), a criação do United States Trade Representative - USTR e a política de renegociação das dívidas dos países subdesenvolvidos sob o comando do FMI e do Banco Mundial, através de “condicionalidades” e da “adoção”, por cooptação, convicção ou coerção, de programas de reformas estruturais e de ajustes econômicos rigorosos. Dessa estratégia fez parte um amplo esforço de regulamentação das políticas econômicas internas dos países da periferia, através da Rodada Uruguai que, pela primeira vez na história do GATT, incluiu entre os objetivos da negociação a definição de regras sobre serviços, sobre propriedade intelectual e investimentos, assuntos antes da competência interna dos Estados.
A estratégia americana foi bem-sucedida no curto prazo e mal-sucedida no médio e longo prazo. Assim, a União Soviética e os países socialistas foram derrotados sem luta e aderiram, pelo menos na aparência, à economia de mercado e à democracia, enquanto as elites da periferia foram estimuladas a substituir seus regimes militares por regimes democráticos, formais e oligárquicos, permeáveis à influência americana e a adotar políticas de privatização, desregulamentação, ajuste fiscal, estabilidade cambial, liberdade irrestrita para capitais especulativos e de investimentos, de acordo com o Consenso de Washington, síntese do pensamento da academia, do FMI / Banco Mundial e do governo americano sobre as políticas “corretas” para promover o desenvolvimento (e os interesses das mega empresas multinacionais americanas). Com a abertura dos mercados ex-socialistas e subdesenvolvidos periféricos, agora “emergentes”, e a revolução tecnológica da informação e das telecomunicações, a economia americana passou a se expandir a taxas elevadas, comemorando a “nova economia” das empresas de alta tecnologia e celebrando as virtudes da globalização e sua unipolaridade beneficente, processo que se verificou durante o governo democrata de Bill Clinton e que os ideólogos neoliberais saudaram como uma nova era de duração indefinida.
Todavia, muito antes do início da desaceleração americana em 2000, as políticas econômicas neoliberais haviam começado a emitir sinais de fracasso, produzindo efeitos inesperados para seus apologistas a partir da crise mexicana de 1994. A rapidez da introdução das tecnologias da informação e da comunicação em todos os setores de atividade, aliada à desregulamentação radical dos mercados de capital e de trabalho e aos programas de privatização, desnacionalização provocaram profundos desequilíbrios nos mercados e nas sociedades, agravados pela fragilização dos Estados e pelo abandono de políticas estabilizadoras e compensadoras.
Nos países desenvolvidos, em especial na Europa e no Japão, essas políticas, aliadas aos efeitos contracionistas das metas de Maastricht para a adoção do euro acarretaram crescimento modesto, desemprego elevado e exclusão social. A violência, a xenofobia, a expansão da direita e da extrema direita são os resultados de políticas inspiradas na ideologia neoliberal que, esquecendo as experiências da Grande Depressão, do nazismo, da Segunda Guerra Mundial, do keynesianismo e das políticas sociais, consagrou como virtudes absolutas o individualismo, a competência, a competitividade, o livre comércio e o progresso tecnológico, em substituição aos objetivos sociais de pleno emprego, de expansão da produção e de redistribuição gradual de renda e riqueza.
Na periferia, desigualdades de renda, deficiências de infra-estrutura, desarticulação dos parques industriais, baixo dinamismo tecnológico, fragilidade das empresas locais, deficiências do Estado, abertura irrestrita ao capital especulativo e ao investimento estrangeiro e a adoção de políticas neoliberais somente poderiam ter resultados ainda mais graves do que no centro do sistema mundial.
Esses resultados se concretizaram em uma sucessão de crises que fragilizaram e estagnaram os chamados “mercados emergentes”, e que vieram a se coroar com a crise do país que mais à risca seguira aquelas políticas e que era proclamado como um modelo: a Argentina, hoje mergulhada em um dos mais trágicos processos de desarticulação econômica, social e política da história recente. O Brasil de forma nenhuma está isento de seguir caminho semelhante ao da Argentina e aqueles “sólidos” fundamentos da economia brasileira, que as autoridades brasileiras não se cansam de proclamar contra toda a evidência de seus próprios números, são hoje contestados pelo próprio FMI que vem lançando alertas seguidos.

Miopia do FMI
Todavia, o FMI paradoxalmente, sugere, por miopia ou intenção, o agravamento da crise, pois preconiza o aprofundamento das políticas equivocadas que vêm sendo seguidas por exigência de compromissos assumidos com o próprio FMI (e com a comunidade financeira internacional).
Com a sucessão de crises nos “mercados emergentes” da periferia subdesenvolvida, com a crise social e política européia, que adquire contornos preocupantes com a vitória dos partidos de direita na Áustria, Itália, Espanha, Portugal, França, Holanda, e talvez em breve na Alemanha, com o fim da longa expansão da economia americana, a reação contra as políticas neoliberais foi se articulando nos países do centro e da periferia. Diante da crescente organização e articulação dos movimentos da sociedade civil contra as políticas neoliberais dos governantes da periferia, vistos cada vez mais como proconsules encarregados da execução dessas políticas; diante da política predatória das empresas multinacionais que participaram dos programas de privatização /desnacionalização e que, ao “modernizar”, aumentaram o desemprego, as tarifas públicas, as importações e as remessas de lucros para o exterior, as populações passaram a identificar a origem de seus males naquelas políticas e como agentes delas as empresas estrangeiras e o Governo dos Estados Unidos, diretamente ou através de agências que controla de forma cada vez mais ostensiva, tais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
Por outro lado, ao contrário da paz universal que o fim do comunismo e a era da globalização (novo Renascimento segundo sociólogo nativo) trariam, os conflitos de natureza racial ou separatista se multiplicaram dentro dos Estados e entre Estados, por razões de território, etnia ou religião.
Os Estados Unidos desencadearam, assim, ampla ofensiva persuasória, intimidatória, retaliatória para acelerar a consolidação daquelas políticas econômicas que favorecem as mega empresas multinacionais e que contribuem para o equilíbrio instável e violento da dinâmica social americana, através de várias estratégias. Em nível multilateral, procuraram lançar uma nova rodada de negociações econômicas na OMC com o objetivo de consolidar e ampliar os compromissos de abertura e desregulamentação de mercados de bens, serviços e capitais, de proteção às empresas detentoras de patentes, de desregulamentação total do comércio eletrônico etc.
Na esfera regional, desencadearam as negociações da ALCA com o objetivo de criar um território econômico único nas Américas, em que se consolide legalmente a liberdade de ação para as mega empresas multinacionais americanas, a desregulamentação de mercados e a total perda de soberania econômica (e política) dos Estados subdesenvolvidos da região, em especial o Brasil, quanto a executar uma política (inadiável) de aceleração do desenvolvimento. Em nível bilateral, prosseguiram seus esforços de apoiar a eleição de políticos que aceitassem executar as políticas neoliberais, defendendo as “conquistas alcançadas” pelo tecnicismo contabilista de “equipes econômicas”, confiáveis, treinadas em suas universidades, e leais à ideologia globalizante hegemônica. Na área militar, aceleraram os esforços de desarmar os Estados da periferia, de transformar suas forças armadas em policiais, de expandir e implementar com rigor os acordos de não-proliferação, de controlar os conflitos mais desestabilizantes como o do Oriente Próximo e da ex-Iugoslávia e de absorver os russos na OTAN e no G-8, articulando um condomínio hegemonial para a “governança global”, sob a liderança dos Estados Unidos.

A estratégia "vale-tudo" do governo Bush
Todas as restrições aos direitos civis nos Estados Unidos e em qualquer país serão válidas; o ataque militar a Estados que, supostamente, detêm armas de destruição em massa sem “autorização” norte-americana também será válido.
Após o fim do interregno democrata de Bill Clinton, em que a expansão norte-americana, o equilíbrio fiscal, e a estratégia multilateralista edulcoravam a política norte-americana, disfarçavam os seus objetivos hegemônicos de natureza permanente e os tornavam mais aceitáveis e defensáveis pela mídia e pelas elites cooptadas da periferia, a estratégia norte-americana global se reafirmou sem sutilezas, de forma agressiva e unilateral. Logo após sua posse, Bush relançou o programa Guerra nas Estrelas, agora rebatizado de Escudo de Mísseis, contrariando frontalmente o acordo ABM (Anti-Ballistic Missiles). A medida causou profunda apreensão na Europa, na Rússia e na China e desencadeou o rearmamentismo. O atual presidente dos EUA também recusou ratificar o Protocolo de Kyoto e anunciou simultaneamente um plano energético agressivo e antiambientalista; abandonou os trabalhos da Conferência sobre Racismo das Nações Unidas, assim como manifestou sua disposição de arrostar os acordos internacionais sempre que julgasse conveniente. E Bush tomou todas essas iniciativas militares sem consultar ninguém, nem mesmo a seus aliados europeus mais fiéis.
Os trágicos atentados de 11 de setembro, que provocaram imensa perplexidade, angústia e ódio na população norte-americana, trouxeram alívio para os ideólogos da nova estratégia global norte-americana. Finalmente, um novo inimigo foi identificado: o terrorismo internacional (ainda que pouco crível no longo prazo), substituto do comunismo e a União Soviética de outros tempos. A nova ameaça permitiu que se renovasse a justificativa para a continuidade da mola mestra da dinâmica social norte-americana: as despesas militares, que disfarçam o subsídio à indústria e à pesquisa científica e tecnológica. A estratégia norte-americana que definirá o contexto internacional em que se realizarão as eleições brasileiras de 2002 tem como seu centro (ainda que cada vez menos crível) a luta sem quartel contra o terrorismo internacional, suas organizações e os Estados que as apóiam. Todavia, a adoção do terrorismo internacional como o “inimigo” difuso, poderoso e elusivo, e a estratégia de enfrentá-lo por meio de luta militar direta – bem como por outros meios - abriram a caixa de Pandora da qual escaparam todos os pretextos para a violação de direitos humanos, para a violência internacional e para a insegurança de todos os Estados, inclusive dos Estados Unidos.
Os Estados Unidos passaram a definir sua estratégia de luta contra o terrorismo como uma luta em que todos os meios são válidos. Todas as restrições aos direitos civis nos Estados Unidos e em qualquer país serão válidas; a identificação como terroristas de fenômenos como o narcotráfico e a rebelião contra regimes autoritários será válida; o ataque militar a Estados que, supostamente, detêm armas de destruição em massa sem “autorização” e que, portanto, seriam aliados do terrorismo, será válido. Os EUA passaram a dividir o mundo em nações amigas, que os apóiam incondicionalmente e com entusiasmo; em nações suspeitas, que fazem ressalvas ainda que tímidas ao unilateralismo, à arrogância e ao desrespeito ao direito internacional; e em nações inimigas, aquelas que, no passado ou no presente, reagiram aos interesses e à agressão norte-americana e desafiaram sua vontade hegemônica. O arbítrio unilateral, a violência, a instabilidade e a insegurança caracterizarão o cenário internacional.
A desaceleração, o lento e irregular crescimento e as falsas, apressadas ou fugazes notícias de recuperação da economia norte-americana prosseguirão se alternando até o final de 2002, alimentados pela insegurança gerada pela própria estratégia antiterrorista norte-americana, pela exaustão do ciclo de expansão gerado pelas novas tecnologias e pela crescente instabilidade na periferia causada não só pela catástrofe argentina, mas também pela crise latente em vários outros países que ameaçam não honrar seus compromissos ou adotar políticas restritivas à livre movimentação de bens e de capitais estrangeiros.
Neste quadro internacional e no quadro nacional americano se entendem as iniciativas do Presidente George Bush, em realidade de natureza neokeynesiana, de redução agressiva da taxa de juros (com a cooperação de Alan Greenspan), do anúncio de futuras despesas militares como a invasão do Iraque em 2003, de amplos subsídios à agricultura e à indústria (através do orçamento militar e do programa Escudo de Mísseis). Não se pode esquecer a estratégia renovada dos EUA de abrir mercados através das negociações multilaterais da OMC, regionais da ALCA e bilaterais com o Chile e Uruguai, ao mesmo tempo em que protegem o emprego e o nível de atividade econômica doméstica através do protecionismo, como no caso do aço e do Farm Bill, e agora em breve do novo TPA (Trade Promotion Authority).
A política antiterrorista norte-americana, apesar de seus trágicos e duradouros efeitos sobre o conflito no Oriente Médio, agora se expande para acusar o Irã de ser o principal patrocinador do terrorismo e a Cuba de ser detentora de armas biológicas, o que se completa com o anúncio feito pelo vice-Presidente Dick Cheney de um próximo e certo ataque terrorista aos Estados Unidos, o qual, porém, não sabe onde ou quando ocorrerá. Essa política gera extraordinária instabilidade e cria enorme apreensão na União Européia devido a suas possíveis conseqüências em relação à retaliação norte-americana. A Europa, no entanto, vê a maioria dos governos de países importantes se inclinarem para a direita, como é o caso da Áustria, Espanha, Portugal, Itália, França, Dinamarca, Holanda e talvez, em breve, da Alemanha. Esses governos de direita, com suas retóricas e políticas ostensivamente antiárabes, anti-sociais e antiimigrantes tendem a agravar o clima de conflito político e de instabilidade econômica na Europa. Tony Blair, paladino da defunta Terceira Via, se enquadra no mesmo grupo pelo seu alinhamento incondicional com a política exterior norte-americana. Certamente, não se poderia afirmar que na Europa há condições propícias a taxas de crescimento mais elevadas que pudessem vir a contribuir para a recuperação norte-americana e mesmo para efeitos favoráveis em termos comerciais e financeiros para a América do Sul e o Brasil, em 2002.
Se de um lado a política norte-americana tem esses efeitos desestabilizadores sobre a economia européia, ela também dificulta a recuperação econômica do Japão, que teria conseqüências importantes sobre os demais países asiáticos a ele vinculados por importantes laços de comércio e investimento. A situação do Japão, imerso em prolongada crise de superpoupança e que vem resistindo a todo tipo de estratégia de reanimação tentada pelo governo japonês, se agrava com a política norte-americana. Por outro lado, a inclusão da China e da Rússia na lista do Departamento de Defesa dos países que poderiam ser alvo de ataques nucleares preventivos estimula programas de rearmamento preventivo nesses dois países. E estes, por sua vez, desencadeiam corridas armamentistas entre China /Japão, China/Índia, China/Taiwan, Rússia/China, as quais, por sua vez, estimulam programas de armamentos em atores menores da política regional na Ásia que têm disputas de fronteira entre si ou com países maiores, o que agrava a instabilidade política mundial.
A situação no Oriente Próximo, se não se tornar explosiva, continuará pelo menos em estado de alta tensão enquanto permanecer a política de Ariel Sharon de consolidar pela força militar a ocupação do território palestino. O premiê israelense insiste também em instalar novas colônias e de expulsar os habitantes palestinos. E essa postura deve continuar enquanto o apoio implícito permanente (por vezes explícito da sociedade e do governo norte-americano) continuar forte por meio da ajuda financeira e militar, da ideologia antiterrorista dos EUA e da necessidade do governo Bush de retomar o controle do Congresso, que é de grande importância para a caminhada política até a eleição presidencial em 2004. Os preços internacionais do petróleo que podem vir a explodir como conseqüência de uma evolução desfavorável da situação no Oriente Médio deverão permanecer em níveis elevados, pois a nova situação de abastecimento - a partir da expansão da produção russa, dos países do Mar Cáspio e das novas condições de exploração na Venezuela (o que quase ocorreu) e no México - não deverá ser verificada ainda em 2002.

Um momento excepcional para o Brasil
Os riscos para as perspectivas de futuro de um país como o Brasil dessa política imperial hegemônica são crescentes e significativos, pois o temor reverencial e o complexo de inferioridade de setores importantes das elites podem fazer com que se concretize o mote da canção d´O Rappa: “quem não reage, rasteja”.
Os países vizinhos do Brasil na América do Sul - que constituem o principal mercado para nossas manufaturas, a área geográfica mais importante para a atuação de nossas empresas de serviços, em especial de construção e a fonte de suprimentos importantes de produtos primários como o petróleo, o gás, a energia elétrica e o trigo - apresentam situações econômicas distintas e graves. Eles possuem características comuns que decorrem de estruturas econômicas semelhantes e de tentativas de implementar políticas muito parecidas (e equivocadas).
A primeira característica comum a todos esses países - que agora também se aplica à Argentina e ao Uruguai - são os elevados índices de concentração de renda e de riqueza, em termos de propriedade agrária, urbana e de títulos, e que hoje se expressa nos elevados percentuais da população de cada um desses países, em geral superior a 30%, que sobrevive abaixo da linha de pobreza de US$ 2 por dia.
A concentração de riqueza e renda está hoje acompanhada por uma acelerada urbanização. As cidades estão enormes. Dentro de confusos aglomerados, existem pequenos centros urbanos em que as condições de vida são de qualidade internacional, sitiado por uma massa gigantesca de casebres onde apenas sobrevivem populações marginalizadas, desempregadas, envolvidas pelo crime e o narcotráfico, em estado precário de saúde, habitação, educação e politização.
Em geral, na maior parte dos países da América do Sul essas populações marginalizadas são de origem indígena, africana ou mestiça. Essa situação às vezes corresponde a uma fissura política de natureza regional, com conotações raciais e econômicas como, por exemplo, o antagonismo antinordestino em São Paulo a que corresponde o ressentimento antipaulista ou anti-sulino nos Estados do Norte-Nordeste.
Uma segunda característica desses países vizinhos é sua frágil estrutura econômica com base principal na mineração (vários desses países são produtores de petróleo) ou na agropecuária tropical ou temperada. Apesar dos esforços de diversificação, sua pauta exportadora está concentrada em poucos produtos primários ou em commodities industriais de baixo valor agregado. Seus principais vínculos de comércio são com vizinhos mais próximos ou com os mercados dos Estados Unidos e da Europa, em um resquício colonial, enquanto sua pauta importadora é constituída em grande medida por bens de consumo e bens intermediários. Os parques industriais desses países se caracterizam pela presença predominante de fábricas de bens de consumo leves, não-duráveis, enquanto suas indústrias de base ou de bens de capital, como a siderurgia e a petroquímica são, quando existem, diminutas, com raras exceções - como são os casos da Venezuela e da Argentina.
Uma terceira característica da maior parte dessas sociedades é o seu crescimento demográfico a taxas ainda relativamente elevadas e a incapacidade do sistema econômico de gerar empregos tanto no campo (de onde a guerrilha, o latifúndio, as precárias condições de vida e a mecanização da agricultura expulsaram muitos habitantes) como na cidade, o que agrava o desemprego e a marginalidade urbana.
Uma quarta característica comum ao Brasil e a seus vizinhos foi a adoção de políticas econômicas neoliberais, como conseqüência da renegociação de suas dívidas externas e da imposição de programas econômicos pelo FMI e pelo Banco Mundial, que vêm sendo executados em especial a partir de 1982 (após a crise mexicana), mas que se intensificaram a partir de 1989: na Venezuela, com Carlos Andrés Peres; na Bolívia, com Paz Estensoro; na Argentina, com Carlos Menem; no Peru, com Alberto Fujimori; no Brasil, com Collor de Melo, mas também no Uruguai, no Paraguai, na Colômbia e na Venezuela. Esses programas foram, em geral, executados por “equipes econômicas” integradas por economistas que estudaram em universidades americanas. Muitos deles trabalharam em agências internacionais como o FMI, o Bird e o Banco Mundial, que assumiriam uma atitude tecnocrática e pretensamente acima da política e dos interesses tradicionais. A articulação e execução política dessa estratégia ficaram a cargo de políticos muitas vezes de passado esquerdista ou nacionalista e que, chegados ao poder, se converteriam radicalmente ao neoliberalismo, sem jamais reconhecerem isto.

Os programas econômicos executados em todos os países vizinhos ao Brasil na América do Sul (e no Brasil também) tinham como metas principais: (a) ajuste fiscal para reduzir e eliminar a inflação, fonte de todos os males; (b) redução da dimensão do Estado, fonte de muitos males, inclusive do autoritarismo, através da privatização, da desregulamentação e de sua reforma institucional; (c) eliminação de barreiras não-tarifárias, redução acelerada, radical e unilateral de tarifas alfandegárias e ingresso no Gatt para consolidá-las; (d) adoção de um regime de taxas fixas ou semi-fixas de câmbio, em geral, sobrevalorizado; (e) livre movimentação de capitais e eliminação de qualquer distinção legal entre empresas de capital nacional e estrangeiro; (f) desregulamentação (flexibilização) do mercado de trabalho pela eliminação de leis de proteção, consideradas como causa do desemprego; (g) utilização da negociação de áreas de livre comércio, tais como o Mercosul, a Comunidade Andina e a Alca, como forma de consolidar a abertura externa e a desregulamentação da economia.
Na esfera político-militar, a maioria dos países da região, com maior ou menor entusiasmo, procurou alinhar sua política externa com a política dos Estados Unidos e assim: (a) aderiram aos tratados assimétricos de não-proliferação de armas de destruição em massa; (b) aceitaram as teorias militares de segurança cooperativa e das “novas ameaças”; (c) promoveram a redução de despesas militares e dos efetivos de suas Forças Armadas; (d) acataram a idéia de transformar as Forças Armadas em forças de natureza policial de combate ao narcotráfico e ao crime organizado; (e) aceitaram a cláusula democrática na OEA e em Quebec - a qual, apesar de sua nobre intenção, pode servir de instrumento para articular intervenções coletivas; (f) apoiaram os Estados Unidos em suas iniciativas internacionais em relação às chamadas novas ameaças, nas operações do Golfo e do Kosovo e nas votações nas Nações Unidas; (g) desenvolveram programas de erradicação das plantações de coca e se engajaram em combate implacável a movimentos de guerrilha, como no caso do Peru.
As reformas econômicas apareceram como muito exitosas, em seus primeiros anos, quando medidas pela queda drástica das taxas de inflação, pela redução dos déficits orçamentários, pelo enorme ingresso de capital estrangeiro, pelas taxas de crescimento econômico que voltaram a ser positivas ainda que modestas.

Todavia, talvez a partir da crise mexicana de 1994, a situação dos países sul-americanos vizinhos ao Brasil passou a apontar sintomas semelhantes de estagnação e de crescente possibilidade de crise externa de pagamentos. Em todos esses países, com maior ou menor intensidade, ocorreram: (a) aumento pouco significativo da capacidade instalada, pois o capital estrangeiro se dirigiu em grande parte à aquisição de empresas existentes, em especial estatais; (b) acentuada desnacionalização da economia, em especial em setores de infra-estrutura que foram privatizados; (c) expansão do desemprego, do subemprego e da marginalização devido à automação e à “racionalização”; (d) pequena expansão em valor das exportações e grande expansão das importações, com déficit comercial significativo; (e) dolarização progressiva, ostensiva ou disfarçada, da economia; (f) lento crescimento econômico e até estagnação e recessão; (g) desarticulação das agências do Estado; (h) evasão crescente de divisas e de cérebros; (i) incremento do narcotráfico, crime organizado e tráfico de armas; (j) eclosão de rebeliões indígenas, agravamento de conflitos sociais e animosidade racial; (k) proliferação da corrupção em altos escalões do Governo e em setores empresariais.

O contexto regional da América do Sul nesse período que precede as eleições presidenciais no Brasil, em 2002, é de estagnação econômica, grave inquietação social e política, intervenção e interferência estrangeira, reanimação de movimentos guerrilheiros e descrédito das instituições políticas. A democracia formal é vista cada vez menos como regime capaz de promover o desenvolvimento e de romper com o poder das velhas estruturas oligárquicas parasitárias e cada vez mais como regime que garante sua sobrevivência e cria novas oligarquias financeiras que exploram e asfixiam as sociedades, desarticuladas e conflituosas. Cada país, naturalmente, vive uma conjuntura histórica específica, mas são todos vítimas (maiores ou menores) do fracasso das políticas econômicas neoliberais impostas pela aliança entre as elites locais, o FMI, os Estados Unidos e potências européias, que viram a possibilidade de se apropriar do patrimônio público acumulado, de realizar grandes negócios neste processo e de abalar as bases de um eventual desenvolvimento econômico sustentado e acelerado que viesse a permitir a construção de um bloco sul-americano que pudesse gozar de razoável autonomia econômica e política.
Este processo sul-americano, diante do novo contexto mundial e da estratégia norte-americana no mundo multipolar, enfrenta três grandes articulações estratégicas que continuarão a se desenrolar este ano e que prosseguirão em 2003, no próximo governo. A primeira é a intervenção militar direta dos EUA na América do Sul, a partir do pretexto de combate às guerrilhas na Colômbia e ao narcotráfico, que faz parte de uma operação mais ampla que pode se estender com facilidade ao Peru, à Venezuela e ao Equador, e cujo objetivo final é a instalação de bases militares permanentes na região, com essa aparência ou não, como poderiam ser a base Alcântara e a base na Patagônia argentina. A segunda é a consolidação jurídica da “abertura” desregulamentada das economias sul-americanas, que têm permitido a desinibida atuação de megaempresas multinacionais por meio da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais de comércio, como a Alca, e de acordos de garantia de investimentos. Essa consolidação se faria também pela criação de instituições independentes, como o Banco Central e as agências reguladoras “técnicas”, os quais garantiriam a perpetuação dessas políticas. A terceira é garantir a continuidade das políticas econômicas neoliberais executadas pelas equipes econômicas quando ocorrem processos eleitorais legitimadores da democracia formal, ou a desestabilização de governos que a elas se opõem ou que a elas venham a se opor, com o apoio de elites locais beneficiárias. É o caso da Venezuela, mas que pode vir a ser o de outros países onde a crise venha a exigir o abandono das políticas do FMI, como é o caso da Argentina, Uruguai e talvez do Brasil.
A desagregação patente do Mercosul esfacela o mito da “integração aberta” neoliberal como forma de organizar a sub-região com o objetivo de fazê-la participar de modo mais eficaz das negociações econômicas e políticas internacionais. A Tarifa Externa Comum do Mercosul se transformou em verdadeira “peneira”, tal o número de perfurações: o Uruguai e o Paraguai não escondem seus ressentimentos em relação ao “unilateralismo” das decisões de política econômica adotadas, sem consulta, pelo Brasil e Argentina. A mesma Argentina e agora o Uruguai, para se recuperarem de sua crise econômica, certamente desejarão (com ou sem razão) poder exercitar uma política comercial ativa e independente do Brasil, devido à diferença radical de circunstâncias e de estrutura econômica, o que torna difícil supor a sobrevivência da TEC, a não ser como um símbolo insepulto de uma utopia neoliberal. Apesar de reiteradas declarações sobre a importância dos vínculos com o Brasil, existe em círculos uruguaios e argentinos o desejo de negociar acordos de livre comércio bilaterais com os Estados Unidos, o que revela com clareza a opinião pessimista deles sobre as perspectivas do Mercosul.
Em nível político-militar regional, a estagnação econômica nos países vizinhos do Brasil leva à instabilidade social e política, aos movimentos de protesto popular, à possibilidade de “soluções” autoritárias e de emergência de movimentos de guerrilha. Esta situação afeta a segurança nas fronteiras brasileiras e torna provável sua violação, o que contribui para aumentar a inquietação das Forças Armadas diante da contenção de despesas militares, e torna a região, como um todo menos atraente para investimentos diretos. Em especial no momento em que qualquer tentativa de prosseguir com o processo de privatizações se tornou quase que impossível na prática, devido às resistências sociais e aos escândalos do passado.
O contexto econômico mundial será de crescente protecionismo comercial nos países desenvolvidos, instabilidade nos mercados mundiais de produtos primários, retração de capitais financeiros e investimentos diretos, lento crescimento da economia mundial e agravamento da crise nos países da periferia. O contexto político-militar mundial que deverá prevalecer quando da realização das eleições brasileiras de 2002 será de crescente instabilidade política, violência e arbítrio unilateral, gerado e alimentado pela dinâmica e ideologia da sociedade americana e de sua estratégia internacional antiterror, que estimula corridas armamentistas e o agravamento das campanhas antiguerrilha, com a intervenção americana militar direta, como está ocorrendo nas Filipinas, na Indonésia e na Colômbia.
As dificuldades para o Brasil gerar um superávit significativo, de enfrentar o déficit em transações correntes, e de reduzir a taxa de juros, medidas indispensáveis para retomar o crescimento e afastar a crise, tendem a se agravar. A dependência da captação de US$ 50 bilhões para “fechar” as contas externas mantém o governo brasileiro refém das classificações das agências de risco, das avaliações dos megabancos internacionais e da estagnação econômica no centro do sistema mundial. O círculo é vicioso: quanto maior a dificuldade em atrair capitais, por mais tempo os altos juros serão mantidos, mais aumenta a dívida pública interna, mais se desacelera a economia, mais se amplia o desemprego, mais a economia se torna desinteressante aos capitais estrangeiros, mais aumenta a dolarização da dívida e se reduzem seus prazos, mais aumenta a tributação, mais se agravam os problemas sociais, mais aumenta a insegurança e violência social e sua percepção pelos investidores, mais aumenta a percepção dos investidores da possibilidade crescente de “default” e maior a dificuldade em atrair capitais e assim se retorna ao início do círculo, cada vez a um degrau acima de gravidade.
Uma tendência extremamente grave da política internacional americana é a substituição de sua política tradicional de persuasão sutil/intimidação discreta/agressão modulada por uma política de intimidação aberta/exploração/subordinação dos países em desenvolvimento e de “abandono” dos países da periferia que, mesmo sem se oporem à política norte-americana, venham a enfrentar crises econômicas graves. A política tradicional dos EUA tinha como objetivo manter o equilíbrio do sistema mundial, que vem gerando a concentração de poder em seu centro, por meio de uma grande estratégia cujos objetivos (retóricos ou sinceros) eram a promoção do desenvolvimento econômico, a luta contra a pobreza, a redução da desigualdade no mundo, a luta pela paz e o desarmamento, a luta em favor da democracia e dos direitos humanos. Esses objetivos conferiam à hegemonia norte-americana, e a seus aliados europeus, um caráter benévolo e justificável, que permitia cooptar elites nos distintos países para apoiar e defender aqueles objetivos. Essa política de hegemonia magnânima e compartilhada parece ter sido substituída por uma hegemonia imperial unilateral, darwinista e agressiva. Os riscos para as perspectivas de futuro de um país como o Brasil dessa nova política imperial hegemônica são crescentes e significativos, pois o temor reverencial e o complexo de inferioridade de setores importantes das elites podem fazer com que se concretize, na política, o mote da canção d´O Rappa: “quem não reage, rasteja”.
Há, todavia, sinais tênues de esperança. De um lado, vale ressaltar a reação do Partido Democrata nos Estados Unidos - que procura abalar a unanimidade do apoio da opinião pública a George W. Bush, com investigações sobre corrupção empresarial, sobre a incompetência do FBI e da CIA e o conhecimento do governo a respeito dos ataques terroristas de 11 de setembro do ano passado e seu descaso ou omissão (não importa se proposital ou não). De outro lado, temos a retomada da articulação das ONGs em todo o mundo contra o arbítrio, a violência e a consagração do neoliberalismo selvagem.
Assim, vive a sociedade brasileira um momento excepcional que permite refletir sobre os caminhos a serem trilhados a partir de 2003. Podem ver os brasileiros em seu vizinho, a Argentina, o resultado extremo das políticas econômicas que aqui, no Brasil, se insiste em executar. Segundo: podemos todos perceber que o alinhamento político com as grandes potências não assegura sua gratidão e nem recompensa. Em terceiro lugar, a natureza da política hegemônica imperial está mais clara. Agora, ela é exercida sem disfarces, com o objetivo de acentuar as assimetrias de poder, consagrando formalmente os privilégios. Vemos que o mercado prefere o lucro à democracia, como declarou George Soros, símbolo da especulação mundial. Nós, contudo, preferimos a democracia acima do mercado, a civilização acima da barbárie, a justiça acima do arbítrio.
*Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-chefe do Departamento Econômico do Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty (Agência Carta Maior maio-junho 2002)

Outra carta
Carta enviada ao Presidente dos EUA por Robert Bowan, bispo da Igreja Católica da Florida, Tenente Coronel e ex-combatente de Vietnam e que voou em 101 missões no Vietnam: No documento Robert Bowan pede ao mandatário norte-americano que fale a verdade ao povo dos Estados Unidos e explique a eles que o terrorismo se volta contra o país "porque, na maior parte do mundo o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvo dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas."
Confira abaixo a íntegra da carta:
"Senhor Presidente:
Conte a verdade ao povo, senhor Presidente, sobre o terrorismo. Se as ilusões acerca desse tema não forem desfeitas, então a ameaça continuará até nos destruir completamente. A verdade é que nenhuma das nossas muitas armas nucleares pode proteger-nos dessas ameaças. Nenhum sistema "Guerra das Estrelas" (não importa quão tecnicamente avançado seja, nem quantos trilhões de dólares sejam despejados nele) poderá proteger-nos de uma arma nuclear trazida em barco, avião, ou carro alugado.
Nenhuma arma sequer do nosso vasto arsenal, nem um centavo sequer dos US$ 270.000.000.000,00 (isso mesmo, duzentos e setenta bilhões de dólares), gastos por ano no chamado "sistema de defesa", pode evitar uma bomba terrorista. Isto é um fato militar.
Como tenente-coronel reformado e freqüente conferencista em assuntos de segurança nacional, sempre tenho citado o salmo 33: "Um rei não é salvo pelo seu poderoso exército, bem como um guerreiro não é salvo por sua enorme força". A reação óbvia é: "Então o que podemos fazer? Não existe nada que possamos fazer para garantir a segurança do nosso povo?" Existe. Mas para entender isso, precisamos saber a verdade sobre a ameaça.
Sr. Presidente, o senhor não contou ao povo norte- americano a verdade sobre o porquê de sermos alvo do terrorismo, quando explicou por que bombardearíamos o Afeganistão e o Sudão. O senhor disse que somos alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos no mundo...
Que absurdo, Sr. Presidente!
Somos alvo dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvo dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas.
Em quantos países, agentes do nosso governo depuseram líderes eleitos pelos seus povos, substituindo-os por militares ditadores, marionetes desejosas de vender o seu próprio povo a corporações norte-americanas multinacionais?
Fizemos isso no Irã, quando os Marines e a CIA depuseram Mossadegh, porque ele tinha a intenção de nacionalizar a indústria de petróleo. Nós o substituímos pelo Xá Reza Pahlevi e armamos, treinamos e pagamos a sua odiada guarda nacional, Savak, que escravizou e brutalizou o povo iraniano para proteger o interesse financeiro das nossas companhias de petróleo. Depois disso, será difícil imaginar que existam pessoas no Irã que nos odeiem?
Fizemos isso no Chile. Fizemos isso no Vietnam. Mais recentemente, tentamos fazê-lo no Iraque. E, é claro, quantas vezes fizemos isso na Nicarágua e outras repúblicas na América Latina?
Uma vez atrás da outra, temos destituído líderes populares que desejavam que as riquezas da sua terra fossem repartidas pelo povo que as gerou. Nós os substituímos por tiranos assassinos que venderiam o seu próprio povo para que, mediante o pagamento de vultosas quantias para engordar as suas contas particulares, a riqueza da sua própria terra pudesse ser tomada similarmente aos casos Domino Sugar, United Fruit Company, Folgers e por aí adiante.
De país em país, o nosso governo obstruiu a democracia, sufocou a liberdade e pisou os direitos humanos. É por isso que somos odiados em todo o mundo. E é por isso que somos alvo dos terroristas.
O povo do Canadá desfruta da democracia, da liberdade e dos direitos humanos, assim como o povo da Noruega e da Suécia. O senhor já ouviu falar de embaixadas canadenses, norueguesas ou suecas a serem bombardeadas? Nós não somos odiados porque praticamos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Nós somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países de terceiro mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas corporações multinacionais.
Esse ódio que semeamos virou-se contra nós para nos assombrar na forma de terrorismo e, no futuro, terrorismo nuclear. Uma vez dita a verdade sobre o porquê da ameaça existir e ter sido entendida, a solução torna-se óbvia. Nós precisamos mudar as nossas práticas. Livrarmo-nos das nossas armas nucleares (unilateralmente, se necessário) irá melhorar nossa segurança. Alterar drasticamente a nossa política externa irá assegurá-la.
Em vez de enviar os nossos filhos e filhas pelo mundo afora para matar árabes, de modo a que possamos ter o petróleo que existe sob as suas areias, deveríamos mandá-los para reconstruir as suas infra-estruturas, fornecer água limpa e alimentar crianças famintas.
Em vez de continuar a matar milhares de crianças iraquianas todos os dias, com as nossas sanções econômicas, deveríamos ajudar os iraquianos a reconstruir suas estações elétricas, as suas estações de tratamento de água, os seus hospitais e todas as outras coisas que destruímos e que os impedimos de reconstruir com as nossas sanções econômicas.
Em vez de treinar terroristas e esquadrões da morte, deveríamos fechar a Escola das Américas. Em vez de sustentar a revolta, a desestabilização, o assassínio e o terror por todo o mundo, deveríamos abolir a CIA e dar o dinheiro gasto por ela a agências de assistência.
Resumindo, deveríamos ser bons em vez de maus. Quem iria tentar nos deter? Quem iria nos odiar? Quem iria querer nos bombardear?
Esta é a verdade, Sr. Presidente.
É isso que o povo norte-americano precisa ouvir.
Robert Bowan - arcebispo de Boston


11. América do Sul, Ásia e África: o mundo mudou pouco para eles
Os atentados de setembro, que chocaram a todos e, muito em especial, aos admiradores do Império, não alteraram as grandes tendências do sistema internacional, como a oligopolização de mercados mundiais por megaempresas
Os acontecimentos mais relevantes para o mundo em 2001 foram os atentados de setembro, que analistas precipitados e a imprensa mais ligeira consideram ter mudado radicalmente a face do mundo, de forma mais profunda que o fim da União Soviética. Seria uma nova era, disse alta autoridade brasileira, seria o início do Século XXI, disseram outros.
Os atentados de setembro, que chocaram a todos e, muito em especial, aos admiradores do Império, todavia não alteraram as grandes tendências do sistema internacional: o acelerado progresso científico e tecnológico; a oligopolização de mercados mundiais pelas mega empresas; a concentração de poder econômico e militar; o esforço americano de normatização internacional para consolidar a abertura de mercados para as mega empresas.
Porém, mudaram e muito, sim, a imagem dos Estados Unidos. Os atentados levaram a guerra e a destruição que assolam há décadas o Oriente Próximo, ao território e à população norte-americana, que antes se consideravam invioláveis. Os atentados contribuíram para legitimar o governo de George Walker Bush, fruto de eleições contestadas; enterraram as políticas econômicas liberais; ressuscitaram o keynesianismo em grande escala; consagraram a política externa unilateral e intervencionista; justificaram amplos programas de subsídio ao complexo industrial-militar-tecnológico e, finalmente, revelaram a fragilidade dos direitos civis nos Estados Unidos.
O acontecimento mais relevante para o Brasil, todavia, foi a longa agonia argentina, nação de orgulhoso passado. A Argentina foi vítima do modelo econômico e político neoliberal, promovido pelos Estados Unidos, imposto pelo Fundo Monetário Internacional e executado por tecnocratas locais, formados em universidades americanas, em processo de cooptação que teria origem nos programas patrocinados pela Aliança para o Progresso nos anos 60. A agonia argentina, para bom entendedor, deveria alertar o Brasil para o fracasso do modelo neoliberal do Consenso de Washington, para o fracasso do alinhamento político incondicional, para o fracasso da inserção subordinada como exportador agropecuário na economia mundial. A fome e o desespero explicam a onda de saques e amaldiçoam a tecnocracia alienada.
O Mercosul têm sido a vítima da longa crise econômica argentina, da ilusão vizinha de manter a paridade legal peso-dólar, dos sonhos da Alca, da insistência brasileira e argentina em recusar transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração. No imaginário público, o Mercosul perdeu o brilho.
Na América Latina, outro fato de grande relevância, mas ainda dentro de sua “casca”, foi o início de ampla operação de desestabilização do Governo Hugo Chavez na Venezuela. Chavez, apesar de eleito e reeleito, com a presença severa de observadores internacionais, e mantendo amplo apoio da população pobre e explorada pelas oligarquias corruptas, sofre agora a ação, orientada e estimulada de fora, de contestação a seu mandato, acusado de ser presidente de um novo tipo de “democracia autoritária”, conceito elaborado pela academia do centro e difundido pela mídia periférica.
Na África, continente à deriva e abandonado pelas Grandes Potências, ocorreu em Durban, África do Sul, a Conferência das Nações Unidas sobre o Racismo, onde, como fato de grande simbolismo, os Estados Unidos se retiraram por considerar as posições árabes a respeito de Israel como inaceitáveis. De sua parte, os europeus se negaram terminantemente a examinar o tema das reparações pelos danos causados pela escravidão, que vitimou número muito maior de seres humanos do que o regime nazista alemão.
No Oriente Próximo, a eleição para Primeiro-Ministro de Israel do General Ariel Sharon, cuja biografia guarda o massacre de mulheres, crianças e velhos em acampamentos palestinos, prenunciava o acirramento do conflito árabe israelense. Sharon desencadeou a Intifada com sua visita provocativa à Esplanada das Mesquitas em Jerusalém. Lidera com entusiasmo a extrema direita, fundamentalista e expansionista, que pretende incorporar de fato, em desafio à ONU e com o apoio dos Estados Unidos, os territórios conquistados na guerra de 1967, através da prática do terrorismo de Estado contra as populações civis palestinas. Infelizmente, após um momento fugidio de lucidez, os Estados Unidos não compreenderam que a raiz do terrorismo islâmico está na ocupação ilegal dos territórios e na política deliberada de sua absorção, cuja reversão depende de decisão americana.
Na Ásia, a ação de extraordinária violência dos Estados Unidos contra o Afeganistão foi, em realidade, a punição pelo crime de desobediência ao Império americano, um aviso aos demais povos da periferia e uma exibição de poder tecnológico às demais Grandes Potências. A pretexto de punir o Taleban, de exterminar a Al Quaeda e eliminar Bin Laden, acabou por vitimar a desafortunada população civil do Afeganistão. Os seus efeitos a médio prazo destas ações, inclusive com a instalação de bases militares permanentes americanas na região, terão graves conseqüências para o Paquistão, a Índia e a China e para os países do Mar Cáspio, inclusive a Rússia.
Em 2001 se encerrou o longo ciclo de expansão da economia americana e teve início a recessão sincrônica, considerada a mais profunda desde 1980, nos três principais centros da economia mundial: os Estados Unidos, a Europa e o Japão. Esse fato veio contrariar o sonho dos economistas de que a economia americana continuaria em seu processo de expansão dos últimos dez anos de forma ininterrupta, graças aos produtos da chamada “nova economia”, isto é, da tecnologia da informação.
Quanto ao meio ambiente, a recusa do presidente George W. Bush de enviar ao Senado o Protocolo de Kyoto, que estabelece as metas de redução de emissão de gases estufa, foi exemplo claro do novo unilateralismo da política externa republicana. Os Estados Unidos têm exigido que países como a China, a Índia e o Brasil tenham também metas de redução de gases, apesar de sua pequena responsabilidade histórica e atual para o acúmulo desses gases na atmosfera. O curioso é que, nos últimos anos, a China e o Brasil, por exemplo, reduziram significativamente suas emissões, enquanto os Estados Unidos as aumentaram em muito.
No campo do desarmamento mundial e dos programas de subsídio à indústria, à ciência e à tecnologia, o fato notável foi a ampliação do programa NMD (National Missile Defense) pelo presidente Bush. Esse programa, que será implantado com complexa rede de sensores, radares, mísseis e satélites, nos Estados Unidos e fora dele (quem sabe também na América do Sul), supostamente para defender os Estados Unidos de mísseis lançados por Estados “renegados”, é considerado por todos os especialistas como politicamente absurdo e tecnicamente inviável. A Rússia, a China e a Europa se opõem ao NMD pois sabem que desencadeará uma nova corrida armamentista, de altíssimo custo, com grave aumento da instabilidade regional e global .
Quanto às “novas ameaças”, desde o fim da União Soviética, em 1991, os Estados Unidos procuravam um inimigo para justificar suas enormes despesas militares. Essas despesas são, em realidade, amplos programas de subsídio à pesquisa científica e tecnológica e às próprias indústrias, tais como a siderúrgica, a naval, a eletrônica, a aeronáutica etc. Finalmente, agora os atentados de setembro definiram um inimigo: o terrorismo internacional. O combate a este inimigo, segundo as autoridades americanas, durará anos, se travará em todos os rincões, usará todas as armas, exigirá o apoio incondicional de todos. Nesta nova versão de conflito bipolar, agora não mais o Mundo Livre contra o Comunismo, mas sim o Mundo Livre contra o terrorismo internacional, há um importante aspecto que é o esforço americano de internacionalizar as ameaças para mobilizar os demais países e obter sua cooperação política e financeira para as operações americanas. Essas operações tendem a se realizar cada vez mais sob a condução da Otan, que se transforma gradualmente no braço armado do Conselho de Segurança da ONU ou age de forma espontânea e “unilateral”.
A aprovação pela Câmara dos Representantes do Trade Promotion Authority, que delega poderes de forma muito restritiva ao Executivo americano para negociar acordos na OMC, na Alca e individualmente com países como o Chile, confirma a tradição da política econômica externa americana. Esta política visa a abrir os mercados de todos os países para seus bens e serviços, liberalizar e desregulamentar totalmente os fluxos de capital, tornar mais restritivas as normas de proteção à propriedade intelectual e, ao mesmo tempo, manter a plena capacidade de proteger os seus setores econômicos estratégicos ou mais frágeis diante da concorrência externa.
E na periferia do sistema internacional, prossegue o crescimento demográfico e o inchamento das cidades, se concentra de forma impiedosa o poder econômico, que manipula as pseudo-democracias, em verdade regimes plutocráticos, enquanto se expande a miséria, a fome, a exclusão social e a instabilidade política.
*Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-chefe do Departamento Econômico do Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty (Agência Carta Maior, 5/2002)


12. Em época de Globalização
Vivemos a era de uma Revolução Tecnológica, com a informática, bioengenharia, telemática, robótica. Essa Revolução alterou os métodos produtivos, eliminou o trabalho extenuante, repetitivo. E criou novas relações de produção: acabou com a exploração, transformou patrões e trabalhadores em parceiros.
Esse processo gerou uma riqueza fantástica - algo como 10 trilhões de dólares - que circulam pelos mercados financeiros do mundo. Essa riqueza é o passaporte para o Terceiro Mundo atingir os benefícios da modernidade já presentes no Primeiro Mundo
Para atrair esses capitais, um país pobre tem uma tarefa número um: cuidar da estabilidade monetária. Em particular, tem de eliminar o déficit público - causa básica da inflação - através de amplas reformas e da venda de estatais. Deve dar garantias para que a riqueza monetária possa entrar - e, tão ou mais importante - possa sair do país sem perdas decorrentes de mudanças bruscas em políticas locais.
A idéia de que a tecnologia e o dinheiro vão salvar o mundo ignora as enormes tensões sociais, econômicas e políticas criadas pelo desenvolvimento comandado cada vez mais por um punhado de empresas gigantes. Minimiza os dramáticos efeitos da concentração de riqueza e aumento no desemprego gerados pela atual onda de modernização tecnológica e administrativa. E vende uma ilusão: no último quarto de século, a despeito dos extraordinários avanços científicos e tecnológicos, e de uma movimentação sem precedentes de moedas, ações, títulos e registros eletrônicos dos chamados mercados futuros, os índices de crescimento da produtividade caíram dramaticamente em todos os grandes países capitalistas.

A nosso ver, três idéias diferentes ajudam a compreender melhor o dia-a-dia do mundo dominado pela febre da globalização:
A política é comandada pelos americanos, com ajuda de seus aliados nos governos dos principais países capitalistas ricos - especialmente a Alemanha e o Japão - e a colaboração de ajudantes de menor expressão no governo de países capitalistas em desenvolvimento, como o Brasil. A montagem da situação atual tem mais ou menos os seguintes pontos cruciais. Em meados dos anos 70, os EUA, que haviam se transformado nos campeões da luta contra o socialismo no pós-guerra, pareciam condenados: foram derrotados no Vietnã e fracassaram na tentativa de intervir na Revolução iraniana. Os socialistas, no entanto, não estavam em condições de substituir a hegemonia americana. Já em meados dos anos 50, tinham se tornado hegemônicas na URSS as posições que retiraram do PCUS sua condição de centro de irradiação de idéias revolucionárias e transformaram aquele país numa potência militar também expansionista e intervencionista que se debatia em problemas econômicos e administrativos.
Na China, já em 1974, por sugestão de Mao Tsetung, Deng Tsiaoping, um dos principais líderes revolucionários, deposto pela Revolução Cultural, fora reinstalado na alta administração do país, como vice-primeiro ministro. O Partido Comunista Chinês se preparava para decretar o fracasso do movimento que visara prevenir os problemas surgidos na construção do socialismo e que encantara multidões na China e em todo mundo. Nesse quadro de derrotas socialistas, as idéias neoliberais, que haviam sido cultivadas localmente - no Chile, na Inglaterra - começam a ganhar corpo internacionalmente com o monetarismo de Milton Friedman e seu patrono global, o governo de Ronald Reagan. Nos anos 80, depois de impor ao mundo uma recessão monumental - decidida para resolver seus problemas inflacionários internos - os americanos se recuperam. No início dos anos 90, desmorona politicamente a União Soviética e, a seguir, o conjunto de países que orbitavam sob sua influência.
Os EUA tornam-se, então, a única superpotência ativa do planeta. E mesmo governos reformistas do Terceiro Mundo, que se apoiavam na existência da URSS para ter mais campo de manobra internacional, passam a se enquadrar nas diretrizes americanas. 1991 é o ano da consagração da retomada da hegemonia americana: eles comandam a intervenção das grandes nações capitalistas no Iraque e mesmo a China, que tem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, não se opôs à intervenção. Por essa época, mesmo países como o Brasil, onde a burguesia e os latifundiários no poder chegaram a ensaiar uma rebelião contra o império americano, aliam-se com a política ditada pelos EUA.
A atual situação beneficia as oligarquias financeiras de inúmeros países; é comandada por Estados empenhados na proteção e garantia da livre circulação do dinheiro global dos monopólios; cerceia e reduz os direitos dos trabalhadores. Os trilhões que giram pelo mundo atualmente representam, basicamente, a dívida estatal construída para salvar os monopólios capitalistas ao longo da montagem americana para a solução financeira da crise de meados dos anos 70. A crise daqueles anos deve ser comparada à de 1929: refletia desequilíbrios enormes no sistema. Só que, da vez passada, submetida a enormes tensões políticas, as oligarquias financeiras do mundo deixaram o sistema quebrar. A solução desta vez foi diferente. Os americanos elevaram os juros internacionais a níveis nunca vistos, entre o final dos anos 70 e início dos anos 80. Para isso, emitiram uma dívida histórica: ela foi de 0,424 trilhões de dólares em 31 de dezembro de 1971 para 5, 247 trilhões de dólares em 31 de dezembro do ano passado. Estes papéis, mais 3 trilhões das dívidas externas do Terceiro Mundo securitizadas com base nos títulos dos EUA são hoje basicamente, o dinheiro internacional acelerado.
A hegemonia americana atual, portanto, está construída sobre uma nova realidade econômica, diferente da que se formou durante a expansão no pós-guerra, quando os Estados Unidos desenvolveram o mais amplo e diversificado mercado de consumo de massas do planeta. De meados dos anos 70 para cá, o desenvolvimento é cada vez mais lento, instável e contraditório. Seu dinamismo vem da liberdade e da velocidade de circulação do atual dinheiro internacional. Mas a garantia do dinheiro - em última instância a proteção dos monopólios que detém a massa de papéis - torna-se a tarefa estatal número um. Quando o crescimento supera 2,5% ao ano nos países capitalistas centrais, os salários começam a subir e o desemprego diminui, surgem pressões inflacionárias que ameaçam corroer o carrossel do dinheiro. O Estado então contém seus investimentos sociais, eleva os juros, emitindo títulos públicos. Passa, dessa forma, a amparar os monopólios capitalistas detentores da massa desses papéis. E freia a expansão da economia, contendo, basicamente, as despesas e os investimentos sociais.
4 - A rigor, o esforço para impor o projeto de globalização dependente pró-americana visa criar entre os trabalhadores um espírito de conformismo com as brutais desigualdades que estão sendo promovidas pela situação política atual. Tenta absolutizar os fracassos e paralisar a histórica luta dos povos por independência e igualdade. Vende a idéia de que o capitalismo, sistema baseado essencialmente na exploração do trabalho assalariado e na acumulação de desigualdades entre nações e classes sociais, está prestes a se transformar no seu contrário: um gigantesco e fraternal hipermercado, onde todos seriam, igualmente, consumidores. Essa ilusão não tem qualquer apoio histórico. O sistema capitalista viveu até hoje em crises regulares de superprodução, quebradeira generalizada e desemprego. Crises menores que se repetem a cada 5 ou 7 anos. E crises maiores, estruturais, como as de 1873 e de 1929. Todas essas crises tiveram conseqüências dramáticas. Ainda está viva na memória dos povos a convulsão social que foi de 1929 a 1945, provocada pelas ambições das potências imperialistas e disparada exatamente por um movimento como o atual, de extraordinária aceleração na circulação do dinheiro. A solução monetarista para a crise de meados dos anos 70 tem no seu interior as sementes de dificuldades monumentais, que precisam ser combatidas com decisão por todos os interessados numa verdadeira integração internacional dos povos.
5 - O dinheiro, nas sociedades capitalistas, tem um aspecto duplo e contraditório. Veja-se a situação de hoje. O dinheiro global desregulamentado, acelerado e valorizado como virtude suprema, permite ao capitalismo central promover intenso e evidente processo de pesquisa de novas tecnologias e de reorganização com vistas a superar os problemas que enfrenta. Até no campo da cultura, simbolizada pelo cinema americano e sua extraordinária capacidade de combinar tecnologia e trabalho artístico graças a orçamentos e salários milionários, o dinheiro permite realizações inegáveis. Ao mesmo tempo, no entanto, a garantia desse dinheiro, num mundo ainda dividido em nações e classes sociais exige um xerife. E o xerife do dinheiro global, os EUA, coloca seus interesses nacionais acima de tudo. Em 1994, para enfrentar uma crise no financiamento de seu déficit, elevaram os juros sete vezes ao longo do ano. No final de 94 o México quebrou. No início de 95, o Brasil enfrentou uma crise cambial sem precedentes, quando os investidores internacionais compraram perto de 10 bilhões de dólares do banco central brasileiro preparando-se para sair do país. Para garantir o dinheiro dos investidores globais durante a crise do México, num fim de semana os EUA assaltaram 50 bilhões de dólares de reservas estratégicas dos países ricos. O governo mexicano alterou suas políticas de modo a conter o consumo interno e promover intensamente as exportações, disparando com isso falências, recessão e desemprego. Por sua vez, o Brasil elevou os juros aos níveis mais altos do mundo e endividou-se de tal modo que comprometeu todos os projetos que havia anunciado em seu Plano Plurianual de governo.
6 - Ao contrário dos que acreditam nas virtudes sociais do dinheiro global acelerado, entendemos que cabe aos interessados na verdadeira modernidade retomar o debate histórico sobre a alienação promovida através do dinheiro, sobre as origens reais da riqueza social, sua distribuição e circulação. O dinheiro é uma mercadoria especial. Ele tem o dom de realizar a metamorfose crítica para o sistema em que vivemos: transforma-se em capital, através da exploração da força de trabalho. Hoje, porém, graças ao avanço das idéias monetaristas, procura-se ver o dinheiro de modo diferente, de um lado só. Reconhece-se que o dinheiro tem um papel social evidente: força todo mundo a correr atrás dele e com isso impulsiona o progresso. Mas seria neutro: seu valor social decorreria de relações entre as coisas, não teria nada a ver com os conflitos da sociedade. Em relação ao processo de globalização em curso têm-se essa mesma visão esquizofrênica: imagina-se que o dinheiro acelerado que está desmontando barreiras nacionais e integrando os mercados é o responsável pelo progresso; e acha-se, ao mesmo tempo, que o dinheiro não tem nada a ver com o mal-estar relacionado com esse mesmo processo - o crescimento cada vez mais lento das economias capitalistas, o desemprego e a marginalização social crescentes.
7 - Para os teóricos dessa forma de ver o mundo, é como se tivesse ocorrido uma mudança na própria natureza do modo de produção capitalista. Ele não seria mais, na essência, um regime de conflito, que oporia classes sociais antagônicas: patrões com dinheiro e poder para explorar o trabalho assalariado, e proletários, obrigados a vender sua força de trabalho no mercado para sobreviver e, assim, criar mais valor para os patrões capitalistas. Hoje, patrões e trabalhadores seriam parceiros. E a criação do valor, da mais valia, não seria resultado da exploração capitalista da força de trabalho. Este valor, agora, supostamente, estaria sendo criado de modo neutro: por computadores, bactérias e microorganismos produzidos pela biotecnologia. E o capitalismo teria realizado o milagre de combinar progresso e paz: estaria produzindo riqueza e acumulando - ampliando o estoque líquido de riqueza existente - sem a necessidade de explorar a classe trabalhadora.
8 - O erro desse modo de pensar pode ser demonstrado por absurdo: suponhamos que ele fosse verdadeiro; que pudesse existir uma sociedade capitalista que dispensasse a exploração do trabalho - na qual o valor das mercadorias fosse criado por robôs. Sendo capitalista, uma sociedade desse tipo teria uma minoria de proprietários dos meios de produção e uma imensa maioria de proletários. Mas teria também uma contradição insolúvel. Os trabalhadores não teriam como obter o dinheiro necessário para adquirir os bens produzidos pelos capitalistas e suas máquinas maravilhosas. Porque a única mercadoria que tinham para vender - sua força de trabalho - teria se tornado dispensável para a criação de valor; inútil.
9 - Dinheiro não se transforma em capital sem que se complete esse ciclo que inclui a exploração do trabalho assalariado, peça crucial e contraditória do processo de criação de riqueza na sociedade capitalista. Um dos sinais claros da crise atual, portanto, está no crescimento da produção e do emprego nas economias capitalistas líderes. Década após década, o crescimento vem caindo e a marginalização dos trabalhadores aumentando. É claro, no entanto, que qualquer oposição a esse sistema de injustiças sociais não se pode fazer em abstrato. Um governo popular saberia que o principal aspecto de um orçamento nacional que vise melhorar as condições de vida de um povo pobre como o brasileiro seria a destinação a dar à riqueza nova criada pelo trabalho. A discussão do orçamento popular não seria uma repartição de migalhas. Muitos trabalhadores ainda acreditam que um bom governo deve cuidar que hajam "salários justos". A grande massa de riqueza criada no país, no entanto, não vai para os salários, mas sim para a ampliação da capacidade de produção instalada no país, que é voltada para o mercado restrito existente. A grande massa é pobre e está fora do mercado de bens mais caros. Um governo dos trabalhadores, cujo orçamento fosse baseado em "salários justos", que distribuísse dinheiro para os pobres, com certeza não permitiria que nenhum deles comprasse esses bens. Não se altera a capacidade de produção do país imprimindo papel-moeda. Por esse motivo, acreditamos que uma das tarefas centrais de um movimento de popularização da informação deve voltar-se para a educação ampla dos trabalhadores, que criam a riqueza e precisam saber como aplicá-la quando assumirem o governo do país.
10 - O primeiro volume do Capital, a obra genial de Marx, veio ao mundo em 1867, praticamente ao mesmo tempo em que eram lançados os fundamentos da doutrina oposta: a teoria da utilidade marginal, que atribuía o valor a uma relação subjetiva entre o comprador e a mercadoria. A concepção subjetiva do valor ficou no limbo teórico por longos anos, atropelada pela história. Em 1873 o sistema capitalista enfrentou uma enorme crise. Em 1917, a Revolução Bolchevique colocou na direção da Rússia uma das correntes do movimento socialista que mais se apoiou nas teorias de Marx. A nova grande crise do sistema capitalista em 1929 fez o marginalismo ser substituído pelo keynesianismo e o Estado do Bem-Estar Social. Hoje no entanto, o liberalismo ressurge. Para o mundo ir para a frente, se diz, é preciso liberdade individual e um Estado que cuide da estabilidade da moeda, nada mais. Os interessados em elevar o nível de cultura e de bem estar material dos trabalhadores sabem que isso é uma mentira grosseira. Não podem, no entanto, ignorar as experiências históricas da construção socialista que mostram que dinheiro e mercado acompanharão os esforços para a construção de uma sociedade mais justa ainda por muito tempo.
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13. Renda do trabalhador caiu nos últimos três anos #
Pelo terceiro ano consecutivo do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso o trabalhador brasileiro perdeu o poder de compra. O rendimento médio no ano passado foi 3,9% menor que o de 2000, a segunda maior queda desde a implantação do real. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as perdas já somam 9,7% nos três últimos anos.
Em 1999, a renda caiu 5,5%, e em 2000, a queda foi de 0,6%. A maior queda de 2001 ocorreu no mês de dezembro. Em comparação ao mesmo mês do ano anterior, o rendimento foi reduzido em 8,9%. Com isso, a renda média dos brasileiros ficou em R$ 803,45 (4,5 salários mínimos).
As perdas salariais nestes últimos três anos já corroeram mais da metade do ganho do brasileiros com o Plano Real. O ganho, que era de 40% no final de 1998, foi reduzido para 18,6% em relação a junho de 1994.
Na avaliação da economista Zeina Latif, da consultoria Tendências, os responsáveis pela queda da renda do trabalhador foram a correção do salário de muitas categorias abaixo da inflação no período, a recontratação de profissionais com salários menores e a redução dos rendimentos na economia informal.
A concentração de renda no Brasil gerou cinco categorias de grupos sociais, segundo indicadores do desenvolvimento, publicados há um mês pelo Banco Mundial:
os miseráveis, que correspondem a 24 milhões;
os pobres, 30 milhões;
os quase pobres, 60 milhões;
a classe média, 50 milhões, (A Receita Federal diz que são 15 milhões, que declaram imposto de renda)
e os ricos, 2 milhões.
A dramaticidade desta concentração está no fato de que a renda média dos mais ricos é 150 vezes maior que a renda média dos mais pobres. A riqueza privada no Brasil está na ordem de R$ 2 trilhões. Os ricos controlam 53% deste valor. "Não há evidência no mundo de país em que isso ocorra. Nos Estados Unidos, os Bill Gates da vida controlam 26% da riqueza, metade do que os mais ricos no Brasil controlam", afirma o economista da UFRJ, Reinaldo Gonçalves.
Gini - O índice de Gini, que mede internacionalmente a distribuição de renda, está em 0,60 no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD), de 1998. Quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição da renda no país. Piores que o Brasil no mundo, só a República Centro-Africana e Suazilândia, com 0,61, e Serra Leoa, com 0,63. Todos os outros 150 países considerados no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas têm Gini menor que 0,60.
A desigualdade no Brasil vem sendo agravada pelos ajustes fiscais que sacrificam os programas sociais e geram mais concentração de renda. "Quando se faz ajuste assentado em estrutura tributária regressiva, a concentração aumenta", garante o economista da UFRJ. "É o que acontece no Brasil com a CPMF. O sujeito que ganha salário mínimo e faz um cheque de 100 reais para as compras do mês, paga o mesmo imposto de quem tira R$ 100 do banco para comprar champagne".
Dos 170 milhões de habitantes do Brasil, 120 milhões estão fora do mercado de consumo supérfluo; 15 milhões são agricultores sem-terra; 3 milhões são crianças de 7 a 14 anos de idade fora da escola; 500 mil são meninas que sobrevivem da prostituição; 50 mil são crianças que trabalham em depósitos de lixo, catando sobras; e cerca de 10 milhões estão desempregados.
É impressionante o dado básico do Censo de 2000: a aviltante renda da massa de brasileiros ocupados. Metade dos trabalhadores brasileiros trabalha praticamente em troca de comida. Podia se dizer casa e comida, mas muitos nem casa têm. Um em cada quatro brasileiros ocupados (24,4% deles) ganha apenas até um salário mínimo. Outro tanto ( 27,5%) ganha entre 1 e 2 salários mínimos. Somados esses dois contingentes, temos que mais da metade dos brasileiros ocupados (51,9%) ganhando até o máximo de dois salários mínimos. São cerca de 32 milhões de pessoas nessa condição (e não 60 milhões como escreveram alguns jornais, que confundiram a porcentagem dos brasileiros ocupados com porcentagem da população).

A vergonhosa renda dos brasileiros
O IBGE não publicou o ganho médio desse contingente, mas deve ficar em torno de um 1,5 salário mínimo, ou cerca de US$ 130,00. Isso dá uma renda anual da ordem de US$ 1.500,00, característica da renda per capita de países pobres, apesar de nossa economia ser uma da maiores do mundo e nossa natureza rica a generosa.
Depois desse contingente de mal pagos, surgem três blocos de tamanho quase igual de brasileiros ocupados, que ganham de dois a três salários mínimos (13,6%), de três a cinco (14,2%) e de cinco a dez salários mínimos (12,5%). O primeiro bloco, na verdade, ainda está no universo dos quase pobres. Os dois outros blocos somados representam um quarto dos brasileiros ocupados, e seriam, digamos, a baixa classe média brasileira: com renda média da ordem de apenas uns R$ 1.000,00 por mês, ou US$ 400,00.

Calvário brasileiro segundo o relator da ONU
O relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, Jean Ziegler, já partiu do Brasil. Mas deixou atrás de si a indignação com a miséria brasileira e, de quebra, a polêmica com o governo federal, que contesta as denúncias do sociólogo e os números de organizações da sociedade sobre a matéria. Na segunda-feira, dia 18, Ziegler ouviu (e levou consigo) a avaliação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar sobre a situação da fome e da miséria no país, durante audiência com organizações da sociedade civil brasileira. O relatório final, ao que tudo indica, desabonador para o governo brasileiro, será entregue em 1º de julho ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e vai ser discutido em Assembléia Geral com a presença do governo brasileiro. A seguir, alguns trechos de sua intervenção na audiência.

Diagnóstico
Temos a missão de fazer um relatório analítico a respeito dos abusos aos Direitos Humanos e ao direito à alimentação no Brasil. Vamos apresentar, no capítulo final, recomendações muito precisas sobre o que o país tem que fazer para acabar com o massacre silencioso da fome. As cifras oficiais do governo nos falam de 23 milhões de pessoas grave e constantemente subalimentadas. As cifras da oposição chegam a 44 milhões. São 55 milhões, segundo a CNBB. Isso significa um martírio cotidiano. Pessoas mutiladas que não têm trabalho, vida familiar e saúde, que comem menos de duas mil calorias por dia. Esse massacre ocorre em um país com imenso poder econômico, financeiro, político e tecnológico.

Encaminhamento das denúncias
É muito importante que estabeleçamos contatos permanentes. Se há denúncias de violações de direitos humanos, temos um procedimento especial acordado entre os países membros das Nações Unidas e podemos intervir. A ONU tem uma mala diplomática no Itamaraty, para onde devem ser enviadas denúncias. A diplomacia brasileira as recebe e nos manda. Há uma eficácia grande na denúncia porque governo algum quer ser exposto à comunidade internacional como conivente com a impunidade. Mas vamos ver agora como se sai no julgamento do massacre de Carajás. As denúncias podem ser abertas ou anônimas, para que o denunciante não corra perigo como a ação de pistoleiros, por exemplo, e conter um máximo de informações. Isso é importante porque torna possível o nosso pedido de abertura do inquérito. O procedimento funcionou muito bem na Palestina. Penso que no Brasil será muito útil.

Roteiro
Estivemos com o presidente Fernando Henrique e ministros em Brasília. Partimos para Recife, onde nos encontramos com a sociedade civil nordestina, um encontro muito importante para nós. Fomos ver os acampamentos do MST e estivemos em Juazeiro, no interior da Bahia. Estivemos em Salvador, conversando com os movimentos negros. Em São Paulo, visitamos prisões e delegacias. Foi um horror absoluto ver a 44º DP, um inferno total. Chegamos no sábado ao Rio e visitamos a Baixada Fluminense.

Sociedade X governo
Fomos recebidos em Brasília com transparência, as conversas que tivemos com o presidente e com o ministro da Economia, Pedro Malan, foram nesse nível. Durante toda a viagem apresentamos questionamentos e os representantes do governo sempre nos trouxeram as respostas. Mas, naturalmente, o contato com a sociedade é que é fundamental. Foi muito importante ouvir as críticas contra as políticas econômicas dos governos federal, estaduais e municipais. O Brasil tem uma sociedade civil muito viva. Exemplo disso foi o II FSM em Porto Alegre. É muito importante não só conhecer as iniciativas concretas desses atores, como também torná-las visíveis para a comunidade internacional. As propostas podem servir de exemplo para outros países. O Brasil tem iniciativas pioneiras que devem ser imitadas por outros povos do mundo.

Nova versão da Belíndia
Há realmente dois países nesse imenso território que é o Brasil. Um deles parece a Alemanha, tem padrão europeu. O outro é similar à Somália, um país africano. O Brasil é o país das estatísticas desiguais. No ranking da ONU, ocupa o primeiro lugar em desigualdade de renda. Há mais desigualdade aqui do que na África do Sul, que passou pela experiência do apartheid.

Mundo com fome
Seis mil pessoas morrem de fome no mundo por dia. A cada cinco segundos, uma criança com menos de dez anos morre. Uma pessoa perde a visão a cada quatro minutos por deficiência alimentar. No ano passado, 800 milhões de pessoas viveram permanentemente subalimentadas, muitas delas desde o nascimento. E depois dos cinco anos não há mais como recuperar.

Fome de que?
A produção agrícola atual poderia alimentar, sem problemas, doze bilhões de seres humanos, ou seja, o dobro da humanidade. Então, quem morre de fome nesse planeta, morre assassinado.

Inimigo meu
A globalização neoliberal é o terror da atualidade. É o inimigo. Temos pesquisas realizadas em 20 países africanos que mostram, com dados claros, que a fome aumenta onde a política econômica nacional é ditada pelo FMI. É automático.

Após o término da audiência, os repórteres Marcelo Carvalho e Jamile Chequer conversaram brevemente com Jean Ziegler para entender que tipo de punições o Brasil poderá sofrer diante do que constatou em sua visita ao país. O relator falou também sobre o conflito ideológico existente na própria ONU.
IbaseNet – O que acontece com o país que é reprovado após uma visita como a da sua comissão?
Ziegler – Não tenho como responder agora sobre as sanções. Os 190 Estados da ONU vão discutir a matéria, fazer a análise e elaborar as recomendações, quando o governo brasileiro poderá se defender. A maior força de um relatório como esse é seu impacto moral. Porque a condenação de um país influi muito sobre as decisões dos credores. E é uma condenação verbal, uma resolução que as nações votam contra a tortura, as carências do ensino etc. O Banco Mundial e os bancos privados não poderão continuar a dar crédito a um país que a comunidade internacional esteja condenando. Se uma instituição financeira desrespeita a resolução, sofrerá uma grande pressão da sociedade, "eles desrespeitam o direito à alimentação e vocês ainda dão recursos?". Não vão chegar aqui soldados da ONU, não é isso.
IbaseNet – Em sua apresentação, o senhor mencionou o conflito ideológico dentro da própria ONU, entre o pensamento que norteia hoje a economia internacional, o neoliberalismo, e a visão que afirma a primazia da humanidade e de suas necessidades sobre os lucros. Como se dá isso na organização?
Ziegler – O que acontece é uma contradição estrutural mesmo. Há organizações dentro da ONU que pregam e aplicam a política neoliberal de abertura de mercados, monetarismo, garantias do pagamento da dívida etc. E há as que trabalham tendo em vista o desenvolvimento social, da mesma forma que faz o Ibase aqui no Brasil, com a preocupação de formular políticas prioritariamente para as pessoas, para melhorar as condições de vida das famílias, de quem trabalha. São setores e intenções completamente diferentes, opostas até, no mesmo sistema ONU. Para o FMI, por exemplo, os direitos econômicos e sociais não existem, direito ao desenvolvimento, à saúde, ao ensino etc. O pensamento é que o mercado cuida de tudo.

Dificuldades à vista
Os programas de alimentação e nutrição que integram a estratégia do governo federal de combate à pobreza no Comunidade Solidária, vêm enfrentando dificuldades para sua efetivação. Dos programas, destacam-se o de Combate à Desnutrição Materno-infantil, o de Alimentação do Trabalhador, o de Alimentação Escolar e o de Distribuição de Cestas de Alimentos. No Combate à Desnutrição Materno-Infantil, a questão orçamentária é um grande problema, que, aliás, também atinge os outros programas. Os dados são apresentados pelo próprio governo: por exemplo, em 1997 verificou-se uma defasagem de 50% entre os recursos orçados e aqueles que foram efetivamente empenhados no programa. O resultado é que, nos 16 programas que foram considerados pelo próprio governo federal como prioritários, dentro da estratégia de combate à pobreza que é o Comunidade Solidária, houve um corte de cerca de 20% de recursos.

Criança com fome
Em análise recente do Conselho Nacional de Saúde sobre o orçamento para a área de Saúde, foi constatado que houve um corte de 100 milhões com relação aos recursos orçados para o ano de 2001 para o Bolsa Alimentação, que é o programa do governo que distribui R$15 por criança desnutrida. Para as ações de combate às carências nutricionais foram cancelados cerca de 40% dos recursos anteriormente orçados e uma execução efetiva de cerca de 50% desses recursos. Os dados servem para indicar um problema que é crônico e se manifesta em diferentes programas sociais. Além da diferença entre os recursos orçados e os efetivados, há ainda outros problemas. O mais importante é o atraso no repasse da verba, que se acentua em determinados períodos e que, obviamente, dificulta a operacionalização dos programas. A descontinuidade dos benefícios acaba por comprometer as ações desenvolvidas.

Discrepâncias
Apesar do Bolsa Alimentação ser um programa universal, ele acaba atendendo em maior número as camadas da população com mais recursos. Para se ter uma idéia do que acontece, tive acesso aos dados de uma pesquisa sobre o tema feita nas regiões Sudeste e Nordeste. Ela mostra que o número de estabelecimentos que oferecem refeição gratuita cresce conforme aumenta a renda das famílias das crianças vinculadas a esses estabelecimentos. Nas famílias de renda mais baixa, apenas 79% das crianças freqüentam escolas com refeição gratuita. Nas famílias mais abastadas, 85% das crianças estão em escolas de refeição gratuita. Existem Conselhos de Alimentação Escolar, dentro da tendência de ampliação das instâncias colegiadas, para justamente acompanhar a operacionalização dos programas. Mas, de acordo com pesquisa feita em 1999, os Conselhos só funcionavam em 43% das escolas de todo o país. A desigualdade que aparece nesse programa se repete em outros. No Programa de Alimentação do Trabalhador a tendência é a mesma. São beneficiados trabalhadores de renda mais alta, da mesma forma que estados das regiões mais ricas do país, as regiões Sul e Sudeste.

O sumiço das cestas
O principal problema enfrentado pelo Programa de Distribuição de Cestas de Alimentos foi que, em vários momentos, a quantidade de cestas foi insuficiente. Principalmente em 1999, quando houve descontinuidades na distribuição. Muitas pessoas ficaram quatro meses sem receber a cesta. A estimativa é de que o programa cubra apenas 15% dos indigentes no país. Portanto, a cobertura é baixa e sua operacionalização é prejudicada por conta dessa descontinuidade. Também houve uma modificação nos itens das cestas distribuídas, resultando em uma redução de 20% de calorias entre 1996 e 1999.
A crise do endividamento brasileiro, ou sobrendividamento, se manifesta em dois números fundamentais. O primeiro é que, em seis anos de governo FHC, a dívida externa aumentou 62%, de US$148 bilhões para US$240 bilhões. E a dívida interna foi multiplicada por onze, passou de R$60 bilhões para R$685 bilhões, dados de janeiro de 2002. Esses números são importantes porque indicam que este ano o governo vai ter que comprometer, do orçamento federal, R$120 bilhões só para pagar os juros dessas dívidas. Dinheiro suficiente para fazer duas vezes a reforma agrária no país. (maio de 2002)
São Paulo - uma cidade de 18 milhões habitada pelos fantasticamente ricos e pelos muito pobres, com pouca gente entre eles - é, para alguns, uma visão da futura vida urbana no mundo em desenvolvimento. Com os índices de homicídios e seqüestros batendo recordes, o tráfego de helicópteros civis se tornou o mais movimentado do mundo, segundo executivos do setor. Empresas de helicópteros estimam que a média de decolagens seja de 100 por hora. A cidade tem 240 helipontos, comparados com dez em Nova York. Isso permite que os ricos se locomovam de suas bem protegidas casas para o trabalho e vice-versa e se dirijam a encontros de negócios, tardes de compras e até à igreja.

14. Os Novos Pobres #
Frei Betto (*)
Fala-se hoje de emergentes – o setor da sociedade que nasceu pobre, não tem curso superior e, agora, é rico. Como a semântica altera-se com o tempo, emergente é o que outrora chamava-se de "novo rico" (como diria o Faustão, performance era desempenho, fast-food era lanchonete, acusar era meter o pau). Um dos fenômenos mais significativos do neoliberalismo é a progressiva quantidade de novos pobres – os emergentes. As medidas de estabilização e ajustes impostas aos Brasil pelo FMI e Banco Mundial caracterizam-se por salvar a moeda e ignorar a questão social.
Essas reformas monetaristas congelam os salários e empurram para baixo da linha de pobreza amplos setores da classe média, bem como assalariados dos setores industrial e de serviços. Na América Latina, vivem na pobreza cerca de 300 milhões de pessoas, das quais o Brasil contribui com 100 milhões.
Cresce a inadimplência de pessoas físicas e jurídicas (um aumento de 104% no governo FHC); multiplicam-se falências de pequenos e médios empresários e comerciantes; avolumam-se os cheques sem fundos. Os novos pobres são alijados do acesso à terra ou à casa própria, e gastam com o aluguel mais da metade de sua renda mensal. Serviços básicos como educação e saúde tornam-se artigos de luxo.
O BID e a ONU promoveram em Washington, em 1993, um fórum no qual Michel Camdessus, o todo-poderoso diretor-geral do FMI, admitiu: ‘Lamento reconhecer, mas a verdade é que, até agora, não fomos capazes, todos nós, de proteger integralmente os mais desafortunados diante das muitas formas de escassez e sofrimento, nessa etapa inicial do processo de ajustes.
Cinco anos depois a situação é pior. Os novos pobres são os desempregados, funcionários públicos (como os professores), aposentados, empresários falidos, jovens que não lograram inserção no mercado de trabalho. São as vítimas da revolução cibernética, os "velhos" entre 30 e 50 anos de idade, as mulheres sem qualificação profissional. Desde o governo Collor, o Brasil perdeu 2,5 milhões de postos de trabalho formal. E a economia cresceu de 28% para 51% da população economicamente ativa.
Os novos pobres expressam uma forma especial de pobreza. Não moram em favelas nem passam fome e são relativamente bem informados. Porém sobrevivem com o orçamento no vermelho, dependem de empréstimos ou ajudas familiares, não têm perspectivas de futuro e buscam nas aparências uma forma de encobrir a vergonha social.
São diferentes das camadas pobres da sociedade, integradas por quem vive na pobreza dinástica, a que passa de geração em geração. Os novos pobres usufruem seus dias de Cinderela, viajam de vez em quando, convivem com pessoas abastadas, têm certo lastro cultural. Mas seus filhos chegam ao fim do segundo grau sem idéia de que carreira seguir e o atrativo por aquilo que dá prazer costuma ser maior que o empenho por uma atividade profissional que exige esforços e sacrifícios.
Os novo pobres sentem-se condenados, não tanto à pobreza física, de escassez de bens, mas à pobreza social, de quem se sente excluído do acesso a um bem-estar progressivamente melhor.
Essa pobreza social provoca angústia e depressão, corrói valores familiares, subverte relações afetivas, induz suas vítimas à expectativa onírica de salvação miraculosa através de jogos, loterias, bênçãos e/ou atividades informais. Por não se sentirem seguros quanto ao próprio futuro, os novos pobres formam a clientela cativa de astrólogos e tarólogos, cultos neopentecostais e orixás, literatura de auto-ajuda e movimentos esotéricos.
Os novos pobres do Brasil ainda não descobriram que a saída reside na luta por conquistas sociais e políticas, através do fortalecimento da sociedade civil. Abnegados e envergonhados, esperam um lance de sorte na roda da fortuna.
Se imprimissem a seus dramas pessoais e familiares um caráter social, e convertessem a vergonha em ousadia e esperança, então criariam os movimentos dos desempregados, dos inadimplentes, dos sem-crédito e sem-cheques, dos despejados e falidos.
Ou será que eles acreditam que o governo estaria empenhado em desapropriar latifúndios e assentar famílias sem-terra se não houvesse o MST? (*) Sacerdote e escritor
http://www.ateufeliz.hpg.ig.com.br/OsNovosPobres.htm


15. Brasil: O País que não tem Direitos
O número de brasileiros com 16 anos ou mais que se declaram sem ocupação saltou de 4% para 11%, entre 1996 e 2001. O número de desempregados triplicou de 4 milhões para 12,760 milhões. Para se ter idéia da proporção real deste número, basta dizer que ele equivale às populações do Rio de Janeiro e Belo Horizonte juntas.
Segundo a pesquisa Datafolha, o número de trabalhadores que hoje vivem de bicos ou de trabalhos esporádicos, poderíamos dizer, ainda, de subempregos, cresceu de 13% para 16%. Enquanto isso, o número de assalariados com registro em carteira caiu de 22% para 16% em cinco anos. Outro dado interessante é que os funcionários públicos que eram 9% da População em Idade Ativa ( PIA) em 1996, caíram para 5%.
Entre as ocupações estáveis e precárias, o primeiro grupo, formado por assalariados registrados, servidores públicos e autônomos regulares, encolheu de 40% da PIA em 1996 para 26% em 2001.
As pessoas que pertencem ao grupo que estão em situação precária aumentou de 24% para 26%. O dado é estarrecedor: apenas metade da força de trabalho ocupada no Brasil tem garantias mínimas, neste cinco anos, 16 milhões de brasileiros perderam direitos que estão associados a uma ocupação estável.
Com esta pesquisa confirma-se que a situação do trabalhador da região do Nordeste é ainda pior. A soma dos desempregados e trabalhadores em ocupação precária chega a 41% da PIA, enquanto que na região Sul este percentual é de 31%.
Os dados são absolutamente desfavoráveis ao conjunto da classe trabalhadora brasileira. Enquanto isso a proposição do governo federal para flexibilizar as leis trabalhistas já passou pelo Congresso e passará agora pelo Senado. Apesar da resistência que os trabalhadores vem empreendendo a flexibilização já é uma realidade. São 53% dos trabalhadores que não recebem nem 13º salário e 54% não recebem férias remuneradas.
Os trabalhadores, em três anos, perderam outros direitos como: plano de saúde caiu de 23% para 19%; vale ¬ transporte caiu de 29% para 24%; vale ¬ refeição caiu de 18% para 15%; creche caiu de 7% para 6%; Colônia de férias caiu de 10% para 8%.
Outros dados:
• 10% dos brasileiros acham que é grande o risco de serem demitidos; o medo é maior entre os mais pobres.
• 1/3 dos ocupados costuma fazer horas extras, mas apenas 40% deles são pagos em dinheiro pelo trabalhado a mais.
• 31% não recebem nenhum tipo de remuneração por trabalhar a mais.
• 14% são " pagos" em folgas.
• 35% dos que trabalham na região Nordeste têm direito a receber 13º salário, enquanto a média geral registrada no restante do país é de 46%.
• 5% dos brasileiros ganham mais de dez salários mínimos ( R$1.800) por mês.
• 60% dos trabalhadores acreditam que as chances de ascender na profissão são poucas ou nulas.
• 83% dos trabalhadores brasileiros não são filiados a sindicatos, mas 7 em cada 10 acham que é importante participar de mobilizações por aumento salarial.
• 35% é a taxa de rotatividade registrada anualmente no Brasil, segundo cálculos feito por analistas, enquanto nos países ricos esse número varia entre 10% e 28%.
• 77% dos brasileiros gostariam de deixar de ser empregados e abrir um negócio próprio, mas só 16% acham que tem grande chance para isso.
• 46% dos trabalhadores dormem menos de 8 horas por dia.
• 8% da população masculina e 13% da população feminina entraram no mercado de trabalho antes de 9 anos de idade.
Para completar, está em tramitação no Congresso Nacional uma proposta de FHC para diminuir o período de 30 dias de férias remuneradas que poderiam ser trocadas em parte por dinheiro, este direito, como já vimos, já não está mais ao alcance do conjunto dos trabalhadores.
Para os defensores da flexibilização das leis trabalhistas e da informalidade os números confirmam o que, com veemência, vimos denunciando: os trabalhadores brasileiros não estão em condições para negociar numa situação tão adversa como a que vivemos.
"A história do homem é a história da luta de classes", por isso ainda não vencemos esta luta, mas também não podemos desistir dela.

16. O emprego e o desemprego
Recentes dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam em que direção, qualitativa e quantitativa, cresce o número das pessoas desocupadas no país e como, diante do drama da sobrevivência, refugiam-se na economia informal. Parte expressiva da população se desvincula da economia formal. Trata-se de pessoas que são empurradas para o mundo da vida, dissociadas das conquistas e direitos sociais da luta do trabalhador na fase do pré-capitalismo.
Os dados revelam, ainda, como a economia familiar é, hoje em dia, talvez mais importante do que o trabalho contratual. Há indícios de que seja necessário preparar a sociedade para outro tipo de economia e de trabalho. A questão chave, neste contexto, passa pela discussão dos direitos sociais na sociedade fortemente dependente da economia neoliberal globalizada.
Recentes dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam em que direção, qualitativa e quantitativa, cresce o número das pessoas desocupadas no país e como, diante do drama da sobrevivência, refugiam-se na economia informal. Parte expressiva da população se desvincula da economia formal. Trata-se de pessoas que são empurradas para o mundo da vida, dissociadas das conquistas e direitos sociais da luta do trabalhador na fase do pré-capitalismo.

Três indicadores
Três indicadores, são bastante ilustrativos do sentido da economia do trabalho na atualidade:
1 - mais de metade da força de trabalho ocupada já não tem carteira de trabalho assinada (esse dado não pára de crescer em cada Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios – PNAD - desde 1993);
2 - a população desocupada (no conceito de desemprego aberto do IBGE), situa-se nas Regiões Metropolitanas onde ela é pesquisada mensalmente, nas faixas de 10% a 15% da População Economicamente Ativa (mês de abril de 1999). Esses limites variam do máximo para Salvador (15%), ficando São Paulo em posição intermediária (12%) e outras Regiões (Porto Alegre, Fortaleza etc.) na faixa dos 10 a 11%.
3 - A PNAD DE 1997 (ultima divulgada) mostra que praticamente nas capitais e Regiões Metropolitanas o emprego por conta própria, juntamente com o emprego oferecido pelas microempresas respondem por cerca de 20% de todo o pessoal ocupado (setor urbano metropolitano) No setor rural o equivalente desse indicador estaria muito acima de 50%. Todos esses dados podem ser traduzidos como manifestação de fenômenos nada recentes, mas fortemente incidentes e concentrados na atualidade. Refletem:
a) forte onda de informalização das relações de trabalho;
b) ressurgimento da economia familiar;
c) disseminação de um setor de subsistência na economia urbana e alargamento do setor de subsistência na economia rural.”. (Guilherme Delgado, Boletim Rede, n.º 78, Petrópolis, junho de 1999.)
A desestruturação do mercado de trabalho promove desemprego, informalização e precariedade. Segundo o IBGE, no período 1992-93, 56,1% da massa real de rendimentos pertencia a trabalhadores com carteira assinada; 16,9% pertencia a trabalhadores sem carteira; e 15,3%, a trabalhadores por conta própria. Em 1998 esses percentuais eram de, respectivamente, 45,4%; 20,1% e 19,6%. Tal processo acompanha o declínio relativo da indústria (que perde empregos e salários reais) e de ascensão relativa do setor de serviços (que ganha empregos e salários reais, mas em condições e níveis precários, muito inferiores aos do setor industrial formal).
Quase 560 mil crianças brasileiras menores de 18 anos são trabalhadoras domésticas, dentre as quais 90% são meninas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) de 1999. O trabalho doméstico realizado por crianças em casa de terceiros, na maioria dos casos, ultrapassam o limite de oito horas diárias e recebem em troca apenas a alimentação, a moradia e a continuação dos estudos.
Também segundo pesquisa do IBGE, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as que apresentam maior índice de trabalho doméstico infantil. Nestas localidades começaram a surgir, nos últimos anos, altos índices de denúncia contra o trabalho ilegal.

A coisa piorou com o Real
As regras atuais da economia globalizada levam, nos países ricos e pobres, ao “duplo fenômeno da precarização do trabalho e do desemprego em massa e de longa duração, à incapacidade de absorver quantidades crescentes de gente sobrando. (...) Um número substancial não consegue ser integrado, por mais que tente ou queira.” Ora, a submissão incondicional de nosso país a esse modelo tem entre nós efeitos devastadores sobre a oferta de empregos:
• a abertura total das fronteiras para a importação desmontou o parque produtivo existente, que passa a importar peças prontas: aumentou brutalmente o coeficiente de componentes importados nos nossos produtos. Na verdade, na época do Real sobrevalorizado era mais barato importar, além de que os juros internos inibem investimentos produtivos. Este mecanismo, além de criar maior dependência, destruiu empregos dentro do Brasil ao mesmo tempo que os abre nos países que nos exportam esses componentes.
• a penetração da economia externa no País, na lógica da integração mundial da produção, nos leva a utilizar tecnologias modernas para uma produção de qualidade concorrencial no mundo. Ora, estas tecnologias se utilizam hoje largamente da automação, que já nos países ricos estão provocando um desemprego crescente. Importamos portanto, também, a lógica da destruição de empregos. (Sobre a perversidade da importação de tecnologias destruidoras de empregos, é esclarecedor o artigo do Ministro do Trabalho antes de ser Ministro, Folha de São Paulo, 17/03/98, pág.2-2: (...) “a grande empresa, principalmente a internacional, traz consigo outra cultura e outra tecnologia”. (...) “O objetivo básico é aumentar a relação entre faturamento e emprego. Como conseqüência tende a cair o emprego e principalmente o emprego do trabalhador menos qualificado. O mais qualificado não só preserva seu emprego, como tem aumento de salário”. (...) “Portanto, os novos investimentos têm um lado muito perverso, que é desempregar o menos educado e aumentar a diferença de salários entre educados e menos educados”.(...) “é preciso chamar a atenção para o desemprego tecnológico, que já aparecia na tendência ascendente da taxa de desemprego desde meados de 1997 e terá impactos profundos no Brasil. Como de resto em todos os países do mundo.”) “A rentabilidade aumentou muito em cima da modernização e de ajustes do nível de emprego”, diz o presidente de uma associação patronal. E ele completa dizendo que o faturamento por trabalhador do setor de máquinas subiu em 1997 aproximadamente 3,4%.
• a importação de produtos por preços mais baixos que os produtos nacionais, permitida anos atrás pela sobrevalorização do Real, levou, por sua vez, como ocorreu com a agricultura, ao fechamento de um grande número de empresas - incapazes de produzir a custos concorrenciais - com o conseqüente desaparecimento de postos de trabalho; note-se que neste processo até mesmo pequenas oficinas de costura, têm sido fechadas, por não poder competir com o vestuário importado, por exemplo, da China.
Um ex-ministro, de quando foi dito que “a economia vai bem o povo e o povo vai mal”, assim resume a atual situação: “o problema de fundo é que o Brasil se transformou num refém do sistema financeiro nacional e internacional, devido à necessidade de fazer frente à dívida interna e ao déficit externo em conta corrente”.
Note-se que a armadilha em que entramos tem também aqueles que com ela ganham, e que têm portanto interesse em que ela continue montada. Os principais ganhadores estão fora do País, no sistema financeiro internacional e nas economias dos países que estão impondo ao mundo sua hegemonia.

Radiografia do mercado de trabalho
Estudo de 1999, “traça a primeira radiografia do mercado de trabalho brasileiro nos anos 90, polemiza com as explicações neoliberais para o fenômeno e alerta: mantido o atual modelo, restarão ao País os empregos mais precários da globalização”. Tal estudo procurou, objetivamente, verificar a partir de dados da RAIS – a Relação Anual de Informações Salariais -, qual o comportamento do mercado de trabalho brasileiro. A evolução da relação entre o trabalho formal e informal é estudada a partir das comparações dos PNADs – Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio -, que são publicações oficiais do IBGE, e essas comparações abrangem o período entre 1989 e 1996.
Com base em tais informações, foi montado um quadro comparativo da situação do emprego no Brasil em relação a outros países.
Eis as principais conclusões desse estudo:
1. “Além de insuficientes, os empregos gerados no Brasil ao longo da década são de baixíssima qualidade. A maior parte dos profissionais preparados para as tarefas mais modernas não encontra onde exercê-las;”
2. “A causa principal é a política econômica adotada ao longo desta década. Ela atinge em cheio os investimentos públicos e privados que poderiam gerar bons empregos;”
3. “O mercado de trabalho brasileiro já é duas vezes mais flexível que o norte-americano. Relaxar direitos trabalhistas apenas agravaria a desigualdade social;”
4.“Também está furada a idéia de que a geração de empregos não está mais associada a desenvolvimento industrial. A maior parte dos bons empregos oferecidos pelo setor de serviços está ligada à indústria.”

Heranças do neoliberalismo
Uma das heranças do neoliberalismo é um desemprego aberto que oscila em torno de 16% a 18%, somado a uma informalização das relações de trabalho que atinge mais de 50% da população ocupada. O trabalhador de carteira assinada tornou-se franca minoria, mesmo dentro do mundo do trabalho.
Quase dobrávamos o nosso contingente de trabalhadores industriais a cada dez anos, no passado. Como o crescimento populacional era de 2,0% a 2,5% ao ano, a indústria trazia gente dos setores e regiões atrasados, de baixa produtividade, para dentro do segmento moderno da economia.
Pois bem: na última década expulsamos da indústria, quase que de uma só vez, 50% do seu contingente de força de trabalho. Vou repetir: ao longo de cinqüenta anos, a cada dez anos dobrávamos a absorção de força de trabalho pela indústria; nos dez últimos anos, jogamos fora 50% de todo o estoque de força de trabalho industrial.
Quando abrimos as estatísticas para isso, Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho é a grande fonte , verificamos o seguinte: o brasileiro ou brasileira que perde o emprego é, normalmente, uma pessoa de 35 a 45 anos de idade, chefe de família, com experiência profissional e com algum grau de qualificação: operador de máquinas, ferramenteiro, bancário, e assim sucessivamente.
Posição na Ocupação no Brasil
1989 1992 1995 1998
Empregados com Carteira e
Funcionários Públicos 44,3 37,98 37,06 36,93
Empregados sem Carteira 14,65 17,69 17,34 18,57
Trabalhadores Domésticos 7,02 7,09 7,83 7,61
Não-Remunerados 7,85 10,22 9,61 8,28
Autônomos 21,89 23,11 23,98 24,3
Empregadores 4,29 3,92 4,17 4,31
A classe capitalista (empregadores) se compõe apenas por 4,31% da população economicamente ativa (são estes que mandam no país) e destes 81,37% são donos de pequenas empresas com até 4 empregados e assim não chegam nem a ser capitalistas de fato, só de cabeça, de ideologia. Mas ±85,69% são a classe trabalhadora, esta é a sua força, o número.
Conforme números divulgados pelo IBGE em 2001, 81,37% das empresas brasileiras tem até quatro empregados. Já as com mais de 500 trabalhadores representam apenas 0,14% do total de empresas, mas empregam 45,78% dos empregados e pagam 62,3% dos salários. Em média, estas últimas, também pagam 35,15% a mais que o total de todas elas. Continuando, o IBGE também nos dá conta de que, de 1996 até 1998 o número de empresas no Brasil cresceu 12%, passando de 3.206.933 para 3.588.921. E entre os ramos que mais cresceram destacou-se o de serviços com 21,71% seguido da construção com 12,69% do comércio com 7, 36%, administração pública com 6,7% e, por fim, a indústria com 5,75%. Dois desses segmentos tiveram redução do número de pessoas ocupadas, principalmente a indústria (6,27%).
Apesar de responderem por aproximadamente 30% do Produto Interno Bruto (PIB) e 60% dos empregos gerados no País, as microempresas e empresas de pequeno porte recebem apenas 10% dos créditos concedidos pelos bancos oficiais e privados.

Micro e pequenas empresas empregam mais
O sonho de trabalhar numa grande empresa vai ficando cada vez mais distante do brasileiro. Nos últimos anos, praticamente só as micro e pequenas empresas abriram vagas para os trabalhadores. Dados do Ministério do Trabalho comprovam que esse segmento é responsável por mais de 90% dos novos postos de trabalho criados nos últimos anos. Entre 1995 e 2000, as empresas com mais de cem empregados abriram 88,1 mil vagas no Brasil. Um crescimento de apenas 0,6%. As empresas com menos de cem trabalhadores criaram um 1,9 milhão de vagas. Crescimento de 19,2%. Fonte: Jornal Nacional.
O próprio governo reconhece que dos 65,39 milhões de trabalhadores ocupados do setor privado, 60% (48 milhões) não estão cobertos pela Previdência Social e, portanto, sem direito a auxílio-doença e a benefícios decorrentes de acidentes do trabalho. No tocante a aposentadoria, mesmo que venha a ser registrado em futuros empregos, ele perderá para efeito de contagem do tempo de contribuição o período de informalidade.
Os dados do Censo 2000 revelaram 64,7 milhões de pessoas trabalhando (eram 71 milhões em 1999), sendo 43,6 milhões como empregados, 1,8 milhão como empregadores, 14,5 milhões como trabalhadores por conta própria, 2,6 milhões como trabalhadores não remunerados em ajuda a membro do domicílio e 1,9 milhão como trabalhadores na produção para o próprio consumo. Havia, em 2000, quase 25% da população ocupada, com rendimento de trabalho, que ganhava até um salário e 2,6% recebia mais de 20 salários mínimos.
O nível de instrução da população ocupada permaneceu mais elevado do que o do total da população de 10 anos ou mais. Entre os empregadores, 62,7% tinham pelo menos o ensino médio, ou segundo grau, concluído. Este percentual foi de 33,7% para os empregados, 20,8% para os trabalhadores por conta própria, 7,5% para os trabalhadores não remunerados em ajuda a membro do domicílio e somente de 1,1% para os trabalhadores na produção para o próprio consumo.
No grupo dos empregados, ficou clara a associação entre emprego registrado (aqueles com carteira assinada ou militares e funcionários públicos) e nível de instrução mais elevado: 39,1% dos com carteira de trabalho assinada tinham 11 anos ou mais de estudo (equivalente à conclusão de pelo menos o ensino médio). Na categoria de militares e funcionários públicos estatutários, 67,6% tinham pelo menos esse nível de instrução, superando o dos empregadores.
Os empregados constituíam 67,7% da população ocupada e os trabalhadores por conta própria formavam a segunda maior parcela (22,5%). No contingente dos empregados como um todo, 55,2% tinham carteira de trabalho assinada e 8,6% eram militares ou funcionários públicos estatutários. No grupo de trabalhadores domésticos, 31,2% tinham carteira assinada.

População ocupada de 10 anos ou mais de idade por ramo de atividade econômica da ocupação principal - 1999
Brasil e Grandes Regiões Percentual (%)
Agrícola Indústria* Comércio Serviços**
Brasil (1) 24,2 19,3 13,4 41,2
Norte (2) 12,3 17,0 20,1 49,0
Nordeste 40,7 13,6 12,4 32,1
Sudeste 13,4 23,0 14,0 47,2
Sul 26,4 22,4 12,0 37,5
Centro-Oeste 22,8 15,2 14,1 46,2
Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
(2) Exclusive a população rural.
* O ramo da industria inclui: Indústria de transformação; Industria da construção e outras atividades industriais.** O ramo de serviços inclui as seguintes atividades: Prestação de serviços; Serviços sociais; Administração pública e outras atividades.

Taxa de desocupação das pessoas de 15 a 65 anos de idade por cor e sexo - 1999
Total Homens Mulheres Branca Preta e Parda
Brasil (1) 9,9 8,1 12,3 9,0 10,9
Norte (2) 11,7 9,2 15,1 10,4 12,0
Nordeste 8,5 7,2 10,4 8,1 8,7
Sudeste 11,2 9,2 14,1 10,1 13,5
Sul 8,1 6,7 10,0 7,5 11,1
Centro-Oeste 9,4 7,0 12,8 8,4 10,3
Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
(2) Exclusive a população rural.

Taxa de Atividade das pessoas 15 a 65 anos de idade por cor e sexo - 1999
Total Homens Mulheres Branca Preta e Parda
Brasil (1) 74,4 85,5 58,2 71,2 71,7
Norte (2) 69,2 83,2 56,1 68,4 69,4
Nordeste 71,4 85,6 58,1 70,1 71,9
Sudeste 69,9 84,0 56,6 69,3 71,0
Sul 75,9 88,7 63,6 76,2 74,8
Centro-Oeste 73,2 88,4 58,8 72,0 74,3
Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
(2) Exclusive a população rural.
O IPEA estima que desde janeiro de 2000 até setembro de 2001 ao todo 700.000 pessoas deixaram de buscar emprego e, conseqüentemente, foram excluídas da População Economicamente Ativa (PEA) em relação à qual é calculada a taxa de desemprego. Se estas pessoas, que permanecem desocupadas, mas já não entram nas estatísticas de desemprego, fossem incluídas na PEA “Um em cada 4 trabalhadores é do setor informal”, O Globo, 9/6/99, pág. 28.

Perfil dos desempregados
A pesquisa revelou uma população jovem, constituída majoritariamente por pessoas entre 21 e 30 anos (45%), sendo o percentual de mulheres maior (48%) nesta faixa etária. Foram os negros(63%) os mais atingidos pelo desemprego e entre estes, preponderaram os homens (73%) contra 58% de mulheres. O mesmo não foi encontrado em relação à raça branca, havendo hegemonia de mulheres (42%) contra 25% de homens.
A maioria tem baixa escolaridade e somente 49% cursou o Ensino Fundamental incompleto, contra uma minoria de nível superior(1%). Na época deste trabalho somente 17% continua estudando. Há preponderância de solteiros (45%) e casados (42%), sendo prevalente as mulheres solteiras (46%) e separadas (12%), contra 44% e 6% respectivamente. Não encontramos homens viúvos na população estudada. Há predomínio de casados (50%) quando comparados ao percentual de mulheres (38%).
A pobreza no Brasil em 10 anos ganhou um novo perfil. O pobre não é mais o imigrante de pouca escolaridade e baixa renda. Ao contrário, é jovem, estudou e se qualificou. O número de chefes de família sem renda aumentou 130% entre 1991 e 2000 (descontado o crescimento populacional): de 1,4 milhão para 4,1 milhões.
Em 1991, 3,4% dos chefes sem renda brasileiros tinham de 25 a 39 anos. Em 2000, eles passaram a ser 9,3%. O aumento de 173,5% é o maior entre todas as faixas etárias. O mesmo ocorre com a escolaridade. O número de chefes de família sem rendimento cresceu 263% entre os que fizeram curso superior (estudaram mais de 15 anos). Passou de 2,7% para 9,8%. O fenômeno se repete nas cidades com mais de 300 mil habitantes. No começo da década eram 2,5%, em 2000, 9,2%. Isso significa que sofreram mais as populações dos municípios maiores. O aumento é parecido nas cidades industrias ou não. Passou de 4% para 8,9% nas industriais e de 3,9% para 9,6% nas não industriais, aumentos de 122,5% e 146,2% respectivamente.
Segundo o levantamento, os dados permitem concluir que a pobreza hoje deriva da total da falta de renda. Há 10 anos a pouca renda decorria da má colocação no mercado de trabalho devido a baixa qualificação. Agora, segundo o estudo, a pobreza ocorre pela falta de oportunidade de entrar no mercado de trabalho qualificado ou não. Não é só. Antes a pobreza estava identificada aos de maior faixa etária, grande quantidade de filhos, migrantes de zonas rurais e em regiões menos desenvolvidas. Agora, as famílias são menores, geralmente com um filho, e não está restrita a pequenos municípios.

Mulheres são as mais afetadas
De acordo com os dados do IBGE, houve aumento de 18,1% para 24,9% das mulheres chefes de família de 1991 a 2000. O aumento ocorreu em todas as faixas etárias, de escolaridade, e nos pequenos e grandes municípios, sejam industriais ou não.
No entanto, de acordo com o levantamento, a maior mudança ocorre nas faixas etárias abaixo de 24 anos: de 10,9% em 1991 para 18,8% em 2000. Aumento de 72,5%. O número de mulheres chefes de famílias mais que dobrou nas cidades com mais de 300 mil habitantes. Em 1991, eram 21%; em 2000, 43%. O crescimento das chefes de família sem renda foi acima dessa média geral. O salto foi de 174,7% de 1991 para 2000. As mais prejudicadas são as que estudaram: as chefes de família sem renda, com até 15 anos de formação, ficaram 245% mais numerosas no período.

POR QUÊ REDUZIR A JORNADA DE TRABALHO? – DIEESE maio de 2002
As condições sociais para o surgimento da produção capitalista implicaram uma transferência do controle do tempo de trabalho do produtor direto para o proprietário dos meios de produção. O camponês pré-capitalista ou o artesão, dominavam o processo produtivo e detinham a posse dos meios de produção, o que implicava controlarem o seu ritmo e tempo de trabalho. O trabalhador subordinado ao capital é apenas um apêndice da máquina que determina seu ritmo de trabalho e a sua duração é prerrogativa do empregador. Nos primórdios do capitalismo, o trabalhador vendia sua força de trabalho por um dia e esse dia de trabalho pertencia ao patrão. A jornada durava até o limite de resistência física do trabalhador, 14 horas, 16 horas ou mais.
Por que os que foram camponeses e artesãos se submetiam a essa exploração brutal? Primeiro porque suas primeiras tentativas de organização foram consideradas ilegais e reprimidas com violência e, segundo, porque não tinham mais nada além do próprio corpo e sua capacidade de trabalho. Os camponeses foram expulsos das terras comunitárias e os novos processos de trabalho dependiam cada vez menos da habilidade e destreza dos artesãos e mais da especialização alienante imposta pelo trabalho fabril. O capitalista detinha a propriedade dos meios de produção e a posse do processo de trabalho: tudo estava sob seu controle. Ou os trabalhadores se submetiam, ou morriam de fome.
A luta pela redução da jornada de trabalho começa como uma luta pela sobrevivência. Não se tratava de gerar mais postos de trabalho, mas sim de impedir o massacre das longas horas de trabalho sob condições agressivas e desumanas, que freqüentemente implicavam mortes e mutilações de trabalhadores que desmaiavam de sono sobre as engrenagens das máquinas. Permitir a realização das pessoas enquanto seres humanos, com a redução da jornada de trabalho, não era apenas uma palavreado bonito, mas a busca pelo direito básico da vida.
As sucessivas revoltas operárias no século XIX e a organização dos trabalhadores em sindicatos e partidos começam a gerar regulamentações da jornada de trabalho e sua redução. Em 1847, os ingleses conquistaram a jornada de 10 horas e em 1848, os franceses. A luta dos americanos também foi repleta de violências, como o enforcamento dos 5 operários que em 1886 lutavam, em Chicago, pela jornada de 8 horas. O dia 1º de Maio, em todo mundo, menos nos EUA, é o dia dos trabalhadores, em memória desses mártires. No século XX, as grandes guerras implicaram compensações aos operários, no amadurecimento de políticas de welfare state e conquistas sindicais mais substantivas. Vale lembrar que a Convenção número um da OIT, lançada em 1919, normatiza a jornada de quarenta e oito horas semanais para os trabalhadores da indústria.
Após os anos 30 e a segunda guerra mundial, as reduções da jornada de trabalho não estavam apenas associadas à questão das condições vida, mas também ao esforço de geração de empregos e da apropriação dos ganhos de produtividade. Durante o New Deal, o presidente americano F.D. Roosevelt reduziu a jornada para 40 horas semanais, como parte do esforço de reversão da crise dos anos 30 . De um modo geral, o século XX foi marcado pelas reduções generalizadas das jornadas de trabalho, até os anos 1990.
Caíram tanto as jornadas em relação ao século XVIII, que alguns teóricos, como Domenico De Masi, começaram a projetar a sociedade do tempo livre.
Tabela 1: Horas médias trabalhadas por ano, em países selecionados
PAÍS 1870 1913 1938 1950 1970 1979
Alemanha 2.941 2.584 2.316 2.316 1.907 1.719
Austrália 2.945 2.588 2.110 1.838 1.755 1.619
Áustria 2.935 2.580 2.312 1.976 1.848 1.660
Bélgica 2.964 2.605 2.267 2.283 1.986 1.747
Canadá 2.964 2.605 2.240 1.967 1.805 1.730
EUA 2.964 2.605 2.062 1.867 1.707 1.607
França 2.945 2.588 1.848 1.989 1.888 1.727
Holanda 2.964 2.605 2.244 2.208 1.910 1.679
Itália 2.886 2.536 1.927 1.997 1.768 1.566(a)
Japão 2.945 2.588 2.391 2.272 2.252 2.129
R. Unido 2.984 2.624 2.267 1.958 1.735 1.617
Suécia 2.945 2.588 2.204 1.951 1.660 1.451
Fonte: Tabela elaborada a partir de dados extraídos de Bosch, Dawkins & Michon, 1994, p. 8.
In: Ferreira da Silva et al., 1998. Nota: (a) refere-se ao ano de 1978.
No Brasil, a primeira greve registrada pela redução da jornada de trabalho ocorreu em 1895 e apenas na Constituição de 1934 é que foi implantada a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 48 horas semanais. Em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho, essa jornada foi regulamentada e incluído o limite de duas horas extras de trabalho diárias. Apenas após 54 anos, houve nova mudança constitucional da jornada de trabalho, com a Constituição de 1988. A jornada foi reduzida para 44 horas semanais. Lamentavelmente, apesar do aumento do custo das horas extras estabelecido pela nova constituição, o limite diário permaneceu em duas horas.
No entanto, no Brasil, como em outros países da periferia capitalista, as jornadas ainda são bem superiores às dos países centrais e muitas vezes, apesar de regulamentadas, não são respeitadas.
Jornada semanal de trabalho em países selecionados
PAÍS 1979 1983 1989 1992 1994 1998
Austrália (a) 35,5 34,6 33,1 33,0 33,2 ---
Alemanha (b) 41,9 40,5 40,1 39,0 38,3 ---
Canadá (b) --- 32,4 31,7 30,5 30,6 (c) ---
Chile (a) --- 42,4 44,3 44,7 45,3 43,9
Coréia (a) 50,5 52,5 49,2 47,5 --- ---
Espanha (a) 41,9 39,1 37,4 36,8 36,8 36,7
EUA (b) 35,7 35,0 34,6 34,4 34,7 34,6
França (a) 41,2 39,3 39,1 39,0 38,9 ---
Israel (a) 36,6 35,3 36,1 36,7 37,4 ---
Japão (a) 47,3 47,4 46,9 44,4 43,5 42,5
Noruega (a) 36,4 35,6 35,7 34,9 35,0 ---
R. Unido (b) (d) --- 42,4 40,7 40,0 40,1 40,2
Suécia (a) 35,7 35,7 37,5 37,2 36,4 ---
Fonte: OIT, Anuário de Estadísticas del Trabajo, 1986 e 1995 e 1999 (*) In: Ferreira da Silva et al. 1998
Notas: (a) horas trabalhadas; (b) horas remuneradas; (c) em 1993; (d) exceto Irlanda do Norte. (*) inclusão nossa

Por quê Reduzir a Jornada de Trabalho?
A década de 1990 foi marcada por uma regressão das condições do mercado de trabalho brasileiro. A pressão para a flexibilização da legislação do trabalho foi permanente, como também a disfarçada negligência estatal, que permitiu um crescimento sem precedentes das relações precárias de trabalho, na ausência de uma fiscalização efetiva da legislação trabalhista. Apesar disso e ao contrário das teses neoliberais, essa flexibilização de fato não foi capaz de impedir a maior crise de emprego da história brasileira recente. As taxas de desemprego mais que duplicaram, passando de 8,7% em 1989 para 19,3%(que é a maior taxa da série) em 1999 em termos de taxas médias anuais. O emprego industrial foi reduzido em termos absolutos e perdeu importância em termos relativos, ajudando a reduzir a qualidade do mercado de trabalho no período.
Para os trabalhadores é crucial reverter o desemprego, pois ele além de ser dramático para todos os assalariados, atinge particularmente com maior intensidade pessoas de baixa renda e qualificação, que são mais vulneráveis socialmente.
Uma política de emprego abrangente passa por políticas ativas, de ampliação da oferta de empregos através de estímulos ao crescimento da demanda agregada da economia. Mas não pode mais se restringir a isso, pois houve uma mudança na capacidade do crescimento econômico gerar empregos. No biênio 1986/87, Plano Cruzado, o PIB cresceu em torno de 10% e os empregos responderam na mesma proporção, também em torno de 10%. Já no biênio 1994/95, fase expansiva do Plano Real, o PIB também cresceu em torno de 10% mas o emprego não, pois apenas evoluiu 5%. A capacidade do crescimento econômico, por si só, em gerar empregos foi reduzida à metade, em função da abertura da economia e das mudanças tecnológicas e organizacionais.
Mesmo que o crescimento econômico retorne, o que é necessário para a geração de empregos, o ritmo de queda do desemprego será lento devido à essas mudanças estruturais da economia. É neste contexto que se faz necessário reduzir a jornada de trabalho, pois essa mudança institucional dá mais efetividade ao potencial gerador de empregos do crescimento econômico.
Os empresários sempre resistem quando se trata de repassar esses ganhos de produtividade para os trabalhadores e geralmente usam argumentos falsos. O principal é o de que seus custos subirão se a jornada cair sem que os salários sejam da mesma forma reduzidos. A falácia está no fato de que o aumento da produtividade reduz os custos da força de trabalho. Assim, os custos só aumentariam se não houvesse crescimento prévio da produtividade, ou se a redução da jornada fosse maior do que o crescimento da produtividade.
Não há registro histórico que sustente a tese patronal. Geralmente os trabalhadores reagem com atraso ao desempenho da produtividade, seja para ampliar o salários reais ou para reduzir as jornadas. Ou ambos. No mínimo, porque a iniciativa de mudar o processo produtivo é prerrogativa do capitalista.
No caso brasileiro, a produtividade cresceu: 19% desde 1992 até 1998 , segundo dados do IBGE. Logo, uma redução da jornada na dimensão proposta, de 10%, representa pouco mais da metade do que já foi apropriado, em média, pelas empresas. Vale ressaltar que a produtividade industrial cresceu bem mais. Em estudo recente da OIT concluiu-se que a produtividade industrial cresceu 48% de 1989 a 1996. A produtividade de alguns setores da indústria foi considerável, como pode ser visto em alguns exemplos da tabela 3.
Mas representa muito para os 1,7 milhões de trabalhadores que poderão ter um emprego em prazo muito curto e aos incontáveis outros que serão absorvidos ano após ano porque a nova composição da produção exige mais trabalhadores com a jornada menor. (dieese.org.br, maio de 2002)
O objetivo principal do salário mínimo é corrigir, pela ação governamental, uma imperfeição do mercado de trabalho capitalista que torna a oferta de mão-de-obra (pelos trabalhadores) maior que a procura (por parte das empresas), tendo como conseqüência a tendência a reduzir o valor dos salários na renda nacional. Essa ação corretiva se faz através da fixação de um piso salarial, capaz de garantir aos trabalhadores – especialmente aos menos qualificados – e suas famílias, condições básicas de sobrevivência. No Brasil, o salário mínimo foi criado em 1936 e teve seuprimeiro valor fixado em 1940, uma decisão política que se tornou presente em todas as Constituições, desde 1946, reafirmada em 1988, quando se definiu o salário mínimo como:
“…fixado em Lei, (…) capaz de atender às necessidades vitais básicas [do trabalhador] e de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Em 1º de maio, o valor do salário mínimo é de R$ 200,00. Fixado em 1º de abril, o valor representa apenas 17,5% do salário mínimo necessário referente ao mês de março (em R$1.091,21), para cobrir o sustento de uma família de quatro pessoas (dois adultos e duas crianças), de acordo com estimativa do DIEESE, que mensalmente calcula o valor, de acordo com o preceito constitucional e o custo da cesta básica

Quem ganha salário mínimo no Brasil
Segundo os dados da última Pnad - Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar –, de 1999, 14,7 milhões de trabalhadores ocupados ganham até um salário mínimo, o que corresponde a 24,4% do total de 60,5 milhões de ocupados. Esta participação chega a 50,1 % quando considerada a faixa até dois salários mínimos, o que representa 30,3 milhões de pessoas.


17.11,4 milhões sem trabalho no Brasil
Os dados preliminares do Censo Demográfico, divulgados no primeiro semestre, mostram que 11,4 milhões de brasileiros estavam sem trabalho em 2000. Esse número equivale a 15,4% do total de pessoas que formava, no mesmo período, a PEA (População Economicamente Ativa) - quem trabalhava ou estava procurando emprego, um contingente formado por 76,1 milhões. O economista Marcio Pochmann, secretário de Trabalho da administração petista em São Paulo, preparou estudo que incorpora as mudanças ocorridas no Censo e concluiu que, em 1991, havia 3,1 milhões de pessoas sem trabalho, o que equivalia, na época, a 5,4% da PEA. Ou seja: o total de pessoas sem emprego praticamente triplicou entre 1991 e 2000. O Censo também indicou que 24,4% da população ocupada - praticamente uma em cada quatro pessoas - ganhava apenas um salário mínimo, o equivalente na época a R$ 151 (hoje, R$ 200). A faixa que vai de um a dois salários mínimos incluía 27,5% da população. Ou seja, um em cada dois brasileiros ocupados recebia, no máximo, R$ 352 por mês. Na outra ponta, o Censo identificou que 2,6% da população ocupada recebia mais de R$ 4 mil por mês.
A desigualdade de renda entre as diferentes regiões do país continuava presente. No Sudeste, apenas 15,9% da população ocupada recebia um salário mínimo - 10,1% ganhava mais de vinte mínimos. A taxa dos que recebiam até um salário mínimo saltava para 46,2% no Nordeste (no Piauí, chegava a 59,4%) e 30,8% no Norte.
Sem renda - O estudo de Pochmann mostra que o número de chefes de família sem renda mais que triplicou entre 1991 e 2000. Em 1991, 1,4 milhão de chefes de família não recebiam nenhuma renda; em 2000, eram 4,1 milhões. Em entrevista publicada em maio pelo jornal Folha de S.Paulo, Pochmann afirmou que os dados mostram uma mudança importante na pobreza no Brasil. Segundo o texto, "os trabalhadores menos qualificados, diz Pochmann, obtinham pouca renda e, ainda que em condições precárias, estavam inseridos no mercado de trabalho. Hoje, os mais pobres nem sequer conseguem trabalho e vivem à margem do mercado". Em 2001, segundo a Pnad, a concentração de renda no Brasil só não era pior do que em Botswana e Serra Leoa, dois dos países mais miseráveis da África.

E FHC admite que quase dobrou desemprego
O presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu semana passada, em pronunciamento no Palácio da Alvorada, que seu governo causou o desemprego de pelo menos 3,4 milhões de pessoas - passando de 4,3 milhões para 7,7 milhões, um aumento de 79%. Disse ele: "De 1993 a 2001, houve um aumento de número desempregados de 3,4 milhões de pessoas. Portanto, no período do Plano Real, efetivamente, houve um aumento de desempregados", afirmou FHC, ao apresentar os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) referente a 2001. De forma indireta, FHC assumiu não ter cumprido a promessa feita por ele na campanha presidencial de 1998, de criar 7,8 milhões de empregos. Pois ao comentar os resultados, disse: "É interessante chamar a atenção: não obstante, neste período, de 1993 a 2001, foram criados quase 9 milhões de empregos. De 1993 a 1999, passou-se de 66 milhões para 73 milhões. E, de 1999 a 2001, de 73 para 75 milhões". Ou seja, no segundo mandato de FHC, foram criados apenas 2 milhões de empregos - ficaram faltando, portanto, 5,8 milhões para que a promessa fosse atingida.
O presidente afirmou em seguida que "houve uma evolução positiva da ocupação, no Brasil, de 1999 para 2001: 73,3 milhões a 75,4 milhões de trabalhadores", para concluir que "aumentou, portanto, a população ocupada no Brasil". A afirmação de FHC contém uma meia verdade. De fato, a população ocupada aumentou em números absolutos, citados por FHC, mas, de acordo com os dados da Pnad publicados pelo jornal O Estado de S.Paulo, o percentual de pessoas empregadas com 10 anos ou mais caiu de 57,3% em 1993 para 55,1% em 1996, segundo ano do mandato de FHC, para baixar ainda mais em 2001, para 54,8%. Esta é a comparação mais relevante, afirmou ao jornal Valor Econômico uma das coordenadoras da Pnad, Vanely Guerra.

Pnad confirma empobrecimento e esvaziamento do campo
A população rural encolheu e a renda do trabalhador do campo diminuiu. Esse é mais um dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2001), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada na semana passada. O levantamento foi feito entre 1999 e 2001. Segundo análise da assessoria técnica da liderança do PT na Câmara, os números confirmam "o aprofundamento da desagregação social brasileira conseqüente do projeto neoliberal intensificado desde meados da década de 1990". Segundo o Pnad, o "esvaziamento" populacional das áreas rurais do Brasil aconteceu em contraste com o aumento da população brasileira, que ampliou de 160.336.471 habitantes em 1999, para 169.369.557 em 2001. Já a população rural encolheu 5,3 milhões de habitantes, passando de 32.585.066 pessoas, para 27.269.877 pessoas. Na análise de Gerson Teixeira, assessor para a área agrária do PT na Câmara, esse fato desmistifica três outros sustentados pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. O primeiro é a idéia difundida de que o êxodo rural já havia estacionado no Brasil face ao um suposto "novo rural" em emergência com estancamento do processo migratório. O Pnad joga ainda por terra a promessa de criação de 3 milhões de empregos na agricultura feita pelo então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso. Os dados, na verdade, confirmam o agravamento da pobreza nas áreas rurais do país, com o crescimento de 7,9% no número de domicílios com rendimento de até um salário mínimo. Esses domicílios, que somavam 1,1 milhão em 1999, tiveram um incremento de 143,8 mil em 2001. Na demais faixas de renda, ocorreu a redução generalizada do número de domicílios rurais, comprovando o definhamento da renda nas áreas rurais. De 1999 para 2001 constatou-se que o número de famílias com rendimento superior a vinte salários mínimos caiu de 1,1% para 0,7% em 2001. Famílias em domicílios a partir da faixa de renda de mais de três salários mínimos foram reduzidas de 2,3 milhões, em 1999, para 1,5 milhões. Domicílios com famílias com renda de até três salários mínimos caíram também de 5,70 milhões em 1999, para 5,3 em 2001.
INFORMES - 17/set/2002 - N° 2.624 - Ano XII

18. As Migrações
Em seus 500 anos de história, durante 470 anos o Brasil foi uma sociedade de maioria de população rural. O primeiro censo demográfico que aponta equilíbrio entre as populações rural e urbana ainda com pequena predominância rural é o de 1970. O censo de 2000, no entanto, mostra a presença de 81,2% das pessoas nas cidades. Alteramos a distribuição da nossa população, de forma rápida e brutal. Hoje, 40% da população brasileira vivem em apenas nove aglomerados urbanos, as regiões metropolitanas, cada vez mais ingovernáveis.
No decorrer do século XX, o Brasil passou por importantes mudanças em sua população, que era constituída de 17 milhões de habitantes, em 1900, passando para 157 milhões em 1996, e estimando-se 169 milhões no ano 2000. Esse crescimento foi acompanhado não somente por significativas mudanças nos perfis da mortalidade e da fecundidade, mas também nos rearranjos espaciais entre o rural e o urbano, refletindo-se nas novas formas de distribuição regional da população propiciado pelas migrações internas. A composição da população brasileira também recebeu nesse século um influxo importante das correntes de imigração de outros países, iniciadas a partir de meados do século XIX e concentradas sobretudo no centro-sul do país.
A mobilidade espacial da população no território nacional insere-se num contexto mais amplo de transformações da sociedade em seu conjunto. Os distintos contextos históricos, econômicos, sociais, políticos e demográficos tiveram rebatimentos nos processos de redistribuição da população e de urbanização, contribuindo para a transferência de enormes contingentes populacionais entre áreas rurais, entre áreas rurais e urbanas e, atualmente, entre áreas urbanas (Martine, 1990).
Já na Colônia e no Império, com a dinâmica econômica assentada nos ciclos de atividade primário-exportadora, os deslocamentos de população propiciaram a ocupação do território, apesar das distintas formas de povoamento (Prado Junior, 1945; Furtado, 1970). Ressalte-se que, com a lavoura açucareira, o número de escravos entrados no Brasil, entre 1550 a 1850, chegou a cerca de 3 milhões de africanos (Goulart, 1950). Juntando-se os vários ciclos econômicos baseados no trabalho escravo, onde se destacam, além da lavoura açucareira, a economia mineira e a lavoura do café, foram no total cerca de 4 milhões de escravos que entraram no Brasil desde o início do tráfico até 1850.

O BRASIL COMO DESTINO NAS GRANDES MIGRAÇÕES DE 1880-1930
No período 1880-1930, o País assistiu a entrada de 3.993.766 imigrantes estrangeiros (Levy, 1973). A partir da segunda metade do século XIX, a implantação da cultura do café conduziu a essa expressiva imigração européia, particularmente com destino a São Paulo (Merrick e Graham, 1979; Levy, 1973; Camargo, 1981). Vale dizer que, além da cultura cafeeira, os projetos de colonização agrícola com a finalidade de povoamento e defesa do território, implantados nos Estados do Sul do país, também motivaram a vinda de imigrantes estrangeiros a partir de meados do século XIX, sobretudo de imigrantes alemães e italianos.
Essas migrações para o Brasil ocorrem no bôjo das grandes migrações da Europa para as Américas que aconteceram nesse período, relacionadas às mudanças populacionais configuradas na transição demográfica (Klein, 1999) e às transformações econômicas que levaram a grandes expulsões de populações rurais decorrentes do desenvolvimento capitalista da Europa naquele período (Alvim, 1986).
Evolução da entrada de imigrantes no período de um século desde 1872 até 1972.
Desses 5.350.889 imigrantes chegados ao Brasil nesse período de um século, as principais nacionalidades foram, ainda segundo a pesquisa de Levy (1973):
Portugal 1.662.180 (31,1%)
Itália 1.622.491 (30,3%)
Espanha 716.052 (13,4%)
Japão 248.007 (4,6%)
Alemanha 223.517 (4,2%)
Outros 878.642 (16,4%)
Do ponto de vista demográfico, Balán (1974), somaria os seguintes deslocamentos populacionais registrados no País, do final do século XIX até os anos 30 do século XX:
1) migração de escravos;
2) imigração estrangeira, com os tipos:
a) colonização em novas áreas em pequena propriedade,
b) contratação via parceria,
c) imigração subsidiada, via colonato,
d) imigração livre, sem subsídios ou intervenção estatal ou de companhias de colonização;
3) migração inter-regional de mão-de-obra livre;
4) migrações para áreas de economia de subsistência;
5) migração livre em direção a produção de borracha na Amazônia;
6) migração de negros libertos, substituídos por imigrantes estrangeiros.
O autor conclui que, particularmente no final do século XIX, a migração era altíssima, talvez a mais alta em toda a história contemporânea do País. Com a imigração estrangeira diminuindo progressivamente a partir de 1930, as próximas etapas da economia contaria sobretudo com a participação das migrações internas para suprir a necessidade de mão-de-obra (Sales, 1992).

O IMPULSO DAS MIGRAÇÕES INTERNAS
A crise econômica mundial em 1929, e a conseqüente crise do café, exigiram a passagem para outro tipo de desenvolvimento econômico. A acumulação cafeeira permitiu que o excedente gerado passasse a ser aplicado em investimentos urbanos e industriais (Cano, 1977). Nessa etapa, decresceu consideravelmente a entrada de estrangeiros, ao mesmo tempo, em que aqueles das áreas cafeicultoras rurais transferiam-se para áreas urbanas (Morse, 1965).
As migrações internas, entre 1930-1950, seguiram, basicamente, duas vertentes: os deslocamentos rumo às fronteiras agrícolas (Paraná, Centro-Oeste e Maranhão) e rumo aos centros industriais do Sudeste, com o modelo de industrialização via substituição de importações. Esse período foi marcado pela crescente migração rural-urbana, estimando-se um êxodo rural em nível nacional em torno de 3 milhões de pessoas, nos anos 40. A estagnação de áreas agrícolas tradicionais, indiretamente provocada pela própria concentração industrial (Lopes, 1980), contribuíram, por outro lado, para as migrações internas em direção às fronteiras agrícolas (Martine, 1990).
Nesse contexto, assistiu-se a intensificação do processo de urbanização no País. De fato, tem-se observado no Brasil, desde os anos 40, aumento significativo de sua população urbana. Em 1940, 12,8 milhões de pessoas residiam no meio urbano, sendo que a população rural ainda representava 69% do total nacional; mesmo assim a taxa de crescimento das áreas urbanas foi mais elevada: 3,84% a.a. contra 1,58% a.a. das zonas rurais,
Apesar da ligeira diminuição no ritmo de crescimento da população urbana, esta passou a representar, em 1950, 36,2% da população brasileira, elevando-se para 44,9%, em 1960.
Ainda nos anos 50, no entanto, a ocupação das áreas de fronteira agrícola (Paraná, Faixa Central do Centro-Oeste até o Maranhão) desempenhou um importante papel na interiorização do território, com os fluxos rural-rural contribuindo para amortecer as migrações para as áreas urbanas.
A partir da segunda metade dos anos 60, iniciou-se o processo de industrialização do campo, com a subordinação da agricultura à indústria, tecnificação e modernização agrícola (Müller, 1985), contribuindo para o crescimento da saída de população do meio rural. Além disso, já deslanchava nesse período o processo de esgotamento das antigas áreas de fronteiras, resultando num êxodo rural em torno de 12,8 milhões de pessoas, entre 1960-1970 (Martine, 1990:22).
Os anos 60 marcaram a inversão da sociedade predominantemente rural para a urbana; com mais de 50 milhões de habitantes vivendo no meio urbano e com uma taxa de crescimento elevada (4,4%a.a.); tendo o Brasil registrado em 1970, mais da metade de sua população em localidades urbanas (55,9% do total da população). As décadas seguintes confirmaram esta tendência, chegando o País, em 1996, a 123 milhões de pessoas residindo em áreas urbanas, o que correspondeu a 78,4% do total. O último censo já mostrou que 81,2% da população vivem na cidade.
Nos últimos 25 anos, mais de 30 milhões de camponeses deixaram o campo. Conforme o Ministério da Agricultura, setembro de 1999, a migração rural anual é de mais de 800 mil pessoas. Dos 38 milhões de habitantes da área rural, 73% têm renda anual inferior à linha da pobreza (260 dólares). Dos assalariados rurais que recebem até um salário mínimo, somente 22,5% possuem carteira assinada.
Segundo a PNAD de 1995 das 16,3 milhões de crianças brasileiras, 522.185 (na faixa etária de 5 a 6 anos) estavam no mercado de trabalho, e destas 423.679 na agricultura.
Centenas de milhares de agricultores familiares estão deixando o campo, como sabe o Ministério da Agricultura. Para contextualizar este processo, basta lembrar que entre 1991 e 1996, a diminuição do volume da população rural foi de 1,8 milhão de pessoas. Este dado é um saldo porque inclui o aumento da população rural na Região Norte, da ordem de 1,2 milhão de pessoas.

Novo perfil da migração interna
No âmbito dos movimentos migratórios entre as Grandes Regiões, o início dos anos 90 tendeu a consolidar as transformações na dinâmica migratória brasileira, com o fortalecimento de duas vertentes complementares do atual processo de distribuição espacial da população: de um lado, a continuidade da centralidade do Sudeste no processo migratório nacional, bem como de seu expressivo refluxo populacional aos estados de nascimento; de outro lado, o prosseguimento da redução no ímpeto das migrações de longa distância.
As migrações internas no Brasil, nas últimas décadas, foram marcadas por expressivas alterações em sua dinâmica, que se refletem nas novas especificidades e tendências do processo de distribuição espacial da população. A menor pressão dos grandes movimentos rurais (o êxodo rural dos anos 80 foi da ordem de 10,6 milhões de pessoas) para os centros urbanos de maior porte e o próprio patamar em que se encontra o processo de urbanização, vêm contribuindo para a predominância do movimento urbano-urbano, onde emergem e se reforçam variadas modalidades de deslocamentos populacionais. Ao lado dos tradicionais fluxos migratórios, passam também a se sobressair outras direções movimentos de curta distância, movimentos de retorno, movimentos intra-regionais - onde novas dimensões da migração, em particular a espacial, passam a constituir elemento explicativo e determinante do fenômeno migratório. Ou seja, o fenômeno migratório adquire características particulares dependendo dos espaços onde se processa.
Nordeste ainda é região que perde mais população
Quanto à questão da migração, a Tabulação Avançada do Censo 2000 mostra que a Região Nordeste continua sendo a maior expulsora de população. Uma das formas utilizadas para medir a movimentação da população foi adotar uma data de referência (31 de julho de 1995), e perguntar à população maior de 5 anos qual era o seu local de residência naquela data. Constatou-se então que, entre 1995 e 2000, 1.457.360 pessoas saíram do Nordeste, sendo que 70,9% delas migraram para a Região Sudeste. Este número aumentou 7,6% em relação ao censo anterior, que registrava 1.354.449 saídas do Nordeste entre 1986 e 1991, sendo 67,7% delas para o Sudeste. Enquanto 55,4 milhões de pessoas informaram ter nascido no Nordeste, a população da região é de 47,7 milhões. No Sudeste, por outro lado, nasceram 66,8 milhões de pessoas, porém lá vivem 72,4 milhões.
Por outro lado, observa-se também um aumento nas saídas do Sudeste em direção ao Nordeste, que, em parte, pode ser atribuído a um fluxo migratório de retorno. Entre 1995 e 2000, 48,3% das saídas do Sudeste (o que corresponde a 458.924 pessoas) foram em direção ao Nordeste. Entre 1986 e 1991, o percentual havia sido de 42,5%, correspondendo a 334.431 indivíduos.
Na comparação entre os dois censos, as entradas na Região Nordeste aumentaram 30,6%, incluindo-se aí pessoas vindas de todas as regiões, mas seu saldo migratório continua sendo o mais negativo entre as regiões. No balanço de entradas e saídas, o Nordeste havia perdido 876.534 indivíduos entre 1986 e 1991, e perdeu 833.400 entre 1995 e 2000.
Já o Sudeste continua com o saldo migratório mais positivo, o que demonstra que esta região mantém-se caracterizada como área de forte atração de imigrantes. O ganho foi de 640.138 indivíduos, entre 1986 e 1991, e de 595.395 indivíduos entre 1995 e 2000. A Região Sul, por sua vez, teve redução no volume de saídas, o que resultou em um saldo migratório praticamente zerado, com perda de apenas 585 indivíduos entre 1995 e 2000.

Mudança do paradigma migratório: da industrialização para internacionalização
Nós passamos:
 da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial (internacionalização) da urbanização para a recolocação
 das "classes laboriosas" (com exceções) para as "classes perigosas" (tudo!)
 do processo de inclusão para o processo de exclusão
 de imigração assimilada à imigração criminal
 do estado social para o estado penal
 de um mundo "aberto" a uma "fortaleza" mundial
A migração se tornou então quase em todos lugares uma ofensa procurada de cada vez pelos países de partida e pelos países de destino. Este fato constitui o primeiro "fator" de criminalização da migração que transforma as políticas migratórias dos países europeus assim em um tipo de militaro-polícia em lugar de uma real possibilidade de inserção regular.


19. A escravidão não acabou
No século XIX, a Lei Áurea acabou com o trabalho escravo. Certo? É bom duvidar do fato histórico. Em pleno século XXI, esse tipo de mão-de-obra é encontrada não só no Brasil como em todo o mundo. A Comissão Pastoral da Terra (CTP) fez uma estimativa de que 1.267 trabalhadores(as) exerceram trabalhos não remunerados em 24 fazendas do sul do Pará ano passado.Trata-se de um número bem superior ao de 2000, quando foram registradas pouco mais de 300 pessoas. Segundo o escritor e ex-coordenador da Pastroal de Conceição do Araguaia, sudeste do Pará, Pe. Ricardo Rezende Figueira, esse número pode ser bem maior, chegando a 25 mil.
IbaseNet - Qual a explicação para que esse tipo de abuso aos direitos humanos continue ocorrendo?
Pe. Ricardo Rezende - A Organização Internacional do Trabalho suspeita que nunca, no mundo, houve tantos escravizados como agora. Trata-se de um fenômeno internacional que tem atingido não só países do terceiro mundo, mas também nações ricas. Os pretextos para a transformação de pessoas em escravas pode ser a dívida, a religião, questões raciais ou étnicas. No Brasil e, em geral, no Ocidente, a razão é a dívida. A vítima em geral é o migrante, alguém que não pertence ao país ou à região, por isso vive uma situação de fragilidade. É o "estrangeiro", em geral pobre, sem qualificação profissional. A explicação para a situação é diversa: omissão do Estado na proteção da cidadania, desinformação das vítimas e desigualdades sociais.
IbaseNet - Como as dívidas são contraídas com os fazendeiros?
Pe. Ricardo Rezende - As dívidas são contraídas já no aliciamento. Proprietários contratam empreiteiros que, pessoalmente ou com o auxílio de outros, viajam a estados onde há abundância de mão-de-obra desempregada. Ali conseguem atrair diversas pessoas, pagam suas passagens, sua alimentação e, às vezes, oferecem-lhes um abono. Em seguida, levam-nas para o local onde devem trabalhar. Ao chegarem no imóvel, ficam sabendo que são prisioneiras de uma dívida e que só podem sair depois de sua quitação.
IbaseNet - 1.267 foi o número registrado pela CPT. Considera que o montante de trabalhadores(as) atuando de forma escrava seja maior?
Pe. Ricardo Rezende - A estimativa da CPT é modesta frente ao número real. A própria Comissão fez uma outra estimativa, em que os 200 mil hectares de desflorestamento que teria havido nos municípios de São Felix do Xingu e Tucumã, em 2001, serviram de base de cálculo. Partiu-se do princípio que um homem é capaz de, em um mês, derrubar 5 hectares. Ora, se os 200 mil hectares fossem derrubados simultaneamente, em um prazo de cinco meses, seriam necessários 10 mil trabalhadores. O sul do Pará tem em torno de 38 municípios. Dessa forma, a conclusão é de que pelo menos 25 mil pessoas estiveram nessas atividades. É claro que a área derrubada nos municípios varia. São Felix e Tucumã certamente, sendo região de penetração mais recente, têm maiores derrubadas de matas. Contudo, o trabalho escravo é utilizado também para outras atividades: feitura de cercas e aceiros, limpeza e recuperação de pastos etc.
IbaseNet - O número oficial fornecido pela CPT engloba mulheres e crianças? A grande maioria é negra ou branca?
Pe. Ricardo Rezende - Há poucas mulheres e crianças. Em geral, em atividades que exigem muita força física - como roçar o mato fino com foice e derrubar árvores mais grossas - é evitada a presença de famílias. Por isso predomina a força masculina adulta. As denúncias relativas ao trabalho escravo feminino e infantil são relativas a atividades de plantio ou colheita de frutas, corte de cana-de-açúcar ou em carvoarias. A identidade das vítimas é a pobreza. Como entre pobres há muitas pessoas de cor negra, há também muitas de origem afro.
IbaseNet - O que acontece se tentarem ir embora? Conhece casos de morte?
Pe. Ricardo Rezende - Tentar sair, em algumas situações, é muito perigoso. Há diversas denúncias de assassinato para os que ousaram fugir.
IbaseNet - Qual a punição prevista para os donos de fazenda que investem nessa prática?
Pe. Ricardo Rezende - A penalidade é muito baixa. Está previsto para quem incorrer no crime tipificado pelo artigo 149, do Código Penal Brasileiro (Reduzir alguém à condição análoga a de escravo), a reclusão de 2 a 8 anos. Na prática, como os poucos fazendeiros são réus primários, ficam em regime aberto e substituem a penalidade por oferta de cestas básicas aos pobres.
IbaseNet - Existem fazendas no sul do Pará que já foram notificadas mais de quatro vezes. Os donos dessas terras não foram condenados à pena de prisão, sem direito à distribuição de cestas básicas?
Pe. Ricardo Rezende - É muito comum a reincidência no crime. Antônio Barbosa, por exemplo, da Fazenda Alvorada, em Água Azul do Norte, Pará, foi condenado em 1999 e em 2001 incorreu na sua quinta reincidência. O fazendeiro Jairo Andrade, grande proprietário de terra, foi acusado ano passado pela nona reincidência no crime. São poucos os casos de condenação. Quando ocorrem, é estipulada uma multa leve, que muitas vezes não é cobrada. Apenas uma vez o governo desapropriou uma fazenda, pagando 10 vezes o valor do imóvel. Ou seja, deu um presente ao escravagista.
IbaseNet - Na sua opinião, o que deve ser feito para que não seja encontrada mais mão-de-obra escrava nas fazendas?
Pe. Ricardo Rezende - Em vez de uma condenação penal, o efeito seria maior e mais rápido se houvesse a perda do imóvel. Usa-se o trabalho escravo pelas conveniências econômicas, por isso a solução passaria também pelo bolso do escravagista. Contudo, o governo federal não mobiliza sua bancada para aprovar emenda constitucional que amplie a desapropriação sem indenização. Atualmente, é previsto esse tipo de desapropriação, no artigo constitucional número 243, apenas para os imóveis onde há algum tipo de planta psicotrópica. Diversos parlamentares, entre eles Paulo Rocha e Ademir Andrade, estão com uma emenda à Constituição tramitando no Congresso. Espero que obtenham sucesso.
IbaseNet - O que o Estado e ONGs estão fazendo para mudar a situação?
Pe. Ricardo Rezende - Há uma campanha importante e necessária contra o trabalho escravo desencadeada pela Comissão Pastoral da Terra e pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. A campanha tem o apoio de entidades como a Anti-Slavery International, Human Rights Watch, Anistia Internacional, Federação Internacional dos Direitos Humanos, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Justiça Global e diversos núcleos do Comitê Rio Maria.
Relatório CPT: conflito no campo aumenta em 40%
Brasília, 25/07/02 – A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lança, agora à tarrde, na sede da CNBB, em Brasília, o Relatório de Conflitos no Campo 2001. A publicação informa que aumentou em 40% o número de assassinatos no campo em 2001, em comparação com o ano anterior. Foram registrados, no ano passado, 29 assassinatos no campo, contra 21 ocorridos no ano de 2000.
Quanto à ocorrência de trabalho escravo, observou-se um aumento de 519%. Os números saltaram de 465 vítimas no ano de 2000 para 2.416 no ano passado. Os dados revelam, ainda, que os trabalhadores rurais realizaram, no ano passado, 493 manifestações envolvendo 478.775 pessoas. De acordo com a CPT, este é o maior número de manifestações já registrados no relatório.

20. O Brasil rural que não está nas estatísticas
O país é mais rural do que os dados oficiais levam a crer. É o que revelou uma matéria do Jornal do Brasil, publicada em março. Segundo Sérgio Paganini Martins, secretário-adjunto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, a metodologia de cálculo da "taxa de urbanização" do Brasil é anacrônica e obsoleta. Para definir os espaços rural e urbano no país, as instituições de pesquisas do governo utilizam um método criado no tempo do Estado Novo, em 1938.
A utilização de uma metodologia tão antiga faz com que as estatísticas oficiais apontem uma população rural bem inferior do que a que realmente existe no país. As conseqüências diretas desse registro são sentidas na falta de uma correta definição de políticas públicas voltadas para o campo, como é o caso da Reforma Agrária. Se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) "apura" que a população rural brasileira estará praticamente "extinta" por volta de 2030, porque criar mecanismos de incentivo à economia na zona rural?
"A importância relativa da sociedade rural já é tão pequena que torna pouco relevante qualquer política voltada para sua dinamização, além de dispensar a definição de alguma estratégia específica. Seria como 'gastar vela com mau defunto', observa Sérgio Paganini. De acordo com o secretário-adjunto, se fossem usados os parâmetros adotados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que estipula um mínimo de 150 habitantes por quilômetro quadrado para a caracterização de zonas urbanas, os números do Censo 2000, do IBGE, seriam diferentes.

Mais 40 milhões no campo
O censo revela que 81% dos brasileiros vivem em áreas urbanas e 19% em zonas rurais. Se o parâmetro fosse o da OCDE, o número de pessoas no campo seria maior, 43%. Já na cidade haveria 57% dos brasileiros. "Uma 'migração' de mais de 40 milhões de pessoas do meio urbano para o rural", destaca Sérgio Paganini. A metodologia usada pelo IBGE foi definida pelo Decreto-Lei assinado em 1938, pelo presidente Getúlio Vargas, que transformou em cidades todas as sedes municipais existentes, independente de suas características.
A legislação do tempo do Estado Novo fez pequenos povoados e vilas, que dependem essencialmente do campo, se tornarem zonas urbanas da noite para o dia. Segundo o repórter César Baima, no mundo inteiro, apenas Equador, El Salvador, Guatemala e República Dominicana ainda usam critérios semelhantes. Pelo método da OCDE, observa, apenas 411 dos 5.507 municípios brasileiros seriam considerados urbanos.
A manutenção da metodologia, na visão de Sérgio Paganini, se deve também ao lobby das prefeituras, que não querem perder arrecadação com mudanças nas definições dos espaços rural e urbano. "No geral, as prefeituras querem ter um perímetro urbano maior, inflado, para poder cobrar IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), de caráter municipal. Do contrário, seria cobrado o ITR (Imposto Territorial Rural), que é federal", alerta.
A falha das estatísticas, observou Sérgio Paganini, impede a constatação de outros fenômenos, como o fim do êxodo rural. "Nos últimos 15 anos, praticamente acabou o êxodo rural, já que as cidades não dão mais uma melhor qualidade de vida do que o campo", explica. Outra fato que ainda vem ocorrendo e que, também, não é identificado pelas pesquisas, é o êxodo urbano. A população está fugindo da cidade e indo para o campo com medo da violência, poluição e estresse dos grandes aglomerados urbanos. "Em São Paulo, isso já é facilmente observável. São os 'neo-rurais', pessoas da cidade em busca de melhor qualidade de vida no campo", revela. http://www.cptnac.com.br/
No Brasil, cerca de 35% da produção agrícola vai para o lixo por causa da prática generalizada de desperdício. Um luxo num país com tantos famintos.
O custo médio para o assentamento de uma família, segundo dados da Organização Para Alimentação e Agricultura (FAO) e do INCRA, é de aproximadamente US$ 16 mil, ao passo que a criação de um emprego na indústria siderúrgica varia de US$ 70 mil a US$ 150 mil dólares. O percentual médio de desistências em 1993, segundo pesquisa da FAO - com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da reforma agrária (MAARA) - era de 22% no país.
Ainda de acordo com a pesquisa da FAO, a renda familiar média era de 3,7 salários mínimos mensais. Isto significa que a renda média dos assentamentos quase atingia a renda média nacional que era de 3,82 salários mínimos.
Há 22 organizações especializadas em agricultura nas Nações Unidas. Uma delas, voltada para nutrição e agricultura, publicou um relatório revelando que a agricultura mundial, agora, poderia alimentar 12 bilhões de pessoas. Isso significa dar a cada indivíduo, diariamente, 2600 calorias. Ou seja, somos a metade de 12 bilhões (significa que existe o dobro de comida que é necessária para alimentar a população de todo o mundo) e, a cada dia, morrem 100 mil pessoas vítimas da fome e centenas de milhões estão gravemente subalimentadas, são inválidas, incapazes de trabalhar e ter uma vida normal. São 900 milhões de pessoas subalimentadas no mundo. Ou seja, quase um sexto da humanidade não tem o que comer.
A FAO avalia em seu último relatório em mais de trinta milhões o número de pessoas mortas de fome em 1999.

Produção animal e vegetal
Na investigação do valor da produção animal e vegetal, o IBGE estimou esse número em R$ 47,8 bi¬lhões, tendo como referência o ano de 1996. Por grupo de área total, foi constatado que:
a) os estabelecimentos inferiores a 100 ha res¬ponderam por 47% do valor total da produção agrope¬cuária, com R$ 22,2 bilhões;
b) os estabelecimentos de 100 ha a menos de 1. 000 ha, foram responsáveis por 32% do valor, com R$ 15,4 bilhões;
c) os estabelecimentos entre 1.000 ha e 10.000 ha, participaram com 17% do valor total, com R$ 8,3 bilhões e;
d) os estabelecimentos acima de 10. 000 ha responderam por 4% do valor total da agro-pecuária, com R$ 1,7 bilhões.
No entanto, mesmo com o efetivo bovino inferior ao observado no extrato de área entre 1.000 ha a menos de 10.000 ha, os estabelecimentos com áreas de pastagens inferiores a 100 ha são os que mais participam no suprimento da população à medida que respondem por 56% dos bovinos vendidos, contra 23% dos estabelecimentos com pastagens entre 100 ha e 1.000 ha.
Da mesma forma, os estabelecimentos com área total inferior a 100 ha foram responsáveis por 52% do volume vendido de 18 bilhões de litros de leite de vaca, contra 43% dos estabelecimentos entre 100 ha e 1.000 Ha; e 5% daqueles com área total entre 1.000 ha e 10.000 ha.
Supondo-se a representatividade das amostras de produtos animais e vegetais acima tratados, conclui-se que a agricultura familiar responde por 56% da oferta interna de alimentos e matérias primas vegetais, e por 67% da oferta interna animal.

Diminuição dos estabelecimentos
De 1985 a 1995-96, pela primeira vez, desde o censo de 1950, constatou-se a diminuição do número de estabelecimentos agrícolas no Brasil.
Os 5.801.809 estabelecimentos agrícolas registrados pelo censo agropecuário de 1985, foram reduzidos em 941.944 na contagem de 1995/96, resultando em 4.859.865 estabelecimentos, abrangendo 353.6 milhões de ha, ou seja, 21,3 milhões de ha a menos que em 1985.
Dos estabelecimentos extintos, 906.283, ou 96% do total, apresentavam áreas inferiores a 100 ha, sendo que, nesse extrato de área, a maior redução se deu com os estabelecimentos até 10 ha, onde desapareceram 662.448 estabelecimentos, o que significa 70,3% do total dos estabelecimentos extintos e 28% do número de estabelecimentos que restaram nesse limite de área.
De acordo com o ex-Secretário Nacional de Polí¬tica Agrícola, Sr. Guilherme Dias, desse número de pe¬quenos estabelecimentos extintos, pelo menos 400 mil desapareceram nos dois primeiros anos do governo FHC.
Essa diminuição da área agrícola equivale a 61% da área total plantada com grãos na safra 1997/98. A área restante (353,6 milhões de ha), corresponde a 41,4% da área territorial do país (854,7 milhões de ha).
Comparando os dados do Censo de 1970 com os levantamentos de 1995-96, o IBGE demonstra que, em 1970, os estabelecimentos com menos de 100 ha re¬presentavam 90,8% dos estabelecimentos totais, deten¬do 23,5% da área.
Em 1995-96, o número de estabelecimentos nessa faixa experimentou uma redução para 89,3%, acompanhada da redução de área para 20% da área total.
Em contraposição, os estabelecimentos com área acima de 1.000 ha que representavam, em 1970, 0,7% do total e detinham 39,5% da área. Em 1995-96, pas¬saram a representar 1% do número total de estabeleci¬mentos, e acumular 45% da área.

Faixas de área
Com essa redução o número atual de estabeleci¬mento agrícola ficou assim distribuído por faixa de área:
a) 4,3 milhões com áreas inferiores a 100 ha; (89,3% do total das propriedades)
b) 470 mil com áreas de 100 ha a menos de 1.000 ha;
c) 47 mil estabelecimentos com áreas de 1.000 ha a menos de 10.000 ha;
d) 2,2 mil com áreas a partir de 10.000 ha; e o restante, sem declaração.
Em consonância com os processos acima, o IBGE atestou que a área total dos estabelecimentos in¬feriores a 100 ha, sob a condição de proprietário, foi reduzida em 1,9 milhão de ha, entre 1985 e 95-96. Sob a condição de arrendamento, a diminuição de área nesse extrato, foi de 1,8 milhão de ha.
Sintomaticamente, no mesmo período, aumenta¬ram em 1,3 milhão de ha, as áreas sob a condição de proprietário na faixa entre 10.000 ha e 100.000 ha.

Área plantada segundo produtos 1994-98 (diminuição em %)
Produto Área plantada
Feijão -26,0%
Milho -15,0%
Arroz -21,0%
Algodão -42,0%
Total de grãos -7,8%
Fonte: Conab

A pequena propriedade no Brasil:
São 4,2 milhões de estabelecimentos agrícolas.
670 mil a 700 mil têm renda excedente (lucro) e tecnologia = são apenas 16,6% dando lucro
2,5 milhões se enquadram no regime de subsistência = 59,5% são pobres
1 milhão estão abaixo da linha da pobreza (renda média mensal de meio salário mínimo – R$ 100,00 = 23,8% são miseráveis).
Assim 3,5 milhões (83,3%) são pobres.

As medidas macro-econômicas de FHC
As principais medidas tomadas em nível macro-econômico do governo FHC, fica nítida a opção governamental pelos grandes empresários:
1. abertura indiscriminada para importações agrícolas;
2. altas taxas de juros e restrição do crédito rural;
3. prioridade às culturas e criações destinadas à exportação;
4. liberalização dos preços dos produtos e dos insumos agropecuários;
5. descaso com as empresas públicas de pesquisa e assistência técnica;
6. precarização do trabalho no campo.
Para conter a reação popular, e principalmente aquelas lideradas pelo MST, o Governo Federal implantou políticas públicas compensatórias como as cestas de alimentos, o Pronaf e os programas de crédito fundiário (Banco da Terra), de modo a atender demandas imediatas e induzir os movimentos a competirem entre si na disputa pelas compensações à seu alijamento da política macro-econômica em vigor. São tudo coisas que não vão resolver o problema.
A agropecuária é o mais importante setor superavitário do comércio exterior brasileiro. Em 2001, exportou nada menos de US$ 22,7 bilhões, o que representou quase 40% da receita total de exportações do país (US$ 55,6 bilhões), e importou apenas US$ 4,6 bilhões, gerando um saldo de US$ 18 bilhões numa balança comercial que, infelizmente, foi deficitária em US$ 2,6 bilhões.
Essa situação da agropecuária brasileira enfrenta, porém, graves problemas. Os preços agrícolas internacionais vêm caindo sistematicamente nos últimos 30 anos, especialmente dos grãos. Assim, as receitas geradas pelas exportações agrícolas brasileiras vêm se mantendo graças ao aumento mais que proporcional dos volumes vendidos. Por que os preços estão caindo?
Primeiro, por causa do aumento das barreiras, as quais dificultam o acesso de produtos agrícolas com maior valor agregado aos mercados dos países ricos. Apesar disso, os países ricos continuam protegendo cada vez mais as suas agriculturas enquanto nós continuamos mantendo a política da “liberalização unilateral”, implementada no início dos anos 90 pelo governo Collor.
Segundo, porque somos grandes exportadores de soja, açúcar, café, carnes e suco de laranja. E quando aumentamos nossas quantidades exportadas contribuímos ainda mais para a queda dos preços internacionais. Essa situação piorou ainda mais depois da chamada “Lei Kandir”, que desonerou apenas as matérias-primas de origem agrícola sem processamento, incentivando justamente as exportações de produtos primários, cujos preços vêm apresentando as maiores quedas. Nós aumentamos os volumes exportados de produtos primários para compensar a queda de preços no mercado internacional, mas com isso derrubamos ainda mais os preços.
O fato é que o Brasil tem experimentado perdas no desempenho de nossas exportações agrícolas no comércio mundial. De 1990 para 1995, o crescimento das exportações foi de 60%, enquanto que, entre 1995 e 2000, houve uma queda de 1% no valor das exportações agrícolas do país, o que representa praticamente uma estagnação.

A coisa vai mal
De acordo com a Conab, a área plantada com grãos na safra 1998/99 foi de 36.7 milhões de Ha, o que correspondeu ao incremento de 1.6 milhão de Ha, relativamente à safra anterior.
Se a maior utilização de máquinas agrícolas indica maior incorporação de tecnologia no processo produtivo, e portanto, fator de aumento de produtividade, as vendas internas desses bens, em 1994, foram de 46.215 unidades, ou seja, superior à quantidade vendida nos anos de 1997 e 1998, juntos. No entanto, naquele ano, os números da produção de grãos e da área plantada foram praticamente idênticos aos do ano de 1998, inclusive, com menor nível de rendimento físico em 1994 (1.94 ton/ha, contra 2.1 ton/ha, em 1998); quadro é semelhante quando analisamos o consumo de calcário. Em 1994, o consumo desse insumo foi de 20.4 milhões de ton, contra 16 milhões de ton, em 1998; entre todos os insumos, os fertilizantes foram os únicos que apresentaram aumento de consumo em 1998, relativamente a 1994, com 2.6 milhões de ton, a mais; quanto à base genética, a proclamada revolução das biotecnologias, em curso, até o momento, só revolucionou os lucros das grandes corporações. De acordo com o Prof. Edward Schuh, da Universidade de Minnesota, tido como gurú do agronegócio, inclusive no Brasil, "os níveis de produtividade dos principais alimentos estão estacionados há anos; a 'revolução verde' empacou";
Ano População Produção de Grãos Produção Per Capita
(mil pessoas) Milhão de ton. -Kg/Pessoa-
1995 155.319 81.1 522.15
1996 157.482 73.5 466.72
1997 158.736 78.4 493.90
1998 161.532 76.5 473.59
1999 163.591 81.9 500.63
. Fontes: produção: CONAB; população: IBGE
. Elaboração: assessoria técnica da bancada do PT, na Câmara.
A renda bruta das lavouras, em 1999 foi 40% menor, em termos reais, à verificada em 1980. Em relação a 1994, a renda dos alimentos básicos, em valores reais, foi reduzida em 11.7%; a renda dos grãos, em 8.8%; milho, 10%; feijão, 47%; e algodão, em 15%.
De acordo com os dados cadastrais do Incra, relativos a 1998, os minifúndios e as chamadas pequenas propriedades rurais (imóveis com área total até 4 módulos) totalizavam 3.183.055 imóveis (88,7% do total de imóveis), detendo 92,1 milhões de hectares (apenas 22,2% da área total cadastrada). Enquanto isso, as chamadas grandes propriedades (imóveis com área superior a 15 módulos) totalizavam 104.744 propriedades (2,9% do total de imóveis) detendo, porém, 238,3 milhões de hectares (57,3% da área cadastrada no país). Essa desigualdade atinge nível extremo com 21 mil megalatifúndios (imóveis com área superior a 50 módulos), representando apenas 0,6% do total de imóveis rurais cadastrados, detendo, porém, mais de 149 milhões de hectares, ou seja, cerca de 36% da área cadastrada no Brasil.
Segundo esses dados, os grandes imóveis rurais não produtivos correspondem a 59,8 mil imóveis, detendo uma área total de 166,3 milhões de hectares. Os grandes imóveis produtivos somam 45 mil imóveis com uma área total de 72 milhões de hectares.
De 1985 a 1995-96, pela primeira vez, desde o censo de 1950, constatou-se a diminuição do número de estabelecimentos agrícolas no Brasil.
Os 5.801.809 estabelecimentos agrícolas registrados pelo censo agropecuário de 1985, foram reduzidos em 941.944 na contagem de 1995-96, resultando em 4.859.865 estabelecimentos, abrangendo 353.6 milhões de Ha, ou seja, 21.3 milhões de Ha a menos que em 1985.
Essa diminuição da área agrícola equivale a 61% da área total plantada com grãos na safra 1997/98. A área restante (353.6 milhões de Ha), corresponde a 41.4% da área territorial do país (854,7 milhões de Ha).
Com essa redução, o Censo Agropecuário registra a seguinte distribuição dos estabelecimentos remanescentes, por faixa de área total:
a) 4.3 milhões com áreas inferiores a 100 Ha;
b) 470 mil com áreas de 100 Ha a menos de 1.000 Ha;
c) 47 mil estabelecimentos com áreas de 1.000 Ha a menos de 10.000 Ha;
e) 2.2 mil com áreas a partir de 10.000 Ha; e o restante, sem declaração.
Do número, acima registrado, dos estabelecimentos extintos, 906.283, ou 96% do total, apresentavam áreas inferiores a 100 Ha, sendo que, nesse extrato de área, a maior redução se deu com os estabelecimentos até 10 Ha, onde desapareceram 662.448 estabelecimentos, o que significa 70.3% do total dos estabelecimentos extintos e 28% do número de estabelecimentos que restaram nesse limite de área.
Do conjunto dos 21 produtos considerados, os estabelecimentos inferiores a 100 Ha superam os demais na quantidade colhida de 16 produtos, com destaque para o fato de que os estabelecimentos entre 1.000 Ha e 10.000 Ha de área total apresentarem superioridade exclusivamente no volume colhido de cana-de açúcar.
Os estabelecimentos acima de 10.000 Ha mostram-se absolutamente insignificantes nas suas contribuições para a oferta agrícola do país.
IBGE atestou que a área total dos estabelecimentos inferiores a 100 Ha, sob a condição de proprietário, foi reduzida em 1.9 milhão de Ha, entre 1985 e 95-96. Sob a condição de arrendamento, a diminuição de área nesse extrato, foi de 1.8 milhão de Ha; portanto 3,7 milhões de Ha saíram da círculo de produção dos pequenos.
Sintomaticamente, no mesmo período, aumentaram em 1.3 milhão de Ha, as áreas sob a condição de proprietário na faixa entre 10.000 Ha e 100.000 Ha.
Acampamentos e número de famílias
Período Nº acampamentos Nº de famílias
2001* 585 75.730
2000 555 73.066
1999 538 69.804
1998 388 62.864
1997 281 52.276
1996 250 42.682
1995 101 31.619
1994 125 24.590
1993 214 40.109
1992 149 20.596
1991 78 9.203
1990 119 12.805
TOTAL 2.194 368.325
Fonte :MST Atualizado: 26/2/2002 * Dados até agosto/2001
Agricultura Familiar
Apesar das disparidades da concentração de terras, a agricultura familiar, no Brasil, é responsável por 56% da oferta interna de alimentos e matérias primas vegetais e por 67% da oferta interna animal. Se considerados os alimentos básicos, a agricultura familiar contribui com quase 70% da oferta.
Do total brasileiro, a quantidade colhida pela agricultura familiar em 1996 representou, por exemplo:
Algodão: 44%
Batata inglesa: 64%
Feijão: 79%
Fumo: 98%
Mandioca: 85% Milho, 44%
Tomate, 67%
Trigo, 45%
Banana, 75%
Café: 54%
Ainda segundo o IBGE, a agricultura familiar ocupa 59% do total do pessoal ocupado pela agricultura no Brasil.
Evolução dos Índices de Quantidade e Preços dos Produtos Produzidos pela Agricultura Familiar
Ano Índice de Quantidade Índice de Preço
1989 100,00 100,0
1990 104,1 81,2
1991 108,9 76,6
1992 116,4 70,1
1993 117,8 74,7
1994 126,4 72,8
1995 132,4 67,5
1996 133,5 61,4
1997 141,9 57,8
1998 134,1 61,7
1999 148,4 55,7
Taxa Anual de
Crescimento 3,79 -4,74
Fonte: A Liberalização Comercial e a Agricultura Brasileira - Fernando Homem de Melo
A Tabela acima evidencia que, de 1989 a 1999, enquanto o índice de quantidade dos produtos produzidos pela agricultura familiar cresceu à taxa anual de 3,79%, o índice de preços dos produtos desse segmento experimentou taxa de crescimento anual negativo, de 4,74%. Isto mostra o processo de comprometimento acentuado dos níveis de rentabilidade da agricultura familiar.

Assalariados Rurais
Atualmente, existem cinco milhões de assalariados rurais no Brasil, sendo 30% registrados na Previdência Social. Destes apenas 30% têm carteira de trabalho assinada e contratos permanentes, principalmente na pecuária, grãos, fruticultura e cana de açúcar. Outros 40% trabalham com contratos de safra – normalmente de quatro a oito meses –, com carteira assinada. Trabalham, principalmente na colheita (fruticultura, cana, algodão, hortaliças).
Os restantes 30% trabalham sem qualquer contrato, em serviços diversos de curta duração, principalmente na colheita do feijão, tomate, café, etc. Este grupo é o mais vulnerável ao trabalho escravo, encontrado principalmente nos estados do Mato Grosso, Pará e Maranhão. Este último estado é o responsável por 90% da exportação da mão-de-obra que acaba escravizada nos outros dois estados.
Há cerca de um ano e meio, o governo fez uma grande campanha publicitária convidando os sem terra a se cadastrarem via Correios, prometendo assentar a todos em, no máximo, seis meses a partir da data do cadastro. Promessa que não foi cumprida. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, foram cadastradas 755.388 pessoas de 4.369 municípios brasileiros. O governo "empurrou" o assentamento das famílias efetivamente selecionadas para até 2006. (Contag - Brasília, 24/05/02)
Evolução dos Custos dos Assentamentos, por Família (1995 a 2000)
Ano Valor Total do Imóvel/Família - R$
1995 19.412
1996 16.385
1997 14.614
1998 10.116
1999 9.393
2000 9.094
Fonte – Incra – Balanço da Reforma Agrária


21. O absurdo da agricultura moderna
Dos fertilizantes químicos e agrotóxicos à biotecnologia
Na controvérsia reinante atualmente em torno da biotecnologia, como vem sendo aplicada à agricultura, existe muita desinformação resultando em preocupação desnecessária em algumas áreas e uma muito mais séria falta de preocupação em outras. É preciso olhar o quadro completo para poder entender porque e como a produção agrícola é cada vez mais dominada por corporações gigantes. Nos dias de hoje, o quase total controle da biotecnologia pelas grandes empresas é apenas a culminação de um processo que vem crescendo nos últimos 75 anos. Vamos analisar o panorama da agricultura segundo a perspectiva atual.
A agricultura foi inventada entre 10 e 15 mil anos atrás, e nos últimos 2 ou 3 mil anos evoluiu para belas e sustentáveis culturas camponesas, localmente adaptadas e sustentáveis, em muitas regiões do mundo, especialmente na Europa, Ásia, México, América Central, Andes, e em algumas regiões na África. Desde o início da colonização, agricultores americanos, apesar de muitos desastres, tais como as tempestades de poeira, também desenvolveram belos sistemas agrícolas, que estavam se tornando sustentáveis. Muitas dessas culturas ainda estavam intactas até o final da Segunda Guerra Mundial. As poucas remanescentes estão agora sendo desestruturadas.
A indústria tem conseguido sucessivamente se apropriar de uma parte crescente das atividades dos agricultores, tomando deles tudo o que permite a ela a obtenção de lucros seguros e deixando-lhes os riscos – o risco de má colheita devido a mau tempo e o risco de perder dinheiro devido à crescente dependência de insumos agrícolas que devem ser adquiridos a preços crescentes e tendo que vender seu produto a preços cada vez mais baixos.
O argumento convencional em favor dos métodos da agricultura moderna é que eles constituem a única maneira eficiente de resolver o problema da fome mundial e da alimentação das massas que ainda estão por vir com a explosão populacional. Mas isto é uma ilusão. É certo que os métodos agrícolas tradicionais poderiam ser aperfeiçoados com o conhecimento científico atual de como as plantas crescem, da estrutura do solo, da química e vida do mesmo, bem como do metabolismo das plantas e assim por diante. Mas o aperfeiçoamento não precisa ser direcionado para monoculturas gigantescas, altamente mecanizadas e com toda a parafernália dos fertilizantes comerciais e venenos sintéticos, com a produção agrícola sendo transportada pelo mundo todo. A grande monocultura foi uma invenção do colonialismo. Os poderes coloniais não podiam extrair muito do campesinato tradicional com suas safras altamente diversificadas, para a subsistência e direcionadas para os mercados regionais e locais. Eles queriam grandes quantidades de algodão, açúcar, café, chá, cacau e outros. Isto conduziu à marginalização de milhões de pessoas e também esteve na raiz do tráfico de escravos da África para as Américas, uma das maiores calamidades da história humana.
Mas, o problema fundamental com a agricultura moderna é que ela não é sustentável. Mesmo se fosse tão produtiva quanto é afirmado, o desastre seria apenas postergado e seria então muito pior. Se quisermos alimentar as massas crescentes – é claro que deveremos encontrar também maneiras de controlar nossos números – teremos de desenvolver métodos de produção agrícola sustentável.
Com muito poucas exceções os camponeses tradicionais desenvolveram métodos sustentáveis. Os agricultores chineses, por exemplo, por três mil anos obtiveram alta produtividade dos seus solos sem comprometer a fertilidade. Ao contrário, eles desenvolveram e mantiveram uma fertilidade máxima do solo. Os agricultores regenerativos modernos estão aprendendo a se tornar cada vez mais sustentáveis, com colheitas ótimas e métodos localmente adaptados, enquanto recuperam e mantém a biodiversidade nos seus cultivares e na paisagem circundante. Vamos chamá-los agricultores regenerativos, e não biológicos, orgânicos ou alternativos. Quando se trata de vida, seja bom ou mau, tudo é biológico, é orgânico, mesmo grandes massacres. Alternativo apenas significa diferente, poderia ser pior. Mas regenerativo significa regeneração do que tem sido perdido ou destruído.
A agricultura moderna tem se desligado da lógica dos sistemas vivos naturais. Todos os ecossistemas naturais possuem retroação interna automática que, desde o começo, tal como quando um novo pedaço de terra estéril, digamos, a encosta de um vulcão, é conquistado, faz as condições ambientais melhorarem até que um clímax de atividade biológica máxima e sustentável seja atingido. Nossos ecossistemas de agricultura moderna fazem exatamente o oposto, ao impor retroações (agroquímica, agressão mecânica ao solo) que gradualmente degradam o meio ambiente e empobrecem a biodiversidade.
Infelizmente, a agricultura moderna obtém sucesso exaurindo o solo e substituindo a fertilidade perdida por nutrientes que vêm de fora. Fertilizantes comerciais, tais como fosfatos provém de minas que estarão brevemente esgotadas, as minas de potássio são mais abundantes, mas nitrogênio, o mais importante elemento na produtividade da agricultura moderna, embora venha da atmosfera, uma fonte virtualmente inesgotável e para lá acaba voltando, é obtido pela síntese de amoníaco Haber-Bosch, um processo que consome enormes quantidades de energia, principalmente energia de combustíveis fósseis. Mesmo quando é energia proveniente de hidroelétricas, trata-se de eletricidade que poderia estar economizando combustíveis fósseis em outro lugar. Todos os outros insumos, tais como os agrotóxicos e a cada vez mais pesada maquinaria, são também grandes consumidores de energia.
Mas a agricultura, se a olharmos de uma perspectiva holística, ecológica, é um esquema para colher energia solar via fotossíntese. Enquanto todas as formas de agricultura tradicional têm um balanço de energia positivo, a agricultura moderna perverte até mesmo este aspecto fundamental. Em sua maior parte, tem balanço de energia negativo. Quase todas as suas operações supostamente de alta produtividade requerem mais energia fóssil nos insumos do que está contido em seu produto. Para usar uma metáfora adequada, isto tem se tornado como um poço de petróleo onde o motor que aciona a bomba consome mais combustível do que ela pode extrair. Este tipo de operação só pode sobreviver com subsídios...
Sustentam que a agricultura moderna é tão eficiente que apenas em torno de 2% da população pode alimentar o total da população. Até a virada do século, na Europa, nos Estados Unidos e na maioria dos países, quase 60% da população trabalhava no campo. No final da última Guerra Mundial ainda era quase 40%. Atualmente, nos Estados Unidos, menos de 2% da população trabalha na agricultura. Na maioria dos países europeus o número está se aproximando aos 2%, visto que ainda continua a marginalização de agricultores. Agora, quando se afirma que nas economias modernas somente 2% das pessoas podem alimentar a população total, em comparação a 60 ou 40% no passado, isto é, ou uma ilusão para os que acreditam ou uma mentira para os que sabem, baseada numa falsa comparação.
No contexto da economia, como um todo, o antigo campesinato era um sistema de produção, manipulação e distribuição de alimento que também produzia seus próprios insumos. A fertilidade do solo era mantida com esterco, rotação de cultivos, plantas companheiras, adubação verde, composto, cobertura morta e descanso da terra; as sementes eram selecionadas do melhor de cada safra; animais de carga e tração supriam a energia; os moinhos usavam vento ou água como fonte de energia. Tudo era energia solar. A pouca manipulação ou beneficiamento que os alimentos sofriam era feita na propriedade ou na aldeia, cujos artesãos também contavam como população rural. O mesmo se aplicava aos utensílios, arados, enxadas, carretas, etc... A maior parte da produção agrícola era entregue quase nas mãos do consumidor na feira semanal. Em nossa língua sobra uma linda relíquia daqueles tempos: segunda, terça, quarta-feira,...
Mas o agricultor moderno é apenas uma pequena engrenagem em uma enorme infraestrutura tecnoburocrática que requer até mesmo legislação especial e pesados subsídios. Comparado com seus antecessores que faziam quase tudo que estava relacionado com a produção, processamento e distribuição de alimentos, ele não é muito mais do que um tratorista e um espalhador de veneno.
Depois da última Guerra Mundial, quando a Alemanha estava totalmente devastada, é verdade que o Plano Marshall ajudou, mas, mais importante é que os habitantes das cidades podiam se espalhar pelo campo e fazer “hamstern”, isto é, trocar qualquer coisa de valor, um relógio, um anel, um piano, por alimento. Os camponeses tinham comida, tinham cereais, feijão, batata, verduras, frutas, leite, queijo, frango, ganso, e muito mais.
Não seria necessária uma guerra hoje para colocar os agricultores europeus em uma posição em que eles próprios teriam de fazer “hamstern”, mas onde?! Nenhuma bomba precisa cair. Um simples colapso na energia, no transporte, especialmente na importação de fertilizantes minerais e ração para gado, no sistema bancário e mesmo nas redes de computadores e comunicações, seria suficiente. Espantoso, que os militares não pareçam estar preocupados. Fundamentalmente, a segurança nacional depende de uma agricultura sadia e sustentável.
O sistema atual de produção e distribuição de alimentos (incluindo fibras e alguns outros itens não comestíveis) começa nos campos de petróleo e todos os tipos de minas para metais e outras matérias-primas, passa pelas refinarias, siderurgias e plantas de alumínio, etc., a indústria química, a indústria de maquinária, o sistema bancário, o envolvente sistema de transporte (consumindo principalmente combustíveis fósseis), computadores, supermercados, indústria de embalagens e um totalmente novo complexo de indústrias que quase não existiam no passado - a indústria de manipulação de alimentos que mais mereceria ser chamada de indústria de desnaturação e contaminação de alimentos (com aditivos e resíduos de agrotóxicos). Se quisermos comparar o agricultor de hoje com o tradicional, então todas as horas de trabalho nas indústrias acima mencionados e algumas outras, assim como alguns serviços, tal como as empresas de “fast food” que, em inglês, bem merecem o qualificativo de “junk food” (comida entulho), e distribuição de alimentos, até onde elas direta ou indiretamente contribuem para a produção, manipulação e distribuição de alimentos, precisam ser adicionados. Isto tudo deveria até mesmo incluir as horas de trabalho que correspondem ao dinheiro que, em outras profissões, precisa ser ganho para pagar os impostos que financiam os subsídios. É significativo que a maior parte dos subsídios vai, não para o agricultor, mas para o complexo industrial. O agricultor é sempre mantido à beira da falência.
Um balanço completo deste tipo certamente mostraria que, atualmente, numa economia moderna, também em torno de quarenta ou mais por cento de todas as horas de trabalho vão para a produção, manipulação e distribuição da comida. Mas os economistas convencionais de hoje, aqueles que nossos governantes escutam, em sua visão não holística, colocam as fábricas de tratores e colheitadeiras com a indústria de maquinária, as fábricas de fertilizantes químicos e agrotóxicos com a indústria química e assim por diante, como se não tivessem nada a ver com alimentos.
O que temos, então, com umas poucas exceções, é redistribuição de tarefas e certas formas de concentração de poder nas grandes corporações, e não mais eficiência na agricultura.
Vamos olhar com mais detalhe para alguns dos aspectos decisivos: quase sempre o moderno sistema de produção e distribuição de alimentos, além de não ser mais produtivo em termos de eficiência de mão de obra, tampouco é mais eficaz em termos de produtividade por hectare. Em muitos casos, tais como na criação intensiva de animais, ele é mesmo destrutivo, consumindo mais alimento do que produz.
No sul do Brasil, durante a última metade do século XX a grande floresta subtropical do Vale do Uruguai foi completamente demolida, deixando apenas algumas pequenas relíquias. A floresta foi derrubada e queimada com a quase total destruição da madeira, para abrir espaço para a monocultura de soja. Isto não foi feito para aliviar o problema da fome nas regiões pobres do Brasil, mas para enriquecer uma minoria (pessoas sem tradição agrícola) com a exportação para o Mercado Comum Europeu para alimentar gado. As plantações de soja estão entre as mais modernas - grandes, altamente mecanizadas e com os habituais insumos químicos. Essas plantações não são, de maneira alguma, atrasadas quando comparadas ao mesmo tipo de plantação nos USA. No nosso clima subtropical o agricultor tem a vantagem suplementar de poder plantar trigo, cevada, centeio ou aveia, mas também de fazer feno e silagem no inverno sobre o mesmo solo, mas poucas vezes o faz. Comparado ao que os nossos colonos faziam em solos similares, a produtividade é baixa, raramente mais do que três toneladas de grãos (total, verão e inverno) por hectare. O camponês, que produzia para alimentar a população local, facilmente produzia 15 toneladas de comida por hectare, diversificando com mandioca, batata-doce, batata inglesa, cana-de-açúcar e grãos, mais verduras, uva e todos os tipos de frutas, feno e silagem para o gado, além de porcos e galinhas. Mas ele não produzia PIB (produto interno bruto). O PIB só reflete fluxo de dinheiro, não leva em conta autosuficiência e mercadeio local. A conta do PIB interessa o banqueiro, o governo, as grandes corporações transnacionais, nada tem a ver com o bem estar das pessoas, da população. Quando estatísticas das Nações Unidas declaram que quase a metade da população mundial vive com menos de dois dólares por dia, isso leva a falsas conclusões. Ninguém viveria com dois dólares por dia se tivesse que comprar sua comida, roupa, utensílios no supermercado ou Shopping Center. No período áureo de nossa colonia no Rio Grande do Sul, anos trinta, o colono podia não ter um tostão no bolso, mas sempre tinha mesa farta, vivia muito bem.
Não obstante esta realidade, a política agrícola oficial tem sempre apoiado os grandes às custas dos camponeses. Centenas de milhares deles tiveram que desistir e partir para as cidades, freqüentemente para as favelas, ou mais para o norte em direção à floresta Amazônica. Uma devastação tremenda foi feita com dinheiro do Banco Mundial no estado de Rondônia, e os pequenos agricultores que lá foram assentados, não sabendo como cultivar nos trópicos e sem apoio, em geral fracassam, deixando para trás devastação, enquanto novas áreas da floresta são desmatadas. No Brasil central, o cerrado, o equivalente sul americano da savana africana, está hoje sendo quase totalmente destruído para dar lugar a mais plantações de soja, uma das quais cobrindo centenas de milhares de hectares contíguos. Na sua biodiversidade o cerrado é tão valioso quanto a floresta tropical, e eventualmente, até mais.
Num exemplo concreto também se argumenta que os índios camponeses em Chiapas, México, que estão agora lutando pela sua sobrevivência, rebelando-se contra o NAFTA (o Mercado Comum Norte Americano), são atrasados, eles produzem somente duas toneladas de milho por hectare comparado com seis nas plantações mexicanas modernas. Mas isso é somente parte do quadro, as plantações modernas produzem seis toneladas por hectare e é só. Mas os índios produzem uma colheita mista, entre seus pés de milho, que também servem para suporte de variedades de feijão que são trepadeiras, eles plantam legumes, abóbora, morangas,batata doce, batata inglesa,tomate e todo tipo de vegetais, frutas e ervas medicinais. A partir do mesmo hectare eles também alimentam seu gado e galinhas. Eles facilmente produzem quinze toneladas de alimento por hectare e tudo sem fertilizantes comerciais ou pesticidas e sem assistência dos bancos, governos ou corporações transnacionais.
A marginalização de tais pessoas é a continuação de um dos maiores desastres dos tempos modernos. Ao chegar nas favelas das cidades terão de comprar comida cultivada em monoculturas que são menos produtivas do que eram eles. Em última análise existe então menos comida e mais pessoas para alimentar. Existe excesso em alguns lugares e falta noutros. Freqüentemente sua terra é então tomada por criadores de gado que raramente produzem mais do que 50 quilos de carne/hectare/ano. Centenas de histórias similares poderiam ser contadas. No caso de Chiapas, cada vale tinha sua língua e cultura diferentes. Acima de todas as calamidades pessoais, quando a terra perde seus camponeses, temos genocídio cultural!
No caso da criação em massa de animais para carne e ovos, os métodos são absolutamente destrutivos, muito mais alimento para humanos é destruído do que produzido. As galinhas em seus tristes campos de concentração ou fábricas de ovos, eufemisticamente chamadas de “granjas” são alimentadas com rações “cientificamente equilibradas”, consistindo de grãos de cereais, soja, torta de óleo de palma ou de mandioca, muitas vezes com farinha de peixe. Conhecemos casos no Brasil onde sua ração contém leite em pó, proveniente do Mercado Comum Europeu... Isto as coloca então numa posição de competição com os humanos, nós as alimentamos com nossas lavouras. Um absurdo total se o propósito é contribuir para resolver o problema da fome mundial. Na agricultura tradicional as galinhas comiam insetos, minhocas, esterco, ervas, capim e restos de cozinha e de colheita, desta maneira aumentando a capacidade de sustento das terras dos agricultores para humanos. Agora elas a diminuem.
Nestes esquemas, a razão de transformação da ração em alimento humano é próxima de vinte para um. Precisa-se levar em consideração que metade do peso dos animais vivos – penas, ossos, intestinos – não é consumida por nós e também é preciso considerar que as rações desidratadas e concentradas com um alto consumo de energia até o máximo de 12% de água, enquanto a carne contém até 80%. Nos galpões de engorde, as operações mais eficientes usam em torno de 2,2Kg de ração para obter 1Kg de peso vivo, metade da qual é alimento humano. Então 2,2 para 1 se torna 4,4 para 1. Corrigindo o conteúdo de água: 4,4 vezes 0,88 e 1 vezes 0,2 obtém-se 3,87 para 0,2, igual a 19,36 para 1. Quando se trata de gado bovino confinado, como nos “feed lots” de Chicago, a relação é umas cinco vezes pior.
Mais recentemente, algumas de nossas granjas “aperfeiçoaram” um pouco esta razão incluindo na ração rejeitos de galinhas abatidas antes, desta maneira forçando-as ao canibalismo(!). Outro aspecto absurdo disto tudo: as rações “cientificamente equilibradas” não contém nada verde, o mesmo acontece com os porcos. Mas galinhas e porcos são vorazes consumidores de ervas, gramíneas, frutos, nozes e raízes. Em nossos experimentos com agricultura sustentável na Fundação Gaia também os alimentamos com plantas aquáticas, com grande sucesso – animais saudáveis, sem antibióticos, sem drogas, sem veterinários.
Além disso, nos campos de concentração de galinhas e fábricas de ovos, assim como nos modernos calabouços de porcos, as pobres criaturas vivem sob condições de extremo estresse.
É tempo de acabar com a mentira de que apenas a agricultura promovida pela tecnocracia pode salvar a humanidade da inanição. O oposto é verdadeiro.
É preciso uma nova forma de balanço econômico que, a medida que soma o que é chamado “produtividade” ou “progresso” na agricultura, também deduza todos os custos: as calamidades humanas, a devastação ambiental, a perda da diversidade biológica na paisagem circundante e a ainda mais tremenda perda de biodiversidade em nossos cultivares. Este segundo aspecto será agora enormemente agravado com a biotecnologia dominada pelas grandes empresas, como veremos mais adiante. E, mais importante e decisivo, a não sustentabilidade disto tudo. Temos o direito de agir como se fóssemos a última geração?
No caso de operações industriais envolvendo galinhas é fácil ver como tais métodos destrutivos se desenvolveram. Estou falando do que observo no sul do Brasil – o Brasil é um grande exportador de carne de galinha, principalmente para o Oriente Médio e Japão. A partir de esquemas muito simples, onde pequenos empresários individuais confinavam galinhas num galpão e as alimentavam com milho, o sistema coalesceu e cresceu até um ponto onde, atualmente, existem em torno de meia dúzia de companhias muito grandes e umas poucas pequenas. Os grandes abatedouros abatem e processam até centenas de milhares de galinhas por dia. Eles operam de acordo com regras impostas por eles, chamadas por eles “integração vertical”. O “produtor” assina um contrato onde aceita comprar todos os seus insumos, pintinhos, ração e drogas da companhia. Mesmo que ele seja um agricultor e tenha uma grande produção de grãos, ele está proibido de usá-la para alimentar suas galinhas. Ele é obrigado a comprar a ração pronta, mas pode vender o seu milho para a fábrica de ração que pertence à mesma companhia proprietária do abatedouro e da incubadeira que produz os pintos. Estes operam um tipo diferente de campo de concentração de galinhas onde os prisioneiros são galos e poedeiras, um galo para cada dez galinhas. As galinhas não estão em pequenas gaiolas como nas fábricas de ovos, elas podem se mover livremente dentro do galpão e pular para dentro de amplos ninhos para pôr os ovos. Nas operações de esteiras rolantes das fábricas de ovos, chamadas baterias, as pobres poedeiras estão confinadas, três em cada gaiola, sobre uma grade de arame e os ovos rolam para fora. Os pintos produzidos nestas incubadeiras não são mais de raças tradicionais de galinhas, eles são de marcas registradas e são híbridos. Assim como o milho híbrido, não podem ser reproduzidos com manutenção de características raciais.
Após comprar todos os seus insumos da companhia com a qual assinou contrato, ele poderá vender somente para a mesma. O produtor não é autorizado a vender a empresas concorrentes, estas não comprariam. Assim, ele pode ter a ilusão de ser um pequeno empresário autônomo, mas sua situação real é a de um operário com horas de trabalho ilimitadas, sem fins-de-semana, feriados nem férias e ainda tem que pagar sua própria previdência social. Se a grande companhia trabalhasse com empregados de carteira assinada, ela não poderia fazê-lo, seria muito caro e muito arriscado. Desta maneira deixam todos os riscos com o produtor: perda por doenças ou custos adicionais com drogas e antibióticos, choque de calor, um desastre comum durante os dias quentes de verão, quando centenas ou milhares de galinhas morrem nos abarrotados e mal ventilados galpões, e perdas durante o transporte. As galinhas que morrem nos caminhões da companhia no trajeto ao abatedouro são também descontadas. Os seus lucros também diminuem constantemente com o crescente preço dos insumos e a queda do faturamento com as vendas. A margem do produtor é tão apertada que, mesmo se tudo for bem, mas se for preciso alimentar os animais mais alguns dias, o lucro pode evaporar ou mesmo se transformar em perda. Esta é uma ocorrência comum. O abatedouro agenda suas viagens de coletas de galinhas prontas de acordo com sua própria conveniência. Mas se a companhia obtém lucros excepcionais no mercado de exportação, nada vai para o produtor...?
Portanto, os campos de concentração de galinhas não têm nada a ver com maior produtividade para ajudar a salvar a Humanidade da inanição – de fato, eles contribuem ao problema – mas eles concentram capital e poder pela criação de dependência.
Estes métodos não foram inventados pelos agricultores. É impensável que um agricultor em uma cultura camponesa sadia tivesse a idéia de alimentar massissamente suas galinhas com grãos, a menos que fossem grãos estragados, e isolá-las de sua fonte natural de alimentos, desta maneira desperdiçando parte da capacidade de sustentação do solo para humanos, destruíndo ao mesmo tempo parte de sua colheita. Estes métodos também não são resultado concatenado de uma conspiração pela tecnocracia. Tais esquemas crescem naturalmente a partir de uma “semente” inicial que pode ter tido uma intenção completamente diferente. Neste caso, como foi na agroquímica também, era o esforço de guerra. A conspiração cresceu depois ao longo do tempo. Durante a última Guerra Mundial, o governo americano iniciou o sistema de subsídios para a produção de grãos, o qual conduziu a enormes excedentes. Assim, as autoridades da agricultura procuraram “consumo não humano” para os grãos... Integração vertical” é somente um estágio momentâneo no processo de concentração de poder. Em breve eles encontrarão maneiras de banir – por meio de legislação especial – a criação de galinhas soltas (caipiras) por agricultores independentes. Já foi tentado, sem sucesso, mas, por dispositivos legais especiais, conseguiu-se tornar muito difícil para pequenos agricultores a venda de ovos no mercado aberto.
No caso do milho híbrido, também não existia conspiração no início, ela veio mais tarde. Geneticistas descobriram que pelo cruzamento de duas variedades super-puras de milho – variedades obtidas após oito a dez gerações de autofecundação – se obtém plantas de alta produtividade e uniformidade perfeita. Deve ter sido uma decepção quando descobriram que as variedades não eram estáveis. Após ressemeadura, as variedades dessegregam de acordo com as leis de Mendel. A nova colheita era caótica – pés de milho pequenos e grandes, uma espiga, muitas espigas, cores, formas e qualidades de grãos diferentes. Mas, do ponto de vista do vendedor de sementes, era uma verdadeira vantagem! O agricultor não mais poderia guardar sua própria semente, tinha que comprar sementes novas a cada ano. O vendedor não precisava sequer da proteção de uma patente.
Felizmente na maioria dos cultivos, especialmente grãos como trigo, cevada, centeio e aveia, este tipo de hibridização ainda não é economicamente viável para os geneticistas. Eles estão tentando com todas as culturas que podem. Funciona com galinhas. No sul do Brasil foi necessário fundar uma associação com o objetivo de preservar as raças tradicionais de galinhas. A maioria estão agora em perigo de extinção. Algumas já se foram. Somente as cepas registradas de galinhas híbridas não estão ameaçadas (enquanto durar a loucura dos campos de concentração de galinhas e fábricas de ovos). Quanto ao milho, quase todas as variedades tradicionais se foram. Se um agricultor quer plantar uma delas não ganha o crédito do banco. Apenas as variedade “registradas” são aceitas.
Atualmente, a manipulação genética direta, chamada biotecnologia, que opera a nível de cromossomo, permite que o especialista assuma o controle, tirando-o do agricultor. Mas, como a maioria dos produtos resultado da manipulação genética direta não dessegregam na reprodução, como no caso dos híbridos naturais, é preciso patentes. Retornaremos a este assunto.
Vejamos como nasceu a agroquímica.
Até final dos anos quarenta a pesquisa em agricultura visava soluções biológicas. A perspectiva era ecológica, embora mal se falasse em ecologia. Se esta tendência tivesse podido continuar, teríamos hoje muitas formas de agricultura sustentável, localmente adaptadas e altamente produtivas. Começando nos anos cinqüenta a indústria conseguiu fixar um novo paradigma - nas escolas, na extensão e pesquisa agrícolas. Vamos chamá-lo paradigma NPK + V. NPK corresponde a Nitrogênio, Fósforo, Potássio, o V significa veneno.
Os fertilizantes comerciais se tornaram um grande negócio depois da primeira guerra mundial. Logo no começo da guerra, o bloqueio Aliado cortou o acesso dos alemães ao salitre chileno, essencial para a produção de explosivos. O processo Haber Bosch para fixação de nitrogênio a partir do ar, mencionado acima, era conhecido mas ainda não tinha sido explorado comercialmente. Os alemães montaram então uma enorme capacidade de produção e conseguiram lutar por quatro anos. O que seria o mundo se este processo não tivesse sido conhecido? A primeira guerra mundial não teria realmente se desencadeado, não teria acontecido o Tratado de Versalhes, e portanto não teria havido Hitler...! Como uma tecnologia pode mudar o curso da história!
Quando a guerra acabou, havia enormes estoques e capacidade de produção mas não havia mais grande mercado para explosivos. A indústria então decidiu empurrar fertilizantes nitrogenados para a agricultura. Até então os agricultores estavam bastante satisfeitos com seus métodos orgânicos de manutenção e aumento da fertilidade do solo. O guano e o salitre chileno eram usados de maneira muito limitada, principalmente em cultivos muito especiais, especialmente em jardinagem intensiva. Os fertilizantes nitrogenados na forma de sais quase puros e concentrados, fertilizantes à base de nitrato e amônia, de certa forma viciam, quanto mais se usa mais se precisa usar. Logo se tornaram um grande negócio. Então a indústria desenvolveu um espectro completo, incluindo fósforo, potássio, cálcio, microelementos, mesmo sob a forma de sais complexos, aplicados na forma granulada, algumas vezes de avião.
A Segunda Guerra Mundial deu um grande empurrão para uma pequena e quase insignificante indústria de pesticidas e realmente a projetou para a produção em grande escala. Hoje o equivalente a centenas de bilhões de dólares em venenos são espalhados sobre todo o planeta. Durante a Primeira Guerra Mundial gás venenoso foi usado apenas uma vez, com efeitos devastadores para ambos os lados, e por isso nunca mais foram empregados. Durante a Segunda Guerra Mundial gases não foram aplicados em batalha, mas muitas pesquisas foram desenvolvidas. Bayer, entre outros, estava neste jogo. Ela desenvolveu os ésteres do ácido fosfórico. Depois da guerra eles tiveram uma grande capacidade de produção e estoques e concluíram que o que mata gente também mata os insetos. Fizeram novas fórmulas e as comercializaram como inseticida.
O DDT era conhecido como uma curiosidade de laboratório. Quando Müller, na Geigy, descobriu que matava insetos sem, aparentemente, afetar as pessoas, alertou as forças armadas americanas que estavam sofrendo com a malária no Pacífico, enquanto lutavam com os japoneses. Usaram-no de forma totalmente descuidada, convencidos de que era inofensivo, espalhando-o sobre paisagens inteiras e até dentro de casas e sob a vestimenta das pessoas.
Pouco antes do fim da Guerra no Pacífico um cargueiro americano estava a caminho de Manila com uma carga de potentes fitocidas (biocidas que matam plantas) do grupo 2,4-D e 2,4,5-T. A intenção era matar de fome os japoneses destruindo suas colheitas através da pulverização do veneno desde o ar. Tarde demais. O barco teve ordem de voltar antes de chegar. Outro grupo de americanos acabara de jogar as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, uma terrível história que todos nós conhecemos, e os japoneses assinaram o armistício. Mesma história: grande capacidade de produção, enormes estoques sem compradores. A substância foi reformulada como “herbicida” e descarregada nos agricultores. Depois, durante a guerra do Vietnam, as Forças Armadas Americanas impiedosamente espalharam o que eles chamaram de “Agente Laranja” (e outras cores) sobre milhões de hectares de floresta tropical, pretendendo fosse somente um desfoliante para tornar visíveis as forças inimigas. De fato, estas formulações continham grandes concentrações de 2,4,5-T que destruiam totalmente as florestas.
A indústria, querendo preservar em tempo de paz o que tinha sido um grande negócio em tempo de guerra, conseguiu dominar quase completamente a pesquisa agrícola para redirecioná-la para seus próprios objetivos. Conseguiu cooptar a pesquisa e extensão agrícola oficial, assim como escolas e, fazendo “lobby” a favor de legislação ou regulamentação adequadas e criando esquemas bancários de crédito (aparentemente) fácil, colocaram o agricultor numa posição na qual dificilmente sobravam outras alternativas. Atualmente, o paradigma agroquímico é aceito quase sem questionamentos nas escolas agrícolas, na pesquisa e extensão. A maioria dos agricultores acredita nele e, freqüentemente, quando marginalizada, se culpa a si mesma por sua incapacidade para competir.
Tudo isso veio a existir não como uma conspiração deliberada por pessoas de mentes diabólicas, desenvolveu-se e estruturou-se de oportunismo em oportunismo. A medida que uma nova técnica, processo ou regulamentação dava vantagem à alguém ou à alguma instituição, a respectiva tecnologia era promovida e ideologicamente consolidada. Alternativas que não encaixavam com as crescentes estruturas de poder eram combatidas, ignoradas ou desmoralizadas.
Agora sim, no caso da biotecnologia na agricultura, controlada por grandes corporações transnacionais, parece que temos uma verdadeira conspiração e que os danos serão muito mais irreversíveis do que os sofridos até agora.
O principal problema aqui não é tanto se nossos alimentos se tornarão de qualidade inferior e até nocivos – apesar de que isso possa vir a ocorrer – mas, novamente, trata-se de adicionar ainda mais estruturas de dependência, de dominação, sobre os agricultores que ainda restam e uma limitação de escolhas para o consumidor.
A fantástica diversidade de cultivares que tínhamos e ainda temos hoje, depois das tremendas perdas causadas pela “Revolução Verde” durante as últimas décadas, é o resultado da seleção, consciente e inconsciente, por parte dos camponeses ao longo dos séculos e dos milênios. Pensemos somente na família das crucíferas – repolho, couve chinesa, rabanete, nabo, mostarda, couve-flor, brócoli, colsa e muitos outros. Nenhum destes agricultores jamais solicitou patentes, registro ou certificação...
Agora, indústrias como a Monsanto querem que aceitemos sua manipulação desta riqueza preexistente, como a soja “Roundup-ready”, com o argumento de que eles apenas estão dando prosseguimento e acelerando este processo, contribuindo assim para a solução dos problemas para alimentar a Humanidade. Eles insistem mesmo de que não há outra saída. Mas eles sabem muito bem que existem outras alternativas, melhores, mais saudáveis, mais baratas.
Todo mundo sabe que a agricultura deve encontrar caminhos para se afastar dos venenos. Possuímos todos os conhecimentos necessários. Milhares de agricultores orgânicos em todo o mundo são prova disto. Com cultivares resistentes a herbicidas a indústria quer vender pacotes, semente + herbicida, obrigando o agricultor a usar herbicida, mesmo que ele não o necessite, e a usar o herbicida da respectiva empresa. No caso de cultivares com o infame gen “terminator” a conspiração é ainda mais óbvia. Com esse tipo de semente eles nem precisam se incomodar em solicitar patentes. Tudo isto não tem nada a ver com aumento de produtividade, é a culminação do gradativo processo de desapropriação dos agricultores, para transformar os sobreviventes em meros apêndices da indústria. Isto agravará a marginalização, a desestruturação social, a devastação ambiental e a perda da biodiversidade na Natureza e em nossos cultivos, agravará o problema da fome.
José A. Lutzenberger e Lilly Charlotte Lutzenberger – março de 2000


22. Os conflitos no campo


23. Consumo e Pobreza
Para passarmos de uma consciência ingênua para uma consciência critica e compreendermos o que esta acontecendo, temos que saber que o mundo tem o que se chama de "mercados maduros". "Mercado maduro" é o mercado em que o crescimento do consumo é equivalente ao incremento vegetativo da população, ou seja, se a população cresce aumenta o consumo. Se não cresce, o consumo continua estático. Assim o consumo de cerveja nos EUA, por exemplo, cresceu 2% acumulado nos últimos 5 anos e devera crescer apenas 2% nos próximos 5 anos.
No Japão 35 prefeituras exigem um atestado que diga que você tem onde colocar seu carro para que um concessionário possa vender um automóvel novo a você - problema de espaço vital. O consumo de biscoitos na Inglaterra não cresce ha dez anos. Esses mercados maduros - EUA, Europa e Japão - onde se encontram as empresas igualmente maduras - IBM, Toyota, Electrolux, etc. - precisam de mercados emergentes onde o crescimento do consumo seja maior do que o incremento vegetativo da população. Quais são esses maiores mercados hoje no mundo? Brasil, Índia e China.
Mas não nos iludamos muito com a China. A China tem 76% de sua população em campesinato. A Índia 72% e o Brasil apenas 22%. Assim, o país pronto para consumir produtos ocidentais de alguma tecnologia que não seja bicicleta, alfanje, etc. e o Brasil e por extensão o Mercosul. Por isso estão todos aqui e querendo investir mais e mais aqui. O mercado brasileiro, segundo dados da Nielsen, cresceu nos últimos 5 anos:
*369% em mistura para bolos
*310% em alimentos para gatos
*282% em leite flavorizado
*273% em alimentos para cães
*219% em leite longa vida
*201% em massas instantâneas
*176% em cereais matinais
*116% em carnes congeladas
*81% em água mineral
O Brasil e hoje um mercado que apresenta alguns dados impressionantes:
*1,3 milhão de lavadoras de roupa
*82% mais que no Canadá
*4º maior mercado do mundo
*8,02 trilhões de litros de refrigerantes
*343% mais que no Canadá
*3º maior mercado do mundo
*US$1,3 bilhão em alimentos diet ou light
*US$100 milhões em 1990
*US$6 bilhões em 2010
*63,4 mil toneladas de creme dental
*456% mais que na Itália
*51,4 mil títulos de livros
*12% mais que na Itália
*US$1,2 bilhão em CD's
*5º maior mercado fonográfico do mundo
*681,9 mil toneladas de biscoito
*27% mais que no Japão
*2º maior mercado do mundo
*3 milhões de geladeiras
*66% maior que no Reino Unido
*4º maior mercado no mundo
*11 milhões de usuários da Internet
*95% das declarações de IR foram enviadas via Internet
*40% do total na América Latina e o dobro do México
E é importante que saibamos que somente a chamada classe media e emergente no Brasil hoje representa 35 milhões de famílias: (IBGE). Assim, só a classe media e emergente no Brasil é:
*8% maior que a população da Alemanha
*Maior que a Republica Checa, Bélgica, Hungria, Portugal, Suécia, Áustria, Suíça, Finlândia, Dinamarca, Noruega, Irlanda, Nova Zelândia, Luxemburgo e Islândia juntos!
*E maior que a França e Canadá juntos
*Equivale a 1/3 da população dos EUA
*Equivale a 72% da população do Japão.
Nós também não temos consciência de que o Brasil representa 42% do PIB da América Latina e seu PIB representa 13,3% do PIB total dos
paises em desenvolvimento, incluindo a China. E que:
*Todo o PIB da Argentina equivale ao Interior do Estado de São Paulo
*Todo o PIB do Chile equivale ao Grande Campinas (Ernest & Young)
*Todo o PIB do Uruguai equivale ao bairro de Santo Amaro em São Paulo
E preciso compreender que as empresas multinacionais estão investindo aqui porque o Brasil e o 5º país do mundo em poder de compra com mais de 1 trilhão de dólares em Purchasing Power Parity. Hoje o ranking e: EUA, China, Japão, Alemanha e Brasil. E, acredite, dentro de mais alguns anos - 3 ou 4 - teremos no Brasil juros internacionais. Isso significa que poderemos ir ao banco para que ele financie nosso crescimento a juros decente de 10-12% ao ano e não ao mês. Como a empresa brasileira é a mais "liquida" do mundo, o crescimento será exponencial, uma vez que todas as pesquisas mundiais mostram ser o brasileiro o mais "empreendedor" dos povos. E juros internacionais também farão com que o consumidor brasileiro possa consumir mais, dever mais, criando um circulo virtuoso de crescimento do mercado. Dai a razão de todos os bancos internacionais estarem comprando ou expandindo suas ações de varejo no Brasil.
Agora e o momento de acreditar e investir, lembrando que o futuro do Brasil é maior que o seu passado. O Brasil e um cálice de vinho com metade cheia e metade vazia. Mas é importante não vermos só a parte vazia desse cálice. Ela existe e é grave, mas existe uma parte cheia que esta atraindo a atenção do mundo inteiro. Valorizemos o nosso país. Luiz Marins • Antropólogo. Estudou Antropologia na Austrália (Macquarie University) e na Universidade de São Paulo (USP)
No caso do Brasil, os ricos são uns dois milhões, segundo o Banco Mundial.
Sua capacidade de organização é tão produtiva, que dominam todo o restante do país, que gira hoje em torno de 168 milhões de habitantes, dos quais quase 120 milhões são miseráveis, pobres e quase pobres, alcançando um dos maiores percentuais de concentração de riqueza em suas mãos, em termos planetários, ficando atrás somente de dois países africanos. (Jornal do Brasil, 18 de junho de 2000)
Matematicamente, estaríamos reduzindo a grandeza do denominador na equação que divide a riqueza por todos os brasileiros. Isto é a parte da riqueza que a plutocracia permite que seja dividida pelos demais... Já que ela, além de receber uma renda média 150 vezes maior que a média dos mais pobres, mesmo sendo 1,3% da população, devora 53 % da riqueza nacional (o dobro do que ocorre nos USA). Isto é, sobra apenas 47% para serem divididos por 98,7% de nosso povo. (Jornal do Brasil, 18 de junho de 2000)

O RICO POBRE
Em nenhum outro país os ricos demonstraram mais ostentação que no Brasil. Apesar disso, os brasileiros ricos são pobres. São pobres porque compram sofisticados automóveis importados, com todos os exagerados equipamentos da modernidade, mas ficam horas engarrafados ao lado dos ônibus de subúrbio. E, as vezes, são assaltados, seqüestrados ou mortos nos sinais de trânsito.
Presenteiam belos carros a seus filhos e não voltam a dormir tranqüilos enquanto eles não chegam em casa. Pagam fortunas para construir modernas mansões, desenhadas por arquitetos de renome, e são obrigados a esconde-las atrás de muralhas, como se vivessem nos tempos dos castelos medievais, dependendo de guardas que se revezam em turnos.
Os ricos brasileiros usufruem privadamente tudo o que a riqueza lhes oferece, mas vivem encalacrados na pobreza social. Na sexta-feira, saem de noite para jantar em restaurantes tão caros que os ricos da Europa não conseguiriam freqüentar, mas perdem o apetite diante da pobreza que ali por perto arregala os olhos pedindo um pouco de pão; ou são obrigados a freqüentar restaurantes fechados, cercados e protegidos por policiais privados. Quando terminam de comer escondidos, são obrigados a tomar o carro na porta, trazido por um manobrista, sem o prazer de caminhar pela rua, ir a um cinema ou teatro, depois continuar até um bar para conversar sobre o que viram.
Mesmo assim, não é raro que o pobre rico seja assaltado antes de terminar o jantar, ou depois, na estrada a caminho de casa. Felizmente isso nem sempre acontece, mas certamente a viagem é um susto durante todo o caminho. E, as vezes, o sobressalto continua, mesmo dentro de casa.
Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por mais riquezas que acumulem no presente, são pobres na falta de segurança para usufruir o patrimônio no futuro. E vivem no susto permanente diante das incertezas em que os filhos crescerão.
Os ricos brasileiros continuam pobres de tanto gastar dinheiro apenas para corrigir os desacertos criados pela desigualdade que suas riquezas provocam: em insegurança e ineficiência. No lugar de usufruir tudo aquilo com que gastam, uma parte considerável do dinheiro nada adquire, serve apenas para evitar perdas.
Por causa da pobreza ao redor, os brasileiros ricos vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos tem de perder dinheiro, gastando cada vez mais apenas para se proteger da realidade hostil e ineficiente.
Quando viajam ao exterior, os ricos sabem que no hotel onde se hospedarão serão vistos como assassinos de crianças na Candelária, destruidores da Floresta Amazônica, usurpadores da maior concentração de renda do planeta, portadores de malária, de dengue e de verminoses. São ricos empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros.
Na verdade, a maior pobreza dos ricos brasileiros está na incapacidade de verem a riqueza que há nos pobres. Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, cem anos atrás, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos se lhes fosse dado direito de trabalhar a imensa quantidade de terra ociosa de que o país dispunha. Se tivessem percebido essa riqueza e libertado a terra junto com os escravos, os ricos brasileiros teriam abolido a pobreza que os acompanha ao longo de mais de um século.
Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada e com uma população sem miséria.
A pobreza de visão dos ricos impediu também de verem a riqueza que há na cabeça de um povo educado. Ao longo de toda a nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar a riqueza que seria só deles, e ficaram pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor, não sabem mudar o mundo, não sabem construir um novo país que beneficie a todos. Muito mais ricos seriam os ricos se vivessem numa sociedade onde todos fossem educados.
Para poderem usar os seus caros automóveis, os ricos construíram viadutos com dinheiro de colocar água e esgoto nas cidades, achando que, ao comprar água mineral, se protegiam das doenças dos pobres. Esqueceram-se de que precisam desses pobres e não podem contar com eles todos os dias e com toda saúde, porque eles (os pobres) vivem sem água e sem esgoto. Montam modernos hospitais, mas tem dificuldades em evitar infecções porque os pobres trazem de casa os germes que os contaminam. Com a pobreza de achar que poderiam ficar ricos sozinhos, construíram um país doente e vivem no meio da doença.
Há um grave quadro de pobreza entre os ricos brasileiros. E esta pobreza é tão grave que a maior parte deles não percebe. Por isso a pobreza de espírito tem sido o maior inspirador das decisões governamentais das pobres ricas elites brasileiras.
Se percebessem a riqueza potencial que há nos braços e nos cérebros dos pobres, os ricos brasileiros poderiam reorientar o modelo de desenvolvimento em direção aos interesses de nossas massas populares. Liberariam a terra para os trabalhadores rurais, realizariam um programa de construção de casas e implantação de redes de água e esgoto, contratariam centenas de milhares de professores e colocariam o povo para produzir para o próprio povo. Esta seria uma decisão que enriqueceria o Brasil inteiro - os pobres que sairiam da pobreza e os ricos que sairiam da vergonha, da insegurança e da insensatez. Mas isso é esperar demais. Os ricos são tão pobres que não percebem a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas.
Cristovam Buarque. Professor da UNB e autor do livro "A desordem do progresso" artigo publicado no jornal "O Globo" no dia 12/02/2001

OS NOVOS POBRES
Fala-se hoje de emergentes – o setor da sociedade que nasceu pobre, não tem curso superior e, agora, é rico. Como a semântica altera-se com o tempo, emergente é o que outrora chamava-se de "novo rico" (como diria o Faustão, performance era desempenho, fast-food era lanchonete, acusar era meter o pau). Um dos fenômenos mais significativos do neoliberalismo é a progressiva quantidade de novos pobres – os emergentes. As medidas de estabilização e ajustes impostas aos Brasil pelo FMI e Banco Mundial caracterizam-se por salvar a moeda e ignorar a questão social.
Essas reformas monetaristas congelam os salários e empurram para baixo da linha de pobreza amplos setores da classe média, bem como assalariados dos setores industrial e de serviços. Na América Latina, vivem na pobreza cerca de 300 milhões de pessoas, das quais o Brasil contribui com 100 milhões.
Cresce a inadimplência de pessoas físicas e jurídicas (um aumento de 104% no governo FHC); multiplicam-se falências de pequenos e médios empresários e comerciantes; avolumam-se os cheques sem fundos. Os novos pobres são alijados do acesso à terra ou à casa própria, e gastam com o aluguel mais da metade de sua renda mensal. Serviços básicos como educação e saúde tornam-se artigos de luxo.
O BID e a ONU promoveram em Washington, em 1993, um fórum no qual Michel Camdessus, o todo-poderoso diretor-geral do FMI, admitiu: ‘Lamento reconhecer, mas a verdade é que, até agora, não fomos capazes, todos nós, de proteger integralmente os mais desafortunados diante das muitas formas de escassez e sofrimento, nessa etapa inicial do processo de ajustes.
Cinco anos depois a situação é pior. Os novos pobres são os desempregados, funcionários públicos (como os professores), aposentados, empresários falidos, jovens que não lograram inserção no mercado de trabalho. São as vítimas da revolução cibernética, os "velhos" entre 30 e 50 anos de idade, as mulheres sem qualificação profissional. Desde o governo Collor, o Brasil perdeu 2,5 milhões de postos de trabalho formal. E a economia cresceu de 28% para 51% da população economicamente ativa.
Os novos pobres expressam uma forma especial de pobreza. Não moram em favelas nem passam fome e são relativamente bem informados. Porém sobrevivem com o orçamento no vermelho, dependem de empréstimos ou ajudas familiares, não têm perspectivas de futuro e buscam nas aparências uma forma de encobrir a vergonha social.
São diferentes das camadas pobres da sociedade, integradas por quem vive na pobreza dinástica, a que passa de geração em geração. Os novos pobres usufruem seus dias de Cinderela, viajam de vez em quando, convivem com pessoas abastadas, têm certo lastro cultural. Mas seus filhos chegam ao fim do segundo grau sem idéia de que carreira seguir e o atrativo por aquilo que dá prazer costuma ser maior que o empenho por uma atividade profissional que exige esforços e sacrifícios.
Os novo pobres sentem-se condenados, não tanto à pobreza física, de escassez de bens, mas à pobreza social, de quem se sente excluído do acesso a um bem-estar progressivamente melhor.
Essa pobreza social provoca angústia e depressão, corrói valores familiares, subverte relações afetivas, induz suas vítimas à expectativa onírica de salvação miraculosa através de jogos, loterias, bênçãos e/ou atividades informais. Por não se sentirem seguros quanto ao próprio futuro, os novos pobres formam a clientela cativa de astrólogos e tarólogos, cultos neopentecostais e orixás, literatura de auto-ajuda e movimentos esotéricos.
Os novos pobres do Brasil ainda não descobriram que a saída reside na luta por conquistas sociais e políticas, através do fortalecimento da sociedade civil. Abnegados e envergonhados, esperam um lance de sorte na roda da fortuna.
Se imprimissem a seus dramas pessoais e familiares um caráter social, e convertessem a vergonha em ousadia e esperança, então criariam os movimentos dos desempregados, dos inadimplentes, dos sem-crédito e sem-cheques, dos despejados e falidos.
Ou será que eles acreditam que o governo estaria empenhado em desapropriar latifúndios e assentar famílias sem-terra se não houvesse o MST?
Frei Betto. Sacerdote e escritor
http://www.ateufeliz.hpg.ig.com.br/OsNovosPobres.htm

EUA concentram menos
No Brasil, renda média dos mais ricos é 150 vezes maior que a dos mais pobres A concentração de renda no Brasil gerou cinco categorias de grupos sociais, segundo indicadores do desenvolvimento, publicados há um mês pelo Banco Mundial: os miseráveis, que correspondem a 24 milhões; os pobres, 30 milhões; os quase pobres, 60 milhões; a classe média, 50 milhões, e os ricos, 2 milhões. JORNAL DO BRASIL Domingo, 18 de junho de 2000
Aqui constatamos facilmente que os miseráveis, pobres e quase pobres somam 114 milhões de pessoas, ou seja, 70 % de nosso povo. Apenas 1 % é rico, pelos critérios do Banco Mundial,
A dramaticidade desta concentração está no fato de que a renda média dos mais ricos é 150 vezes maior que a renda média dos mais pobres. A riqueza privada no Brasil está na ordem de R$ 2 trilhões. Os ricos controlam 53% deste valor. "Não há evidência no mundo de país em que isso ocorra. Nos Estados Unidos, os Bill Gates da vida controlam 26% da riqueza, metade do que os mais ricos no Brasil controlam", afirma o economista da UFRJ, Reinaldo Gonçalves.
Riqueza corresponde ao total dos prédios residenciais e não residenciais, máquinas e equipamentos, automóveis, eletrodomésticos, base monetária e títulos do governo em poder do público, menos a dívida externa líquida. "Renda é fluxo, riqueza é estoque", caracteriza Reinaldo Gonçalves. "A concentração do fluxo deriva da concentração do estoque".
Gini - O índice de Gini, que mede internacionalmente a distribuição de renda, está em 0,60 no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD), de 1998. Quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição da renda no país. Piores que o Brasil no mundo, só a República Centro-Africana e Suazilândia, com 0,61, e Serra Leoa, com 0,63. Todos os outros 150 países considerados no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas têm Gini menor que 0,60.
A desigualdade no Brasil vem sendo agravada pelos ajustes fiscais que sacrificam os programas sociais e geram mais concentração de renda. "Quando se faz ajuste assentado em estrutura tributária regressiva, a concentração aumenta", garante o economista da UFRJ. "É o que acontece no Brasil com a CPMF. O sujeito que ganha salário mínimo e faz um cheque de 100 reais para as compras do mês, paga o mesmo imposto de quem tira R$ 100 do banco para comprar champagne". Reinaldo Gonçalves ressalta que o ajuste reduz a renda pessoal disponível dos mais pobres. "A massa de salários no Brasil está caindo mais do que a renda. Em 1999 caiu 5%, enquanto a renda brasileira caiu 0.7%".
Desemprego - Para o professor de história da Universidade Federal Fluminense, Bernardo Koche, o pior ajuste é o do plano Real, que no seu entender não só despreza a questão social, como a coloca sob a lógica do mercado. "A política econômica vulnerabiliza o movimento trabalhista, pois aumenta o desemprego. Nunca entendi distribuição da renda com aumento de desemprego".
Bernardo Koche considera que a questão social no Brasil hoje "está igual ou pior que na primeira república", período entre 1889 e 1930. "É a elite que se apossa do estado. Naquele momento, era cafeicultora. Hoje, é tecnocrata e associada ao capital internacional, sem preocupação com o mercado interno".
O professor de história vê semelhanças na política macroeconômica dos dois períodos, referindo-se a Campos Salles, a quem o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso já comparou seu governo. "O modelo atual é de políticas deflacionárias, como o de Campos Sales, para honrar compromissos externos. A mentalidade que orienta as políticas econômicas é a mesma, sem conseguir deflação profunda." O crescimento da economia também não se traduz, necessariamente, na redução das desigualdades sociais. "A experiência brasileira mostra que você pode ter mais concentração de renda quando existe crescimento", diz Reinaldo Gonçalves. Neste caso, pode ocorrer um processo de acumulação de capital, com o lucro aumentando mais que o salário. "O salário passa por negociação, o lucro vem do mercado", destaca o economista.

O paradoxo da miséria
O Brasil é o mais rico entre os países com maior número de pessoas miseráveis. Isso torna inexplicável a pobreza extrema de 23 milhões de brasileiros, mas mostra que o problema pode ser atacado com sucesso
BOLSÕES DE POBREZA - Metade dos miseráveis brasileiros vive no Nordeste, geralmente na zona rural de cidades muito pequenas. Nesses bolsões de pobreza assolados pela seca, falta comida e não há trabalho para todo mundo. Em muitos casos, a única fonte de rendimento das famílias é vender ossos aos comerciantes que usam o "produto" como matéria-prima de ração para animais.
No dia 11 de dezembro do ano passado, a médica Iara Vianna da Silva esteve no barraco onde mora o pequeno Mateus Barbosa de Souza, em Itinga, Minas Gerais. O garoto vive com o pai, a mãe e três irmãos no bairro mais pobre da cidade, localizada no paupérrimo Vale do Jequitinhonha. Aos 3 anos e meio, Mateus é vítima de um tipo de desnutrição conhecida como kwashiorkor, palavra importada da África, onde a doença foi descrita pela primeira vez no início do século passado. De tão prevalente na África, kwashiorkor tem definições em vários dialetos tribais. Num deles, falado em Gana, a palavra designa originalmente a criança que não pode ser alimentada pelo leite materno. Mateus tem a altura de um garoto de 1 ano e 7 meses e o peso de um bebê de apenas 8 meses. A doença atinge crianças que, privadas da proteína encontrada no leite materno, num primeiro momento, e mais tarde na carne, se alimentam basicamente de carboidratos. Numa etapa inicial, o mal produz fadiga, irritabilidade e letargia. O quadro inclui diarréia, anemia e retardamento motor. Mateus, por exemplo, não anda. Não tratada, a doença evolui, a imunidade do paciente cai e o corpo incha. Aparentemente ele está apenas gordinho. É nessa fase que se encontra Mateus. Nos casos mais graves, podem ocorrer deficiência mental e morte. Mesmo tratada, a criança que teve kwashiorkor dificilmente atinge altura e peso normais. Acostumada a diagnosticar casos de desnutrição, a médica entregou à mãe do garoto uma receita com o seguinte teor: "Mateus B. Souza – Ao Serviço Social: Criança desnutrida. Kwashiorkor. Cesta básica. Precisa comida. Vai morrer. Não anda. Se pegar infecção, morre".
A doença de Mateus não é apenas um drama familiar, mas o retrato de uma tragédia nacional: a miséria. O Brasil passou por uma transformação admirável nos últimos 25 anos. Comparado a 1977, quando se analisam alguns indicadores nem parece que se trata do mesmo país. Nesse período, o produto interno bruto aumentou 85%, o número de domicílios com televisão subiu 150%, o total de residências com telefone triplicou e a frota de veículos mais do que triplicou. Infelizmente, a taxa de miséria permaneceu praticamente inalterada e doenças decorrentes da pobreza extrema, como a de Mateus, repetem-se aos milhares. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os miseráveis representavam, 25 anos atrás, alguma coisa em torno de 17% da população. O índice mais recente divulgado pelo mesmo instituto informa que a taxa de miséria está em 14,5%. Trata-se de uma queda muito pequena diante do amadurecimento social, econômico e político registrado no período. Queda proporcional, diga-se, pois em números absolutos o número de desamparados, incapazes de sair de sua situação sem ajuda, aumentou. Eram 18 milhões há um quarto de século. São cerca de 23 milhões hoje.
Miséria é palavra de significado impreciso, como de resto a maior parte dos termos que se referem à camada menos favorecida da sociedade. O que exatamente quer dizer "pobreza" ou "indigência"? Como identificar um pobre? Como ter certeza de que existem 14,5% de miseráveis, e não 10% ou 20%? Não haveria subjetividade demais nessas estatísticas? Em geral, cada um percebe a miséria por sua experiência pessoal, como definiu a americana Mollie Orshansky, uma das maiores especialistas no assunto: "A pobreza, tal qual a beleza, está nos olhos de quem a vê". Para efeito estatístico, no entanto, os estudiosos chegaram a uma definição quase matemática sobre o que são miséria e pobreza. Conseguiram estabelecer duas grandes linhas. Uma delas é a linha de pobreza, abaixo da qual estão as pessoas cuja renda não é suficiente para cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana: alimentação, moradia, transporte e vestuário. Isso num cenário em que educação e saúde são fornecidas de graça pelo governo. Outra é a linha de miséria (ou de indigência), que determina quem não consegue ganhar o bastante para garantir aquela que é a mais básica das necessidades: a alimentação. No caso brasileiro, há 53 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Destas, 30 milhões vivem entre a linha de pobreza e acima da linha de miséria. Cerca de 23 milhões estariam na situação que se define como indigência ou miséria.
MORANDO NO ESGOTO
Ser miserável significa viver de forma absolutamente precária. No Recife, favelas enormes são erguidas em cima de mangues ou rios sem nenhuma condição de segurança e higiene. Quando a maré sobe, o lixo invade os barracos, espalhando dejetos de toda a vizinhança pelos cômodos. A falta de saneamento é responsável pela proliferação de doenças.
Reforçando, para evitar confusão: a pobreza no Brasil é formada por dois grandes grupos. Há 30 milhões de pessoas vivendo com extrema dificuldade, donas de uma renda mensal per capita inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões que vivem ainda em pior situação, sobrevivendo de maneira primitiva. Não ganham dinheiro bastante para comprar todos os dias alimentos em quantidade mínima necessária à manutenção saudável de uma vida produtiva – ou seja, algo em torno de 2.000 calorias. Isso equivale a uma dieta diária que inclui um pão e meio, cinco colheres de arroz, meia concha de feijão, um copo de leite, um bife de 100 gramas, meio ovo e mais três colheres de açúcar, óleo de soja, farinha de trigo, farinha de mandioca e margarina. Os miseráveis não têm acesso a essa cesta biológica básica. Esse é o chamado flagelo social. Não se sabe ainda quais serão os candidatos a presidente, mas já se sabe qual será o maior desafio do novo governo: reduzir esse contingente de padrão africano. Desde já, é bom para os candidatos decorar a palavra kwashiorkor e seu duro significado na vida de milhões de brasileiros.
Metade dos que vivem abaixo da linha de miséria mora na Região Nordeste. Quando se calcula apenas a fatia rural da miséria, o Nordeste representa mais de 70% do contingente. Essas são aquelas pessoas que aparecem nas reportagens de TV sobre a seca mostrando o pratinho de feijão que restou na despensa. Os Estados mais pobres do país, em termos proporcionais, segundo levantamento recente feito pelo governo, são Alagoas, Ceará, Maranhão e Piauí. Os que estão mais bem posicionados são Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Determinar a faixa de miseráveis pelo consumo de calorias é um critério internacionalmente aceito. O que varia é o cardápio. Segundo o último estudo disponível sobre o assunto, realizado pelos técnicos da Organização das Nações Unidas, existem 830 milhões de miseráveis no planeta. A doença atinge todos os continentes, com intensidades diferentes. Na Europa, na Oceania e na América do Norte o problema tem escala reduzida, pois a miséria ataca esporádica e temporariamente alguns grupos de imigrantes clandestinos ou algumas minorias, como as tribos aborígines na Austrália. A situação muda de patamar na Ásia, que concentra 63% dos miseráveis do mundo. O caso mais extraordinário é o da Índia, onde mais de 300 milhões de pessoas vivem em estado de privação absoluta. Em termos proporcionais, o epicentro da miséria mundial é a África. No continente africano, um em cada quatro habitantes passa fome. São 180 milhões de indigentes numa população de 800 milhões de pessoas.
FUTURO COMPROMETIDO
As pessoas que têm até 15 anos representam 30% da população brasileira, mas são 45% do universo de miseráveis. No paupérrimo Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e em várias outras regiões pobres, elas moram em condições extremamente precárias. Muitas vezes, um entrelaçado de palha serve de cama para as crianças.
Com seus 23 milhões de miseráveis, o Brasil representa 3% do problema mundial. Pode parecer pouco, mas é uma inserção global três vezes maior do que nossa participação, por exemplo, no comércio mundial, em que o Brasil aparece com menos de 1% do movimento de compra e venda de mercadorias. Um mergulho qualitativo sobre a questão dá a devida coloração à situação brasileira. Para isso, tome-se o ranking dos países com renda per capita semelhante à brasileira. São eles México, Bulgária, Chile e Costa Rica. Sabe qual tem taxa de pobreza equivalente à brasileira? Nenhum. O pior deles, a Costa Rica, tem proporcionalmente pouco mais da metade do número de pobres do Brasil. As comparações internacionais trabalham com a certeza de que todos os países revelam dados confiáveis. Pode-se olhar a questão sob outro prisma, mas nem por isso o quadro fica menos dramático. Observe-se o ranking dos países segundo o porcentual da população vivendo abaixo da linha de pobreza. Onde está o Brasil? Está ao lado de Botsuana, República Dominicana, Mauritânia e Guiné. Ocorre que, entre nossos "colegas de fome", digamos assim, a renda per capita varia entre 15% e metade da renda brasileira. Ou seja, não importa de que ângulo se olhe, o Brasil é hoje o país mais rico do mundo com a maior taxa de pobreza. A isso se chama injustiça social.
Há razões de sobra, além do óbvio constrangimento moral, para tentar de vez minorar esse problema. Do ponto de vista econômico, a pobreza extrema e inelutável reduz a competitividade do país e restringe suas possibilidades de mover a economia pela força do mercado interno. Mas a verdade cruel é que, nas contas macroeconômicas, a questão da miséria absoluta é apenas um detalhe. A porção mais pobre da pirâmide, os miseráveis, não produz e pouco consome. Ou seja, os miseráveis nem entram na equação econômica de um país moderno. Teoricamente, a economia pode muito bem funcionar sem que se leve em conta sua existência. A economia brasileira se situa entre as dez maiores do mundo e chegou a atrair no ano 2000 investimentos estrangeiros da ordem de 30 bilhões de dólares. Quase metade dos usuários de internet da América Latina concentra-se no Brasil. Depois dos Estados Unidos, é a nação que mais compra aviões executivos e tem a cidade com a segunda maior frota de helicópteros do planeta. No campo da medicina, há hospitais e centros de pesquisa nacionais que servem de referência mundial em áreas como a cardiologia. Todas essas conquistas ocorreram sem que a miséria se tenha retraído no país. É aí que entra a questão ética. "Mais do que uma consideração de ordem econômica, a dívida social é moralmente inaceitável, e por essa razão tem de ser saldada", afirma o deputado Delfim Netto (PPB-SP).
As bolhas de miseráveis parecem ter paredes de aço no país. Parecem inexpugnáveis. Elas sobrevivem intactas, indiferentes aos progressos que o país experimenta a sua volta. Não regridem sequer diante de fenômenos sociais que em outros países e situações históricas foram decisivos para derrotar a pobreza. Entre esses fenômenos está a mobilidade social. O Brasil é um campeão da especialidade – mas nem isso adiantou para bulir com as estatísticas da pobreza absoluta. Nas pesquisas que listam os povos mais empreendedores do planeta, os brasileiros aparecem nos primeiros lugares. A mobilidade social no país está entre uma das mais altas do planeta. Cerca de 80% dos brasileiros que se encontram hoje no topo da pirâmide social tiveram uma origem mais humilde. Eles começaram a vida num patamar inferior e foram subindo vários degraus ao longo da carreira profissional. Por que os miseráveis não entram nessa roda ascendente? Porque não se qualificam sequer para os degraus mais baixos da engrenagem. "O fato de reunir tanta miséria faz do Brasil um caso singularíssimo", afirma o economista Edmar Bacha, responsável nos anos 70 pela criação do termo Belíndia, usado para definir um país onde convivem a riqueza belga e a miséria indiana. Essa perplexidade diante de uma nação com diferenças tão marcantes entre os mais ricos e os mais pobres já assaltara, no fim do século XIX, o primeiro-ministro inglês Benjamin Disraeli (1804-1881). "Somos dois países em um só território", dizia ele, para justificar o ímpeto igualitário da reforma social que marcou seu governo.
A questão da miséria no Brasil tem componentes ainda mais perversos que a simples escassez de recursos – que caracteriza o problema em outros países, especialmente no continente africano. Ela abrange dois grandes paradoxos. O primeiro deles é que, no Brasil da miséria, há comida sobrando. O prêmio Nobel de Economia Amartya Sen explica que alguns países conhecem a fome como resultado da ausência de alimentos. Em outros, a fome é resultado da falta de dinheiro por parte de uma fatia da população. Ásia e África convivem com a fome clássica há séculos. Ali falta comida. A atual produção de alimentos no continente africano está 20% abaixo da registrada na década de 70, quando a população tinha metade do tamanho. No caso brasileiro, no mesmo período, a safra de grãos mais que dobrou. E o preço caiu. Enquanto o Brasil aprendeu que por aqui "em se plantando tudo dá", Ásia e África conheceram justamente o inverso. Em 1333, a fome matou 4 milhões de chineses numa única região. Em 1770, vitimou pelo menos 10 milhões de indianos. A Etiópia, que virou sinônimo de fome na década de 70, perdeu um terço de sua população na miséria entre 1888 e 1892.
VIVENDO COMO ANIMAIS - Completamente excluídos das engrenagens de desenvolvimento da sociedade, os miseráveis são reduzidos a uma condição subumana. Seu único horizonte passa a ser a luta feroz pela sobrevivência. No lixão de Valparaíso, a poucos quilômetros de Brasília, há gente disputando os restos com os animais.
O segundo paradoxo é que nunca se gastou tanto dinheiro na área social e, mesmo assim, a situação não melhora. Os governos municipais, estaduais e federal arrecadam na forma de impostos, taxas e contribuições o equivalente a 34% do PIB. De cada 10 reais arrecadados, 6 são investidos na área social. São usados anualmente 21% do PIB em políticas nessa área. Nenhuma outra nação da América Latina gasta tanto. O governo conseguiu realizar até mesmo uma façanha quando criou o Comunidade Solidária, pilotado pela primeira-dama Ruth Cardoso. O projeto eliminou as repartições-balcão da área social, como a Legião Brasileira de Assistência ou o Ministério do Bem-Estar Social. Em vez da corrupção, surgiu a figura da parceria entre os três níveis de governo e as organizações da sociedade civil. Graças ao Comunidade Solidária e ao chamado terceiro setor, a assistência social vive um momento especial. Um exército de voluntários que já conta com mais de 20 milhões de pessoas ajuda a tornar menos sofrida a vida de doentes, menores e idosos abandonados e os miseráveis. Infelizmente, tal apoio não basta para reverter os indicadores sociais. E por quê?
Uma explicação diz respeito ao desempenho da economia. Há uma ligação direta entre crescimento e movimentação ascendente dos pobres na escala social. Entre 1950 e o fim dos anos 70, fase de crescimento, a taxa de pobreza caiu. Na década perdida de 80 e na década frustrada de 90, a economia se comportou mal e a taxa de miséria subiu. Alguns exemplos desse verdadeiro tobogã social: na crise do petróleo, de 1979, o total de miseráveis saltou de 22% da população para 24%. Chegou a 25% no auge da recessão de 1983 e atingiu seu ponto mais baixo em 1986, durante o Plano Cruzado, com 9,8%. Como o plano não vingou, a inflação ressurgiu e o número de pobres aumentou. A taxa chegou a 21,4% da população em 1990. Com o Real, caiu a um patamar próximo a 15%. Mas desde então se estabilizou. Na prática, o país pouco evoluiu nesse campo em 25 anos. Os estudiosos afirmam que a taxa de miséria só entrará em queda quando a economia voltar a crescer com mais força.
Pesquisadores do governo fizeram várias simulações para averiguar o tipo de impacto sobre a pobreza que o crescimento econômico poderia proporcionar. A conclusão de um desses estudos é que o crescimento, quando associado a um modelo de distribuição de renda, pode transformar por completo uma nação. Hong Kong, Cingapura, Taiwan e Coréia do Sul acharam uma saída por essa via. Nos anos 60 eram países mais atrasados que o Brasil e hoje já estão bem à nossa frente em termos sociais. A fórmula usada nesse período combinou investimentos maciços em educação, saúde e reforma agrária. Quando se fala em distribuição de renda, a inclinação natural de alguns governantes é imaginar a criação de um novo imposto, uma espécie de CPMF da fome. É uma solução perigosamente enganadora. "Impostos para erradicar a pobreza tiram a competitividade das empresas, diminuem o potencial de crescimento do país, reduzem a renda e o número de postos de trabalho", afirma o ex-ministro Mailson da Nóbrega.
Mais relevante que criar outras fontes de receita é discutir o destino do dinheiro que o governo arrecada. O recurso gasto pela área social do governo é insuficiente não porque se desvia, mas porque vigora no país um modelo concentrador reforçado pela Constituição de 1988. O professor José Márcio Camargo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, fez as contas sobre a natureza das despesas sociais (educação, saúde, previdência e assistência social). Do total de recursos gastos com educação, por exemplo, 60% se destinam às universidades estatais, onde estudam os mais favorecidos. O programa de bolsas de estudo do governo segue no mesmo caminho. Apenas 0,3% do dinheiro fica com os 20% mais pobres. Os 20% mais ricos embolsam 34% do total. No caso da saúde, a esmagadora maioria dos recursos fica com a medicina curativa e a menor parte dirige-se aos gastos preventivos. Uma parcela ínfima das despesas sociais vai para o saneamento, forma importante de melhorar a expectativa de vida ao nascer e reduzir a mortalidade infantil. A Previdência Social, lembra o professor, é o exemplo mais grave. Só 7% do dinheiro gasto com o sistema de pagamento de aposentadorias fica com os 20% mais pobres. Os 20% mais ricos recebem 30% do total. Camargo arrisca um cálculo: se o Congresso Nacional aprovasse uma reforma na Previdência que eliminasse o déficit do sistema e obrigasse os estudantes ricos das universidades do governo a pagar mensalidade, isso liberaria 50 bilhões de reais para atender os pobres. "Os recursos sociais deveriam ser apropriados pelos pobres, mas acontece justamente o contrário", afirma Camargo. Fica a sugestão aos candidatos ao governo neste ano de eleições presidenciais.
Se o Brasil adotasse o modelo proposto por Camargo apenas no campo da educação, ou seja, se concentrasse as despesas no ensino básico e deixasse de lado os gastos com as universidades federais, talvez conseguisse operar uma pequena revolução. Uma pesquisa recente descobriu que, se o pai não estudou, o filho só fica três anos na escola. Mas, se o pai tiver cursado o ciclo elementar, ainda que sem completá-lo, o tempo de permanência do filho na escola dobra. No limite, filhos de quem fez o doutorado estudam durante catorze anos. A conseqüência econômica da educação é fabulosa. Um trabalho do Ipea mostra que a garantia de escolaridade de cinco anos para toda a população brasileira faria a miséria cair 6%. A mesma garantia por dez anos reduziria a pobreza em 13%. "Desarmar os mecanismos que concentram renda no Brasil é o único caminho para tirar as pessoas da linha de miséria e construir um modelo de sociedade mais justo", lembra o economista Marcelo Néri, estudioso da Fundação Getúlio Vargas.
FAMÍLIAS SEM ESPERANÇA - As minorias também estão entre as principais vítimas da miséria. Na região do município de Dourados, em Mato Grosso do Sul, 9 000 índios vivem em condições de extrema pobreza. Eles passam o mês esperando por uma cesta básica doada pela prefeitura e seu patrimônio se resume à lona do barraco, à roupa do corpo e a uma panela velha.
Como conseqüência do emprego inadequado dos recursos, o Brasil aparece todos os anos nas listagens internacionais como um dos países com maior concentração de renda do planeta. Significa dizer que, apesar de não se tratar de uma nação pobre, perpetua-se um fosso gigantesco entre a base e o topo da pirâmide. No país mais rico do mundo, os Estados Unidos, a diferença de renda média entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos é de oito vezes. Na Alemanha, ela é de seis vezes. Nas nações do Terceiro Mundo, a conta é mais desigual, mas nada se compara ao Brasil. No Chile, a diferença é de dezoito vezes e na Guatemala, de trinta. Pois bem: em solo pátrio, essa diferença é de 33 vezes. Numericamente, isso pode ser traduzido de outras formas: 1% da população, a parcela mais rica, detém a mesma quantidade de recursos que os 50% mais pobres. Outro modo de ver esse problema é tomando como base os 10% mais ricos. Juntos, eles concentram metade da renda nacional.
Um dos métodos mais precisos para aferir o grau de desigualdade social de uma nação é um índice chamado Gini, em homenagem a Corrado Gini, pesquisador italiano que o criou. O Gini brasileiro permanece ruim e inalterado há mais de vinte anos. Há alguns meses, ao avaliar essas estatísticas e fazer um balanço positivo de seu governo nessa área, o presidente Fernando Henrique Cardoso concluiu seu raciocínio com a seguinte frase: "Houve uma melhoria muito pequena na distribuição de renda, muito pequena". Está na hora de mudar isso. Uma saída razoável é valer-se das diferenças na busca da solução. Por que não convocar as melhores cabeças do Brasil-Bélgica para melhorar de vida a porção Índia? Com a palavra, os candidatos.
A maior parte das pessoas associa a desnutrição a imagens de TV feitas na África, onde legiões de esquálidos esperam que organismos internacionais enviem a próxima refeição. É muito difícil encontrar esse tipo de desnutrido no Brasil. Por aqui é mais comum a imagem da criança "gordinha", falsamente vendendo saúde, como o bebê que aparece na fotografia ao lado. Ele se chama Mateus Barbosa de Souza, tem 3 anos e meio, mas pesa tanto quanto um bebê de 8 meses.
Mateus sofre de subnutrição extrema e não está gordo, mas inchado. Com 3 anos, não anda e só aprendeu a falar "pai". Os sintomas de sua desnutrição foram identificados pela médica Iara Vianna da Silva, que trabalha na cidade de Itinga, em Minas Gerais, onde o garoto vive com o pai, a mãe e três irmãos. Trata-se de mais uma vítima da kwashiorkor. A doença, batizada com uma palavra de origem africana, é resultado da falta de proteína e de outras substâncias, como vitaminas e sais minerais. A kwashiorkor é comum na África e no Brasil, onde as crianças ingerem carboidratos, presentes no arroz, no milho e na mandioca, por exemplo, mas têm carência das proteínas da carne, um alimento caro.
Sem energia para gerar células de defesa, o sistema imunológico enfraquece a tal ponto que qualquer infecção pode matar a criança. Essa era a preocupação da médica quando prescreveu a Mateus a receita reproduzida nesta página. A esperança da doutora é que o garoto sobreviva e tenha forças para lutar contra as seqüelas naturais do quadro. A mais grave é a má-formação do sistema neurológico. O dano é irreversível na maior parte dos casos, e uma das principais conseqüências é a dificuldade de aprendizado. "É triste mas comum ver que algumas famílias já podem estar com o futuro comprometido", diz a médica Iara.

A miséria inercial
Uma das maiores realizações do presidente Fernando Henrique Cardoso no processo de estabilização da economia foi acabar com a chamada "inflação inercial", que impedia que ela ocorresse. Durante os anos 80, os preços eram corrigidos mensalmente com base na inflação calculada no mês anterior. O que acontecia? No mês seguinte, a inflação seria igual à do mês anterior – pelo menos. Estava criado um ciclo vicioso. Quando debatem a estabilidade, os economistas gostam de se referir ao tal "componente inercial" da extinta inflação, que foi destruído. Havia uma dificuldade adicional para matar a inflação: ela já era parte da cultura nacional, como se fosse natural corrigir preços em 80% todos os meses. Essa visão contaminou uma geração.
Pois a miséria, um desafio tão ou mais monumental que a inflação antes do Plano Real, também tem um componente inercial. O problema não foi criado por este ou aquele governo, mas ao longo da história do país, e se avoluma ano a ano. Entre as famílias mais pobres, registra-se hoje uma taxa de natalidade de cinco filhos, maior que a média entre as faixas mais altas da pirâmide social. Perpetua-se assim a pobreza, que cresce num ritmo maior que a capacidade de geração de riqueza e empregos da economia.
O primeiro contingente de miseráveis surgidos no país foram os escravos. Mesmo depois da Abolição, eles continuaram vivendo numa situação de pobreza extrema. Essa herança reflete-se até hoje em estatísticas como as taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil, proporcionalmente maiores entre a população negra. Nos anos 30, o país começou a dar seus primeiros passos para se tornar mais urbano e industrial. O então presidente Getúlio Vargas promoveu mudanças significativas nas relações trabalhistas, o que certamente beneficiou muita gente, mas foi um desenvolvimento seletivo. Quem tinha emprego e estava nas cidades passou a ter a profissão regulamentada e a ganhar 13º salário, entre outros benefícios. Melhorou de vida. Os que na mesma época estavam fora do mercado de trabalho continuaram na pobreza.
A partir dos anos 50, durante o governo de Juscelino Kubitschek, o Brasil entrou num processo de industrialização convulsiva, simbolizado pelo slogan "Cinqüenta anos em cinco". Financiadas pelo Estado, surgiram a malha rodoviária, a indústria automobilística, diversas universidades e as grandes usinas de energia. De 48º PIB mundial na década de 60, o país saltou para a 8ª posição, vinte anos depois. O progresso trouxe alguns efeitos colaterais: aumentou as diferenças regionais entre o Sudeste, onde se concentraram os investimentos da indústria, e o Nordeste, que permaneceu atrelado a uma base de economia rural atrasada e sujeita a intempéries como a seca. As faixas mais altas da pirâmide social foram as mais beneficiadas por esse processo de desenvolvimento, que teve seu auge na década de 70. Sua renda cresceu num ritmo mais acentuado que o das camadas pobres. Foi sempre assim. Com uma singela exceção: o período inicial do Plano Real, quando milhões de pobres se beneficiaram do fim do imposto inflacionário e passaram a ter renda mínima para a sobrevivência. http://www2.uol.com.br/veja/230102/p_082.html
As mudanças econômicas atingiram todos os brasileiros, do mais modesto ao mais rico. A porção mais favorecida da sociedade, formada pelo empresariado, precisou se adaptar a uma feroz concorrência estrangeira pós-abertura da economia. Muitas empresas quebraram, outras tantas foram compradas por multinacionais. Os miseráveis, que representavam perto de 17% da população há 25 anos, hoje são 14,5% – um ganho pequeno quando se leva em conta que nesse período a renda per capita aumentou quase 40%. Mas até entre os miseráveis houve algum ganho. No caso da classe média, ao contrário, houve perda. Seu tamanho aumentou em 2%, mas sua renda média decaiu. Esse segmento social é a base da economia, e isso o torna mais sensível a trepidações. Para se ter uma idéia de seu peso, façam-se as contas. A classe média brasileira representa 23% da sociedade. Com esse tamanho, ela detém 38,8% da renda nacional, fica com 54% dos remédios vendidos no Brasil, faz 55% das compras de supermercado e compra 90% dos aparelhos de televisão comercializados no país. É ela também que contrata a maioria dos planos de saúde e de aposentadoria. "Qualquer alteração ocorrida no país atinge a classe média em cheio", diz o economista Waldir José de Quadros, da Universidade de Campinas, um dos maiores especialistas em estudos sobre essa faixa da sociedade. http://www2.uol.com.br/veja/200202/p_098.html

Pnad confirma empobrecimento e esvaziamento do campo
A população rural encolheu e a renda do trabalhador do campo diminuiu. Esse é mais um dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2001), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada na semana passada. O levantamento foi feito entre 1999 e 2001. Segundo análise da assessoria técnica da liderança do PT na Câmara, os números confirmam "o aprofundamento da desagregação social brasileira conseqüente do projeto neoliberal intensificado desde meados da década de 1990". Segundo o Pnad, o "esvaziamento" populacional das áreas rurais do Brasil aconteceu em contraste com o aumento da população brasileira, que ampliou de 160.336.471 habitantes em 1999, para 169.369.557 em 2001. Já a população rural encolheu 5,3 milhões de habitantes, passando de 32.585.066 pessoas, para 27.269.877 pessoas. Na análise de Gerson Teixeira, assessor para a área agrária do PT na Câmara, esse fato desmistifica três outros sustentados pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. O primeiro é a idéia difundida de que o êxodo rural já havia estacionado no Brasil face ao um suposto "novo rural" em emergência com estancamento do processo migratório. O Pnad joga ainda por terra a promessa de criação de 3 milhões de empregos na agricultura feita pelo então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso. Os dados, na verdade, confirmam o agravamento da pobreza nas áreas rurais do país, com o crescimento de 7,9% no número de domicílios com rendimento de até um salário mínimo. Esses domicílios, que somavam 1,1 milhão em 1999, tiveram um incremento de 143,8 mil em 2001. Na demais faixas de renda, ocorreu a redução generalizada do número de domicílios rurais, comprovando o definhamento da renda nas áreas rurais. De 1999 para 2001 constatou-se que o número de famílias com rendimento superior a vinte salários mínimos caiu de 1,1% para 0,7% em 2001. Famílias em domicílios a partir da faixa de renda de mais de três salários mínimos foram reduzidas de 2,3 milhões, em 1999, para 1,5 milhões. Domicílios com famílias com renda de até três salários mínimos caíram também de 5,70 milhões em 1999, para 5,3 em 2001. A íntegra do documento pode ser lida em
www.pt.org/assessor/agrario.htm.
INFORMES - 17/set/2002 - N° 2.624 - Ano XII

24. Consumo
Para passarmos de uma consciência ingênua para uma consciência critica e compreendermos o que esta acontecendo, temos que saber que o mundo tem o que se chama de "mercados maduros". "Mercado maduro" é o mercado em que o crescimento do consumo é equivalente ao incremento vegetativo da população, ou seja, se a população cresce aumenta o consumo. Se não cresce, o consumo continua estático. Assim o consumo de cerveja nos EUA, por exemplo, cresceu 2% acumulado nos últimos 5 anos e devera crescer apenas 2% nos próximos 5
anos.
No Japão 35 prefeituras exigem um atestado que diga que você tem onde colocar seu carro para que um concessionário possa vender um automóvel novo a você - problema de espaço vital. O consumo de biscoitos na Inglaterra não cresce ha dez anos. Esses mercados maduros - EUA, Europa e Japão - onde se encontram as empresas igualmente maduras - IBM, Toyota, Electrolux, etc. - precisam de mercados emergentes onde o crescimento do consumo seja maior do que o incremento vegetativo da população. Quais são esses maiores mercados hoje no mundo? Brasil, Índia e China.
Mas não nos iludamos muito com a China. A China tem 76% de sua população em campesinato. A Índia 72% e o Brasil apenas 22%. Assim, o pais pronto para consumir produtos ocidentais de alguma tecnologia que não seja bicicleta, alfanje, etc. e o Brasil e por extensão o Mercosul. Por isso estão todos aqui e querendo investir mais e mais aqui. O mercado brasileiro, segundo dados da Nielsen, cresceu nos últimos 5 anos:
*369% em mistura para bolos
*310% em alimentos para gatos
*282% em leite flavorizado
*273% em alimentos para cães
*219% em leite longa vida
*201% em massas instantâneas
*176% em cereais matinais
*116% em carnes congeladas
*81% em água mineral
O Brasil e hoje um mercado que apresenta alguns dados impressionantes:
*1,3 milhão de lavadoras de roupa
*82% mais que no Canadá
*4º maior mercado do mundo
*8,02 trilhões de litros de refrigerantes
*343% mais que no Canadá
*3º maior mercado do mundo
*US$1,3 bilhão em alimentos diet ou light
*US$100 milhões em 1990
*US$6 bilhões em 2010
*63,4 mil toneladas de creme dental
*456% mais que na Itália
*51,4 mil títulos de livros
*12% mais que na Itália
*US$1,2 bilhão em CD's
*5º maior mercado fonográfico do mundo
*681,9 mil toneladas de biscoito
*27% mais que no Japão
*2º maior mercado do mundo
*3 milhões de geladeiras
*66% maior que no Reino Unido
*4º maior mercado no mundo
*11 milhões de usuários da Internet
*95% das declarações de IR foram enviadas via Internet
*40% do total na América Latina e o dobro do México
E é importante que saibamos que somente a chamada classe media e emergente no Brasil hoje representa 35 milhões de famílias: (IBGE). Assim, só a classe media e emergente no Brasil é:
*8% maior que a população da Alemanha
*Maior que a Republica Checa, Bélgica, Hungria, Portugal, Suécia, Áustria, Suíça, Finlândia, Dinamarca, Noruega, Irlanda, Nova Zelândia, Luxemburgo e Islândia juntos!
*E maior que a França e Canadá juntos
*Equivale a 1/3 da população dos EUA
*Equivale a 72% da população do Japão.
Nós também não temos consciência de que o Brasil representa 42% do PIB da América Latina e seu PIB representa 13,3% do PIB total dos
paises em desenvolvimento, incluindo a China. E que:
*Todo o PIB da Argentina equivale ao Interior do Estado de São Paulo
*Todo o PIB do Chile equivale ao Grande Campinas (Ernest & Young)
*Todo o PIB do Uruguai equivale ao bairro de Santo Amaro em São Paulo
E preciso compreender que as empresas multinacionais estão investindo aqui porque o Brasil e o 5º pais do mundo em poder de compra com mais de 1 trilhão de dólares em Purchasing Power Parity. Hoje o ranking e: EUA, China, Japão, Alemanha e Brasil. E, acredite, dentro de mais alguns anos - 3 ou 4 - teremos no Brasil juros internacionais. Isso significa que poderemos ir ao banco para que ele financie nosso crescimento a juros decente de 10-12% ao ano e não ao mês. Como a empresa brasileira é a mais "liquida" do mundo, o crescimento será exponencial, uma vez que todas as pesquisas mundiais mostram ser o brasileiro o mais "empreendedor" dos povos. E juros internacionais também farão com que o consumidor brasileiro possa consumir mais, dever mais, criando um circulo virtuoso de crescimento do mercado. Dai a razão de todos os bancos internacionais estarem comprando ou expandindo suas ações de varejo no Brasil.
Agora e o momento de acreditar e investir, lembrando que o futuro do Brasil é maior que o seu passado. O Brasil e um cálice de vinho com metade cheia e metade vazia. Mas é importante não vermos só a parte vazia desse cálice. Ela existe e é grave, mas existe uma parte cheia que esta atraindo a atenção do mundo inteiro. Valorizemos o nosso país. Luiz Marins • Antropólogo. Estudou Antropologia na Austrália (Macquarie University) e na Universidade de São Paulo (USP)
No caso do Brasil, os ricos são uns dois milhões, segundo o Banco Mundial.
Sua capacidade de organização é tão produtiva, que dominam todo o restante do país, que gira hoje em torno de 168 milhões de habitantes, dos quais quase 120 milhões são miseráveis, pobres e quase pobres, alcançando um dos maiores percentuais de concentração de riqueza em suas mãos, em termos planetários, ficando atrás somente de dois países africanos. (Jornal do Brasil, 18 de junho de 2000)
Matematicamente, estaríamos reduzindo a grandeza do denominador na equação que divide a riqueza por todos os brasileiros. Isto é a parte da riqueza que a plutocracia permite que seja dividida pelos demais... Já que ela, além de receber uma renda média 150 vezes maior que a média dos mais pobres, mesmo sendo 1,3% da população, devora 53 % da riqueza nacional (o dobro do que ocorre nos USA). Isto é, sobra apenas 47% para serem divididos por 98,7% de nosso povo. (Jornal do Brasil, 18 de junho de 2000)
As mudanças econômicas atingiram todos os brasileiros, do mais modesto ao mais rico. A porção mais favorecida da sociedade, formada pelo empresariado, precisou se adaptar a uma feroz concorrência estrangeira pós-abertura da economia. Muitas empresas quebraram, outras tantas foram compradas por multinacionais. Os miseráveis, que representavam perto de 17% da população há 25 anos, hoje são 14,5% – um ganho pequeno quando se leva em conta que nesse período a renda per capita aumentou quase 40%. Mas até entre os miseráveis houve algum ganho. No caso da classe média, ao contrário, houve perda. Seu tamanho aumentou em 2%, mas sua renda média decaiu. Esse segmento social é a base da economia, e isso o torna mais sensível a trepidações. Para se ter uma idéia de seu peso, façam-se as contas. A classe média brasileira representa 23% da sociedade. Com esse tamanho, ela detém 38,8% da renda nacional, fica com 54% dos remédios vendidos no Brasil, faz 55% das compras de supermercado e compra 90% dos aparelhos de televisão comercializados no país. É ela também que contrata a maioria dos planos de saúde e de aposentadoria. "Qualquer alteração ocorrida no país atinge a classe média em cheio", diz o economista Waldir José de Quadros, da Universidade de Campinas, um dos maiores especialistas em estudos sobre essa faixa da sociedade.
http://www2.uol.com.br/veja/200202/p_098.html

IBGE registra queda no rendimento do trabalhador
O rendimento médio do trabalhador brasileiro registrou queda de 10,3% nos últimos cinco anos. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE, o ganho médio dos trabalhadores caiu de R$ 663, em 1996, para R$ 595 em 2001. O resultado é reflexo do baixo nível de atividade econômica, define o economista Guido Mantega, um dos principais assessores econômicos do PT. "Os números mostram um quadro de deterioração da economia", afirmou. Segundo ele, com o baixo crescimento do PIB, as empresas foram obrigadas a cortar custos para não diminuir seus lucros. Por outro lado, o aumento das taxas de desemprego diminuiu o poder de barganha dos trabalhadores, que acabaram aceitando receber salários menores e a trabalhar sem carteira de trabalho assinada. INFORMES - 13/set/2002 - N° 2.622 - Ano XII


25. Agricultura Camponesa
A agricultura capitalista nos países desenvolvidos é constituída pela combinação de dois tipos de unidades empresariais, a patronal e familiar (ambas capitalistas).
1) A patronal constitui a produção capitalista "típica": o capitalista não trabalha na produção nem na gestão, todo o trabalho é assalariado em regime de divisão técnica (cooperação), a produção é em grande escala, com alta tecnologia e produtividade.
2) As unidades familiares não são mais do que "variantes" da anterior. Temos duas subvariedades:
2.1 - Produção capitalista incompleta ou capitalista familiar/assalariada. Suas características são: intensivas em tecnologia, produzindo em grande escala, combinando trabalho do próprios capitalistas com mão-de-obra assalariada. É incompleta porque a divisão técnica do trabalho (cooperação) é incompleta, a administração é individual dos capitalistas, por tanto, pouco especializada.
2.2 - Pequena produção familiar ou pequeno-burguesa. Diferente da anterior, esta categoria refere-se ao tipo "camponês". Este tipo se caracteriza pela gestão rudimentar e o trabalho individual do produtor, estafante, insuficiente e em bases tecnologicamente insuficientes.

Caracterização da Agricultura Familiar
São caracterizados como Agricultura Familiar os estabelecimentos que se enquadram simultaneamente em duas condições fundamentais:
a) A direção dos trabalhos do estabelecimento é exercida pelo produtor. Com isso, sempre que
um estabelecimento é dirigido por um gerente, automaticamente passa a ser patronal.
b) O trabalho familiar é superior ao trabalho contratado. Ou seja a quantidade de UTF (Unidade Trabalho Familiar) é superior à UTC (Unidade de Trabalho Contratada). No caso da UTC ser igual ou superior, o estabelecimento é caracterizado como patronal.
No entanto, para evitar uma distorção mais forte, adicionou-se um terceiro critério complementar, excluindo-se como agricultura familiar os estabelecimentos cuja área máxima é superior a 15 vezes o módulo fiscal médio regional. Com isso, na região Sul, a área máxima da agricultura familiar é de 280,5 ha. Todos os estabelecimentos com área superior são caracterizados como patronais.
Nos últimos 30 anos, as políticas públicas para a agricultura brasileira foram marcadas pela promoção do modelo agrícola baseado na grande escala de alguns cultivares, na geração de divisas externas, fortes inversões em tecnologias e abastecimento do mercado de alimentos interno. Esse modelo de política tem como um de seus principais problemas a falta de preocupação com a questão do desenvolvimento local, não priorizando o desenvolvimento sustentável de um número expressivo de municípios. Contraditoriamente a tal perspectiva, durante todo este período, predominou/a a existência da agricultura familiar no campo.
O diagnóstico anterior não é novo, foi motivo de muitas análises no processo de desenvolvimento do país. A novidade fica por conta da identificação/visibilidade da agricultura familiar, no período recente, como um ator social de extremo potencial para centrar políticas de desenvolvimento para a agricultura. Neste contexto de problematização, a seguir apresentam-se algumas razões para apoiar iniciativas em torno do fortalecimento da agricultura familiar e, nos pontos finais, uma análise da relevância para os pequenos municípios e uma rápida contextualização do tecido social formado ao redor da defesa da agricultura familiar.

Razões econômicas para fortalecer a agricultura familiar
Segundo dados do Censo Agropecuário de 1995/96, existem 4.859.864 estabelecimentos rurais, que ocupam uma área de 353.6 milhões de ha. Neste ano agrícola o Valor Bruto da Produção (VBP) Agropecuária foi de R$ 47.8 bilhões. Do total de estabelecimentos, 85.5% são familiares e ocupam 30.5% da área, participando com 37.9% do VBP.
A Renda Total média por estabelecimento familiar no Brasil é de R$ 2.717/ano, bem inferior a renda patronal, que é de R$ 19.085/ano. No Sul os agricultores familiares têm uma renda total média de R$ 5.152.14, enquanto os patronais é de R$ 28.158,30/ano. Mas quando comparamos a Renda Total/ha, a agricultura familiar se mostra mais eficiente, produzindo no Brasil R$ 104,00/ha contra R$ 44,00/ha dos patronais. Na região Sul a diferença é ainda maior, R$ 240,69/ha contra 99,47/ha, respectivamente.
Apesar das disparidades da concentração de terras, a agricultura familiar, no Brasil, é responsável por 56% da oferta interna de alimentos e matérias primas vegetais e por 67% da oferta interna animal. Se considerados os alimentos básicos, a agricultura familiar contribui com quase 70% da oferta.
Do total brasileiro, a quantidade colhida pela agricultura familiar em 1996 representou, por exemplo:
Algodão: 44%
Batata inglesa: 64%
Feijão: 79%
Fumo: 98%
Mandioca: 85% Milho, 44%
Tomate, 67%
Trigo, 45%
Banana, 75%
Café: 54%
Adotou-se desde o início do Plano Real a cesta básica como âncora auxiliar do Real, mantendo-a barata, o que assegura o apoio popular ao Real, por conta do maior poder de compra do salário.
Como meio de derrubada dos preços agrícolas da cesta básica e mantê-la barata, recorre-se com freqüência a importações maciças de alimentos (que poderiam estar sendo produzidos internamente e criando empregos), provocando a desativação da produção agrícola nacional, e portanto desemprego
Essa política de importação de produtos para a cesta básica “provocou em menos de três anos da existência do Real a desarticulação de cerca de 400 a 500 mil empregos agrícolas e provavelmente de um número igual ou superior de estabelecimentos rurais familiares que se desativaram nesse processo ou refluíram para o sistema de economia de subsistência”. Do ponto de vista do emprego, “isto se torna tanto mais grave quando se sabe que no mesmo período o processo de sucateamento industrial e de serviços produziu desocupação urbana ainda mais acentuada”.

26. O Custo do Trabalho
Em 1959 se trabalhava apenas 65 horas e 10 minutos para conseguir a comida por mês. Em 1966 já eram 109 horas e 15 minutos; em 1985 já eram 177 horas e 44 minutos e chegamos até já em 242 horas e 55 minutos em fevereiro de 1986 – isto que segundo a legislação se trabalha apenas 220 horas ao mês.
Custo da mão-de-obra no setor manufatureiro –1993 (Países selecionados) - (em dólares)
País Custo horário
Alemanha (*) 24,87
Noruega 21,90
Suíça 21,64
Japão 16,91
Estados Unidos 16,40
Reino Unido 12,37
Taiwan 5,46
Cingapura 5,12
Coréia do Sul 4,93
Hong Kong 4,21
BRASIL 2,68
México 2,41
Malásia 1,80
Tailândia 0,71
Com base no maior valor para a cesta básica e considerando o preceito constitucional que estabelece que o salário mínimo deve ser suficiente para a manutenção de uma família, suprindo os gastos com alimentação, moradia, educação, saúde, vestuário, higiene, transportes, lazer e previdência, o DIEESE estima, mensalmente, o valor do salário mínimo necessário. Em abril de 2002, tomando por base o custo da cesta de Porto Alegre, o salário mínimo deveria ser de R$ 1.143,29, ou seja, 5,7 vezes o valor vigente, de R$ 200,00. (DIEESE)
Quando se discutem alternativas para estimular a geração de empregos, freqüentemente se fala em medidas para desonerar a folha de pagamentos dos encargos sociais que incidem sobre ela, como forma de redução do custo de contratação de mão-de-obra pelas empresas. A experiência recente de alguns países que buscaram alternativas de precarização da relação de trabalho não indica resultados positivos quanto à geração de empregos. É o caso, por exemplo, da Espanha e da Argentina, que promoveram importantes mudanças na legislação sobre emprego, no início dos anos 90, e, não obstante, ainda convivem com elevadas taxas de desemprego.

Dados do Censo
Família com pessoa de referência do sexo feminino (%). O dado mais impressionante do Censo: as mulheres gaúchas já são responsáveis pelo sustento e pela liderança de um em cada quatro lares. Na Região Metropolitana, a relação é de um para cada três lares.
1992 1999
Brasil 21,9 26
RS 20,7 25,2
RMPA 24 33
RMPA = Região Metropolitana de Porto Alegre
Pode-se dizer que os encargos sociais representam 30,89% do salário contratual, ou 27,8% da folha média mensal da empresa, ou 25,1% da remuneração total recebida pelo trabalhador, ou, ainda, 20,07% do custo total do trabalho para a empresa, como veremos na tabela a seguir

Desembolso total mensal para empregar um trabalhador (Salário contratual hipotético de R$ 100,00

Itens de despesa Subparcelas Desembolso (em R$)
1. Salário contratual 100,00
2. 13º e adicional de 1/3 de férias
(como proporção mensal) 11,11
3. Folha de pagamentos média mensal (1 + 2)
(base de cálculo dos encargos sociais) 111,11
4. FGTS e verbas rescisórias
(proporção mensal) 11,93
5. Remuneração média mensal total do
trabalhador (3 + 4) 123,04
6. Encargos sociais
(incidentes sobre R$ 111,11) 30,89
6.1 - INSS (20%) 22,22
6.2 - Seguro de acidentes de trabalho
(2% em média) 2,22
6.3 - Salário-educação (2,5%) 2,78
6.4 - Incra (0,2%) 0,22
6.5 - Sesi ou Sesc (1,5%) 1,67
6.6 - Senai ou Senac (1,0%) 1,11
6.7 - Sebrae (0,6%) 0,67
7. Desembolso total mensal do
empregador (5 + 6) 153,93
Elaboração: DIEESE.

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